E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



Yüklə 1,09 Mb.
səhifə29/31
tarix30.01.2018
ölçüsü1,09 Mb.
#41779
1   ...   23   24   25   26   27   28   29   30   31

330


O sumo sacerdote, juntamente com os seus conselheiros, tanto formais como informais, tinha frequentemente a tarefa de prevenir problemas e de imobilizar provocadores. Gostaria de ilustrar este facto decisivo da vida política apresentando alguns resumos muito breves da autoria de Josefo sobre três acontecimentos distintivos.

1. Por volta do ano 50 e.c., durante um confronto entre peregrinos da Samaria e da Galileia em trânsito através de Samaria, um dos peregrinos foi morto. Veio uma multidão da Galileia, desejando a vingança, mas os «notáveis» foram ter com o procurado romano, Cumanus, pedindo-lhe para ele enviar tropas e punir os assassinos, pondo, assim, termo à questão. Ele recusou-se a fazê-lo. As notícias chegaram a Jerusalém e muitas pessoas acorreram à Samaria, embora «os magistrados» ou «governantes» tenham tentado impedi-las. No entanto, os magistrados não desistiram; vestidos de serapilheira e com as cabeças cobertas de cinzas (dois sinais de luto), foram atrás dos exaltados e tentaram persuadi-los a não fazerem nada precipitadamente, visto que uma batalha levaria, certamente, a uma intervenção severa por parte

de Roma. Este apelo foi eficaz e a multidão dos judeus dispersou (se bem que alguns bandos mais pequenos tenham ficado para pilhar). Os samaritanos «poderosos» foram à Síria para expor o seu caso perante o legado romano e os judeus «notáveis», incluindo o sumo sacerdote, fizeram o mesmo. O legado foi a Cesareia e a Lida, onde ordenou as execuções de alguns dos grupos de criminosos. Enviou outros para Roma, para serem julgados por Cláudio: dois homens «muitíssimo poderosos», isto é, Jonatan, chefe de sacerdotes, e o sumo sacerdote em exercício, Ananias, assim como o filho de Ananias, outros judeus «notáveis» e os samaritanos «mais distintos» (Guerra 2, 232-244).

Este acontecimento ocorreu durante uma festa e exigiu uma atitude na Samaria. É duvidoso que, nestas circunstâncias, o sumo sacerdote tenha sido um dos líderes judeus que foi à Samaria conter a multidão. Mas podemos ver, mesmo aqui, que Roma o considerava responsável: ele foi à Síria, para falar com o legado romano, e teve de ir a Roma para ser julgado. Ele não teve nada a ver com o problema na Samaria, mas, mesmo assim, era responsável pela ordem. Podemos ver igualmente que o sumo sacerdote era apenas o «primeiro

331

entre iguais». A responsabilidade pela prevenção dos problemas recaía, até certo ponto, sobre todos os cidadãos de elite.



2. Em 62 e.c., durante um período breve em que não houve nenhum procurador romano residente na Palestina, o sumo sacerdote saduceu Ananus convocou «um conselho [.rynedrionJ de juízes»27 e mandou executar Tiago, o irmão de Jesus, e, provavelmente, outras pessoas. Alguns cidadãos com sentido de justiça e clemência, os mais rigorosos no que dizia respeito às leis, protestaram, mas a execução cumpriu-se. Muitos investigadores pensam que aqueles que se opuseram à execução eram fariseus, o que me parece provável. De qualquer modo, o protesto foi, em parte, bem sucedido: Ananus foi deposto (Antiguidades 20, 199-203), visto que tinha transgredido a norma romana, de acordo com a qual, numa província administrada por um cavaleiro romano, a única pessoa que podia ordenar uma execução era o funcionário romano supremo.

3. A prisão de Jesus assemelha-se mais ao terceiro caso, que diz respeito a um outro Jesus, o filho do Ananias, e ocorrido cerca de trinta anos após a execução de Jesus de Nazaré. Jesus, filho de Ananias, foi ao Templo na Festa dos Tabernáculos, um período que era pacífico, e exclamou: «Uma voz do leste, uma voz do oeste, uma voz dos quatro ventos; uma voz contra Jerusalém e o santuário, uma voz contra o noivo e a noiva, uma voz contra todo o povo.» Esta previsão de destruição - e é óbvio que se trata de tal, dada a referência ao noivo e à

332

noiva, tirada de Jer 7, 34 -levou ao seu interrogatório e à sua flagelação, primeiro pelas autoridades judaicas e, depois, pelos romanos. Respondeu às questões «repetindo incessantemente as suas «lamentações sobre a cidade» e acabou por ser libertado como louco. Manteve as suas lamentações durante sete anos, especialmente durante as festas, mas, de resto, não se dirigiu à população. Acabou por ser morto por uma pedra de uma catapulta romana (Guerra 6,300-309).



Se utilizarmos este caso como uma orientação, podemos compreender por que razão Jesus de Nazaré foi executado e não simplesmente açoitado. A ofensa do nosso Jesus foi pior do que a de Jesus, filho de Ananias. Jesus de Nazaré tinha seguidores, talvez não muitos, mas, apesar disso, alguns. Tinha ensinado durante algum tempo sobre o Reino de Deus. Tinha feito uma intervenção material no Templo. Não era louco. Portanto, era potencialmente perigoso. É possível imaginar que ele se pudesse ter salvo da execução se tivesse prometido que levaria os seus discípulos, regressaria à Galileia e ficaria calado. Parece que não tentou fazê-lo.

Em conjunto, estas três histórias ilustram como a Judeia era governada enquanto província de Roma, administrada formalmente por um romano. Já descrevi este sistema de governação (pp. 41-47), mas gostaria de o repetir aqui. O prefeito ou procurador romano tinha de manter a paz no território e de cobrar o tributo. Ele transferia ambas as tarefas para a aristocracia judaica, especialmente a aristocracia sacerdotal, liderada pelo sumo sacerdote. A escolha do sumo sacerdote pelos romanos respeitava a tradição judaica. A Judeia tinha sido governada por sumos sacerdotes durante vários séculos. Quando Herodes chegou a rei acabou com este sistema e Roma restabeleceu o antigo sistema, no momento em que o herdeiro deste (Arquelau) se revelou incapaz de governar com sucesso. Ao ordenar a prisão de Jesus, Caifás estava a cumprir os seus deveres, de entre os quais um dos principais era prevenir levantamentos.

Mencionarei brevemente outras duas teorias sobre a razão pela qual Jesus foi preso. Uma delas é que ele foi mal compreendido. Caifás e Pilatos teriam pensado que ele tinha em mente um reino deste mundo e que os seus seguidores estariam prestes a atacar o exército romano; eles teriam executado Jesus como rebelde por engano. Esta

333


opinião baseia-se essencialmente em Jo 18, 33-38, que constitui uma longa discussão sobre o tipo de «rei» que Jesus afirmava ser. No entanto, é altamente improvável que Caifás e Pilatos tivessem pensado que Jesus liderava um grupo armado e planeava um golpe militar. Se tivessem pensado isto, Caifás também teria mandado prender os lugar-tenente de Jesus e os seus seguidores teriam sido executados ­ como aconteceu mais tarde aos seguidores de outros profetas, que cometeram o erro de andar em grupos maiores. A execução apenas do líder mostra que eles receavam que Jesus pudesse instigar a multidão e não que tivesse criado um exército secreto. Por outras palavras, eles compreenderam muito bem Jesus e os seus seguidores.

De acordo com a segunda teoria, Jesus foi preso por causa de divergências teológicas com a massa dos judeus liderados pelos fariseus. Ele acreditava no amor e na compaixão, ideias que os fariseus abominavam, e discordava do legalismo e do ritualismo mesquinhos, que eles favoreciam; por isso, eles teriam conspirado contra ele, para o matarem. Os investigadores que defendem esta opinião não explicam o mecanismo que levou os fariseus a conseguirem a prisão de Jesus, contentando-se em sustentar que a oposição dos fariseus desempenhou um papel. Não repetirei aqui os meus numerosos esforços para levar os cristãos a verem os fariseus numa perspetiva mais correta, mas limitar-me-ei a comentar que estes desentendimentos imaginários não explicam nada em termos históricos. Os judeus, por vezes, matavam-se uns aos outros, mas não por causa de desacordos deste género. O nível das disputas acerca da Lei entre Jesus e os outros estava completamente dentro dos limites de um debate normal e não existe qualquer razão para pensar que eles estivessem em conflito por causa do amor, da misericórdia e da graça. É possível que Jesus se opusesse às opiniões dos fariseus, por exemplo, na questão dos produtos que devem ser considerados como alimentos e que devem ser submetidos ao pagamento do dízimo (Mt 23, 23), mas críticas deste tipo não constituem uma questão de vida ou de morte. Além disso, os fariseus estão quase completamente ausentes dos últimos capítulos dos Evangelhos e completamente ausentes das histórias da prisão e do processo. Segundo as provas existentes, eles não tiveram nada a ver com estes acontecimentos.

334

As descrições do sumo sacerdote e do seu conselho que se encontram nos sinópticos correspondem completamente à descrição que Josefo faz da forma como Jerusalém era governada no tempo em que fazia parte de uma província romana. O sumo sacerdote e o chefe dos sacerdotes são os atores principais e os fariseus não desempenham qualquer papel.



A teoria aqui apresentada - que Caifás mandou prender Jesus, porque tinha a responsabilidade de reprimir aqueles que causavam problemas, sobretudo durante as festas - é perfeitamente compatível com todas as provas. Jesus tinha alarmado algumas pessoas por causa do seu ataque contra o Templo e da sua afirmação sobre a destruição do mesmo, porque elas receavam que ele pudesse influenciar realmente Deus. No entanto, é altamente provável que Caifás estivesse sobretudo ou exclusivamente preocupado com a possibilidade de Jesus incitar um motim. Mandou guardas armados para prenderem Jesus, interrogou-o e recomendou a sua execução a Pilatos, que a aceitou prontamente. É assim que os Evangelhos descrevem os acontecimentos e foi assim que as coisas aconteceram realmente, tal como provam as numerosas histórias de Josefo.
A recomendação da execução

Podemos dizer mais alguma coisa sobre a razão que levou Caifás e os seus conselheiros a mandarem Jesus a Pila tos para este o executar? As cenas do processo nos Evangelhos proporcionam as únicas provas possíveis. Já as debati brevemente, mas, agora, iremos observá-las mais de perto. Penso que estas cenas são suficientemente exatas na generalidade, mas existem problemas nos pormenores. Gostaria de pressupor aqui que, tanto Mateus como Lucas, baseiam em Marcos as suas descrições do julgamento judaico." Não penso que possamos confiar plenamente na descrição do julgamento feita por Marcos, como se fosse uma transcrição dos registos no tribunal, mas ela constituirá a base para a nossa análise.

335

Marcos e Mateus apresentam duas narrativas do julgamento de Jesus: uma que constitui um simples relato dos factos e outra que consiste numa descrição mais longa. Estas narrativas encontram-se agora em Marcos e Mateus como se estivessem em causa dois julgamentos separados: a versão breve encontra-se em Mc 15, 1 / / Mt 27, 1 e segs.: «Logo de manhã, os sumos sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio; e, tendo manietado Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos.» A segunda narrativa do jul­ gamento descreve uma interrogatório. Já abordámos duas das suas partes mais importantes. Testemunhas falsas acusaram Jesus de ter ameaçado o Templo, mas os seus testemunhos não foram coincidentes. Então, o sumo sacerdote perguntou a Jesus: «És Tu o Cristo, o Filho do Bendito?» Jesus respondeu: «Sim» (Marcos) ou «Tu o disseste; [mas, por outro lado] Eu digo ... » (Mateus). Em Marcos e Mateus, Jesus, depois de ter respondido à pergunta do sumo sacerdote, profetiza que o Filho do Homem virá em breve. O sumo sacerdote rasga então as suas vestes (um sinal de luto), dizendo que não necessitavam de testemunhas, visto que tinham ouvido uma blasfémia (Me 14, 55-65 / / Mt 26, 59-68).



Lucas apresenta uma narrativa ligeiramente diferente. Só houve um julgamento que se iniciou com os interrogadores a perguntarem a Jesus se ele era o Cristo. Jesus deu uma resposta evasiva, acrescentando que, «doravante, o Filho do Homem vai sentar-se à direita do poder de Deus». Só então os interrogadores perguntaram se ele era o Filho de Deus, o que provocou a resposta: «Vós dizeis que Eu o sou» (Lc 22, 66-71). Os juízes reunidos disseram que não precisavam de mais testemunhas. Tinham-no ouvido da sua própria boca. Lucas não utiliza a palavra «blasfémia».

Na opinião de Marcos, Jesus foi condenado por ter reivindicado títulos para si mesmo e esta reivindicação constituía uma blasfémia aos olhos dos outros judeus - ou, pelo menos, aos olhos de um deles, Caifás. Nas décadas que se seguiram à morte e à ressurreição de Jesus, os cristãos atribuíram a Jesus ambos os títulos (Messias e Filho de Deus), interpretando-os de formas que alguns judeus consideravam blasfemas.

O título de «Filho de Deus», sobretudo, viria a significar que Jesus não era um simples mortal. Vimos no capítulo 15 que estes títulos, em si mesmos, não têm este significado. A pergunta que se encontra em Marcos - «És Tu o Cristo, o Filho do Bendito?» - pressupõe que estes dois títulos estão associados, interpretando-se reciprocamente.

336


Mas isto é obra dos cristãos. A simples combinação já é suspeita e a afirmação de que os dois títulos, quando interligados, constituem uma blasfémia também parece ser produto da criatividade dos cristãos. Alguns dos primeiros cristãos queriam atribuir a morte de Jesus à con­

fissão da cristologia da igreja. A cristologia tinha separado o novo movimento das suas raízes e, naturalmente, eles queriam fazer remontar a Jesus as suas próprias perspectivas distintivas. Os títulos desempenharam, porém, um papel tão insignificante nos Evangelhos sinópticos, que temos de duvidar que tivessem constituído realmente a questão central no julgamento.

No entanto, se nos afastarmos da preocupação dos cristãos com os títulos que definem, supostamente, a pessoa de Jesus e olharmos com novos olhos para a cena do julgamento apresentada em Marcos, descobrimos que ela é perfeitamente razoável. Se constituísse uma transcrição, se esta troca de palavras entre Caifás e Jesus tivesse acontecido precisamente como Marcos a descreve, continuaríamos a ter de concluir que os títulos não constituíram o verdadeiro problema. O que a passagem diz é o seguinte: Jesus ameaçou o Templo e fez-se importante. O sumo sacerdote mandou prendê-lo por causa da sua atitude contra o Templo e esta foi a acusação contra ele. O testemunho foi rejeitado pelo tribunal porque as testemunhas não foram coerentes. No entanto, o sumo sacerdote tinha decidido que Jesus tinha de morrer, por isso, não estava disposto a deixar cair o caso. Ele desafiou Jesus a dizer qualquer coisa sobre si próprio e, depois, gritou «blasfémia» e rasgou as suas vestes. O resto do tribunal associou-se a ele. Isto é, de acordo com a História, o sumo sacerdote não quis julgar Jesus com base nos títulos que este reclamava, mas por causa do Templo. Ele recorreu aos títulos e declarou que a resposta de Jesus era uma blasfémia - independentemente daquilo que este disse. Não temos de decidir se Jesus respondeu que «sim» ou «talvez». O sumo sacerdote já tinha decidido.

Rasgar as vestes constituía um sinal poderoso de luto e mostrar os sinais de luto tinha poder persuasivo. Já vimos que os «magistrados» ou «governantes» de Jerusalém puseram cinzas sobre as suas cabeças e vestiram-se de serapilheira (outros sinais de luto) quando tentaram prevenir a violência da multidão na Samaria. No caso do sumo sacerdote, rasgar as vestes constituía o sinal mais extremo de luto, visto que a Bíblia lhe proibia rasgar as suas vestes ou sequer desgrenhar os seus cabelos (Lv 21, 10). A transgressão da lei por parte de Caifás

337

mostrou o seu horror. Poucos judeus lhe teriam negado aquilo que ele queria e, certamente, não os seus próprios conselheiros. Jesus foi enviado a Pilatos.



Proponho duas formas de ler Marcos. Uma delas consiste na perspetiva do próprio Marcos. Jesus não reclamou títulos para si próprio durante o seu ministério e procurou silenciar aqueles que lhe chamavam «Messias» ou «Filho de Deus». Portanto, de acordo com o Evangelho de Marcos, os títulos não explicam a decisão que levou à sua prisão. Caifás mandou prender Jesus porque pensou, erradamente, que Jesus tenha ameaçado o Templo. Jesus não o tinha feito e o seu processo ilibou-o desta acusação. O sumo sacerdote colocou-lhe, contudo, uma pergunta capciosa sobre os títulos. Jesus aceitou os termos de «Messias» e de «Filho do Bendito (Deus)» como títulos que se lhe aplicavam e o sumo sacerdote acusou-o de blasfémia. A segunda leitura consiste numa interpretação crítica de Marcos. Resulta, em parte, da observação de que Marcos atribui um significado aos títulos de «Messias» e de «Filho de Deus» que estes não tinham antes do desenvolvimento da cristologia da Igreja. Por isso, podemos oferecer uma interpretação histórica melhor do julgamento e da execução de Jesus, mesmo que aceitemos a narrativa de Marcos. 1. Durante o seu ministério de ensinamento e de cura, Jesus não atribuiu quaisquer títulos a si próprio; quando lhe perguntavam diretamente, ele recusava-se a dizer quem era. 2. Jesus foi preso porque ameaçou o Templo. 3. Quando as testemunhas divergiram no que diz respeito à ameaça que Jesus tinha feito ao Templo, Caifás não mandou açoitá-lo e, depois, libertá-lo. Em vez disso, decidiu voltar a pô-lo à prova. Isto mostra que ele pretendia mandar executá-lo desde o início. 4. Então, perguntou a Jesus se ele era o Messias e o Filho de Deus. 5. Jesus disse que sim. 6. Estes títulos não constituíam, em si, uma blasfémia. 7. O sumo sacerdote decidiu considerá-los uma blasfémia porque já tinha tomado a decisão da execução. 8. Em vez de continuar a investigar o que estes termos significavam para Jesus, Caifás fez uma manifestação extravagante de luto, persuadindo assim os seus conselheiros a juntar-se a ele na condenação do Galileu. A reconstrução histórica do processo tal como ele está descrito em Marcos revela que os títulos foram um expediente e que a ameaça sobre o Templo constituiu a causa imediata da execução. Gostaria de distinguir a minha própria opinião dos oito pontos que acabei de apresentar e que oferecem uma reconstrução daquilo que a narrativa de Marcos significaria, caso se tratasse de um relato textual

338


de um julgamento. Penso que a cena do julgamento apresentada por Marcos não constitui uma transcrição e que temos de avaliar os motivos dos vários actores num contexto mais geral. Se tivermos em conta a forma como os sumos sacerdotes cumpriam as suas responsabilidades cívicas sob os prefeitos e procuradores romanos, temos de concluir que Caifás cumpriu as suas obrigações tal como estava prescrito: Jesus era perigoso porque podia causar um tumulto, que seria reprimido pelas tropas romanas com muitas perdas de vidas humanas. O autor de João atribui a Caifás uma afirmação completamente adequada: « ... convém que morra um só homem pelo povo, e que não se perca a nação inteira» (Jo 11, 50).32 Embora tenha sido a cena do Templo que decidiu a questão, é provável que tenham existido outros fatores que contribuíram para a decisão: a entrada de Jesus em Jerusalém e o seu ensinamento sobre o Reino de Deus.

Não sabemos o que Caifás sabia sobre estas outras questões, mas seria razoável pensar que, depois de ter sido informado sobre o ataque de Jesus aos vendedores de pombas e as cambistas, e antes de ter ordenado a prisão de Jesus, ele tenha procurado e obtido mais informações sobre este. Como veremos imediatamente a seguir, é provável que ele tenha transmitido a Pilatos o facto de Jesus pensar que era «rei». Esta reivindicação para si mesmo está implícita na entrada de Jesus em Jerusalém, sobretudo se este acto simbólico for combinado com o ensinamento de Jesus. Embora tenha dúvidas no que diz respeito à combinação que Marcos faz entre «Messias», «Filho de Deus» e «blasfémia», não tenho dúvidas de que Caifás e os seus conselheiros sabiam que Jesus ensinava sobre o Reino de Deus e reivindicava para si um papel importante neste Reino.

Sendo assim, penso que Caifás tomou uma única decisão: prender e executar Jesus. Se assim foi, fê-lo não por causa de divergências teológicas, mas por causa daquilo que constituía a sua principal responsabilidade política e moral: preservar a paz e prevenir tumultos e derramamento de sangue. O que levou o sumo sacerdote a agir foi a compreensão que Jesus tinha de si mesmo, revelada, especialmente, no Templo, mas também no seu ensinamento e na sua entrada na cidade.

339


A decisão de Pilatos

Por que razão ordenou Pilatos a execução de Jesus? Porque o sumo sacerdote lha recomendou e porque lhe forneceu uma acusação forte: Jesus pensava que era rei dos judeus. Pilatos percebeu que Jesus era um potencial rei sem exército e, por isso, não fez nenhum esforço por perseguir e executar os seguidores deste. É provável que o tenha considerado um fanático religioso, cujo fanatismo se tinha tornado tão extremo que se tinha transformado numa ameaça à Lei e à ordem pública.

Os Evangelhos, sobretudo Mateus e João, pretendem que Jesus foi condenado pela multidão dos judeus, contra a opinião de Pilatos. Pilatos estava preocupado, foi avisado pela sua mulher para não fazer nada, consultou a multidão, argumentou a favor de Jesus; por fim, dada a sua fraqueza, não conseguiu resistir ao clamor da multidão, por isso, mandou executar Jesus (Mt 27, 11-26; Jo 18,28-19,16). Estes elementos da história das últimas horas de Jesus devem-se ao desejo dos cristãos de se darem bem com Roma e de apresentarem os judeus como os seus verdadeiros adversários. É muito provável que Pilatos tenha aceite a acusação de Caifás, tenha mandado açoitar e interrogar brevemente Jesus e, como as respostas não foram completamente satisfatórias, tenha mandado crucificá-lo sem pensar duas vezes. Filo, contemporâneo de Pilatos, escreveu um apelo ao imperador Gaio (Calígula) que incluía uma descrição de Pilatos. Filo escreveu sobre «os subornos, os insultos, os roubos, os ultrajes, a crueldade incessante e extremamente penosa» que marcavam a governação de Pilatos (Embaixada a Gaio 302). Aliás, Pilatos acabou por ser demitido do seu cargo devido a ter mandado fazer execuções mal avisadas em grande escala (Antiguidades 18,88 e segs.). Este testemunho coincide perfeitamente com a sequência de acontecimentos relatados nos Evangelhos: Jesus compareceu diante de Pilatos e foi quase imediatamente executado, sem mais testemunhas e sem um julgamento. As histórias da relutância e da fraqueza de Pilatos explicam-se melhor como propaganda dos cristãos; elas constituem uma espécie de desculpa para a atitude de Pilatos que diminui o conflito entre o movimento dos cristãos e a autoridade romana.
A execução

De manhã cedo, na sexta-feira do dia 15 de Nisan, Jesus e dois outros foram levados para fora das muralhas da cidade, crucificados e

340

deixados a morrer. Apenas alguns seguidores corajosos assistiram ao acontecimento. Jesus morreu antes do anoitecer da sexta-feira, portanto, mesmo antes do início do sábado. Um admirador à distância, José de Arimateia, ofereceu um túmulo e Jesus foi sepultado. Algumas das suas seguidoras assistiram ao enterro. Os seus discípulos, receosos de serem os próximos, esconderam-se.



As narrativas da crucificação de Jesus estão cheias de citações do Salmo 22 e de alusões ao mesmo: «repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte» (Mc 15, 24) é uma citação do Salmo 22, 18; «abanando as suas cabeças» (Mc 15,29) é do Salmo 22, 7; o grito de Jesus: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Me 15, 34) é do Salmo 22, 1. Tal como é habitual nestas circunstâncias, não sabemos que elementos fazem realmente parte do acontecimento. Suponho que ° grito de Jesus foi a sua própria reminiscência do Salmo e não apenas um motivo introduzido pelos primeiros cristãos. É possível que, quando Jesus bebeu o seu último cálice de vinho e previu que voltaria a bebê-lo no Reino de Deus, pensasse que o Reino de Deus viria imediatamente. Depois de estar na cruz durante algumas horas, desesperou e exclamou que tinha sido abandonado. Esta especulação constitui apenas uma explicação possível. Não sabemos o que ele estava a pensar quando estava na cruz, em agonia. Morreu, depois de um período relativamente curto de sofrimento e alguns dos seus seguidores e simpatizantes sepultaram-no apressadamente.


Yüklə 1,09 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   ...   23   24   25   26   27   28   29   30   31




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin