E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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E a segunda tradição, a previsão da destruição do Templo (Mc 13, 1 e segs. & par.)? Tratou-se de um mero prognóstico político perspicaz? Também não existem praticamente quaisquer outras tradições deste tipo. Jesus podia, por exemplo, ter avisado Antipas de que a sua paixão por Herodíade lhe custaria o seu cargo (o que aconteceu, de facto). As profecias de Jeremias debruçaram-se amplamente sobre questões políticas e militares, mas não as afirmações de Jesus, à exceção

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de uma, no Evangelho de Lucas: «Quando virdes Jerusalém sitiada por exércitos, ficai sabendo que a sua ruína está próxima.» (Lc 21, 20). A generalidade dos investigadores defende que se trata aqui de uma revisão levada a cabo por Lucas de uma afirmação que se encontra em Mateus e em Marcos e que ele atualiza. Parece-me que isto é correto. Por outras palavras, Lucas escreveu depois de o exército ter realmente cercado e destruído Jerusalém e o seu conhecimento daquilo que aconteceu no ano 70 influenciou a sua revisão de Marcos. Se assim for, não existe qualquer tradição de previsões políticas ou militares nos Evangelhos - a não ser que interpretemos a previsão da destruição do Templo neste sentido.

A investigação histórica não pode, em termos gerais, provar algo no sentido negativo («Jesus nunca pensou ... »), pelo que não podemos excluir completamente nem uma perspicácia política, nem uma indignação moral, mas podemos dizer que, fora desse acontecimento (tanto quanto sabemos), Jesus não passou o seu tempo a fazer previsões políticas e a atacar o comércio necessário para o funcionamento do Templo. Ele teve, contudo, muito a dizer sobre uma dramática mudança que Deus levaria a cabo. Isto leva-me a pensar que a ação de virar as mesas dos cambistas simboliza mais uma destruição do que uma purificação como um ato de reforma moral. Analisaremos um pouco mais de perto as afirmações em causa, primeiro, a previsão e, depois, a ameaça.


A previsão é a seguinte:

Ao sair do Templo, um dos discípulos disse-lhe: «Olha, Mestre, que pedras e que construções maravilhosas!» Jesus respondeu: «Vês estas construções grandiosas? Não ficará pedra sobre pedra; será tudo destruído.» (Me 13, 1 e segs.)

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De acordo com Mateus, Jesus disse isto aos «discípulos», não só a um deles (Mt 24, 1 e segs.), e, segundo Lucas, ele dirigiu-se a «algumas pessoas» (21, 5 e segs.). A coisa mais importante a registar é que a previsão não se cumpriu completamente. Quando os romanos tomaram a cidade em 70 e.c., deixaram uma grande parte dos muros do Templo de pé; de facto, uma grande parte deles continua a existir, suportando a atual área sagrada dos muçulmanos. A maior parte das pedras no muro que resistiu pesa entre duas e cinco toneladas, mas algumas, especialmente as pedras angulares, são muito maiores. Uma delas tem 12 metros de comprimento e pesa quase 400 toneladas. Jesus disse que não ficaria pedra sobre pedra.



Quando as «profecias» são escritas depois do acontecimento - isto é, quando um autor posterior compõe uma profecia fictícia - é habitual a profecia e o acontecimento coincidirem perfeitamente. Se a previsão de Me 13, 1 e segs. & par. tivesse sido escrita depois do ano 70, seria de esperar que dissesse que o Templo seria destruído por um incêndio e não que os muros seriam completamente derrubados. Portanto, esta profecia, provavelmente, tem a sua origem no período anterior ao ano 70 e é possível que seja do próprio Jesus.

E a ameaça? Os autores dos Evangelhos esforçam-se por nos garantir que Jesus não ameaçou realmente destruir o Templo.

E alguns ergueram-se e preferiram este falso testemunho contra ele: «Ouvimo-lo dizer: "Demolirei este Templo construído com as mãos e, em três dias, edificarei outro que não será feito com as mãos."» Mas nem assim o depoimento deles coincidia. (Mc 14,57-59)

Mateus tem, no essencial, a mesma tradição, mas não tem as expressões: «feito com as mãos» e «não será feito com as mãos». As acusações contra Jesus enquanto ele estava pregado na cruz não o citam diretamente: «Olha o que destrói o Templo e o reconstrói em três dias» (Mc 15, 29 / / Mt 27, 40).

Enquanto Mateus e Marcos atribuem esta acusação a «testemunhas falsas», Lucas omite-a completamente. Trata-se de uma forma extrema de negar que Jesus tenha dito isto. Os primeiros cristãos não queriam que Jesus fosse visto como um rebelde ou, sequer, como uma

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pessoa conflituosa. Eles queriam defender que o cristianismo gerava bons cidadãos, cidadãos leais; os governantes das cidades e províncias da Síria, da Ásia Menor, da Grécia, da Macedónia e da Itália não tinham nada a temer. Esta é a preocupação central do autor do Evangelho de Lucas, como se pode ver nos Atos dos Apóstolos, onde ele culpa constantemente todos, exceto os apóstolos cristãos, pelo facto de haver sempre uma certa perturbação civil em todos os lugares onde eles iam. Esta preocupação explica, provavelmente, por que é que Lucas não contém, sequer, esta ameaça e por que razão Mateus e Marcos defendem tão vigorosamente que Jesus não tinha proferido qualquer ameaça contra o Templo.

Eles protestam demasiado. É provável que ele tenha feito algum tipo de ameaça. Veremos isto mais claramente se considerarmos a possibilidade de Jesus, na realidade, só ter previsto que, mais cedo ou mais tarde, o Templo seria destruído. Isto significaria que, tal como os Evangelhos afirmam, os inimigos de Jesus decidiram dizer que ele tinha ameaçado o Templo. Eles teriam conspirado para prestar um falso testemunho contra ele, mas esqueceram-se de combinar o conteúdo deste, pelo que a acusação foi rejeitada pelo tribunal. Esta espécie de conspiração mal preparada não é convincente. É mais provável que Jesus tenha dito e feito algo que os presentes consideraram uma ameaça e que os alarmou verdadeiramente. Eles transmitiram isto às autoridades. Mas quando foram ouvidos no tribunal, contaram coisas ligeiramente diferentes - tal como acontece com as testemunhas oculares. Não podemos saber o que Jesus disse exatamente. Vou presumir que ele fez uma previsão ameaçadora da destruição do Templo; isto é, previu a destruição de tal forma que algumas pessoas pensaram que ele estava a fazer uma ameaça.

É perfeitamente razoável associar o gesto de Jesus contra os cambistas à sua declaração sobre a destruição do Templo. Os autores dos Evangelhos quiseram dissociar estes dois elementos: numa ocasião, Jesus limpou o Templo, numa outra, previu a sua destruição. É provável que existisse uma ligação entre estes dois acontecimentos. Pelo menos, foi assim que a sua ação foi interpretada por outros. Se estes estabeleceram uma ligação entre uma afirmação sobre a destruição e a sua ação simbólica de virar as mesas, podemos compreender por que razão lhes pareceu que Jesus estava a ameaçar o Templo. Isto causou uma ofensa profunda que veio à superfície quando ele estava a ser julgado por causa da sua vida, quando estava na cruz e, mais tarde,

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durante o julgamento de Estêvão. Não podemos atribuir aos autores dos Evangelhos esta tradição persistente de uma ameaça contra o Templo, eles desejavam que ela tivesse desaparecido.

Se Jesus ameaçou o Templo ou previu a sua destruição pouco tempo depois de ter virado as mesas na área comercial deste (o que teria resultado na mesma coisa), não foi pensando que ele e o seu pequeno grupo seriam capazes de deitar abaixo os muros, de modo a não ficar pedra sobre pedra. Ele pensava que seria Deus a destruí-lo. Enquanto um bom profeta judaico, podia ter pensado que Deus utilizaria um exército estrangeiro para esta destruição; mas, enquanto escatologista radical do primeiro século, é provável que tenha pensado que seria o próprio Deus a fazê-lo.

As pessoas na Antiguidade não pensavam que a destruição ou a preservação de um templo dependia completamente da força relativa de dois exércitos. O prognóstico político verdadeiramente secular correto não é, de facto, uma opção para a compreensão de Jesus. Se os persas danificaram o templo de Atena, em Atenas, foi porque Atena decidiu permitir que eles o fizessem ou porque a própria deusa era mais fraca do que os deuses dos persas e não foi capaz de defender a sua morada. Josefo mostra como este pensamento estava profundamente enraizado no judeu piedoso comum. Ele descreve numerosos maus presságios sobre a destruição iminente do Templo. Na festa das Semanas, por exemplo, os sacerdotes ouviram, primeiro, «um abalo e um ruído» e, depois, «uma voz coletiva que dizia: "Estamos a ir-nos embora.?» Esta partida permitiu a destruição do Templo. Jesus também estava convencido de que Deus habitava, de certo modo, no Templo. Segundo Mt 23, 21, ele disse que a pessoa «que jura pelo Templo, jura por ele e por aquele que nele habita». Se Jesus pensava que Deus habitava no Templo, dificilmente podia ter pensado que os romanos poderiam destruí-lo contra a Sua vontade. Eles podiam ser Seus instrumentos, mas não podiam impor-Lhe a sua vontade.

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Caso Jesus tenha dito, sequer, alguma coisa sobre a destruição iminente do Templo, o que ele queria dizer era que seria Deus a destruí-lo ou a mandar destruí-lo através dos seus instrumentos. Isto, associado a um gesto hostil, podia constituir uma ameaça. Mas ninguém - nem Jesus, nem aqueles que o ouviram e viram, nem o sumo sacerdote, nem Pila tos - pensava que ele podia deitar realmente abaixo os muros do Templo. No entanto, se ele disse apenas o que Deus iria fazer, por que razão foi preso? Se Deus podia fazer tudo o que quisesse, por que razão é que o sumo sacerdote e os outros não podiam ter-se limitado a discordar de Jesus? As pessoas tinham sempre medo dos profetas, pelo menos, um pouco. Antipas (ou Antipas e Herodíade) temiam João Baptista." Antipas tinha tropas suficientes para reprimir uma multidão enfurecida, se fosse necessário, e tanto ele como a sua família foram criticados frequentemente. Mas ele decidiu silenciar João, em vez de o deixar continuar a pregar. Numa data anterior, houve um grupo de judeus que esperava que o profeta Honi amaldiçoasse um outro grupo de judeus. Ele não quis. Eles estavam todos convencidos de que a sua maldição seria eficaz e, quando ele se recusou a proferi-la, mataram-no. Os profetas eram perigosos. Podiam despertar uma multidão que podia descontrolar-se facilmente (especialmente na Páscoa). E eram perigosos a um outro nível, porque Deus lhes dava ou podia dar ouvidos.

Concluo que a ação simbólica de Jesus que consistiu em virar as mesas no Templo foi compreendida em relação com uma afirmação sobre a destruição e que, na opinião das autoridades, a ação e a afirmação constituíram uma ameaça profética. Além disso, penso que é altamente provável que tenha sido intenção do próprio Jesus predizer a destruição do Templo e não simbolizar a necessidade de purificação deste. No entanto, é impossível provar que a afirmação sobre o «covil de ladrões» não tenha sido realmente proferida por Jesus ou que ele tivesse dito: «eu destruirei o Templo». Tenho de confessar que duvido da autenticidade da afirmação sobre o «covil de ladrões». Parece-me uma expressão que o evangelista teria facilidade em tirar do Livro de Jeremias para fazer Jesus parecer politicamente inócuo

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aos olhos dos leitores gentios de língua grega. Muitas pessoas, tanto naquela altura como hoje, pensavam que a reforma periódica do sistema é uma coisa positiva. Apolónio de Tiana ficou bastante famoso como reformador do culto. No entanto, um verdadeiro reformador teria um programa de reformas mais vasto do que Jesus parece ter tido. Se as pessoas não pudessem comprar pombas sacrificiais na área comercial do Templo, como podiam adquiri-las? Se as trouxessem dos pombais que tinham em casa, as aves podiam tornar-se impuras. E os cambistas ofereciam maior comodidade aos peregrinos. O Templo exigia o pagamento do respetivo imposto numa moeda segura, que não fosse falsificada através da adição de uma quantidade excessiva de metais vis (um método utilizado frequentemente pelos governantes, quando tinham dificuldades financeiras). As pessoas podiam adquirir esta moeda de Tiro em qualquer lado; isso não importava ao Templo, mas, ao que parece, muitos preferiam trazer a sua própria moeda e cambiá-la no Templo. Portanto, com que substituiria Jesus estes dois negócios, se os eliminasse? Jesus, o previdente planeador social e económico, novamente em voga, não existe, pura e simplesmente, nos Evangelhos. Ele podia ter falado sobre o «covil de ladrões», mas uma afirmação não bastava para o transformar em reformador.



Ele era um profeta, um profeta escatológico. Pensava que Deus estava prestes a destruir o Templo. E depois? A afirmação continua, segundo os seus acusadores, com a expressão: «em três dias, edificarei outro», e Marcos acrescenta «que não será com as mãos» (Mc 14,58 / / Mt 26, 61). É provável que Jesus pensasse que, na nova era, quando as doze tribos de Israel voltassem a reunir-se, haveria um Templo novo e perfeito, construído pelo próprio Deus. Este era um típico pensamento escatológico ou da nova era. O Apocalipse diz que, quando a nova Jerusalém descer do céu, não haverá nenhum Templo, mas a explicação é cristológica: «pois, o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu Templo» (Ap 21, 22). Quando o Apocalipse foi escrito, os cristãos acreditavam que a era do Templo tinha terminado e que o mundo ideal dispensaria sacrifícios de animais, uma vez que o verdadeiro Cordeiro tinha sido sacrificado, mas não era isto que os judeus não cristãos pensavam. Seguindo os profetas bíblicos, eles esperavam um Templo novo e glorioso: «A glória do Líbano virá sobre ti, o cipreste, o abeto e o pinheiro, para adornar o lugar do meu santuário,

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e mostrar a glória do trono em que me sento» (Is 60, 13). O autor de uma das secções do I Enoch fala de uma visão:

E eu levantei-me para ver até eles terem desmontado a casa antiga; e todos os pilares, e todas as vigas e ornamentos da casa foram desmontados ao mesmo tempo e eles levaram-nos ... E eu olhei até o Senhor... ter trazido uma nova casa, maior e mais grandiosa do que a primeira e a ter

colocado no lugar da primeira ... : e os seus pilares eram novos e os seus ornamentos eram novos e maiores do que os da primeira casa ... (I Enoch 90, 28 e segs.)

Estas citações exemplificam tanto a expectativa de um Templo novo ou melhor como uma evolução importante no pensamento judaico. Com o passar dos anos, as pessoas, em geral, pensavam que Deus faria mais no contexto da nova era: as suas expectativas tornaram-se mais grandiosas e mais sobrenaturais. No período clássico da profecia israelita (do século VIII ao século v a. C.), os profetas pensavam que, geralmente, Deus intervinha na História através de governantes e exércitos humanos. Esta ideia não desapareceu completamente, mas muitos judeus começaram a olhar para trás, para tempos mais dramáticos, como modelo da atuação futura de Deus. Deus tinha aberto o mar uma vez, produzido o maná no deserto, feito o Sol parar, derrubado os muros de Jericó. No futuro, Ele faria prodígios tão grandes como estes, e até mais grandiosos. Nas décadas a seguir a Jesus, Teudas pensava que Deus dividiria a água do rio Jordão e o Egípcio esperava que Ele provocasse a queda dos muros de Jerusalém. Acabámos de ver que um dos autores de I Enoch esperava que Deus trouxesse um Templo novo e maior e o autor do Rolo do Templo tinha a mesma esperança.? Referi mais do que uma vez provas que são pertinentes para esta questão. Para repetir brevemente: o autor do Rolo da Guerra, de Qumran, esperava que os anjos, liderados por Miguel, combatessem em vez dos exércitos judaicos, mas que o golpe final fosse dado pelo próprio Deus. O autor dos Salmos de Salomão esperava que o Messias davídico não «confiasse em cavalos, nem em cavaleiros e arcos», nem «juntasse ouro e prata para a guerra», nem «edificasse a esperança

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sobre uma multidão para um dia de guerra»; em vez disso, ele confiaria em Deus (Salmos de Salomão 17, SS e segs.).



É isto que eu quero dizer quando afirmo que Jesus era um «escatologista radical». Ele esperava que Deus agisse de uma forma decisiva, de modo a mudar as coisas radicalmente. Jesus, tal como praticamente todos os outros judeus do século I, pressupunha que continuaria a existir um Templo. No entanto, neste, como em outros aspetos, não revelou pormenores.

Este debate em torno das afirmações sobre o Templo foi longo. Alguns leitores podem pensar que dei demasiada importância à questão. Penso que é quase impossível dar demasiada importância ao Templo no século I da Palestina judaica. Atualmente, as pessoas têm tanta facilidade em pensar na religião sem sacrifícios que não são capazes de compreender que esta ideia é nova. O judaísmo teve de acabar por abandonar a ideia do regresso ao culto sacrificial a Deus e o cristianismo acabou por ver a morte de Jesus como a substituição completa do culto do Templo. Mas, no tempo de Jesus, estas ideias pertenciam ao futuro. Jesus tinha de aceitar o Templo, de se opor a ele ou de o reformar. Parece que o aceitou, mas que pensava que ele seria substituído na nova era. Depois da sua morte e ressurreição, os seus seguidores continuaram a participar no culto do Templo. Segundo os Atos dos Apóstolos, Paulo foi preso por ter tentado levar um gentio ao Templo. Estas atitudes são compatíveis com a convicção de Jesus, tal como eu a reconstruí.

Voltemos, agora, ao terceiro gesto simbólico da última semana de Jesus: a última ceia. A passagem, em termos gerais, possui a mais sólida confirmação que é possível, possuindo o mesmo nível de certeza da afirmação sobre o divórcio. Existem duas formas ligeiramente diferentes, que chegaram a nós através de dois canais independentes - a tradição sinóptica e as cartas de Paulo. Vou citar as três versões, para que o leitor possa compará-las.

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Me 14,22-25

Enquanto comiam, tomou o pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o

aos discípulos, dizendo: «Tomai: isto é o meu corpo.» Depois, tomou o cálice, deu

graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: «Isto é o meu sangue da

Aliança, que vai ser derramado por todos. Em verdade vos digo: não voltarei a beber do fruto da videira até ao dia em que o beber, de novo, no Reino de Deus.»


Le 22, 17-20

Tomando uma taça, deu graças e disse: «Tomai e reparti entre vós, pois digo-vos que não tornarei a beber

do fruto da videira, até chegar o Reino de Deus.» Tomou, então o pão e, depois de dar

graças, partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: «Isto é o meu corpo, que vai ser en­ tregue por vós; fazei isto em minha memória.» Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: «Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós.»




1 Cor 11, 24-26

E, depois de dar graças, partiu-o [o pão] e disse: «Isto é o meu corpo, que é entregue

por vós; fazei isto em memória de mim.» Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: «Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim.» Porque todas as vezes que comerdes

deste pão e beberdes deste cálice anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha.




Tal como na perícopa sobre o divórcio, também aqui não é possível conciliar completamente as versões entre si. Jesus disse algo sobre o cálice, o pão, o seu corpo e o seu sangue. De acordo com Mateus e Marcos, ao passar um cálice de vinho, ele disse «isto é o meu sangue da aliança» (Mt 26, 28 / / Me 14, 24). Em Lucas pode ler-se: «este cálice é a nova Aliança no meu sangue» (22, 20) e Paulo diz o mesmo (1 Cor 11, 25). Para o nosso objetivo, não preciso de tentar decidir o que Jesus disse exatamente sobre o seu sangue e sobre o cálice. Mesmo sem o sabermos, podemos ver que ele considerou a refeição como algo simbólico e como algo que apontava para o Reino futuro. «Não voltarei a beber do fruto da videira até ao dia em que o beber, de novo, no Reino de Deus» (Mc 14, 25 / / Mt 26, 29). Lucas diz: «Não tornarei a beber do fruto da videira, até chegar o Reino de Deus» (Lc 22, 18). Paulo explica aos seus leitores que, quando eles comerem do pão e beberem do cálice, estarão a anunciar

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«a morte do Senhor, até que Ele venha» (1 Cor, 11, 26). A ceia apontava para o futuro, para a nova era. As refeições de Jesus com os pecadores (Mt 11, 18 e segs.) apontavam, provavelmente, na mesma direção. Como diz uma das parábolas, o Reino de Deus é como um banquete nupcial (Mt 22, 1-14).

Já vimos que não podemos saber até que ponto Jesus interpretava literalmente o beber do vinho no Reino. O tema podia muito bem ser metafórico. Apesar disso, este foi o seu último gesto simbólico e estas foram praticamente as últimas palavras que ele dirigiu aos seus seguidores mais próximos. Com efeito, ele proclamou solenemente que o Reino estava próximo e que iria participar nele.

As afirmações tornam altamente provável que Jesus soubesse que era um homem marcado. É possível que ele pensasse que Deus iria intervir antes de ele ser preso e executado. De qualquer modo, não fugiu. Foi para o Monte das Oliveiras, para rezar e esperar - esperar a reação das autoridades e, possivelmente, a intervenção de Deus. Segundo os Evangelhos, ele pediu na oração para ser poupado, mas fê... -lo numa privacidade total (Me 14, 32-42 & par.). No entanto, a oração que estes atribuíram a Jesus é perfeitamente razoável. Ele esperava não morrer, mas entregou-se à vontade de Deus.

Portanto, os três atos simbólicos apontam todos para o Reino que estava prestes a vir e para o papel do próprio Jesus. Ele festejará com os seus discípulos, haverá um Templo novo ou mais perfeito, e ele será «rei».


A prisão de Jesus

Debrucemo-nos, agora, sobre a nossa segunda questão importante: por que razão mandou o sumo sacerdote prender Jesus? No essencial, já respondemos a esta questão: a razão mais imediata para a prisão de Jesus foi a sua manifestação profética no Templo. Houve algumas pessoas que pensaram que ele tinha ameaçado o Templo. Se o sumo sacerdote Caifás e os seus conselheiros soubessem que Jesus tinha sido aclamado como «rei» quando entrou em Jerusalém, já estariam preocupados por causa dele. O gesto no Templo decidiu o seu destino. A cena do julgamento em Marcos parece pressupor que o sumo sacerdote tinha conhecimento de ambos os acontecimentos. Jesus começou por ser acusado de ter ameaçado o Templo. No entanto,

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havia contradições entre as testemunhas. Depois, Caifás perguntou a Jesus se ele era «o Messias, o Filho do Bendito» (Me 14, 61). No capítulo anterior, debatemos brevemente as várias versões da sua resposta. Segundo Marcos, ele respondeu: «sim»; segundo Lucas, ele respondeu apenas: «Vós dizeis que eu sou»; e segundo Mateus, ele disse: «Tu o disseste; mas [por outro lado] eu digo-vos: Vereis o Filho do Homem ... » Fosse qual fosse a resposta de Jesus, registamos que a questão implica algum conhecimento da pretensão de Jesus ou (o que é mais provável) o conhecimento das aclamações dos seus seguidores, durante a sua entrada na cidade. Jesus também tinha ensinado sobre «o Reino» enquanto estava em Jerusalém, o que teria reforçado a impressão negativa. O sumo sacerdote desejava a sua morte pela mesma razão pela qual Antipas desejava a morte de João: ele podia causar problemas.



Vimos anteriormente (pp. 44-46) que o sumo sacerdote era responsável pela ordem na Judeia, em geral, e em Jerusalém, em particular. Caifás exerceu a sua função durante mais tempo do que qualquer outro sumo sacerdote no período de governo direto dos Romanos e este facto constitui uma boa prova da sua capacidade. Se o sumo sacerdote não mantivesse a ordem, o prefeito romano interviria militarmente e a situação podia descontrolar-se. Enquanto os guardas do Templo, agindo como a polícia do sumo sacerdote, efetuassem prisões e enquanto o sumo sacerdote estivesse envolvido nos processos judiciais (embora não tivesse poder para mandar executar ninguém), existia uma possibilidade relativamente reduzida de um confronto direto entre os judeus e as tropas romanas. Se o sumo sacerdote queria manter a sua função, tinha de manter o controlo, mas um sumo sacerdote que fosse decente - e Caifás era muito decente - também tinha de se preocupar com a população judaica. O sumo sacerdote tinha outras obrigações em relação à população para além de se limitar a prevenir confrontos com as tropas romanas. Também devia representar as opiniões da população perante o prefeito, assim como defender os costumes e as tradições judaicas. Ele era o mediador. Esta segunda responsabilidade era importante, mas não desempenha qualquer papel na nossa história.


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