E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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A reivindicação do significado da sua própria missão e autoridade constituiu, provavelmente, a ofensa mais séria. Em rigor, a reivindicação de Jesus em relação a si próprio não era contra a Lei. Ele não dizia às pessoas para não apresentarem sacrifícios; pelo contrário, há duas passagens, referidas anteriormente, em que ele aprova os sacrifícios (o leproso Me 1,40-45; «vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão,

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Mt 5, 23 e segs.). Embora não se opusesse à Lei, ele sugeria que o mais importante era aceitá-lo e segui-lo. Isto poderia acabar por levar à ideia de que a Lei era desnecessária, mas parece que Jesus não tirou, ele próprio, esta conclusão e que também não foi acusado de tal. O que sobressai nas passagens sobre os pecadores é a convicção que Jesus tinha da importância da sua missão.



Vemos aqui a mesma compreensão de si mesmo que é evidente nos milagres. Jesus estava convencido de que Deus atuava direta e imediatamente através dele, não cumprindo os preceitos acordados e sancionados biblicamente, dirigindo-se às ovelhas perdidas da casa de Israel apenas através das palavras e dos atos de um homem - ele próprio. Esta é, pelo menos, a conclusão mais óbvia a tirar das passagens sobre os ímpios. Esta visão de si próprio e da importância vital

da sua missão era ofensiva em termos gerais - não porque ele se tivesse oposto à obediência à Lei, mas porque considerava a sua própria missão como algo decisivo. Se a coisa mais importante que as pessoas podiam fazer era aceitá-lo, a importância de outras exigências era reduzida, mesmo que Jesus não tenha dito que estas exigências não eram válidas.

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15. A forma como Jesus encarava o seu papel no plano de Deus

Acabámos de abordar aquilo que de mais claro e, possivelmente, mais importante se pode afirmar sobre a compreensão que Jesus tinha de si próprio e, em particular, do seu lugar no plano de Deus para Israel e para o mundo. Ele via-se a si próprio como alguém que tinha plena autoridade para falar e agir em nome de Deus. Os pecadores que o seguiam, mas que podiam ter ou não voltado à Lei de Moisés, teriam um lugar no Reino de Deus. Para aqueles que não estavam convencidos, ele era arrogante e atribuía-se a si próprio um grau de autoridade que era completamente impróprio. Para os seus seguidores e simpatizantes, ele oferecia um caminho imediato e direto para o amor e a misericórdia de Deus, estabelecendo uma relação que culminaria na vinda do Reino. Jesus era um profeta carismático e autónomo; isto é, a sua autoridade (tanto na sua perspetiva, como na dos seus seguidores) não era mediada por qualquer instituição humana, nem sequer pela Escritura. A autoridade de um rabi ou de um doutor da Lei derivava do estudo e da interpretação da Bíblia. Não há dúvida de que Jesus fazia ambas as coisas, mas não era a interpretação da Escritura que lhe dava autoridade sobre as outras pessoas. Ele não dizia aos potenciais seguidores: «Estudem comigo seis horas por semana e, dentro de seis

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anos, ensinar-vos-ei a interpretação correta da Lei.» Na realidade, ele dizia: «Deixem tudo o que possuem e sigam-me, porque eu sou o instrumento de Deus.»



A reivindicação que Jesus faz para si mesmo tem dois aspetos. Um deles está relacionado com a afirmação da sua própria autoridade, que acabámos de registar, e que também pode ser observada em todas as passagens que contêm a exortação «sigam-me», especialmente naquelas que sugerem que segui-lo implica custos pessoais elevados. Limito-me a apresentar uma lista dos exemplos mais importantes:

Alguns dos seus seguidores deixaram tudo para o seguir: Mt 19, 27-29.

Aqueles que o querem seguir devem lembrar-se de que ele não tem onde reclinar a sua cabeça, Mt 8, 19 e segs.

O homem cujo pai tinha morrido devia deixar «os mortos sepultar os seus mortos» e seguir Jesus, M t 8, 21 e segs.

Os seguidores deviam abandonar a sua família e até as suas próprias vidas, Mt 10, 34-38; cf. Mt 16, 24-28.

O homem rico devia vender tudo aquilo que possuía e seguir Jesus, Mt 19, 16-22.

Atendamos especialmente a Mt 19, 27-29: Pedro perguntou qual seria a recompensa dos seguidores de Jesus que tinham deixado tudo. Jesus respondeu que receberiam cem vezes mais, que teriam por herança a vida eterna e que os Doze julgariam as doze tribos de Israel. Aqui, ele não só reivindica autoridade no sentido de conhecer a vontade de Deus e de ter recebido poder para chamar as pessoas a seguirem-no, fossem quais fossem os custos presentes, como também num outro sentido, mais habitual: no Reino, os seus seguidores seriam os juízes. Isto torna-o, presumivelmente, vice-rei: alguém que encabeça os juízes de Israel, subordinado apenas a Deus.

O segundo aspeto da reivindicação que Jesus faz para si mesmo está relacionado com a afirmação de uma relação direta com Deus «sem mediações», no sentido estrito do termo. Ele considera a sua relação com Deus como uma relação particularmente íntima. Tal como Geza Vermes sublinhou, houve outros profetas carismáticos para além de Jesus que sentiram que tinham uma relação muito íntima com Deus e nós não deveríamos enfatizar demasiadamente a compreensão que Jesus tinha de si mesmo neste aspecto. É possível que tenham existido

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muitas pessoas que se sentiam tão próximas de Deus como Jesus. Mas, no que a ele diz respeito, podemos ter a certeza de que estava convencido de que tinha recebido o encargo especial de falar em nome de Deus e de que esta convicção se baseava num sentimento de intimidade pessoal com a divindade.


Títulos

Sabemos, substancialmente, o que Jesus pensava sobre si mesmo. Agora, queremos saber se ele atribuiu ou não um título a si mesmo. Os autores do Novo Testamento interessavam-se por títulos e os cristãos modernos seguiram o seu exemplo. Existem poucos temas de pesquisa que tenham dado origem a tantas publicações científicas. Todos nós pensamos que compreendemos uma coisa melhor se conhecermos a palavra correta para a designar, mas, neste caso específico, esta perspetiva é, provavelmente, incorreta. A demanda do título correto - a palavra que encerra a compreensão que Jesus tinha de si mesmo, assim como a compreensão dos primeiros discípulos - pressupõe que estes títulos tenham sido definidos claramente e que basta descobrir­ mos a definição de cada um deles. Se o título a quer dizer x e se Jesus utilizou a para si próprio, sabemos que ele pensava ser x. Na minha opinião, o pressuposto de base de que os títulos possuíam definições estipuladas é errado.

Comecemos com o título que foi aplicado mais frequentemente a Jesus desde os seus dias: «Messias» ou «Cristo». É conveniente repetir aqui a origem destas palavras. A palavra «Messias» constitui uma transliteração aproximada da palavra hebraica meshiah ou da palavra aramaica mashiha, palavras que significam «ungido». Em grego, a palavra meshiah traduz-se por christos, da qual provém a palavra «Cristo». Portanto, «Messias» e «Cristo» têm o mesmo significado. A maior parte dos autores do Novo Testamento, que escreveram em grego, utilizavam a palavra christos, mas, por vezes, escreveram messias, mostrando, assim, conhecimento da palavra semita subjacente. Nas cartas de Paulo, a palavra christos já tinha começado a ser utilizada como se não se tratasse de um título, mas de uma parte do nome de Jesus:

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«Jesus Cristo». O nosso interesse atual concentra-se no significado do título de «Messias» na cultura de Jesus. Que significado tinha este título para os judeus que viviam na Palestina no século I?

Na Bíblia Hebraica havia três grupos de pessoas que eram ungidas: os profetas, os sacerdotes e os reis. A tradição cristã fixou-se cedo no terceiro destes grupos como indício para a identidade de Jesus: ele era descendente do rei David e era o Messias da casa de David - descendente carnal de David, escolhido por Deus (<

A segunda fonte que lança luz sobre o título de «Messias» consiste na biblioteca encontrada perto das margens do mar Morto. Em alguns destes documentos existem dois Messias: um que é filho de David e outro que é filho de Aarão, o primeiro sumo sacerdote. O segundo, o Messias sacerdotal, lidera. O outro Messias não faz nada. Haverá uma grande guerra (de acordo com um dos Rolos), mas os Messias não participam nela.

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Não podemos ler estes textos e, depois, afirmar que sabemos o que o título de «Messias» significa e, por conseguinte, o que os primeiros cristãos tinham em mente quando chamavam «Messias» ou «Cristo» a Jesus. Mesmo a expressão «filho de David» permanece um pouco vaga. Talvez ela aponte mais claramente para um líder militar e político do que o título de «Messias», mas os Rolos do Mar Morto mostram que ela não exige esta definição. Tudo o que podemos saber realmente, quando vemos a palavra «Messias», é que a pessoa à qual este título era aplicado era considerada como o «ungido» de Deus, ungido para alguma tarefa especial.

Os autores dos Evangelhos e outros cristãos, tanto antes como depois deles, pensavam que Jesus era o Messias - isto é, que ele era uma espécie de Messias. No entanto, as passagens nos Evangelhos sinópticos tornam duvidoso que Jesus aplicasse este termo a si próprio. Em Cesareia de Filipe, em resposta à pergunta de Jesus: «Quem dizem os homens que Eu sou», os discípulos responderam: «João Baptista, outros, Elias, e outros, que és um dos profetas.» Jesus insistiu: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»: e Pedro respondeu: «Tu és o Messias» (em grego, christos). Jesus ordenou-lhes «que não dissessem a ninguém» (Mc 8, 27-.'30), possivelmente, para evitar problemas ou porque não concordava completamente com a correção do título. Depois, continuou a falar de si próprio como o Filho do Homem (8, .'31).

Quando Jesus entrou em Jerusalém para a sua última festa da Páscoa, montando um jumento, algumas pessoas gritaram: «Hossana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Bendito é o Reino do nosso pai David que está a chegar!» (Me 11,9 e segs.). De acordo com Mateus, a multidão saudava Jesus como «Filho de David» (21, 9), segundo Lucas, como «o Rei» (19, .'38). Esta passagem não oferece comprovação suficiente para dizer o que a multidão pensava, nem podemos saber como Jesus encarava estas aclamações. No entanto, se Jesus decidiu deliberadamente entrar em Jerusalém montado num jumento, para «cumprir» a profecia de Zacarias 9,9 («o teu rei vem ... sobre um jumentinho»), sabemos que ele não considerava o título de «rei» completamente inadequado." Mas a palavra não tem de desencadear necessariamente toda a série de características que os investigadores imaginam estar associadas aos termos de «Messias» e «Filho de

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David». Pelo contrário, havia muitos judeus que não desejavam um rei do tipo militarista (ver p. 66). Não é, de modo algum, inimaginável que a entrada de Jesus sobre um jumento tivesse constituído um sinal deliberado: «"rei", sim, de certo modo, mas não um conquistador militar».

Quando Jesus foi julgado perante o sumo sacerdote, este interrogou-o: «És o Messias [christos], o Filho do Bendito?» (Mc 14, 61 & par.). De acordo com Marcos, ele respondeu que «sim», de acordo com Lucas, fugiu à questão, enquanto, segundo Mateus, ele disse, efectivamente: «não» (Mc 14, 62; Lc 22, 67 e segs.; Mt 26, 64).4 Jesus referese, de novo, imediatamente ao Filho do Homem (Mc 14, 62 & par.)

Por conseguinte, não existe qualquer certeza de que Jesus se considerasse a si próprio como portador do título de «Messias». Pelo contrário, é improvável que o tivesse feito: apesar de todos os evangelistas considerarem Jesus como o Messias, não podem citar muitas provas diretas; Marcos é o único que tem um «sim» em resposta a uma pergunta direta sobre o título. Pedro, que talvez pensasse mais em termos de um Messias mundano do que o próprio Jesus, recebeu esta repreensão: «Vai-te da minha frente, Satanás!» (Mc 8, 33). Jesus conheceu a tentação do sucesso mundano (M t 4, 1-11), mas voltou a rejeitar a oferta de Satanás.

Na realidade, a verdadeira pretensão de Jesus pode ter sido mais elevada: não só o porta-voz de Deus, mas o Seu vice-rei e isto não só num reino político, mas no Reino de Deus. Isto infere-se da reivindicação implícita que Jesus faz para si mesmo discutida anteriormente e não porque ele próprio tivesse atribuído a si próprio um título explícito.

Visto que a questão do significado do termo «Messias», quando aplicado a Jesus, é complexa, enumerarei os pontos principais, a título de resumo: 1) A literatura judaica anterior ou contemporânea a Jesus não oferece uma definição única da palavra «Messias». 2) É provável que Jesus não considerasse o título de «Messias» como o melhor para descrever aquilo que ele era. 3) No entanto, depois da morte e ressurreição de Jesus, os seus discípulos decidiram que este título, um dos mais honoríficos que podiam imaginar, lhe pertencia. 4) Este título correspondia, num sentido muito geral, à compreensão que Jesus tinha de si mesmo: ele seria o líder no Reino que estava prestes a chegar. 5) No entanto, os discípulos também podiam lembrar-se de que ele tinha

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rejeitado a ambição que Pedro tinha para ele, e que, mais tarde, três deles (Pedro, Tiago e João) tiveram uma visão na qual viam Jesus glorificado juntamente com Moisés e Elias (Mc 9, 2-13). Segundo a Bíblia, Elias tinha sido levado em corpo para o Céu e a tradição judaica concedia frequentemente a mesma honra a Moisés. A presença de Jesus com Elias e Moisés, na visão dos discípulos, atesta o seu estatuto verdadeiramente elevado - mais uma vez, exatamente o estatuto de «Filho de David» ou de «Messias». Tanto Elias como Moisés eram «profetas». 6) Por fim, os primeiros cristãos mantiveram o título de «Messias», mas redefiniram-no de acordo com a sua própria experiência: Jesus tornou-se para eles um novo tipo de Messias, um Messias que tinha agido como operador de milagres e como profeta, durante a sua vida, mas que também era o Senhor do Céu que regressaria no fim. Esta definição de Messias - profeta, operador de milagres e Senhor do Céu - é uma definição post factum: os primeiros cristãos viam-no desta maneira e também lhe chamavam «Messias». Tanto quanto sabemos, o termo «Messias» nunca tinha sido definido assim anteriormente.

O título de «Filho de Deus» ainda é mais vago do que o de «Messias». Graças às narrativas sobre o nascimento de Mateus e Lucas, os leitores modernos pensam frequentemente que «Filho de Deus» significa «um varão concebido sem esperma humano» ou até «um varão semi-humano e semidivino, gerado quando deus fertilizou um óvulo humano, sem esperma». Quando discutimos os milagres (pp. 205-208), vimos que esta ideia era perfeitamente compatível com o mundo de língua grega. Contava-se uma história semelhante sobre Alexandre Magno: ele era filho de Zeus. A sua mãe foi atingida por um raio, antes de ter consumado o seu casamento com Filipe da Macedónia, pelo que Alexandre era um filho híbrido." Tanto quanto sabemos, nenhum

judeu da Antiguidade utilizava a expressão «Filho de Deus» neste sentido tão grosseiramente literal. A utilização judaica comum era genérica: os judeus eram todos «filhos de Deus» (neste caso, o masculino incluía o feminino). A utilização do singular «Filho de Deus» para se referir a uma pessoa específica teria sido surpreendente, mas não teria levado os ouvintes a pensar numa forma de conceção não natural e

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numa descendência híbrida. Tal como observámos no capítulo 10, o título podia sugerir uma posição especial diante de Deus e um poder fora do comum para fazer o bem.

É difícil dizer com precisão aquilo que os autores do Novo Testamento queriam dizer com o título de «Filho de Deus», embora dispúnhamos dos seus escritos e possamos estudá-los. Mateus e Lucas, que têm histórias da conceição de Maria através do Espírito Santo (Mt 1, 20, Lc 1, 34) traçam igualmente a genealogia de Jesus através de José, marido de Maria (Mt 1, 16; Lc 3, 23). Os Evangelhos possuem outras formas de definir Jesus como Filho de Deus, para além das histórias da sua conceição e do seu nascimento. Na história do batismo de Jesus, uma pomba desce sobre ele e uma voz do céu dirige-se a Jesus: «Tu és o meu Filho muito amado» (Mc 1, 11 / / Lc 3, 22).6 Trata-se de uma citação do Salmo 2, 7, onde «Filho de Deus» se aplica ao rei de Israel - que era um ser humano comum. Parece que, em Marcos, a expressão «Tu és o meu Filho» é entendida como uma declaração de adoção; Deus concedeu a Jesus um estatuto especial quando ele foi batizado. De acordo com uma passagem nas cartas de Paulo, Jesus foi «designado» ou «declarado» Filho de Deus em poder pela sua ressurreição, não no momento da sua conceição (Rm 1,4). O facto de, na opinião de Paulo, «Filho de Deus» não se referir ao modo como Jesus foi concebido também é indicado nas passagens em que Paulo diz que os cristãos se tornam filhos de Deus.

Pois todos os que se deixam guiar pelo Espirito são filhos de Deus. Pois vós não recebestes um espírito que vos escravize ... ; mas recebestes um espírito de adoção. Quando clamamos: «Abbâ! Pai!» é esse mesmo espirito que dá testemunho de que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos de Deus, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, pressupondo que com Ele sofremos, para também com Ele sermos glorificados. (Rm 8, 14-17; cf. GI 4, 4-7)

Esta é outra passagem que mostra a definição de filiação como uma adoção. Paulo não escreveu que os cristãos eram gerados através de um substituto divino do esperma, mas sim que eram adotados, tornando-se, assim, irmãos de Cristo e seus co-herdeiros - e Jesus tinha

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sido declarado Filho, não gerado literalmente por Deus. Numa outra passagem, Paulo escreveu que as pessoas que têm fé são filhas de Deus (GI 3, 26). Na correspondência que chegou até nós, Paulo não chama a ninguém «Filho de Deus» no singular, exceto a Jesus, mas não existe nenhuma sugestão nas suas cartas de que ele pensasse que o título, quando aplicado a Jesus, significava que ele fosse apenas semi-humano. O título também não exige uma história de conceição milagrosa. Jesus era o Filho de Deus, mas os outros podem tornar-se filhos de Deus. O próprio Jesus era de opinião que as pessoas podem tornar-se filhos de Deus: ele disse aos seus seguidores que, se amassem os seus inimigos, tornar-se-iam «filhos de Deus».



Os primeiros cristãos, depois, utilizaram o título de «Filho de Deus» para designar Jesus, mas não pensavam que ele fosse um ser híbrido - semidivino e semi-humano. Eles consideravam o título «Filho de Deus» uma designação elevada, mas não podemos ir muito para além disso. Quando os gentios convertidos começaram a aderir ao novo movimento, é possível que tenham entendido o título à luz das histórias sobre Alexandre Magno ou da sua própria mitologia: Zeus

assumiu a forma de um cisne, teve relações com Leda e gerou Helena e Polideuses. No entanto, os primeiros seguidores de Jesus, quando começaram a chamar-lhe «Filho de Deus», tinham em mente algo mais vago: uma pessoa que tinha uma relação especial com Deus, que a escolheu para cumprir uma tarefa de grande importância.

Se falei tanto sobre a ideia de Jesus ser um híbrido é porque há muitas pessoas - tanto cristãos como não cristãos - que pensam que é esta a fé dos cristãos. Mateus e Lucas, nas suas narrativas sobre o nascimento, semeiam as sementes desta perspetiva, mas nem estes relatos presumem de uma forma sistemática que Deus fosse diretamente pai de Jesus, uma vez que as genealogias apresentam Jesus como descendente de David, através de José (Mt, 1,2-16; Lc 3, 23-38). De qualquer modo, as narrativas de nascimento não configuram a ideia que os primeiros cristãos tinham sobre Jesus como «Filho de Deus»; no resto da literatura do início do cristianismo - incluindo o resto do material de Mateus e de Lucas - o título não é tão literal. Jesus é um «Filho de Deus» especial que vive numa nação de «Filhos de Deus». Devo também recordar ao leitor um ponto mencionado anteriormente: os credos cristãos, quando os Padres da Igreja procuraram definir o conceito de «Filho de Deus», são 100 por cento contra a definição «meio/meio». Em termos de credo, isto é uma heresia.

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Os Evangelhos sinópticos aplicam a Jesus o título «Filho de Deus» em alguns outros contextos, para além das narrativas sobre o nascimento. Alguns deles já foram referidos, mas por uma questão de conveniência e de clareza, reunirei aqui as passagens mais importantes: (1) a voz do Céu chama «Filho» a Jesus durante o batismo deste (Mc 1, 11 e par.), declaração que se repete na história da transfiguração (Mc 9, 7 e par.); (2) os demónios chamam-lhe «Filho de Deus» (Me 3, 11; Lc 4, 41 e outras passagens); (3) nas histórias das tentações em Mateus e Lucas, o diabo dirige-se a Jesus como o possível Filho de Deus («se tu és o Filho de Deus» Mt 4, 3-7 / / Lc 4, 3-9); (4) durante o processo de Jesus, o sumo sacerdote pergunta-lhe se ele é Filho de Deus (Mc 14, 61 e par.); (5) o centurião que assistiu à morte de Jesus confessa que ele era Filho de Deus (Me 15, 39 / / Mt 27, 54). A única passagem que pode ter um significado «metafísico» - isto é, que poderia afirmar que Jesus era algo mais do que puramente humano - é a da pergunta durante o processo, visto que, depois dela, quando Jesus não nega o título, o sumo sacerdote exclama que se trata de uma «blasfémia». Retomaremos esta passagem no próximo capítulo. No que diz respeito às outras passagens, podemos ver que o título significa que Jesus tinha um estatuto especial e o poder para exorcizar; isto não significa que ele não fosse completamente humano. Além disso, apenas podemos perguntar o que tinham os outros em mente quando utilizavam este título para designar Jesus, visto que ele nunca se chamou a si próprio «Filho de Deus (exceto na cena do processo apresentada por Marcos, que vamos debater no próximo capítulo).

O terceiro título que desempenha um papel importante nos Evangelhos sinópticos é o de Filho do Homem. Na Escritura judaica, esta expressão tem vários significados. Em Ezequiel, «Filho do Homem» é simplesmente um título que o profeta atribui a si próprio: Deus fala-lhe como «Filho do Homem» que a NRSV traduz, muito apropriadamente, por mortal» (p. ex., Ez 12, 2). Em Daniel, a expressão «um como Filho do Homem» refere-se à nação de Israel ou, talvez, aos seus representantes angélicos. Nas visões desta parte do Livro de Daniel, os outros reinos do mundo são representados por animais fantásticos; Israel, pelo contrário, é representado através de uma figura semelhante a um ser humano (Dn 7, 1-14). Numa das partes que constitui a obra

pseudoepigráfica do I Enoch, o Filho do Homem é uma figura celeste

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que julga o mundo (p. ex., I Enoch, capítulos 46, 48 e 69, 26-29). No entanto, não é possível provar que esta parte do livro é pré-cristã. Por conseguinte, não podemos afirmar que a escatologia judaica já tivesse estabelecido a ideia de que uma figura celeste chamada «o Filho

do Homem» iria julgar a humanidade no fim da história comum, embora isto seja possível.


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