E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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Comecemos pela tradição melhor atestada nos Evangelhos: a perícopa sobre o divórcio. A tradição melhor comprovada não é necessariamente a mais importante, mas, neste caso, sevir-nos-á muito bem. A proibição do divórcio aparece, ao todo, quatro vezes nos Evangelhos sinópticos e uma vez nas cartas de Paulo: Mt 5, 31 e segs., 19, 3-9; Me 10,2-12; Lc 16, 18; 1 Cor 7, 10 e segs. Nos Evangelhos, aparecem duas versões da afirmação, uma longa (Me 10, 2-12 e Mt 19, 3-9) e uma breve (Mt 5,31 e segs. e Lc 16, 18). Paulo aproxima-se mais da versão breve. Gostaria de apresentar três das cinco versões desta afirmação mais bem comprovada de Jesus, a fim de ilustrar a liberdade editorial com que os primeiros cristãos utilizavam o ensinamento de Jesus: a versão de Paulo, a versão breve de Lucas (que tem um paralelo em Mateus) e a versão longa em Marcos (que também tem paralelo em Mateus):

1.ª Carta aos Coríntios 7, 10-11

Aos que já estão casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido (se, porém, está separada, não se case de novo, ou, então, reconcilie-se com o marido) e o marido não se divorcie da sua mulher.

Lc 16, 18

Todo aquele que se divorcia da sua mulher e casa com outra comete adultério; e quem casa com uma mulher divorciada do seu marido, comete adultério.

Mc 10, 2-12

Aproximaram-se uns fariseus e perguntaram-lhe, para o experimentar: «É lícito ao marido divorciar-se da sua mulher?» Ele respondeu-lhes: «Que
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vos ordenou Moisés?» Eles disseram: «Moisés mandou escrever um certificado de divórcio e repudiá-la.» Jesus retorquiu: «Devido à dureza do vosso coração é que ele vos deixou esse preceito. Mas, desde o princípio da criação "Deus fê-los homem e mulher" [citação de Gn 1, 17]. Por isso, «o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher e serão os dois um só» [citação de Gn 2,24]. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem.»

Existem diferenças tão substanciais entre a versão longa e a versão breve que é provável que elas tenham sido transmitidas de forma independente durante algum tempo. A existência de tradições independentes aumenta a probabilidade de a passagem ser autêntica na sua essência. Além disso, a proibição constituiu um problema para as comunidades cristãs desde o início. Paulo atribui explicitamente esta passagem ao Senhor, fazendo uma distinção entre ela e a sua própria opinião (1 Cor 7, 12). No entanto, o seu debate revela que não concordava totalmente com a proibição do divórcio: ele preferia que não houvesse divórcio, mas permitia-o no caso de um crente ser casado com um não crente (1 Cor 7, 15: se o divórcio fosse desejado pelo parceiro

não crente, deveria ser aceite pelo parceiro cristão). O mandamento parecia tão difícil para Mateus que ele colocou as seguintes palavras na ) boca dos discípulos de Jesus: «Se é esta a situação do homem perante a sua mulher [não poder divorciar-se dela], é melhor não casar» (Mt 19, 10). É também provável que a exceção de Mateus à proibição . - o divórcio é permitido se o parceiro já cometeu adultério (Mt 5, 32; 19, 9) - constituísse a tentativa do próprio autor para tornar a posição de Jesus mais adequada a uma comunidade em desenvolvimento. É difícil pensar que os primeiros cristãos tivessem inventado a proibição: eles consideravam-na muito difícil e tiveram de a modificar.

É típico do material sobre Jesus que a sua opinião seja incerta mesmo neste tema. A versão breve da afirmação (Mt 5 e Lc 16; incluindo também em Paulo) consiste, no essencial, n uma proibição de um segundo casamento, que é considerado adultério. Tal como exprime Mateus: «Aquele que se divorciar da sua mulher ... expõe-na ao adultério e quem casar com uma mulher divorciada, comete adultério.» Esta afirmação parte do princípio que uma mulher divorciada não

poderá sustentar-se a si própria e, por isso, terá de casar outra vez ou tornar-se prostituta; ambas as coisas são adultério. A versão longa (Mt 19 e Me 10) é mais categórica. «No início», Deus «fê-los homem

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e mulher» e mandou que os dois «sejam uma só carne» (referindo-se a Gn 1, 27 e 2, 24). Aqui, Jesus argumenta que o divórcio é contra a intenção do Criador; Moisés permitiu o divórcio só por causa da dureza dos corações humanos (Mc 10,5// Mt 19,8). No fim da passagem, a condenação do segundo casamento repete-se (Mc 10, 11 e segs. / / Mt 19,9).



Podemos ter a certeza de que a proibição do divórcio baseada na convicção de que um segundo casamento representa adultério remonta a Jesus (tanto a tradição mais longa, como a mais breve). Penso que é altamente provável que Jesus também tenha apelado à ordem da criação para criticar o divórcio (tradição mais longa). O divórcio mostra a debilidade humana. Um mundo ou uma sociedade ideal serão como o paraíso antes do pecado de Adão: os dois serão uma só carne. Este segundo argumento contra o divórcio também é conhecido dos Rolos do Mar Morto." Será que Jesus pretendia que a sua opinião sobre o divórcio constituísse uma nova lei, obrigatória para os seus seguidores? A proibição de voltar a casar implica certamente o seguinte: o segundo casamento é adultério e o adultério é contra a Lei. E a tradição mais longa, segundo a qual o divórcio contraria a intenção do Criador? A passagem começa com uma questão colocada pelos fariseus: «É lícito ao homem divorciar-se da sua mulher?» Jesus admi­ te que sim: Moisés escreveu o mandamento que regulamenta o divórcio (Dt 24, 1-4 exige a troca de um documento legal) por causa da fraqueza humana, mas Jesus não diz que o regulamento de Moisés devia ser revogado e que devia ser adotada uma lei mais rigorosa. No

capítulo 14 veremos a opinião de Jesus sobre a Lei de Moisés. Aqui, registamos simplesmente que ele altera a Lei definindo um termo. (o segundo casamento é adultério) - um dispositivo legal utilizado frequentemente no seu tempo, tal como hoje - mas não propõe a revogação da lei escrita. Além de alterar a Lei através da sua interpretação, ele também a critica. A Lei não é suficientemente rigorosa. Jesus pretende sugerir aos seus seguidores um padrão moral mais elevado, uma moral que corresponda ao mundo ideal, quando Adão e Eva viviam num estado de inocência.

O perfeccionismo idealista marca partes substanciais do sermão da montanha (Mt 5-7). Em Mateus 5, onde aparece a versão breve da

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perícopa sobre o divórcio, não existem outras afirmações semelhantes no que diz respeito à estrutura e força de expressão. Jesus cita a Lei e, depois, diz que, na realidade, ela não é suficiente. Esta secção é chamada, habitualmente, mas não de forma correta, «as antíteses» (ver

pp. 265-267). Além da declaração sobre o divórcio, a secção contém outras exortações a viver segundo padrões mais elevados do que aqueles que são exigidos pela Lei. As pessoas não só não deveriam matar, com também não deveriam irritar-se (5, 21-26). Não só deveriam evitar o adultério, como também não deveriam olhar para os outros com desejo nos seus corações (5, 27-30). Não só não jurar falso, como nem sequer deveriam jurar (5, 33-37). Longe de retaliar quando ofendidas, deveriam «oferecer a outra face» (5, 38-42). Por fim, não só deveriam amar os seus próximos, como também os seus inimigos (5, 43-47). Então, seriam perfeitas como Deus é perfeito (5, 48). Os investigadores pensam, geralmente, que algumas destas passagens foram criadas por Mateus ou por um autor dos primeiros cristãos. Uma vez na posse da forma das afirmações e do sentido geral, é muito fácil produzir mais exemplos sobre como ir para além da Lei.

No entanto, para cumprir o nosso objetivo, não necessitamos de decidir quais das «antíteses» remontam a Jesus. Digamos que todas remontam. A questão mais urgente é saber qual o lugar do ideal de perfeccionismo na sua missão, em geral. Suspeito que fosse menos importante no pensamento do próprio Jesus do que no Evangelho de Mateus. No início deste livro, registámos que a imagem comum de Jesus depende muito da ética rigorosa do sermão da montanha. Não quero negar, de maneira alguma, que Jesus tivesse feito afirmações como «ofereçam a outra face» e «amai os vossos inimigos». Pelo contrário: não duvido que ele tivesse dito estas coisas. Mas há alguns aspetos que nos podem ajudar a colocar o perfeccionismo de Mt 5 no seu contexto.

Antes de mais, é de notar que o leitor de Marcos e Lucas não saberia que Jesus proibiu a ira e os pensamentos sensuais. As exortações à eliminação de sentimentos que são comuns à humanidade não constituem uma característica do ensinamento de Jesus em geral, aparecendo apenas nesta parte de Mateus. Fora disso, Jesus preocupava-se com a maneira como as pessoas tratavam os outros, não com os pensamentos que se escondiam nos seus corações. Tal como outros bons mestres judaicos, Jesus pensava que as pessoas deveriam examinar-se a si próprias e às suas relações com os outros, fazendo tudo aquilo que era necessário para encaminhar bem estas relações. A continuação da afirmação

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sobre a irritação ajuda a compreender isto mesmo: «Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta» (Mt 5, 23 e segs.). Qualquer mestre judeu concordaria com isso. A «oferta» significa aqui, provavelmente, um «sacrifício de expiação», apresentado para completar o processo de reparação pela ofensa causada a outra pessoa. O sacrifício não contava se o mal não fosse reparado primeiro. Isto é claro na própria legislação bíblica (p. ex., Lv 6, 1-7) e as gerações seguintes compreenderam-no. Ben Sira tinha dito o mesmo cerca de 200 anos antes de Jesus; além disso, a mesma afirmação pode ler-se nos escritos de Filo de Alexandria e em outros autores." Não existem dúvidas de que Jesus teria encorajado esta forma de auto-exame e a oportunidade mais óbvia para o fazer teria sido durante a oração e a ida ao Templo. Mas a passagem não diz: «Antes do culto no Templo, tens de examinar a tua consciência, des­ cobrir todos os casos em que te irritaste com alguém e arrepender-te.» É possível que Jesus tenha advertido contra guardar ira no coração, mas a maior parte do seu ensinamento ético corresponde a Mateus 5, 23 e segs.: tratar bem as outras pessoas. Exemplos disso são Mateus 7,



21-23: entrarão no Reino se fizerem a vontade de Deus, assim como Mateus 25, 21-46: no juízo, o Filho do Homem recompensar-vos-á se tiverem vestido os nus, visitado os doentes e consolado os presos; mas punir-vos-á caso não o tenham feito.

Em segundo lugar, o tom geral do ensinamento de Jesus é a compaixão em relação à fraqueza humana. Parece que ele não andava a condenar as pessoas pelos seus pequenos erros. Ele não intervinha entre os poderosos, mas sim entre as pessoas humildes e não queria ser um capataz austero ou um juiz severo que só aumentasse ainda mais os seus fardos:

Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. (Mt 11, 28-30)

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É certo que os seus seguidores mais próximos deviam pensar que ser discípulo de Jesus era mais difícil do que esta passagem sugere e ele tinha consciência disso: os discípulos tinham de estar dispostos a renunciar a tudo. Mas depois de o terem feito, os Evangelhos apresentam Jesus como alguém muito paciente com as fraquezas e dúvidas dos seus seguidores. As bem-aventuranças (Mt 5, 3-12; com ligeiras diferenças em Lc 6, 20-26) exaltam os oprimidos, os pobres e os mansos, assim como aqueles que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração e os pacificadores. Estas declarações implicam exigências, mas a característica mais clara é a compaixão e a promessa para aqueles que mais necessitam delas. A característica do ministério de Jesus era a compaixão e não o juízo. As pessoas deveriam ser perfeitas, mas Deus era clemente - e Jesus, que atuava em Seu nome, também.

Em terceiro lugar, Jesus também não viveu uma vida austera e rigorosa. A palavra «perfeição» evoca para a maioria de nós imagens de um puritanismo rigoroso: muitas regras, uma grande quantidade de castigos por erros e pouco espaço para o divertimento. Jesus concordava com esta espécie de puritanismo; uma vida austera tinha sido óptima para João Baptista, mas não era o estilo de Jesus. Ele citou os seus críticos:

Veio João, que não comia nem bebia, e diziam dele: «Está possesso!» Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: «Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores!» (Mt 11, 18 e segs. / / Lc 7, 33 e segs.)

Além disso, algumas pessoas criticavam Jesus porque os seus discípulos não jejuavam, enquanto os seguidores de João Baptista e dos fariseus o faziam, e ele respondeu-lhes colocando uma questão retórica: «Poderão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com eles?» (Mc 2, 18-22 e par.) Jesus não era puritano.

Por fim, temos de registar um dos aspetos mais interessantes do ministério de Jesus: ele chamou «pecadores» e, ao que parece, juntou-se a eles e manteve relações de amizade com eles enquanto estes ainda eram pecadores. Em Mateus 11, 18 e segs., que acabei de citar, os críticos de Jesus acusaram-no deste comportamento. O perfeccionismo de Jesus não o impediu de estar em companhia nem sequer dos piores elementos da sociedade. Pelo contrário, ele procurava esta companhia.

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Jesus preferia o encorajamento à censura; ele não julgava; era compassivo e clemente; não era puritano, mas alegre e festivo. Contudo, também era um perfeccionista. A «perfeição» nos Evangelhos tem de ser definida com cuidado. A única exortação direta à perfeição insta as pessoas a serem perfeitas como Deus é perfeito, o que significa, no contexto, ser misericordioso como Deus é misericordioso: «Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 43-48). Este é o tipo de perfeição que Jesus exige dos seus ouvintes. O segundo caso em que a palavra «perfeito» é utilizada nos Evangelhos é na passagem sobre o homem rico: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinhei­ ro aos pobres ... ; depois, vem e segue-me» (Mt 19,21; a palavra «perfeito» não se encontra nas passagens paralelas em Marcos e Lucas). Jesus não esperava que houvesse muitas pessoas perfeitas neste segundo sentido. Ele trouxe a sua mensagem de consolo e de alegria a muitos que não chamou a serem seus seguidores; Jesus só exigiu a alguns que abandonassem tudo o que tinham.

O tipo específico de perfeccionismo de Jesus é perfeitamente compatível com a sua convicção de que, no Reino, muitos dos valores humanos serão invertidos. O tipo de perfeição que ele tinha em mente era adequado para os pobres e para os pobres em espírito: a perfeição da misericórdia e da humildade. É óbvio que Jesus também esperava que os seus ouvintes tivessem um comportamento moralmente correcto no sentido normal da palavra (honesto e justo), mas o aspeto principal da perfeição humana semelhante à perfeição divina era a misericórdia. Ele mostrou-o sendo manso e amoroso para com os outros, incluindo os pecadores.

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14. Controvérsia e oposição na Galileia

Jesus morreu numa cruz romana, executado como alguém que pretendia ser «rei dos Judeus». Se considerarmos a sua mensagem - o amor universal de Deus, a necessidade de se entregar a Ele, a demonstração de amor a todos, mesmo aos inimigos - é difícil compreender como é que ele acabou assim.

Voltaremos a este problema fundamental no capítulo 16 e analisaremos os acontecimentos em Jerusalém que antecederam imediatamente a morte de Jesus. No entanto, os Evangelhos também nos apresentam uma série de conflitos durante o seu ministério na Galileia. Nessa altura, ele já se tinha tornado uma figura controversa. Antipas ouviu falar de Jesus e pensou que João Baptista talvez tivesse ressuscitado (Mc 6, 14 & par). Lucas acrescenta que, a dada altura, alguns fariseus avisaram Jesus de que Antipas queria matá-lo (Lc 13,31 e segs.). Apesar destes avisos, Jesus parece não ter corrido perigo real na Galileia. É provável que tenha atraído menos atenção pública do que João Baptista e parece não ter atacado Antipas ou o seu governo. As controvérsias apresentadas nos Evangelhos têm a ver com a Lei judaica e os críticos de Jesus, normalmente, eram escribas ou fariseus ou ambas as coisas.

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As disputas sobre a Lei constituíam parte integrante da vida dos judeus. No judaísmo, tal como já referi (pp. 60 e segs.), a Lei divina abrangia todos os aspetos da vida. Como a Lei provinha de Deus e visto que abrangia tantos aspetos, as discórdias podiam ser bastante sérias: cada parte podia reivindicar que estava a obedecer à vontade de Deus. Por conseguinte, é plausível que Jesus tivesse tido grandes conflitos por causa de questões que, hoje, parecem sem importância para a maioria das pessoas. Isto não significa que, no século I, aqueles que estavam envolvidos numa disputa considerassem sempre os seus adversários como seguidores de Satanás e não de Deus e que, por isso, pensassem que eles deveriam ser executados. Pelo contrário, existia uma tolerância bastante grande. Necessitamos de informações sobre os níveis toleráveis de desacordo no judaísmo do século I para avaliarmos as passagens dos Evangelhos. Quais eram os temas mas controversos? A que ponto podia chegar o desacordo, sem que se ultrapassassem os limites de uma discussão ou de um debate razoável? Numa outra obra referi-me aos debates entre os vários partidos judaicos sobre as questões legais que são referidas nos Evangelhos.' Aqui gostaria de definir os níveis possíveis das disputas sobre a Lei e de exemplificar cada nível. Isto proporcionar-nos-á material comparativo sob uma forma razoavelmente breve. A lista dos vários graus de desacordo que se segue está ordenada de forma descendente, de acordo com a sua gravidade:

a) Uma pessoa pode argumentar que uma lei escrita está errada, que deveria ser revogada e que não é necessário obedecê-la. Trata-se de um passo muito radical. A desobediência civil nas democracias ocidentais modernas, uma tática seguida por alguns grupos de protesto, é muito polémica e, quando está em causa um assunto importante, provoca alguns arrepios à sociedade. Se esta atitude tivesse sido tomada em relação a parte da Lei judaica, teria sido particularmente chocante, visto que teria significado que Deus tinha cometido um erro ou que a história da origem divina da Lei não era verdadeira.

b) Uma pessoa pode argumentar que uma lei escrita está errada e que deveria ser revogada, mas, apesar disso, obedecer-lhe enquanto

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estiver em vigor. Esta é uma atitude muito comum, atualmente, em relação à legislação ordinária aprovada por um parlamento. No entanto, a revisão constitucional é bastante rara e apresenta uma analogia melhor com a Lei judaica do que a legislação parlamentar. Dada a convicção de que a Lei foi dada por Deus, a proposta no sentido de revogar uma parte desta constituição fundamental seria aproximadamente tão atroz como argumentar que ela não deveria

ser seguida.

c) Uma pessoa pode reclamar circunstâncias atenuantes, sem se opor, de facto, à lei, a fim de justificar a transgressão numa ocasião particular.

d) Uma pessoa pode interpretar a lei de uma forma que a altere. Nos Estados Unidos da América, o Supremo Tribunal, que é responsável pela interpretação da Constituição, tem sido o instrumento para muitas alterações legais. Havia muitos estados federais nos quais os negros e os brancos frequentavam escolas separadas, apesar do princípio de igualdade consagrado na Constituição, porque, segundo a interpretação dominante, era possível as escolas serem separadas, mas iguais. O Supremo Tribunal decidiu, com efeito, que a palavra «igual» não era compatível com «separado», pelo que as escolas foram obrigadas à integração racial. Apesar de normalmente a interpretação ser menos dramática, é comum os juízes interpretarem a lei e, por vezes, o resultado é o mesmo da aprovação de nova legislação. Esta forma de interpretar a lei estava bem viva no judaísmo do século l.

e) É possível evitar ou escapar a algumas leis sem as revogar. Atualmente, algumas pessoas, especialmente as ricas, podem evitar legalmente o pagamento de impostos, organizando as suas finanças de modo a não terem receitas líquidas tributáveis. Tratar-se-ia de uma evasão ilegal se não revelassem as suas receitas. Ao tratarmos da lei da Antiguidade, podemos nem sempre ser capazes de distinguir entre «evitá-la» e «escapar-lhe» e nos exemplos mais abaixo nem sequer tentarei fazê-lo.

f) Uma pessoa pode propor que a lei se torne mais abrangente e pode criticá-la porque não vai suficientemente longe. Atualmente, há muitas pessoas que pensam que o limite de velocidade não é suficientemente rigoroso ou que as leis que limitam a poluição são demasiado suaves. Podem criticar duramente a legislação sem serem favoráveis à violação das leis que existem.

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g) Uma sociedade ou um dos seus subgrupos pode criar muitas regras e práticas suplementares que determinam com precisão a maneira como as leis devem ser cumpridas. As pessoas que não seguem determinada prática podem pensar que aqueles que a seguem cometem uma transgressão; as pessoas que seguem a mesma prática podem pensar que aqueles que não a seguem cometem uma transgressão.



Como os judeus do século I pensavam que a Lei de Moisés lhes tinha sido dada por Deus, as possibilidades (a) e (b) acima referidas quase nunca se colocavam. Uma pessoa conscienciosa, que pensava que um mandamento num dos livros atribuídos a Moisés estava errado, devia apostatar - devia renunciar ao judaísmo - e poucas pessoas o fizeram. A literatura rabínica conta a história de um rabi que transgrediu, deliberada e flagrantemente, uma norma, o que nos permite ver como seria uma transgressão deste tipo. Elisha ben A vuyah andou a cavalo diante do monte do Templo num Dia da Expiação que calhou a um sábado. Visto que o trabalho é proibido tanto no Dia da Expiação como ao sábado - e montar é um trabalho - Elisha ben Avuyah cometeu uma transgressão deliberada e grave. De acordo com a história, ouviu-se uma voz do Templo, dizendo: «voltai, filhos rebeldes» (citando Jr 3, 14), à exceção de Elisha ben Avuyah, que conhecia a Minha força e se insurgiu contra Mim." A história é provavelmente lendária, mas, apesar disso, descreve o tipo de transgressão que a perda da fé em Deus e na Sua Lei representa.

Existem muitos exemplos das outras categorias (c~f;. Apresentarei uma quantidade suficiente de exemplos para dar ao leitor uma ideia do grau de desacordo no que diz respeito à Lei.

Um desses exemplos ilustra tanto a categoria (c) como um aspeto da categoria (d). A Bíblia proíbe o trabalho no sétimo dia da semana - desde o pôr do Sol de sexta-feira, até ao pôr do Sol de sábado (Ex 20, 8-11 / / Dt 5, 12-15). Há várias passagens que especificam algumas das coisas que são consideradas trabalho, como, por exemplo, acender uma fogueira, apanhar lenha ou preparar comida (Ex 16; 35, 2 e segs.; Nm 15, 32-36). No entanto, não existe uma definição sistemática de «trabalho». Por conseguinte, o trabalho era definido por consenso

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geral ou através de argumentação direta - as duas formas de interpretação (d). A lei relativa ao sábado não é mencionada quando se fala de guerra, na Bíblia, mas um acontecimento no século II a. C. revela que, por consenso geral, o combate era considerado trabalho. Durante a revolta dos Asmoneus contra o império dos Selêucidas, um grupo de judeus recusou-se a defender-se no sábado e foi assassinado. Depois disso, os judeus chegaram todos a acordo quanto à possibilidade de se defenderem contra um ataque direto perpetrado ao sábado. Permitiam aos inimigos que estes colocassem as suas catapultas em posição de combate, mas não respondiam até serem atacados. Isto é, todos reconheceram que um ataque militar direto constituía uma circunstância atenuante (c). Em geral, todos os judeus concordavam que a transgressão da lei do sábado era permitida quando estava em jogo uma vida humana.

E quando se ajudava, ao sábado, uma pessoa cuja vida não estava ameaçada? Aqui havia várias interpretações concorrentes. Os grupos piedosos (os fariseus e os essénios) proibiam o trabalho envolvido no tratamento de pequenos incómodos, mas a literatura rabínica discute tantas possibilidades que é evidente que havia muitas pessoas que estavam dispostas a enfaixar dedos cortados (e outras coisas) ao sábado. Os rabis até apresentavam formas de alcançar um resultado


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