O lugar onde João coloca a purificação do Templo também se deve atribuir, provavelmente, a um motivo teológico. Os adversários de Jesus no Evangelho de João são «os judeus», os quais fazem parte do mundo que é mau e que rejeita Jesus e os discípulos (Jo 1,9-13; 15, 18 e segs.). A colocação do incidente no Templo quase no início do Evangelho condiz com este conflito teológico. A vida pública de Jesus começa com um confronto grave entre ele e a religião judaica tradicional.
Destas considerações resulta que não podemos afirmar nem que João só foi criativo nos conteúdos relativos ao ensinamento, nem que ele dispunha de uma boa fonte para a sua narração e que a seguiu fielmente. Gostaria de aceitar a descrição que João faz do julgamento de
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Jesus pelas autoridades judaicas, porque é muito mais fidedigna do que o processo dos Evangelhos sinópticos, mas seria arbitrário escolher esta parte, se não posso provar que Jo 18, 12 e segs. 24 se baseia numa boa fonte - e eu não posso prová-lo. É possível que João apenas conhecesse melhor a realpolitik do que os outros evangelistas, portanto, que tenha escrito uma história mais verosímil. O processo judaico descrito por João é parecido com os processos que eram habituais na Judeia e nas outras províncias romanas governadas da mesma forma. Outra questão é se se trata de uma descrição exata do que aconteceu em Jerusalém naquela noite concreta.
Os Evangelhos sinópticos devem ser preferidos como fonte fundamental de informações sobre Jesus. No entanto, os seus autores também eram teólogos e possuíam criatividade. Tal como não podemos estabelecer uma alternativa absoluta entre os Evangelhos apócrifos, que são lendários e mitológicos, e os Evangelhos históricos, canónicos (visto que os Evangelhos do Novo Testamento também possuem elementos lendários e mitológicos), também não podemos traçar uma linha de separação clara entre o Evangelho teológico de João e os sinópticos históricos, visto que os Evangelhos sinópticos também são obra de teólogos. Não existe nenhuma fonte que nos ofereça a «verdade nua e crua»; o «verniz» da fé em Jesus reveste tudo. Contudo, os sinópticos não homogeneizaram o seu material, como fez João. As articulações e as costuras são visíveis e os conteúdos são bastante diferentes. Não existe nada comparável à uniformidade dos monólogos joanicos. Em resumo, os sinópticos não fizeram uma revisão do material tradicional tão profunda como fez João.
Os Evangelhos sinópticos como biografias
Já vimos que os Evangelhos sinópticos são compostos de muitas peças, facilmente separáveis, que foram reunidas pelos autores. Tomemos como exemplo deste trabalho editorial as referências a tempos relacionados entre si. Marcos utiliza muitas vezes a palavra «imediatamente» como ligação cronológica entre passagens:
1, 12 o espírito conduziu-o imediatamente ...
1,21 eles foram para Cafarnaum; e imediatamente no sábado ...
1, 25 ele saiu imediatamente da sinagoga e entrou em casa de Simão ...
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É óbvio que existem variações: «nesse fim de tarde» (1, 32); «de manhã» (1, 35). a mais frequente é não haver qualquer indicação cronológica:
1,39s ------------------------e foi por toda a Galileia... Um leproso veio ter com Ele ...
2,13 ------------------------- saiu de novo para a beira-mar .
3, 1 ------------------------- entrou novamente na sinagoga .
A utilização da palavra «imediatamente» constitui um artificio narrativo para dar dinâmica e ritmo ao relato e funciona muito bem. Mas é impossível ultrapassar a sensação de que Marcos reuniu factos e ditos dispersos. Não estamos perante uma biografia no sentido que nós damos à palavra; raramente existe um enquadramento concreto da situação (como «isto foi importante precisamente naquela altura, porque ... »); trata-se, simplesmente, de relatos curtos ligados uns aos outros através de uma palavra ou de uma frase introdutória. a mesmo se passa, aproximadamente, com Mateus e Lucas, que se basearam, provavelmente, em Marcos, apesar de a estrutura dos seus Evangelhos ser mais complexa.
Os Evangelhos sinópticos não possuem a maior parte das coisas que esperamos encontrar, hoje, na história da vida de alguém. a aspeto, a personalidade, o carácter - sabemos pouquíssimo acerca disso. No que diz respeito a outras figuras que rodeiam Jesus, estamos completamente às escuras. A Pilatos, curiosamente, Mateus e João atribuem alguns traços de personalidade e de carácter, mas a maioria das outras figuras são muito insípidas. Ficamos a saber que Pedro era um pouco insonso. Como era João? E Tiago? Não sabemos. E os fariseus? Aparecem em grupo, insultam Jesus, por vezes, são insultados e voltam a desaparecer. a que pretendiam? Tinham todos a mesma posição hostil em relação a Jesus? Para onde foram quando desapareceram? Se pensavam que os discípulos de Jesus estavam a violar a lei do sábado (Mc 2, 24), porque não apresentaram uma queixa, denunciando-os a um sacerdote (que os poderia ter multado, exigindo que cada um deles apresentasse um sacrifício expiatório - duas aves - quando voltasse a Jerusalém)?
Muitos dos leitores atuais nem sequer se apercebem de como os Evangelhos sinópticos são episódicos, já que os cristãos tiveram quase 2000 anos para criar uma visão mais novelesca dos acontecimentos e das pessoas que aparecem neles. Escreveram-se livros, fizeram-se filmes, ofereceram-se explicações. Aos domingos, há muitos padres, pastores e catequistas que voltam a contar algum aspeto do relato
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evangélico, acrescentando-lhe personalidade e motivos. Judas, o discípulo que traiu Jesus, é descrito frequentemente como um zelota desiludido, que desejava ver Jesus na liderança de uma revolução, que se via a si próprio como um grande homem no Reino de Jesus e que ficou profundamente irado quando percebeu que Jesus queria outro tipo de reino. 10 Isto dá cor e drama à história. Os Evangelhos não dizem absolutamente nada sobre a ambição de Judas. Talvez ele se tenha apercebido de que Jesus era um homem marcado e tenha decidido afastar-se
enquanto era tempo, ganhando também alguma coisa. Uma suposição é tão boa como a outra. Maria Madalena também é uma figura imensamente atraente para as pessoas, que imaginaram todo o tipo de coisas sobre ela: ela teria sido uma prostituta, muito bonita, apaixonada por Jesus, e que fugiu para França à espera de um filho dele. Tanto quanto sabemos, a partir das nossas fontes, ela tinha oitenta e seis anos, não tinha filhos e cultivava instintos maternos para com jovens desalinhados.
Os cristãos começaram desde muito cedo a melhorar os relatos simples dos Evangelhos inventando histórias. Os Evangelhos apócrifos estão cheios de incidentes românticos e de toques encantadores, como, por exemplo, aquele que diz que, no estábulo onde nasceu Jesus, havia um boi e um burro, adorando-o. Isto encontra-se num Evangelho escrito no século VIII ou IX, conhecido atualmente como o Evangelho de Pseudo-Mateus. O autor tinha estudado o Evangelho de Mateus e escreveu no mesmo estilo. Como prova para a autenticidade do seu relato, cita a Escritura judaica, quando, na realidade, a sua informação tem origem na citação, tal como acontece com Mateus. «O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor. .. » (Is 1, S). A arte e a música utilizaram esta imagem viva, que é, provavelmente, tão conhecida como as histórias sobre Jesus que se encontram, de facto, no Novo Testamento. A única justificação para introduzir um boi e um burro na cena de nascimento é proporcionada por este evangelho, cujo autor descobriu uma frase em Isaías que ainda não tinha sido usada para fornecer informações sobre Jesus.
Tanta fantasia romântica foi desperdiçada nos Evangelhos durante tantos séculos que o leitor atual nem sequer se apercebe imediatamente
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da sua força. Acrescentamos automaticamente pormenores românticos, muitos dos quais são conhecidos até das pessoas que nunca entraram numa igreja, nem leram a Bíblia. À exceção das narrativas do nascimento em Mateus e Lucas, que já estão penetradas pelo interesse novelístico, não encontramos muito mais no resto dos Evangelhos. As cenas são breves e centradas no essencial. Isto significa, provavelmente, que foram concebidas precisamente para transmitir o que pretendiam, tendo deixado de lado outras questões. É por isso que não podemos escrever uma biografia de Jesus. Não temos cartas nas quais ele reflita sobre acontecimentos e apresente a sua própria versão a um amigo próximo ou a um familiar; não temos diários escritos por pessoas que o tivessem conhecido ou, sequer, ouvido falar nele; não temos jornais que nos digam o que se passava em Cafarnaum no ano 29 e.c. Dispomos de um esboço genérico da sua vida e, além disso, de breves histórias, ditos e parábolas, a partir das quais podemos ficar a saber bastante, mas não podemos escrever «a vida de Jesus», no sentido moderno do termo; não podemos descrever a educação de Jesus, traçar o seu percurso, analisar a influência dos seus pais sobre ele, apresentar as suas reações a determinados acontecimentos, etc.
Por isso, um livro sobre Jesus não pode ser muito semelhante a um livro sobre Jefferson ou Churchill (para regressar aos nossos primeiros exemplos). A nossa informação também é deficiente em comparação com o material disponível sobre a maior parte dos grandes homens do mundo greco-romano. Homens como Brutus, César, Pompeu, António e outros, eram provenientes de famílias conhecidas, passaram uma grande parte das suas vidas em público e rodearam-se de pessoas instruídas, que escreveram, por vezes, sobre eles ou sobre os acontecimentos nos quais participaram. Plutarco, o biógrafo dos ricos e famosos daquele tempo, em alguns casos, podia fazer algo muito parecido com uma biografia no sentido atual do termo, embora nem sempre tivesse essa possibilidade. Quando a informação de que dispunha era demasiado limitada para permitir um estudo cronológico que incluísse as vitórias, as derrotas e semelhantes, produzia passagens muito curtas, introduzidas através de expressões tão informativas como, por exemplo, «outra vez» ou «e». O leitor do estudo de Plutarco sobre Fócio que não saiba o que se passava em Atenas no século IV a.e.c. fica perplexo. Pode ler observações inteligentes sobre acontecimentos dispersos, mas não perceberá o seu alcance. É nesta situação que os Evangelhos sinópticos nos colocam - a única diferença é que as pessoas tiveram muito tempo
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para preencher as lacunas e, ao que parece, uma quantidade inesgotável de energia e imaginação às quais recorrer para tal.
Sou académico, um investigador e um historiador profissional por tendência e formação. Farei tudo para preencher as lacunas e transformar as peças de que dispomos num todo coerente. Este trabalho (o leitor já deve ter reparado) assemelha-se a uma cirurgia de reconstrução: é necessário partir antes de reconstruir. No entanto, ao contrário do cirurgião, eu não tenho nenhuma imagem inicial sobre o nosso objeto na sua aparência original. Nem tenho uma ideia exata de qual deveria ser o seu aspeto depois da operação. Começo com os resultados das intervenções da cirurgia plástica que visavam a glorificação do objeto e que nem sempre respeitaram a colocação e o significado originais dos vários pedaços. O meu objetivo é recuperar o Jesus histórico. Mas as dificuldades significarão sempre que os resultados, na melhor das hipóteses, serão parciais. O título adequado para este projeto seria: «Informações básicas sobre Jesus: aspetos importantes do que ele fez, do que ele pensou e daquilo que os outros pensaram sobre ele.
A reconstrução da história deve ter sempre em conta o contexto e o conteúdo. Quanto melhor for a correlação que conseguimos estabelecer entre ambos, mais compreenderemos. O motivo pelo qual os políticos, entre outras pessoas, se queixam de ser citados fora de contexto é que o contexto não é menos importante do que as palavras citadas. Jesus disse: «Amai os vossos inimigos» (Mt 5, 44; Lc 6, 27). Quem eram os inimigos dos seus ouvintes? É frequente dizer-se que eram os soldados romanos. Jesus queria dizer: amai os soldados romanos, e se eles vos baterem, oferecei-lhes outra face. Mas não havia soldados romanos na Galileia (a não ser que fosse em férias). Talvez o inimigo fosse o juiz da vila ou o maior proprietário de terra. Se o presente livro fosse uma homilia, isto não teria grande importância. Numa homilia é possível aplicar a frase «amai os vossos inimigos» a diversos casos, e o contexto original não precisa de determinar o significado atual desta afirmação. No entanto, se queremos saber o que Jesus pretendia, o que ele pensava, que tipo de relações o preocupavam, a que nível se dirigia às pessoas - a nível nacional, local ou familiar - temos de conhecer tanto o contexto como as afirmações. A nossa tarefa, em geral, consiste em procurar boas ligações entre as unidades de que os Evangelhos sinópticos são compostos e o contexto da vida e da época de Jesus. Se conseguirmos fazê-lo, ficaremos a saber muito sobre Jesus.
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7. Dois contextos
Os contextos apresentam-se sob todas as formas e tamanhos. Sabemos, hoje, que vivemos num Universo enorme que parece continuar a expandir-se. Entretanto, o nosso próprio planeta está a encolher; é cada vez mais difícil encontrar nele um canto isolado. Biologicamente, nós, seres humanos, somos mamíferos. Estes são os nossos próprios contextos gerais: somos formas de vida, concretamente, mamíferos, que vivem num determinado canto de um vasto Universo. O conhecimento destes contextos dá-nos uma perspetiva e, por vezes, uma informação muito direta sobre o nosso comportamento. Os cientistas explicam frequentemente os comportamentos que são comuns a todos os seres humanos, enquadrando-os no contexto do comportamento ani
mal em geral: nós protegemos o nosso território, sopramos, inchamos e ficamos vermelhos quando estamos enfurecidos, etc. Estas e outras reações aos perigos, bem como à hostilidade, são explicadas através da referência a um contexto extremamente englobante: somos animais. A sabedoria popular utiliza frequentemente uma técnica de explicação muito semelhante: «é a natureza humana», diz-se, quando se quer explicar e, por vezes, também desculpar, as ações dos indivíduos, que manifestam ganância, egoísmo e outras propriedades pouco simpáticas.
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Também vivemos numa determinada parte do mundo, num determinado período da sua história. As nossas cidades natais, concelhos, estados e países fornecem-nos um sem-número de contextos. E, no nosso ambiente próximo, está a família, os amigos e os colegas. Estes contextos ajudam-nos a sermos aquilo que somos e ajudam a explicar aquilo que fazemos. Explicamos frequentemente comportamentos, como, por exemplo, a frieza, a gabarolice e a gesticulação, atribuindo-os ao país ou ao país de origem da pessoa em causa: o britânico é frio,
o texano é gabarola, o italiano gesticula.
Os contextos próximos possuem uma força explicativa ainda maior. Apelamos à História muito recente ou às situações em curso para compreender quase tudo. Para explicar que o meu pulso acelera quando estou excitado tenho de procurar um contexto muito abrangente; mas só um contexto muito próximo pode explicar por que razão o meu pulso fica acelerado em determinado momento. Também existem muitos contextos intermédios. Por exemplo, nos últimos tempos, os Estados ocidentais deixaram de construir armas que podiam destruir a União Soviética para começarem a dar ajudas a algumas das regiões da mesma. Esta mudança é fácil de compreender à luz da História recente. Se, séculos mais tarde, alguém descobrir apenas ambos os factos da produção de armas e das ajudas, terá de deduzir que o contexto mudou. Mas as democracias ocidentais aproximaram-se politicamente da União Soviética? Ou foi o contrário? Sem conhecer o contexto, não sabemos, normalmente, o que se passa ou o significado de um acontecimento. Há, no entanto, algumas ações que oferecem indicações rela
tivas ao seu próprio contexto ou (o que é, provavelmente, mais habitual) que nos dão dois ou três contextos diferentes a escolher.
Os ideais e as ideologias também criam contextos, isto é, contextos que nós temos sempre presentes, na nossa cabeça. Estes contextos são muito mais complicados, visto que não consistem em acontecimentos e lugares, mas sim em constructos mentais. Isto torna-os, a eles e aos seus efeitos, muito mais difíceis de estudar, visto que não podemos ler as mentes. No entanto, estes contextos existem e exercem poder sobre as ações humanas. Para dar um exemplo: os americanos podem encontrar uma justificação para uma guerra perante si próprios se a conseguirem associar à ideologia nacional dominante: a aspiração à liberdade e à democracia. Se um governo dos EUA quer empenhar-se militarmente, em geral, tenta enquadrar o seu procedimento no contexto da ideologia americana. É muito mais difícil vender à opinião pública guerras
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que têm por objetivo a defesa de interesses económicos. Isto é, muitos americanos possuem um contexto ideológico no qual existe lugar para a guerra. Se a guerra não couber nesse contexto específico, eles têm dificuldades em encontrar um outro contexto que a justifique. Não é preciso dizer que, por vezes, as pessoas se enganam a si mesmas e os líderes procuram iludir deliberadamente a opinião pública por causa daquilo que consideram ser interesse nacional superior. A manobra de ilusão prova, em ambos os casos, a força da ideologia. Os contextos ideológicos deste tipo são interessantes do ponto de vista histórico: podemos ver retrospetivamente como as pessoas consideraram uma determinada ação adequada ao contexto em causa, o que explica o seu comportamento. As formas ideológicas de perspetivar o futuro oferecem um contexto que ajuda a configurar o comportamento aqui e agora. Se eu considero que a liberdade e a democracia estão ameaçadas, talvez esteja mais disposto a entrar em guerra do que quando penso que o que está em causa são os lucros de algumas grandes indústrias.
Compreenderíamos Jesus muito melhor se soubéssemos tudo sobre o seu mundo e a sua História, incluindo o que as pessoas do seu tempo pensavam e quais eram os seus ideais. Necessitamos de um conhecimento maior dos contextos do que aquele que nos foi oferecido pelos capítulos iniciais deste livro. Também ajudaria se pudéssemos desvendar as circunstâncias precisas em que os Evangelhos foram escritos. Neste capítulo, porém, pretendo esclarecer apenas os dois contextos que nos serão mais úteis para a compreensão dos Evangelhos e da pes
soa de Jesus. O primeiro consiste no enquadramento teológico (ou ideológico) nos quais os Evangelhos sinópticos, sobretudo Mateus e Lucas, inserem a história. A maior parte dos primeiros cristãos partilhavam esta conceção, mas eu gostaria de limitar o debate aos Evan gelhos sinópticos, ainda que fazendo algumas referências a Paulo, a título de mais um exemplo. O segundo contexto é aquele que nos é fornecido pelo nosso conhecimento daquilo que aconteceu imediatamente antes de Jesus ter iniciado a sua missão e imediatamente depois do termo desta: o contexto imediato da sua vida pública.
O contexto teológico: história da salvação
Os Evangelhos apresentam Jesus como a pessoa que cumpre as esperanças de Israel e através da qual Deus salvará o mundo. Isto é,
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colocam-no no contexto da «história da salvação», tirada diretamente da Bíblia Hebraica e adaptada. Esta história é a seguinte: Deus chamou Abraão e os seus descendentes, deu-lhes a Lei, através de Moisés, estabeleceu Israel como reino no tempo de Saul e de David e castigou Israel pela sua desobediência, através do exílio; Deus erguerá novamente o Seu povo, um dia, se for necessário, através da derrota dos seus opressores na guerra; muitos gentios converter-se-ão a Ele, adorando-o. Este esquema consiste num constructo teológico judaico e está implícito nos Evangelhos, no entanto, estes expandem-no e alteram-no ligeiramente. Os Evangelhos foram escritos com pleno conhecimento de que o movimento de Jesus se difundiu muito mais rapidamente entre os gentios do que entre os judeus. Por isso, privaram o esquema de alguns elementos judaicos, enfatizando a rejeição parcial de Jesus por parte dos judeus e a sua aceitação por parte de alguns gentios.
No entanto, o plano de salvação como tal é-nos muito conhecido da literatura bíblica, bem como de outras fontes judaicas. Há passagens de Isaías, por exemplo, que profetizam que os gentios acabarão por se converter ao Deus de Israel, sendo, assim, salvos (p. ex., Is 2, 2S). A inclusão dos gentios, apesar de ser reforçada no cristianismo, não era novidade. É de notar que este plano teológico é, em parte, passado e, por outra parte, futuro. No passado, Deus chamou Abraão e os restantes; no futuro, Ele salvará o Seu povo, assim como os gentios. Os judeus podiam explicar a sua História vendo-a à luz desta ideologia. Quando sofriam, podiam dizer que Deus os castigava, mas que os recompensaria mais tarde; se viviam uma fase de esplendor, era porque Deus estava a cumprir a Sua promessa; quando estavam numa fase mediana, era porque Deus lhes estava a dar um antegosto da redenção plena. Estas estratégias de explicação dos acontecimentos, inserindo-os num enquadramento ideológico mais amplo, podiam ser utilizadas sempre para explicar o acontecimento do momento, como é óbvio. O esquema teológico existia e podia ser explorado. Se acontecia algo dramático, qualquer um podia levantar-se e dizer: «Vede, isto faz parte do plano grandioso de Deus. Chegou o tempo da nossa salvação.»
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Duvido que tenha havido muitos judeus a conceberem os acontecimentos do momento como pontos decisivos da história de salvação, a não ser que se tratasse de acontecimentos tão importantes como a destruição de Jerusalém por Roma, no ano de 70 e.c. Alguns judeus tinham mais tendência para encarar as coisas que aconteciam à sua volta como uma parte importante do plano divino, outros, menos. Felizmente, não precisamos de ser capazes de fazer contagens; basta sabermos que existia um enquadramento ideológico ou teológico que permitia às pessoas registar os acontecimentos do momento e perceber o seu sentido, apresentando-os como parte de um plano divino mais amplo.
Para os primeiros cristãos, Jesus desempenhava um papel importante - aliás, decisivo - no quadro da história de salvação judaica. Paulo, por exemplo, pensava que tinha chegado o tempo de converter os gentios ao Deus de Israel e que este chamamento constituía a sua própria missão especial. Os autores dos Evangelhos também aceitavam este esquema. Isto implicava que eles sublinhassem determinados momentos na História de Israel, momentos esses ocorridos séculos antes. Mateus e Lucas concentram-se - de formas e em graus diferentes - nas grandes fi uras desta _História, como precursores ou antepassados de Jesus: Abraão, Moisés e David.
Segundo Mateus, Jesus era descendente de Abraão e de David (Mt 1, 1). O seu nascimento cumpriu a profecia segundo a qual o Senhor de Israel nasceria em Belém, a cidade de David (2, 6). Na primeira cena do período adulto da vida de Jesus, no Evangelho de Mateus, João Baptista avisa os seus ouvintes para que não confiem na sua descendência de Abraão (3, 9; também Lc 3, 8). Mateus identifica o Baptista com Elias, um profeta israelita cujo regresso era esperado por alguns (17, 2 e segs.; cf Mc 9, 13).3 No Reino futuro, pessoas vindas do Oriente e do Ocidente sentar-se-ão à mesa com Abraão, Isaac e Jacob (8, 11; cf. Lc 13, 28; para a imagem ver também Lc 16, 29; 16, 31). No sermão da montanha, Jesus completa e corrige a Lei
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de Moisés (5, 21-42). Alguns dos discípulos têm uma visão na qual ele conversa com Moisés e Elias (Mt 17, 1-8; também Me 9, 2-8. 28- 36). Quando Jesus entra em Jerusalém, alguns aclamam-no como «Filho de David» (21, 9). No seu ensinamento, Jesus discute se o Messias deve ou não ser um filho de David e, ao que parece, argumenta que não (22, 41-45; assim como Me 12, 35-37; Lc 20, 41-44). As pessoas que necessitam de ajuda chamam-lhe «Filho de David (15, 22; 20, 30 e segs.; assim como Mc 10, 47 e segs.; Lc 18, 38 e segs.). Nas passagens em que a relação entre Jesus e Moisés, Abraão e David é parcialmente negativa, por exemplo, quando Jesus corrige a Lei, o enquadramento continua a ser o mesmo: Mateus situa Jesus no contexto da história de salvação judaica.
Lucas partilha algumas destas passagens, mas também tem outras. Quando João Baptista nasce, o seu pai lembra-se do juramento que Deus fez a Abraão, prometendo a salvação de Israel (Lc 1, 73 e segs.). Um anjo profetiza que Deus dará a Jesus «o trono do seu pai David» (1, 32); Jesus reinará eternamente «sobre a casa de Jacob» (1, 33). Lucas sublinha que o local de nascimento de Jesus é a «cidade de David» (2, 4; 2, 11). No relato da ressurreição no Evangelho de Lucas, Jesus interpreta para os seus discípulos as passagens da Leis de Moisés e os escritos dos profetas que lhe dizem respeito (24, 27; 24, 44).
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