Jejum e tentação (Me 1, 128; Mt 4, 1-11; Le 4, 1-13)
Depois do seu batismo, Jesus foi fazer jejum para o deserto, onde (de acordo com os Evangelhos) foi tentado por Satanás (Marcos) ou pelo demónio (Mateus e Lucas). Todos os três Evangelhos dizem que Jesus foi conduzido pelo Espírito de Deus. Em Marcos, a história da tentação é extremamente breve: «Em seguida, o Espírito impeliu-o para o deserto. E ele ficou no deserto quarenta dias, tentado por Satanás e estava entre as feras e os anjos serviam-no.» Mateus e Lucas oferecem relatos muito circunstanciados; escrevem, sobretudo, acerca das tentações. Debrucemo-nos um pouco sobre a historicidade e o significado destas passagens.
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A alegação de que Jesus jejuou durante quarenta dias recorda os quarenta anos durante os quais Israel vagueou pelo deserto, depois da fuga do Egipto. Este paralelismo entre a permanência de Israel no deserto durante quarenta anos e os quarenta dias que Jesus passou no deserto confronta-nos com a dificuldade habitual de não sabermos se foi Jesus ou os primeiros cristãos que criaram esta correlação. É intrinsecamente provável que Jesus tenha procurado a solidão, de vez em quando, para rezar e meditar, que se tenha sentido tentado, por vezes, e que tenha jejuado, antes de começar a sua vida pública. É possível que até o número «quarenta» remonte a ele. Como veremos mais adiante, ele utilizou pelo menos um número (doze) com uma intenção simbólica; é possível que tenha sido ele próprio que falou, mais tarde, aos seus discípulos sobre um jejum de quarenta dias. Apesar de ninguém poder viver durante quarenta dias sem comida e sem água, para os judeus, a palavra jejum» não significa necessariamente que a pessoa se abstenha completamente de todo o sustento. Nem Lucas, que escreve que Jesus «não comeu nada» (4,2), diz que ele não bebeu água. É razoável pensar que Jesus jejuou e rezou durante vários dias, apenas com um mínimo de comida.
Embora Jesus, mais tarde, durante a sua vida pública, se tenha retirado para rezar e meditar, os Evangelhos indicam que ele não jejuava, o que era alvo de crítica (Me 2, 18-22). Suponho que Jesus jejuava no Dia da Reconciliação, dado que isso constitui um mandamento bíblico, e que, em geral, ele parece ter observado a Lei bíblica. Contudo, tanto ele como os seus discípulos, não observavam outros jejuns que se pudessem ter tornado habituais.
O enquadramento material do jejum e da tentação merece ser comentado. O deserto da Judeia é um lugar terrível. É muito montanhoso, pedregoso e árido. Encontra-se entre as montanhas da Judeia e o vale do Jordão, estendendo-se cerca de 120 quilómetros para norte e sul e cerca de 15 quilómetros para este e oeste. A viagem de Jerusalém para o vale do Jordão e o mar Morto leva muito rapidamente ao deserto, iniciando-se uma descida íngreme das montanhas para o vale; em
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18 quilómetros, desce-se cerca de 1150 metros (de cerca de 750 metros acima do nível do mar para cerca de 390 metros abaixo do nível do mar)" É perigoso para um viajante solitário abandonar a estrada e entrar no deserto. Há abismos por todo o lado e o terreno é extremamente acidentado. É fácil torcer um pé ou partir um osso, ficando-se impossibilitado de voltar par trás. É certo que alguns aprendem a orientar-se no deserto; ele serviu como refúgio para os perseguidos, bem como para ladrões (como na parábola do bom samaritano). No entanto, para encontrar comida e água é necessário descer até ao vale do Jordão, onde existem fontes e zonas férteis. Jericó, uma das cidades continuamente habitadas mais antigas do mundo é um oásis na margem oriental do deserto que deve a sua verdura e a sua fertilidade a uma fonte abundante. A seita do mar Morto vivia perto de uma outra fonte, um pouco a sul de Jericó.
A história da tentação de Jesus no deserto é tanto simbólica (quarenta dias), como mitológica. Um mito é uma história na qual um ser sobrenatural age a nível humano. No presente caso, Satanás (ou o demónio) é o ser sobrenatural. Marcos menciona-o apenas de passagem, mas, nas narrativas mais exaustivas de Mateus e Lucas, o demónio fala com Jesus, leva-o do deserto para o monte do Templo, mostra-lhe «todos os reinos do mundo» e promete-lhe domínio sobre eles. Estes traços são «mitológicos». Um mito não é equivalente a uma mentira; o mito pode ser verdade em determinado sentido. Alguns leitores antigos, tal como alguns modernos, acreditavam que havia uma correspondência exata entre a história mitológica e o acontecimento real. Outros, pelo contrário, consideravam o mito uma fantasia poética que não continha qualquer verdade literal. Permitam-me que apresente um exemplo retirado do artigo sobre mitologia de H. 1. Rose (Oxford Classical Dictionary).
Era comum dizer ... que o desfiladeiro de Peneus tinha sido criado por Poseidon [o deus grego do mar]. .. Heródoto considera isto uma mera expressão pitoresca para dizer que o desfiladeiro tinha surgido de um terramoto ... Mas é muito mais provável que o autor da história tivesse uma imagem mental nítida do desfiladeiro que, aos seus olhos, sugeria uma grande finda, esculpida por um ser gigantesco e poderoso, e que achando esta imagem satisfatória para a sua imaginação, não se preocupasse muito com a sua plausibilidade.
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Considero bastante provável que Mateus e Lucas, que acreditavam em anjos, em demónios e no Espírito de Deus, pensassem que o demónio tinha levado, realmente, Jesus ao pináculo do Templo, mostrando-lhe visões. Mas é raro podermos ter a certeza de quando os autores da Antiguidade consideravam as suas narrativas como meras apresentações pitorescas e quando acreditavam que elas eram literalmente verdadeiras. Voltaremos a uma questão relacionada com isto no próximo capítulo, no qual falaremos de milagres.
No relato de Marcos, Jesus foi tentado por «Satanás». Embora Marcos tenha escrito em grego, utilizou esta palavra hebraica, enquanto Mateus e Lucas utilizaram o equivalente grego habitual, isto é, «demónio» (Mt 4, 12; Me 1, 12; Lc 4, 2). A palavra hebraica satan significa «adversário» e, na Bíblia Hebraica, «o adversário» não é necessariamente um inimigo de Deus. Em Nm 22, 22 a palavra designa um dos anjos de Deus. Satanás desempenha um papel importante no Livro
de Job onde é um dos conselheiros de Deus que duvida, no entanto, da firmeza da fé de Job e ao qual Deus permite que faça Job sofrer, para ver se este perde a fé.
Ao que parece, foi durante o cativeiro na Babilónia (597 a 537 a.e.c.) que Satanás ganhou uma dimensão maléfica, tornando-se, praticamente, um segundo deus, um deus mau. Na época do Novo Testamento, Satanás já dispunha, sob um ou outro nome, de uma esfera própria como o poder espiritual decisivo que se opunha a Deus. O seu reino era um reino de chamas, para onde eram mandadas as almas condenadas (M t 25, 41). Satanás podia entrar no coração, semeando a maldade (Mt 13, 19); foi ele que levou Judas a trair Jesus (Lc 22, 3; Jo 13,2). Por fim, ele tinha os seus próprios anjos, tal como Deus (Mt 25, 41).
Por que razão adquiriu Satanás uma tal relevância naquele tempo? Ao que parece, foi durante o cativeiro na Babilónia que os judeus começaram a ser completamente monoteístas. Antes, pensavam que o seu Deus era superior, mas não negavam completamente a existência de outros deuses. Uma religião que defende que só existe um deus tem dificuldades em explicar o mal. Foi o Deus bom e único que criou o mal? Porque o permite Ele? Face à coexistência real do bem e do mal, algumas tradições religiosas postularam a existência de duas divindades opostas. Esta é a característica teológica mais relevante no zoroastrismo, que surgiu na Pérsia no século VI ou V a.e.c. e que influenciou o pensamento mediterrânico em muitos aspetos. O judaísmo deve, provavelmente, a ideia de um poder maligno, oposto a Deus, ao
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zoroastrismo. (O cristianismo, por seu turno, herdou esta ideia do judaísmo.) O judaísmo permaneceu fiel ao monoteísmo, rejeitando a ideia da existência de um deus oposto, mas aceitou alguns aspetos do dualismo persa, como o conflito entre Deus e as forças do mal. Esperava-se, naturalmente, que Deus acabasse por triunfar sobre o poder maligno, embora, neste mundo, parecesse - e ainda pareça - que é o mal que vence.
O conflito de Jesus com o mal, que aparece, primeiro, na figura de Satanás e, mais tarde, dos demónios, constitui um dos temas principais dos Evangelhos. Regressaremos ao conflito com os demónios no próximo capítulo, quando discutirmos os exorcismos. Aqui, registamos que os Evangelhos colocam no início das suas narrativas um conflito fundamental com o chefe das forças do mal, o próprio Satanás.
Mateus e Lucas falam de três tentações. O demónio desafiou Jesus a transformar as pedras em pão, a lançar-se do pináculo do Templo, confiando que os anjos o salvariam, e a aceitar «todos os reinos do mundo, com a sua glória». Estas ofertas tinham uma condição: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares» (de acordo com a ordem de Mateus; Mt 4, 1-11; Lc 4, 1-13). Jesus responde a cada tentação com uma citação da Escritura. Ele responde à tentação de transformar as pedras em pão, dizendo: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.» (Citação de Dt 8,3.) Recusa a tentação de tentar a Deus e de chamar a atenção sobre si próprio, saltando do pináculo do Templo. E cita Dt 6, 16: «Não tentarás o Senhor teu Deus.» Em relação à tentação de se tornar senhor sobre todos os reinos do mundo, adorando Satanás, citou uma das passagens mais conhecidas da Bíblia: «Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele servirás» (Dt 6, 13). Estas palavras provêm de uma passagem que se chama, em hebraico, Chema - «Escuta», de acordo com a palavra inicial do mandamento: «Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o Senhor e servirás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.» Jesus haveria de citar esta passagem, que os judeus piedosos citam duas vezes por dia, quando lhe perguntaram qual era o maior mandamento.
Duas das respostas atribuídas a Jesus condizem com aspetos centrais da sua vida pública posterior. Primeiro, hesitou em «mostrar-se» e rejeitou «provar quem era» através de «sinais». Em segundo lugar, concebia-se a si próprio como um servo de Deus. Movia-se no quadro conceptual geral sobre Deus e Israel oferecido pela Escritura judaica,
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não apontando para si próprio, mas sim para Deus. É digno de nota que não tenha falado na primeira pessoa. Ele não disse: «não é assim que eu faço as coisas», mas sim, efetivamente, que «isto não corresponde à vontade de Deus, tal com esta se revela na Escritura».
A mais interessante das três tentações é a de se tornar um rei à escala universal. Veremos que Jesus esperava ansiosamente a vinda do Reino de Deus, mas é difícil dizer que tipo de reino esperava. Foi executado como alguém que pretendia tornar-se «rei dos judeus» e, depois da sua morte e ressurreição, os seus discípulos viram nele o Messias, o líder «ungido» de Israel. Os outros aspetos do seu ensinamento e da sua ação mostram que ele se considerava rei em certo sentido. Esta tentação constitui o início de um vasto e rico tema dos Evangelhos: o Reino de Deus viria, mas não se basearia em milagres espetaculares, nem seria um reino no sentido habitual da palavra. É perfeitamente possível que Jesus tenha lutado consigo próprio por causa do tipo de reino que queria e a história da sua tentação apresenta este debate interior de uma forma gráfica.
A questão da transformação de pedras em pão também encontra eco nas narrativas posteriores dos Evangelhos, visto que se diz que Jesus multiplicou duas vezes peixes e pão e, segundo João, transformou água em vinho durante umas bodas em Caná. Portanto, a recusa em transformar pedras em pão não inicia uma série de recusas semelhantes. A questão talvez seja apenas que Jesus estava a fazer jejum; a fome não o levaria a pedir favores especiais a Deus. Iremos ver que
existe uma tensão ao longo dos Evangelhos entre a realização de milagres e a recusa em recorrer a eles para provar quem era. Neste caso, a recusa não é em dar um sinal aos outros, visto que Jesus estava sozinho. Parece tratar-se apenas de uma história sobre a sua coragem moral e a sua dedicação, uma vez que Jesus estava no início de uma vida na qual não se poupou, mas renunciou a tudo pela sua causa incluindo à sua própria vida.
A recusa de se lançar do Templo, deixando-se salvar por anjos, é a mais difícil de explicar, visto que este tipo de dispositivo dramático não se encontra nas histórias posteriores dos Evangelhos. No entanto, é coerente com as recusas subsequentes em fazer «sinais», quando os seus inimigos o desafiaram para tal.
A narrativa da tentação - até na forma breve de Marcos - tem um papel importante na história de Jesus. Os autores dos Evangelhos sinópticos atribuem a máxima importância à sua dedicação intensa, ao
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o seu recolhimento para refletir na sua missão, assim como à sua recusa de seguir o caminho fácil, de se exibir e de ser o rei dos reis que a maioria das pessoas esperaria que ele fosse. Também dão a entender que Jesus podia ser tentado, que tinha de lutar consigo próprio. Lucas não conclui o seu relato dizendo que os anjos serviram Jesus (como Mateus e Marcos), mas indicando um regresso de Satanás: «ele retirou-se de junto dele até ao momento oportuno» (Lc 4, 13). Lucas estava, provavelmente, a pensar no futuro. As dúvidas em relação a si próprio regressam num momento decisivo perto do fim da história: quando Jesus, sozinho, reza para que «este cálice» - a execução iminente - seja afastado dele (Mc 14,36 e par.).
Suspeito que a estreita interligação temática entre as narrativas da tentação e as histórias posteriores nos Evangelhos constitui um indício de arte literária. No entanto, também é razoável pensar que Jesus jejuou e rezou, de facto, antes do início da sua vida ativa e que foi sujeito a tentações. A conclusão mais segura talvez seja que os Evangelhos sinópticos, sobretudo Mateus e Lucas, constituem elaborações «mitológicas» baseadas num facto.
O chamamento dos discípulos
Depois do seu período de jejum, Jesus regressou à Galileia para começar a sua vida ativa. Os Evangelhos sinópticos concordam que Jesus foi rejeitado em Nazaré, que foi para Cafarnaum e que chamou discípulos na cidade e nos seus arredores, mas divergem no que diz respeito à sequência exata dos acontecimentos. Começaremos com Nazaré, por uma questão de conveniência. Os Evangelhos não registam senão fracassos nesta cidade. Ele era demasiado conhecido e a multidão perguntava: «Não é ele o carpinteiro (em Mateus, «filho do carpinteiro»), o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E recusavam-se a ouvi-lo. Ele retirou-se, comentando: «Um profeta só é desprezado na sua pátria e entre os seus parentes e em sua casa» (Mc 6, 1-6; Mt 4, 12s; Lc 4, 16-30).
Quer tenha sido antes ou depois desta desilusão, o que é certo é que Jesus encontrou um público mais recetivo em Cafarnaum, na costa do mar da Galileia. Foi ali que chamou os seus primeiros discípulos. Viu Simão (mais tarde chamado Pedro) e o seu irmão André a
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lançarem as suas redes ao mar e disse-lhes: «Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens.» Jesus chamou também dois outros irmãos que eram pescadores: Tiago e João, os filhos de Zebedeu. Estes estavam com o seu pai a consertar as suas redes e deixaram o barco e o pai quando Jesus os chamou (Mt 4, 18-22 / / Mc 1, 16-20).
A história do chamamento dos primeiros quatro discípulos em Mateus e Marcos sublinha a presença de autoridade de Jesus, assim como a prontidão dos discípulos para abandonarem tudo a fim de o seguirem. As histórias subsequentes reforçam esta ideia geral. Pedro perguntou, uma vez, o que receberiam como recompensa por terem abandonado tudo. Jesus responde que, na nova era, os discípulos julgariam as doze tribos de Israel e que os outros que deixaram «casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberão cem vezes mais e herdarão a vida eterna» (Mt 19, 27-29) Mas, para já, exigia-se o sacrifício de si mesmo.
A descrição do chamamento dos primeiros discípulo em Lucas é notoriamente diferente. Jesus estava a ensinar junto ao mar e a multidão comprimia-se à volta dele. Ele entrou num barco de pesca, que pertencia a Simão, e começou a ensinar do barco. Depois, diz a Simão para lançar as suas redes e Simão respondeu que tinham pescado toda a noite em vão. Mesmo assim, lançou as redes e apanhou muito peixe, tanto que houve outros pescadores que também puderam encher as
suas redes. Simão reconheceu Jesus como enviado de Deus e pediu-lhe para ele se ir embora, dizendo: «Afasta-te de mim, porque sou um homem pecador.» Tanto ele como os seus companheiros - Tiago e João - ficaram estupefactos com o sucedido. Regressaram a terra e tornaram-se todos discípulos de Jesus (Lc 5, 1-11). Note-se que Lucas inclui Pedro, Tiago e João na mesma cena, apresentando-os como companheiros, mas não menciona André.
Apesar de, na maioria de casos, deixarmos João de lado, neste caso, é necessário fazer uma exceção. A sua história é completamente diferente (Jo 1,29-51). Dois discípulos de João Baptista ouviram este fazer o seguinte comentário acerca de Jesus: «Eis o Cordeiro de Deus», e
seguiram-no. Um deles era André, que trouxe consigo o seu irmão, Pedro, associando-se ambos a Jesus - antes da prisão de João e, ao que parece, em Betânia, não em Cafarnaum (Betânia: Jo 1, 28). Na
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Galileia, Jesus encontrou Filipe e chamou-o; Filipe, por seu lado, recrutou Natanael (os Evangelhos sinópticos não o mencionam). O Evangelho de João pretende salientar a subordinação do Baptista a Jesus; o facto de Jesus ter ficado com um discípulo de João faz parte
deste esquema. A história nos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), segundo a qual Jesus chamou os seus primeiros discípulos enquanto estes estavam a pescar, parece mais provável. Mesmo assim, temos de supor que esta narrativa também é abreviada e idealizada, omitindo pormenores ao enfatizar o carácter imediato da resposta dos chamados. Lucas manifesta a necessidade de circunstâncias adicionais para explicar a razão pela qual os discípulos seguiram Jesus: Pedro, Tiago e João viram um milagre - uma pescaria abundante - e isto persuadiu-os a seguirem Jesus. Poderia supor-se que a fama e a mensagem de Jesus já tinham chegado aos pescadores e que estes sabiam algo sobre o homem que os chamou do seu trabalho. Considero o relato fundamental credível sob o ponto de vista histórico: os primeiros discípulos eram pescadores da Galileia; entre eles, encontravam-se Pedro, André, e Tiago e João; eles abandonaram as suas redes para seguirem Jesus.
As narrativas dos Evangelhos sinópticos sobre o chamamento dos discípulos permitem-nos ilustrar o rumo que a tradição seguiu. Os futuros discípulos já sabiam algo sobre Jesus, de forma
que já tinham uma ideia de quem ele era quando os chamava. Em Marcos e Mateus, podemos observar que os pormenores originais foram todos eliminados. Ficou apenas a ideia central: Jesus chamou e os discípulos obedeceram ao seu chamamento. Lucas reintrodux um contexto narrativo que dá uma explicação: Jesus ganhou a confiança dos pescadores dizendo-lhes onde pescar. Estes resistiram, inicialmente, mas acabaram por se tornar discípulos. É duvidoso que Lucas dispusesse de uma tradição antiga que remontasse ao verdadeiro acontecimento. Ele sentiu que faltava uma explicação e, portanto, forneceu uma, isto é, inventou uma história.
As tradições relativas ao número e à identidade dos seguidores mais próximos de Jesus são tão importantes quanto interessantes, pelo que iremos examiná-las mais detalhadamente. Constatamos, em primeiro lugar, que, embora os quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos e Paulo falem de doze discípulos especiais (designados frequentemente como «os Doze»), não existe plena concordância no que diz respeito aos seus nomes. A explicação mais provável é que o próprio Jesus utilizava este termo simbolicamente e que este número era recordado
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como um número simbólico, embora o número exato dos discípulos mais próximos pudesse ter variado. O significado simbólico do número devia ser óbvio para toda a gente: representava as doze tribos de Israel. Com o chamamento de discípulos, assim como com a referência aos «Doze», Jesus pretendia demonstrar que visava a plena restauração do povo de Israel. O valor simbólico deste número é particularmente claro em Mt 19, 28: os doze discípulos julgarão as doze tribos de Israel. Dez das doze tribos tinham desaparecido havia séculos, quando a Assíria conquistou o reino do Norte. No entanto, muitos judeus continuavam a ter a esperança de que, um dia, Deus restaurasse as dez tribos perdidas: portanto, «doze» representa a expectativa de um milagre escatológico, de um ato decisivo de Deus para redimir o Seu povo.
As cartas de Paulo foram escritas antes dos Evangelhos, pelo que a sua referência aos Doze constitui a prova mais antiga. Esta encontra-se numa passagem que ele repete como «tradição» e que, por isso, remonta aos primórdios do movimento. No capítulo 15 da La carta aos Coríntios, Paulo apresenta uma lista das aparições do Ressuscitado que lhe tinha sido entregue: Jesus apareceu a Cefas (Pedro), depois, aos Doze, mais tarde, a mais de quinhentos irmãos, depois a Tiago, a seguir, a «todos os Apóstolos» e, em último lugar, ao próprio Paulo (1 Cor 15, 5-8). Note-se que o número simbólico dos doze continua a ser utilizado nesta lista de Paulo, embora Judas já estivesse morto.
Mateus, Marcos e Lucas apresentam listas completas dos Doze; a lista de Lucas repete-se nos Atos dos Apóstolos (Mt, 10, 1-4; Me 3, 13-19; Lc 6, 12-16; Act 1,13). O Evangelho de João fala dos Doze (Jo, 6, 67-71; 20, 24), mas não faz uma lista, embora alguns deles sejam mencionados individualmente. É possível aprender algo interessante da lista e do debate geral sobre os Doze. (A análise que se segue sobre as provas relacionadas com os doze discípulos é resumida numa lista no Apêndice 11.)
O círculo mais próximo era composto por três discípulos: Simão (a quem Jesus passou a chamar, mais tarde, «Pedro») e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João. Os Evangelhos distinguem-nos frequentemente e, depois da morte e da ressurreição de Jesus, eles irão assumir uma posição de liderança no movimento cristão. Desempenham um papel proeminente em Mateus, Marcos e Lucas e a liderança de Pedro e de João é evidente nos Atos dos Apóstolos e nas cartas de Paulo. Curiosamente, o Evangelho de João não menciona Tiago e João,
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embora se refira aos filhos de Zebedeu (Jo 21, 2). Alguns pensam que o discípulo «que ele amava» do quarto Evangelho, que não é mencionado pelo nome, é o discípulo João.
Os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos mencionam todos André como irmão de Pedro, assim como Filipe e Tomé como dois dos Doze, mas apenas João lhes atribui um papel particular. Se não tivéssemos este Evangelho, os três discípulos mencionados seriam apenas nomes numa lista.
Marcos, Lucas e os Atos dos Apóstolos incluem Mateus na lista dos discípulos. O Evangelho de Mateus identifica-o com o cobrador de impostos que Jesus chamou, mas, em Marcos e Lucas, este tem o nome de Levi.
Os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos mencionam todos Judas como o discípulo que traiu Jesus.
Havia um segundo Simão, a quem Mateus e Marcos chamam «Cananeu», mas Lucas e os Atos dos Apóstolos chamam «o zelota».
Tiago, o filho de Alfeu, está na lista dos discípulos em Mateus, Marcos, Lucas e nos Atos dos Apóstolos. A sua mãe, Maria, é mencionada como estando presente na execução de Jesus (Mt 27, 56; Me, 15, 40; Tiago é ali designado como «o mais novo» ou «Tiago Menor»; Me 16, 1; Lc 24, 10). Não sabemos mais nada sobre ele.
O nome Bartolomeu aparece nas listas de Mateus, Marcos, Lucas e dos Atos dos Apóstolos, mas não temos mais informações sobre ele.
Segundo Mateus e Marcos, o décimo segundo discípulo chamava-se Tadeu, enquanto Lucas e os Atos dos Apóstolos lhe chamam Judas, o filho de Tiago. O Evangelho de João atribui um pequeno papel a «J udas, não o Iscariotes» (10 14, 22).
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