Tal como observámos no início deste capítulo, qualquer pessoa pode utilizar a palavra «reino» em mais do que um sentido. Além disso, quando se pensa no futuro, é possível defender várias ideias em simultâneo. É lógico que a ideia de imortalidade pessoal (a alma de cada pessoa separa-se do corpo, na morte) está em contradição com a ideia de ressurreição (as pessoas morrem e aguardam a ressurreição
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geral). Contudo, houve milhões de cristãos, incluindo Paulo, que defenderam ambas as perspetivas. E Jesus? Defendia opiniões contraditórias sobre o futuro ou tinha uma ideia dominante? Ele tanto poderia ter pensado que Deus enviaria o Filho do Homem que reuniria os eleitos e condenaria o resto, como que cada um seria julgado no momento da morte. No entanto, a marca particular da escatologia de Jesus torna algumas reconstruções da sua vida e da sua obra menos prováveis do que outras. Se ele pensava que, no futuro próximo, Deus iria transformar a sociedade humana, é improvável que o principal impulso do seu ministério tenha sido a reforma social. Se procurava uma era nova e melhor, seria de esperar que dissesse algo sobre como ela seria, instando as pessoas a começarem a viver de forma adequada, mas não seria de esperar que tentasse assumir as rédeas do poder ou que conspirasse para derrubar o sumo sacerdote e para persuadir Pilatos a nomear o seu candidato (isto é, o candidato de Jesus). Trata-se de uma questão de ênfase. Não há dúvidas de que Jesus tinha opiniões sobre as condições sociais, políticas e económicas do seu povo, mas a sua missão era prepará-lo para receber o Reino de Deus futuro.
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12. O Reino: Israel, gentios e indivíduos
Jesus acreditava que Deus estava prestes a estabelecer o Reino e que a Sua vontade seria feita tanto na Terra como no Céu. Gostaria agora de explorar mais pormenorizadamente algumas das provas que confirmam que era assim que ele pensava, bem como de analisar a natureza deste Reino futuro, assim como a sua relação com os grupos e os indivíduos existentes. Comecemos com um debate mais minucioso sobre duas das passagens mencionadas anteriormente (categoria 2 nas pp. 221 e segs.). A primeira é Me 10, 35-40, que indica que os discípulos pensavam que Jesus estava a falar sobre um reino «real», no qual a hierarquia seria importante. Um dia, Tiago e João, dois dos três próximos de Jesus (o terceiro era Pedro), perguntaram a Jesus se lhe poderia conceder sentarem-se um à sua direita e outro à sua esquerda na sua glória. Jesus perguntou: «Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o batismo que Eu vou receber?» Eles responderam que sim. Jesus aceitou isto, mas disse-lhes ainda que não estava no seu poder decidir quem ficaria à sua direita e à sua esquerda, pois que isto «é daqueles para quem está reservado». Não estamos, certamente, perante uma invenção posterior. Mais tarde, todos reconheceram que Pedro era o líder entre os discípulos, pelo que a questão da possível
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primazia de Tiago e João não se teria levantado.' Além disso, a História lança um pouco o descrédito sobre eles, o que torna ainda menos provável que se trate de uma criação dos cristãos. Marcos prossegue dizendo que os outros discípulos ficaram indignados e Jesus enfatizou que não deveriam pensar na grandeza, mas sim no serviço (10, 41-45). Toda a discussão pressupõe a esperança de um reino real, um reino em que os lugares e as distinções seriam verificáveis.
Numa outra ocasião, Pedro chamou a atenção de Jesus para o facto de ele e os outros terem abandonado tudo a fim de o seguirem, perguntando: «Qual será a nossa recompensa?» Jesus respondeu:
Em verdade vos digo: no novo mundo, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glória, vós, que me seguistes, também haveis de vos sentar em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, paz; mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna. (Mt 19, 27-29)
Esta afirmação atribui a Judas, um dos Doze, um lugar entre os outros discípulos e dificilmente podia ter surgido depois da morte de Jesus, quando Judas já era conhecido como o seu traidor. São prometi das posições de autoridade a todos os discípulos. Já registámos que eles receberão «cem vezes mais», assim como terão por «herança a vida eterna». Parece que a promessa de uma recompensa cem vezes maior se refere a um reino terreno, distinto da vida eterna e anterior a ela. Afirmámos igualmente no capítulo 11 que um reino que incluía as doze tribos implicaria um milagre divino e que havia outros judeus no tempo de Jesus que esperavam este acontecimento miraculoso (pp. 233-236).
Colocarei em contraste com esta opinião difundida, partilhada por Jesus, as esperanças mais mundanas de alguns outros judeus, para adquirirmos uma perspetiva. Um dos maiores mestres judaicos de todos os tempos, o Rabi Akiba, que viveu no fim do século I, início do século 11 d. c., acreditava que Bar Kokhba, um líder militar judaico, era o Messias. Este Bar Kokhba liderou uma grande revolta, duas gerações
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depois da primeira. A revolta foi esmagada em 135. Akiba e outros mestres judeus foram executados. Akiba não esperava a restauração das dez tribos perdidas," mas sim algo mais realista: uma verdadeira vitória militar, seguida da independência e liberdade dos judeus, o que constituiria uma espécie de milagre, mas não um milagre do tipo daquele que seria necessário para a recriação das dez tribos perdidas. A natureza realista da sua esperança excluía a possibilidade de reconstituição das dez tribos dispersas e que já não podiam ser identificadas.
No tempo do próprio Jesus, alguns judeus esperavam um reino completamente realista. Embora o partido dos zelotas, conhecidos do tempo da primeira revolta contra os romanos, ainda não existisse, já havia alguns que pensavam em termos de uma guerra real, em que se combateria com homens e armas que podiam ser vistas e contadas. Esta atitude resultava em atos que se pareciam mais com assaltos do que com uma revolução: houve algumas emboscadas a caravanas e coisas semelhantes. Barrabás, que foi libertado por Pilatos quando Jesus foi crucificado (Mt 27, 15-26), foi, provavelmente, um homem deste género: mais um assaltante pré-revolucionário do que um bandido comum. Barrabás e outros do seu tipo, assim como, mais tarde, Bar Kokhba e Akiba, realçam, por contraste, que Jesus e muitos outros esperavam que Deus interviesse e estabelecesse o Reino miraculosamente.
Os gentios e o Reino futuro
Se Israel voltasse a ser grande, é óbvio que as nações dos gentios teriam de diminuir ou de ser enfraquecidas. Por consequência, algumas esperanças relacionadas com a restauração de Israel estavam ligadas à convicção de que Deus iria derrotar os gentios que governavam os reinos deste mundo. No entanto, muitos judeus tinham esperança de que os gentios se convertessem: que voltassem ao Deus de Israel e viessem ao Monte Sião, a fim de apresentar sacrifícios no Templo. Limitar-me-ei a dar um exemplo de entre os numerosos disponíveis. O autor do
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livro de Tobias exprimiu esta esperança pouco depois do ano de 200 a. c., esperança essa que constituía também um dos temas principais dos profetas bíblicos posteriores:
A vossa luz, há-de refulgir até às extremidades da terra.
Muitos povos virão de longe ao teu encontro dos confins da terra por causa do teu santo nome;
trarão nas mãos oferendas para o Rei do Céu. (Tb 13, 11)
Será que Jesus partilhava a esperança de que, na nova era, os gentios viriam adorar o Deus de Israel? A sua missão dirigia-se «às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mt 15, 24; ver mais adiante), mas os Evangelhos descrevem alguns contactos positivos com gentios: Em Marcos existe uma história da cura de um gentio, mais precisamente, existe uma história na qual o facto de a pessoa curada ser um gentio é importante." Quando Jesus estava na Síria, perto de Tiro e de Sídon, uma mulher gentia pediu-lhe que expulsasse um demónio da sua filha. Ele respondeu: «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cães.» No entanto, ela insistiu: «Sim, Senhor, mas até os cães comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos.» Jesus cedeu e curou a sua filha (Me 7, 24-30). Mateus elabora a história sob três aspetos. Na sua narrativa, os discípulos pedem a Jesus que mande a mulher embora; Jesus não só diz «deixai que os filhos comam primeiro» (como em Marcos), como também que não foi enviado «senão às ovelhas perdidas da casa de Israel»; e, quando acaba por aceder ao seu pedido, comenta que a fé da mulher é grande (Mt 15,21-28). Mateus regista a resistência em relação aos gentios tanto por parte dos discípulos, como por parte do próprio Jesus, o que acentua o impacto da história: a mulher gentia tem uma grande fé. Recorde-se que Mateus tem a história de um centurião cujo servo foi curado por Jesus, na qual se inclui a afirmação: «nem mesmo em Israel encontrei tão grande fé» (Mt 8, 10). Mateus sublinha, assim, a opinião de que os gentios que têm fé podem participar no Reino anunciado por Jesus.
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Os autores dos Evangelhos são todos favoráveis à missão junto dos gentios, pelo que é provável que tenham incluído todo o material favorável aos gentios que lhes foi possível. Especialmente Mateus quis realçar o facto de os gentios poderem ter uma grande fé, maior do que a dos israelitas. Portanto, não é de admirar que, de acordo com Mateus, Jesus tenha afirmado: «muitos virão do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa do banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino do Céu, enquanto os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores» (Mt 8, 11 e segs.)". No contexto em que Mateus escreveu, isto reflete o resultado de uma forma exata: a maior parte dos judeus tinha decidido não aceitar Jesus, ao passo que a missão aos gentios constitui um sucesso total. O que é surpreendente é que os evangelistas apresentem tão poucas passagens que apontem para o sucesso na conversão dos gentios. Só conseguiram citar algumas histórias sobre os contactos de Jesus com gentios e mesmo estas não o descrevem como sendo particularmente caloroso em relação a eles. Note-se que Mateus tem de reconhecer a limitação observada pelo próprio Jesus, ao relatar aquilo que ele pretende que seja uma história a favor da missão aos gentios: a missão de Jesus dirigia-se a Israel, especialmente, às «ovelhas perdidas» de Israel. Ele não se esforçou por procurar e conquistar gentios. Temos de suspeitar que as afirmações mais favoráveis sobre gentios (Mt 8, 10 e 15, 28, sobre a grandeza da fé de dois gentios) são criação de Mateus. Por conseguinte, não podemos ter a certeza absoluta sobre a opinião do próprio Jesus acerca dos gentios. Por motivos gerais, inclino-me a pensar que ele esperava que pelo menos alguns gentios se convertessem ao Deus de Israel e participassem no Reino futuro. Os motivos gerais são os seguintes: uma boa parte dos judeus esperava que isto acontecesse; Jesus era um homem bondoso e generoso. Isto é, a alternativa a pensar que Jesus esperava a conversão dos gentios seria pensar que ele esperava que eles fossem todos aniquilados. Isto é improvável.
Este debate oferece-nos uma outra oportunidade para comentar a criatividade cristã. Os autores dos Evangelhos não inventaram material de forma irrefletida. Desenvolveram-no, deram-lhe forma e orientaram-no como desejavam. Nem mesmo Mateus criou muito material a favor da missão aos gentios, embora pareça ter empolado o material de que dispunha.
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A esperança de Jesus no que diz respeito ao Reino insere-se nas esperanças que existiam havia muito e que estavam profundamente enraizadas entre os judeus. Estes continuavam a esperar que Deus redimisse o Seu povo e instaurasse um novo Reino, no qual Israel pudesse viver em segurança e paz e no qual os gentios servissem o Deus de Israel.
O pequeno rebanho
Jesus tinha uma forma de pensamento tradicional em relação a Deus e a Israel: Deus tinha escolhido todo o Israel e, um dia, salvaria o povo. Este aspeto da visão de Jesus é frequentemente ignorado por causa da força e da preponderância do ensinamento que se dirige às pessoas, individualmente. Uma das coisas mais surpreendentes no que diz respeito a Jesus é o facto de, apesar da sua expectativa da chegada iminente do fim e apesar da sua reflexão abrangente sobre o Reino futuro, ele ter deixado um corpo de ensinamentos riquíssimos que acentua a relação entre o indivíduo e Deus, aqui e agora. A orientação para o futuro poderia tê-lo levado a ser indiferente às pessoas individuais: os escatologistas pensavam frequentemente em blocos de pessoas que seriam salvas ou destruídas no fim, sem se preocuparem muito com o bem-estar espiritual dos indivíduos que constituíam cada bloco.
Jesus podia advertir e ameaçar cidades inteiras de uma só vez:
Ai de ti; Corazaim! Ai de ti; Betsaida! Porque, se os milagres realizados entre vós tivessem sido jeitos em Tiro e em Sídon, estas há muito se teriam convertido, vestindo-se de saco e com cinza. Mas eu digo-vos: No dia do juízo, haverá mais tolerância para Tiro e Sídon do que para vós. (Mt 11, 20-22)
Trata-se de um julgamento tradicional a «preto e branco», típico de um escatologista. Mas não é isto que domina a mensagem de Jesus e a sua visão da atitude de Deus em relação aos seres humanos. Jesus não encarava Deus meramente como um juiz, à espera de condenar os imperfeitos e pronto para aniquilar cidades inteiras, mas sim como um pai amoroso, que se preocupava e procurava o bem-estar de cada pessoa.
Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros e, no entanto, o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? (Mt 6, 26)
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Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? E nem um deles cairá por terra sem o consentimento do vosso Pai. Mas até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Por isso, não temais, pois valeis mais do que muitos pássaros. (Mt 10, 29-.31)
Não temais, pequeno rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino. (Lc 12, .32)
Uma parte significativa do ensinamento de Jesus consiste na garantia de que Deus ama cada pessoa individual, independentemente das suas imperfeições, e que deseja o regresso mesmo do pior de todos. O amor de Deus pelos excluídos, mesmo que estes, em geral, não obedeçam à Sua vontade, constitui o tema de algumas das maiores parábolas de Jesus. Examiná-las-emos mais pormenorizadamente no próximo capítulo; aqui, mencionarei apenas duas delas: Deus é como um pastor que vai à procura de uma ovelha perdida; Deus é como um bom pai que aceita com alegria o regresso do seu filho pródigo.
Do ponto de vista humano, Jesus exortava as pessoas a ver Deus como um pai em quem se pode confiar completamente, a aceitar o Seu amor e a retribuir-lhe a confiança. Se Deus cuida dos lírios do campo e dos pássaros, muito mais cuidará dos Seus filhos.
Não vos preocupeis, dizendo: «Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?» Os gentios, esses afadigam-se com tais coisas; porém, o vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procura i primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo. (Mt 6, .31-.3.3)
Pedi, e ser-vos-á dado; procura i e encontrareis, batei e hão-de abrir-vos. Pois quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir. Qual de vós, se o seufilho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem! (M t 7, 7-11)
Muitos dos ensinamentos de Jesus - a sua esperança da vinda de uma nova era; a sua confiança de que Deus cuidará e salvará os Seus filhos; o seu apelo para que as pessoas confiem em Deus e para que lhe
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obedeçam - são resumidos na parte mais repetida do seu ensinamento: a oração do Senhor. Vou citá-la em ambas as versões existentes:
Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o Teu nome, venha o Teu Reino.
Faça-se a Tua vontade, assim na Terra como no Céu.
Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia.
E perdoa-nos as nossas dívidas, como nós perdoamos aos que nos
devem;
E não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do mal.
(Mt 6,9-13)
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Pai,
santificado seja o Teu nome.
Venha o Teu Reino.
Dá-nos cada dia o nosso pão.
Perdoa-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos a todo aquele que nos deve.
E não nos leves ao momento do juízo.
(Lc 11, 2-4)
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As pequenas variações significam que não podemos ter a certeza absoluta no que diz respeito ao texto, mas podemos presumir que estamos diante de uma oração que Jesus utilizava e ensinou aos seus discípulos. Trata-se de uma oração que pode ser rezada por qualquer um a qualquer momento. Ela não menciona as doze tribos de Israel, nem descreve os gentios como «cães», nem exalta Jesus e os seus discípulos. O Jesus desta oração é aquele que foi e é admirado universalmente. No entanto, se o queremos compreender como uma figura histórica, temos de ver todas as suas facetas. Se Jesus se tivesse limitado a inventar estas palavras, não teria feito inimigos; mas ele tinha inimigos. Por enquanto, registamos que, nesta última parte, vimos uma das facetas de Jesus que lhe mereceu o adjetivo de «grande», tanto por parte de não-crentes, como por parte dos crentes.
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1.3. O Reino: inversão de valores e perfeccionismo ético
No início do capítulo 11 observámos que o Reino poderia ser definido negativamente: ele não seria governado por Tibério, Antipas, Pilatos e Caifás e os seus valores seriam completamente diferentes dos valores predominantes. Há muito que os leitores dos Evangelhos notaram que uma grande parte do ensinamento de Jesus aponta para uma inversão de valores. Há uma frase que aparece várias vezes nos Evangelhos que resume esta perspetiva: «os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros» (Mt 19,30// Mc 10,31; Mt 20,16; Lc 13,30; cf Mc 9,35: «Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.»). A exortação a ser como uma criança (Mt 18, 1-4// Me 10, 13-16// Lc 18, 15-17) enquadra-se aqui, tal como a parábola de Lázaro e do homem rico: Lázaro, que tinha uma vida extremamente dura, prosperou no mundo futuro, ao passo que o homem rico perdeu a sua fortuna (Lc 16, 19-31).
A expressão mais plena desta inversão encontra-se em duas parábolas em Mateus e numa em Lucas. Na primeira, o Reino é semelhante a um proprietário de uma vinha 1 que contratou trabalhadores a
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a várias horas do dia durante o mesmo dia. Quando chegou o momento de pagar os seus salários, pagou o mesmo a todos. Aqueles que tinham trabalhado durante mais tempo protestaram, mas o proprietário respondeu que podia fazer o que quisesse com o seu dinheiro. A conclusão moral da parábola é a seguinte: os últimos serão os primeiros (Mt 10, 1-16). De acordo com a segunda parábola, o Reino do Céu é semelhante a um rei que convidou pessoas para o banquete nupcial do seu filho. Os convidados não compareceram. Por fim, os «servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos aqueles que encontraram, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se de convidados» (Mt 22, 1-10).
Muitas das parábolas de Jesus, tal como estas duas, são suscetíveis de mais do que uma interpretação. A insistência em cada pormenor leva frequentemente a uma interpretação excessiva, quando se deveria realçar a ideia central. O ponto decisivo nestas duas parábolas parece ser o facto de a atitude da figura principal (o proprietário ou o rei) ser surpreendente. Espera-se que os salários sejam proporcionais ao trabalho. Normalmente, um rei tomaria medidas para assegurar a presença daqueles que tinha convidado primeiro; numa situação limite, ele podia cancelar o banquete. Que rei sujaria as suas salas com gentalha? Jesus descreve um mundo virado ao contrário. Parece estar a dizer:
Não pensem que Deus atuará de formas que possam prever. Deus pode ser surpreendentemente generoso (primeira parábola) e também pode surpreender por não fazer distinções (a segunda parábola). Não sabem quem é que Ele incluirá e quem excluirá. Não devem supor que são os únicos que Ele preza, só porque são pessoas importantes e que O servem há muito tempo; não devem supor que o Seu Reino não virá se vocês disserem que não estão preparados. O Reino está próximo e Deus incluirá nele quem Ele quiser, «maus e bons» (a frase citada é de Mt 22, 10).
A terceira parábola nesta categoria é chamada habitualmente a parábola do Filho Pródigo, embora a designação de «parábola sobre um pai e dois filhos» fosse mais apropriada. Um homem tinha dois filhos. O mais novo exigiu a sua herança e partiu. Gastou o seu dinheiro numa vida fácil e acabou por se ver obrigado a guardar porcos e a comer a sua comida - uma ocupação inconveniente para um jovem judeu de boa família. Decidiu pedir ao seu pai que o aceitasse de volta; e quando regressou, o seu pai, rejubilante, mandou matar um vitelo
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gordo e preparar uma festa. O irmão mais velho ficou ressentido, mas o pai admoestou-o: «Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi encontrado» (Lc 15, 11-32). Penso que esta parábola é mais bem sucedida do que as duas de Mateus, porque as personagens não são um empregador e assalariados ou um rei e os seus súbditos, mas sim um pai e dois filhos. É provável que a maioria de nós pense que as relações entre empregador e trabalhadores deveriam reger-se pela estrita equidade, mas não que os pais deveriam ter esta mesma obrigação. Muitos pais perdoam sempre aos seus filhos e são pacientes com os seus filhos desobedientes. É provável que aqueles que ouviam Jesus realçassem mais do que nós a obrigação dos filhos em relação aos seus pais e que considerassem estas três relações mais próximas entre si do que nós as consideramos hoje. No entanto, o mundo da Antiguidade conhecia a clemência dos pais e a comparação de Deus com um pai extremamente compla cente foi, certamente, muito eficaz no tempo de Jesus. Isto é, os ouvintes compreenderam a ideia.
Isto não significa que todos a aprovassem necessariamente. As parábolas deste tipo são inquietantes do ponto de vista moral. Mais tarde, os inimigos de Paulo acusá-lo-iam de instigar as pessoas a pecarem, para que a graça de Deus abundasse (Rm 6, 1.15). É óbvio que não era esta a sua perspetiva: ele também exortava os convertidos a . serem perfeitos em termos morais (p. ex., 1 Ts 5, 23). Mas a ênfase extrema na graça de Deus sujeita-se a ser mal compreendida, particularmente se tal acontece no contexto de histórias que dizem, de facto, que Deus favorecerá, efetivamente, aqueles que não cumprem as suas obrigações e, depois, regressam, ou aqueles que só iniciam um trabalho produtivo ao fim do dia. Voltaremos à questão da perspetiva
de Jesus em relação à aceitabilidade dos pecadores no capítulo 14, mas, agora, iremos ver a outra face da moeda - a ética perfeccionista do próprio Jesus.
O perfeccionismo e a Nova Era
A parábola do banquete nupcial, na sua versão atual, não termina quando os maus e os bons estão reunidos. O rei entra, depois, e examina as vestes dos seus convidados. Verifica que há um homem que
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não tem uma veste festiva. O rei ordena aos servos: «Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o nas trevas exteriores; ali, haverá choro e ranger de dentes. Porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos» (Mt 22, 11-14). A maioria dos investigadores considera esta segunda cena como uma criação posterior, cujo objetivo é, precisamente, eliminar o choque moral causado pela parábola principal, assim como afirmar que o comportamento das pessoas deve ser correto, se querem permanecer em boas graças. Concordo plenamente com esta perspetiva. No entanto, também concordo com o autor da parte que foi acrescentada à parábola: Jesus exigia padrões morais elevados aos seus seguidores. Examinemos mais de perto o ensinamento ético de Jesus.
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