E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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Não quero discutir aquilo que constitui uma questão de gosto, mas quero fazer alguns comentários sobre o segundo e o terceiro problemas, começando pelo último. Observámos anteriormente que a marca distintiva das afirmações sobre a chegada do Filho do Homem sobre as nuvens consiste numa conceção notável da forma como o Reino chega. Mas esta compreensão da forma como o Reino vem era típica do pensamento judaico do século I num aspeto muito importante. Deus era sempre o ator principal. É certamente isto que se passa nos Evangelhos: a única coisa que Jesus pede sempre às pessoas que elas façam é que vivam uma vida justa. Não existe qualquer material no qual ele inste as pessoas a criarem uma sociedade alternativa que seria o Reino de Deus. Existem poucas passagens que se coadunem com a categoria 5, as que eu enumerei também não apelam à criação de uma entidade social alternativa. Jesus disse que o Reino é como o fermento; isto alude à sua invisibilidade. Ele também é parecido com um grão

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de mostarda. Aqueles que criaram, mais tarde, estruturas sociais compostas por pequenas células em cada vila e cidade podiam afirmar que eram o fermento na massa, como é óbvio; estavam a tentar melhorar a sociedade. Mas aqueles que ouviam estas parábolas na Galileia sen­

tiam-se motivados para procurar os indícios do Reino invisível que apareceria, um dia, sob a forma de um pão ou de uma grande árvore; as passagens não dizem «criai pequenos grupos de reformadores». Jesus pensava que as pessoas deviam e podiam comprometer-se com o caminho dele; não deviam ficar numa atitude meramente passiva. Mas temos de ter em conta o que ele exigia. Ele disse que as pessoas podiam entrar no Reino (categoria 1) seguindo uma vida justa. De acordo com os indícios existentes, ele pensava que não existia nada que alguém pudesse fazer para trazer o Reino e nem ele próprio podia atribuir lugares no mesmo (categoria 2). O Reino aproxima-se e as pessoas estão à espera dele, mas não podem provocar a sua chegada (categoria 4). Tal como o fermento, também o Reino cresce por si próprio (categoria 5). É sempre Deus que faz aquilo que tem de ser feito, em cada um dos casos, mas os indivíduos que vivem uma vida justa entrarão no Reino. Não há nada que confirme a opinião de que as pessoas podem juntar-se com outros e criar o Reino através da reforma das instituições sociais, religiosas e políticas.

O segundo dos problemas mencionados anteriormente - se Jesus esperava que Deus mudasse o mundo, estava enganado - não é novo. Surgiu muito cedo no cristianismo. É a questão mais importante no documento cristão mais antigo que se conservou até aos nossos dias, isto é, a Carta de Paulo aos Tessalonicenses. Esta diz-nos que os convertidos por Paulo estavam chocados pelo facto de alguns membros da comunidade terem morrido, esperavam que o Senhor regressasse ainda durante a sua vida. Paulo garantiu-Ihes que os (poucos) cristãos mortos seriam ressuscitados, de modo a poderem participar na chegada do Reino, juntamente com aqueles que ainda estivessem vivos quando o Senhor regressasse. A questão da data exata do grande acontecimento aparece em outros livros do Novo Testamento. Existe uma afirmação nos Evangelhos sinópticos (que discutiremos mais pormenorizadamente adiante) que promete que «alguns dos presentes» ainda estarão vivos quando o Filho do Homem chegar. No entanto, o apêndice do Evangelho de João (capítulo 21) apresenta Jesus a discutir com Pedro sobre um discípulo anónimo, chamado «o discípulo que Jesus amava»: «E se Eu quiser que ele fique até Eu voltar, que tens tu com

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isso?» Em seguida, o autor explica: «Foi assim que, na comunidade, correu este rumor de que aquele discípulo não morreria. Jesus, porém, não disse que ele não havia de morrer, mas sim: "Se Eu quiser que ele fique até Eu voltar, que tens tu com isso?"» (Jo 21, 21-23).

A história desta adaptação à ideia de que Deus iria fazer algo dramático durante a vida dos contemporâneos de Jesus é fácil de reconstruir. Jesus disse, originalmente, que o Filho do Homem chegaria num futuro próximo, enquanto os seus ouvintes ainda estivessem vivos. Depois da sua morte e ressurreição, os seus seguidores anunciaram o seu regresso iminente - isto é, limitaram-se a interpretar «o Filho do Homem» como uma referência ao próprio Jesus. Mais tarde, quando as pessoas começaram a morrer, os seguidores de Jesus disseram que alguns ainda estariam vivos quando ele chegasse. Quando quase toda a primeira geração estava morta, insistiram que um discípulo ainda estaria vivo. Depois, este morreu e foi necessário declarar que, realmente, Jesus não tinha prometido nem sequer a este discípulo que ele estaria vivo para ver o grande dia. No momento em que se chega a um dos últimos livros do Novo Testamento - a 2." Carta de Pedro - o regresso do Senhor tinha sido adiado ainda mais; algumas pessoas zombam, dizendo: «Em que fica a promessa da sua vinda?» Mas é preciso não esquecer que «um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos, como um dia» (2 Pe 3, 3-8). O Senhor não está realmente atrasado, antes segue um calendário diferente.

Portanto, nas décadas depois da morte de Jesus, os cristãos tiveram de rever permanentemente as suas primeiras expectativas. Este facto torna muito provável que a expectativa tenha tido origem em Jesus. Estes indícios adquirem inteligibilidade se pensarmos que foi o próprio Jesus que disse aos seus seguidores que o Filho do Homem viria enquanto eles ainda vivessem. O facto de esta expectativa ser difícil para os cristãos do século I contribui para provar que o próprio Jesus partilhava esta expectativa. Também é de notar que o cristianismo sobreviveu muito bem a esta descoberta inicial de que Jesus se tinha enganado.

Vejamos, agora, mais pormenorizadamente aquilo que parece constituir a afirmação central subjacente a esta convicção dos primeiros cristãos. Acabámos de registar que os Tessalonicenses receavam que aqueles que já tinham morrido perdessem o regresso do Senhor: por isso é que Paulo tinha começado por dizer que o Senhor regressaria imediatamente. Este responde às suas ansiedades citando aquilo a que

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chama «a palavra do Senhor» - uma afirmação que ele atribuía a Jesus. A afirmação, tal como ele a cita, é muito parecida com as palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhos. Apresento agora, em colunas paralelas, três versões desta afirmação.




1 Ts 4,15-17


Mt 24, 27s.


Mt 16, 27s.


Nós, os vivos, os que ficarmos para a vinda do Senhor, não precederemos os que faleceram.

Pois o próprio Senhor descerá do Céu, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, e os mortos em Cristo ressurgirão primeiro, depois nós, que estamos vivos ... seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens, para Irmos ao encontro do Senhor

nos ares.


O sinal do Filho do Homem aparecerá no céu e, então, todas as tribos da Terra se la­

mentarão e verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens do céu, com poder e glória.

Ele enviará os seus anjos, com uma trombeta altissonante e eles reunirão os seus eleitos desde os quatro ventos, de um extremo ao outro do céu.


O Filho do Homem há-de vir na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um conforme o seu procedimento. Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui presentes não hão-de experimentar a morte, antes de terem visto chegar o Filho do Homem com o seu

Reino.


Paulo e Mateus têm, no essencial, os mesmos componentes. Se apagarmos da versão de Paulo a sua nova preocupação com os mortos em Cristo, se apagarmos dos Sinópticos a aparente modificação, ao dizer-se que apenas alguns estarão vivos, e se equipararmos «o Filho do Homem», nos Sinópticos, com «o Senhor», em Paulo, temos a mesma afirmação. Esta não prevê «o fim do mundo», provavelmente, mas sim um ato divino decisivo, através do qual «o Senhor» ou «o Filho do Homem» assumirá o poder e reunirá «os eleitos» à sua volta. O que é provável, na opinião de Paulo, é que depois de os vivos e os mortos em Cristo se terem encontrado com o Senhor nos ares, o acompanhem até ao seu Reino na Terra. Numa outra passagem, Paulo anuncia que Cristo irá reinar até que tenha colocado todos os inimigos debaixo dos seus pés, sendo o último deles a morte (1 Cor 15,25 e segs.). Isto quer dizer que os seres humanos continuarão a morrer durante o reinado do

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Senhor. Só depois da derrota da morte é que o Senhor entregará o Reino a Deus (15, 24) e, nessa altura, Deus será «tudo em todos» (15, 28). É possível que Paulo tenha pensado que esta última fase, depois do reinado bem sucedido de Cristo, implicasse a dissolução do universo físico.



Os investigadores que procuram «testar» a autenticidade das palavras de Jesus verão que esta tradição passa a prova com distinção. Primeiro, o acontecimento profetizado não aconteceu realmente; portanto, a profecia não é uma falsificação. É muito mais provável que uma profecia não cumprida seja autêntica do que uma que corresponde exatamente àquilo que aconteceu na realidade, visto que poucas pessoas inventariam algo que não aconteceu, atribuindo-o, depois, a Jesus. Em segundo lugar, a tradição é atestada em mais do que uma fonte. Paulo escreveu a I: Carta aos Tessalonicenses antes da redação dos Evangelhos, portanto, não podia ter dependido de Mateus ou de Marcos. Os autores dos Evangelhos sinópticos não copiaram Paulo, uma vez que escreveram antes da publicação das suas cartas. Além disso, não revelam conhecimento dos pontos que distinguiam o pensamento de Paulo do cristianismo comum. Por conseguinte, Paulo e os autores dos Evangelhos sinópticos possuíam um conhecimento independente destas palavras. Embora fossem um pouco embaraçosas para os sinópticos, estavam implantadas de um modo tão forte na tradição sobre Jesus que estes as conservaram.

O único problema efetivo na compreensão daquilo que Jesus e os seus seguidores esperavam reside no significado da expressão «Filho do Homem». Depois da morte e da ressurreição de Jesus, os primeiros cristãos concluíram que as suas referências à vinda do Filho do Homem constituíam uma forma codificada de dizer que ele próprio regressaria; por conseguinte, transformaram a expressão «o Filho do Homem virá» na expressão «o Senhor virá (ou regressará)». Não temos possibilidade de reconstituir com exatidão o que Jesus tinha em mente, mas analisaremos a expressão «Filho do Homem», bem como outros títulos, no capítulo 15. De momento, basta saber que Jesus esperava que acontecesse algo dramático.

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Portanto, se tivéssemos de decidir o que Jesus pensava de facto, escolhendo entre as afirmações, concluiríamos que ele pensava que Deus interviria de forma dramática na História, num futuro muito pró­ ximo, enviando o Filho do Homem. Esta é a tradição com uma comprovação mais segura. É provável que ele também pensasse aquilo que encontramos na maior parte das passagens: que as pessoas que morreram entrarão no Reino e que, quando Deus enviar o Filho do Homem, haverá um grande julgamento, no qual alguns serão destinados ao Céu e outros à Geena (inferno). Além disso, ele pensava que o poder de Deus se manifestava especialmente no seu próprio ministério. É possível que ele tivesse chamado «o Reino» a este poder presente (ver as discussões anteriores, sobre Lc 17, 20 e segs.; Mt 12,28; Mt 11, 2-6).



No entanto, não penso que a questão fique completamente resolvida através da análise de afirmações concretas. Embora só elas nos possam oferecer todas as cambiantes do pensamento de Jesus, a melhor prova a favor da opinião de que Jesus esperava que Deus interviesse proximamente na história consiste no contexto do movimento que começou com João Baptista (ver capítulo 7). João esperava que o julgamento viesse em breve. Jesus iniciou a sua vida pública com o batismo de João. Depois da morte e da ressurreição de Jesus, os seus seguidores pensavam que ele regressaria para estabelecer o seu Reino ainda durante o tempo de vida deles. Paulo era da mesma opinião após a sua conversão. Os cristãos começaram, desde muito cedo, já do tempo da l.a Carta aos Tessalonicenses (cerca de 50 d. C.), a enfrentar o facto penoso de o Reino ainda não ter chegado. É quase impossível explicar estes factos históricos partindo do pressuposto de que o próprio Jesus não esperava o fim iminente ou a transformação da ordem universal presente. Ele pensava que, na nova era, Deus (ou o seu representante) teria o poder absoluto, sem qualquer oposição.

As pessoas para quem isto é incómodo podem dizer, em desespero de causa, que Jesus foi mal compreendido por todos. Ele queria realmente reformas económicas e sociais. Os discípulos teriam deixado cair esta parte do seu ensinamento e inventado afirmações sobre o Reino de Deus futuro - que, depois, teriam tido necessidade de desdizer, visto que o Reino não chegou. Isto supõe que podemos «saber» coisas para as quais não existem provas, «sabendo», ao mesmo tempo, que a prova que temos se baseia numa total incompreensão. Estas opiniões não mostram senão o triunfo de um pensamento baseado naquilo em que se deseja acreditar.

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Podemos estar completamente seguros de que Jesus tinha uma mensagem escatológica. Como esta palavra é muito importante na discussão tanto do cristianismo primitivo como do judaísmo, gostaria de repetir uma explicação que foi dada anteriormente (p. 1'25). Etimologicamente, «escatologia» significa a discussão ou a reflexão sobre «o fim». O termo «escatologia» é tão comum e tem uma história tão longa nos estudos bíblicos que não podemos ignorá-lo. No entanto, temos de sublinhar que ele pode ser enganador quando utilizado para descrever a mensagem de Jesus, assim como as expectativas de outros judeus em relação ao futuro. Jesus não esperava o fim do mundo no sentido da destruição do Cosmos. Ele esperava um milagre divino que transformasse este Cosmos. Enquanto judeu devoto, ele pensava que Deus tinha intervindo anteriormente no mundo para salvar e proteger Israel. Por exemplo, Deus tinha aberto o mar, para que Israel pudesse escapar à perseguição do exército egípcio, tinha alimentado o povo com maná no deserto e tinha-o levado até à Palestina. Jesus pensava que Deus iria atuar de forma ainda mais decisiva no futuro: Ele iria criar um mundo ideal. Iria restaurar as doze tribos de Israel e a paz e a justiça iriam prevalecer. A vida tornar-se-ia um banquete.



Havia muitos judeus que pensavam da mesma maneira, em termos gerais. A esperança de Jesus em relação ao futuro tornar-se-á mais compreensível se conseguirmos vê-la no seu contexto, pelo que gostaria de dizer algumas palavras sobre o restabelecimento das doze tribos e sobre o significado simbólico dos banquetes no judaísmo do tempo de Jesus. Não se trata de uma descrição exaustiva do pensamento dos judeus sobre o futuro; no entanto, a reflexão sobre estes dois temas ajudar-nos-á a ver que, embora a esperança que Jesus tinha no futuro fosse partilhada por muitos outros judeus do seu tempo, tinha características específicas.

Diziam a história e as lendas judaicas que Israel consistia em doze tribos, cada uma das quais descendente de um dos filhos de Jacob. No século x a. c., as doze tribos dividiram-se em dois reinos, com dez tribos no reino do Norte e duas no do Sul. No século VIII a. c., os assírios conquistaram o reino do Norte. A sua política consistia na dispersão

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dos povos conquistados, a fim de reduzir a hipótese de revolta, e a execução desta política teve como consequência o desaparecimento das dez tribos do Norte. O reino do Sul foi conquistado subsequentemente pelos babilónios, que não dispersaram a população, mas levaram os líderes da nação conquistada para a Babilónia (século VI a. C.). Os persas, sob Ciro, conquistaram a Babilónia e libertaram os judeus exilados. Quando estes judeus que pertenciam às duas tribos do Sul (Judá e Benjamim) regressaram à Palestina, restabeleceram um estado judaico, chamado «Judá».



Apesar do exílio e do passar dos séculos, os judeus mantiveram a memória da perda das dez tribos e muitos tinham esperança de que estas pudessem ser restabelecidas. Por volta de 200 a. c., o sábio Ben Sira esperava o tempo em que Deus haveria de reunir «todas as tribos de Jacob» e «dar-lhes a sua herança, como no princípio» (Sir 36, 11). Por volta de 63 a. c., quando Pompeu conquistou Jerusalém, um poeta devoto previu que Deus voltaria a reunir o Seu povo e a «dividi-lo, de acordo com as suas doze tribos no país» (Salmos de Salomão 17, 28-31). Os membros da seita do Mar Morto esperavam que os exércitos de Israel, divididos em doze grupos, de acordo com as tribos, derrotassem os exércitos dos gentios e restabelecessem o culto de Deus no Templo.

Aqueles que esperavam o restabelecimento das doze tribos, esperavam um milagre, visto que um censo humano nunca conseguiria seguir a pista das dez tribos perdidas. Deus teria de intervir Ele próprio diretamente na História, reconstituindo ou recriando as tribos perdidas. Este milagre resultaria num reino terrestre, no qual o país seria dividido entre as tribos, tal como tinha sido séculos antes. O futuro era descrito, tal como em muitas outras culturas, como um regresso ao início, ou como uma «era de ouro» idealizada - não como uma destruição do Cosmos.

Parece que Jesus partilhava esta esperança de um milagre que restabelecesse Israel. Os doze discípulos julgariam as doze tribos e os seus seguidores chegaram ao ponto de discutir questões relacionadas com a sua futura posição (ver as passagens na categoria 2). No entanto, ao contrário dos sectários do Mar Morto, Jesus não pensava em

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termos de um milagre militar, no qual as tribos reconstituídas lutariam contra os exércitos dos gentios. Parece que esperava que o Filho do Homem descesse à Terra e que os anjos de Deus separassem os eleitos dos maus. Se as palavras sobre o Filho do Homem constituíssem adições cristãs posteriores à tradição, não saberíamos qual a expectativa de Jesus quanto à maneira como o Reino seria restabelecido, mas as outras passagens continuariam a informar-nos de que ele procurava uma era melhor.

Jesus disse aos seus discípulos que beberia vinho com eles no Reino (última ceia, Me 14, 25 e par.). Isto levanta a questão de saber se os judeus em geral esperavam ou não que a nova era fosse semelhante a um banquete. Será que o «banquete», tal como os «doze», era um símbolo típico para a intervenção de Deus? Penso que não. A importância da última ceia no pensamento e na prática dos cristãos levou à sobrevalorização dos banquetes no judaísmo. Há uma passagem de Isaías que se refere ao tempo em que o Senhor preparará «para todos os povos um banquete de carnes gordas, acompanhadas de vinho». Nessa altura, ele «aniquilará a morte para sempre» e «enxugará as lágrimas de todas as faces» (Is 25, 6_8).15 A existência desta passagem signifi­ cava que qualquer um que falasse sobre uma nova era podia utilizar a imagem do banquete. No entanto, a literatura que chegou até nós indica que não eram muitos os que o faziam. Os membros da seita do Mar Morto pensavam que, no futuro, as duas figuras messiânicas se junta­

riam num banquete com o resto dos eleitos, mas não podemos afirmar que eles considerassem as suas refeições diárias como uma antecipação das alegrias da era futura. 16 Jesus referiu-se a um banquete futuro, não só na última ceia, mas também na profecia de que muitos viriam do Oriente e do Ocidente e se sentariam à mesa com os patriarcas de

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Israel (Mt 8, 11 e segs. / / Lc 13, 28 e segs.). Nas parábolas, ele comparava o Reino futuro com um banquete (Mt 22, 1-14; Lc 14, 15-24) e as suas refeições com pecadores e cobradores de impostos (ver o próximo capítulo) podem ter simbolizado a inclusão destes no Reino. Os seus inimigos acusaram-no de ser um beberrão e um glutão. Isto pode constituir um indício de que ele participava em banquetes quando tinha oportunidade; nesse caso, talvez atribuísse um valor simbólico a estas refeições.

Tal não significa, de modo algum, que sempre que os judeus festejavam, estavam a proclamar o Reino de Deus futuro. As festas dos judeus celebravam o passado, com ações de graças. Na Páscoa, a história do êxodo do Egipto era central. Era natural que, quando se recordavam os atos de redenção levados a cabo por Deus no passado, se olhasse com esperança para uma redenção futura: se Deus nos salvou dos egípcios, talvez também nos salve dos romanos. Mas a festa não simbolizava o Reino de Deus futuro. Parece, contudo, que Jesus via os banquetes nesta perspetiva: no Reino futuro, «muitos» sentar-se-iam à mesa com Abraão, Isaac e Jacob; os seus discípulos julgariam as doze tribos; os pecadores, com os quais Jesus comia por vezes, partici­ pariam no Reino; ele beberia vinho com os seus discípulos na nova era.

Portanto, Jesus utilizava, pelo menos, dois símbolos para descrever o futuro Reino de Deus: os doze discípulos que representavam as doze tribos e o banquete. No entanto, tanto quanto se pode dizer com base nas provas que chegaram até aos nossos dias, não falava de forma tão plástica como o faziam alguns visionários. Não deixou nada tão pormenorizado e explícito como o mais escatológico dos Manuscritos do Mar Morto (o Rolo da Guerra e o Rolo do Templo), onde se descrevem as armas, as bandeiras e os pormenores arquitetónicos do templo ideal. Em comparação com estas descrições, o banquete e as doze tribos nas palavras de Jesus constituem algo muito vago. Mesmo assim, os seus seguidores pensavam que fazia sentido discutir quem se sentaria à sua direita e à sua esquerda, quando ele entrasse no seu Reino.

Ao trabalharmos com este tipo de material, nunca podemos ter a certeza em que medida devemos levá-lo à letra. Será que, por exemplo, as pessoas que acreditam no Céu, atualmente, pensam, de facto, que «lá em cima» há anjos com asas e harpas? Ou será que as asas e as harpas constituem metáforas para uma felicidade inefável? Penso que, normalmente, a resposta é esta segunda. Quando se trata de analisar aquilo que os judeus da Antiguidade pensavam, não podemos ter a certeza

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no que diz respeito a este ponto. Há uma passagem em que se diz que Jesus considerava um erro pensar que, na ressurreição, as pessoas casariam (Mc 12, 25 e par.). Isto constitui uma advertência salutar para não se atribuírem a Jesus as visões mais grosseiras e literais da nova era. Embora ele tenha falado de beber vinho no Reino, não descreveu (tanto quanto sabemos) a quantidade de vinho que cada videira produziria (como o fizeram alguns dos primeiros cristãos). Paulo constitui uma analogia parcial com Jesus. As suas afirmações mais explícitas sobre o Reino são aquelas que dizem que Cristo irá «reinar até ter colocado todos os inimigos debaixo dos seus pés», incluindo a própria morte; só então entregará o Reino a Deus (1 Cor 15, 25-28),



assim como que «os santos» (cristãos) irão julgar o mundo (1 Cor 6, 2). Paulo pensava ainda que as pessoas que participarão no novo mundo terão «corpos espirituais»; não serão de «carne e osso», no entanto, possuirão corpos (1 Cor 15, 44.50). Não quero dizer que Paulo e Jesus concordam completamente, mas ambos falam de um mundo que, embora não sendo exatamente igual ao mundo presente, poderá ser reconhecido com um mundo. Embora (perspetiva de Jesus), depois da ressurreição, as pessoas não venham a casar, continuarão a ser reconhecíveis como seres humanos.

Estas sobreposições parciais entre Jesus e outros judeus do seu tempo que pensavam numa nova era (doze tribos) e entre Jesus e Paulo (pessoas que não têm as mesmas necessidades que existem actualmente; o juízo estará nas mãos dos seguidores de Jesus) ajudam-nos a compreender Jesus. Ele não quis fazer descrições exatas do mundo que estava prestes a chegar, mas não pensava que neste não haveria senão espíritos incorpóreos. Pelo contrário, ele esperava uma era nova e melhor, na qual os seus discípulos - e, por conseguinte, ele próprio - desempenhariam um papel decisivo.


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