Temos então material organizado suficiente para a redação de um primeiro rascunho. Nessa redação, o autor já estará preocupado com sua audiência - no contexto escolar, com o diabinho-professor. Um dos equívocos mais comuns é pressupor que o professor sabe tudo - ou quase - e daí excluir partes importantes do argumento, não definindo, por exemplo, os termos da questão. com isso, deixam-se de explicitar as relações que o autor estabelece entre as premissas, ou seja, exatamente aquilo que o leitor desconhece (e quer conhecer). Portanto, é fundamental deixar transparentes todos os passos do raciocínio para melhor sustentá-lo, sem pressupor conhecimento por parte do leitor (mesmo que o leitor seja um professor que dá a impressão de saber tudo).
Durante a redação e nas várias leituras e reescrituras de nosso texto voltamos a questões que lhe dão forma: seu propósito, sua organização, o fluxo de idéias, a língua em uso. O escritor-leitor mais experiente revisa seu texto levando em conta todos estes aspectos ao mesmo tempo. O menos experiente, mas não menos competente, deve ir por partes, sempre
74 se questionando. O texto cumpre seu propósito de convencer ou persuadir o leitor de X? A organização é transparente, ou seja, o plano está explicitamente traçado para o leitor? O raciocínio utilizado pode ser percorrido pelo leitor com facilidade ou o texto deixa lacunas enormes a serem preenchidas? As escolhas lexicais e sintáticas são adequadas? O estilo, mais ou menos formal, é condizente com a natureza da tarefa, das convenções discursivas e da audiência?
Perguntas, sempre perguntas. Cabe lembrar que procuramos responder a elas enquanto garimpávamos os textos, através da leitura, para que de alguma forma o processo de escrita também se tornasse um pouco menos nebuloso. Acreditamos que o ato de escrever se configura como trabalho, esforço, exercício, tudo isso com prazer e adrenalina, e não simplesmente como um dom. Deixemos o dom para os anjos, e mãos à massa.
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A FORMAÇÃO DA HIPÓTESE
A leitura - do mundo e dos livros - deu o tom da preparação do argumento. O passo seguinte poderia ser a organização dos dados e dos fatos coletados, para dessa organização se extrair a conclusão. Entretanto, a organização dos dados e dos fatos demanda uma lógica que lhe é prévia, isto é, demanda uma hipótese organizadora. Por isso, optamos por definir a ”formação da hipótese” como o segundo momento do nosso projeto interdisciplinar, o que talvez provoque algum estranhamento, já que, segundo alguns manuais de Lógica, a hipótese introduz o argumento dedutivo e o silogismo. Ora, apresentar o argumento dedutivo, mais abstrato, antes do argumento indutivo, mais concreto, estaria em flagrante contradição com o desenvolvimento do pensamento, tal como o descreveu Jean Piaget. Entretanto, defendemos sua apresentação antes dos recursos indutivos com base na tese de que todo o pensamento humano, inclusive o da criança pequena, articula-se primeiro dedutivamente, deixando a indução como um segundo momento: o momento da prova.
A noção de que o argumento indutivo não só deveria comparecer primeiro, para entrar em correspondência com o estágio do pensamento da criança, ou do adolescente, como, justamente por essa razão, é mais fácil, nos parece equivocada. Sabemos, porém, que esse equívoco, se o é, vem defendido com unhas, dentes e testes pelo ensino dito tradicional, calcado na enumeração exaustiva (põe ”exaustiva” nisso) de fatos singulares e fenômenos presumivelmente concretos.
76 Cientistas, como Roger Shank, discordam frontalmente da escola, afirmando que ”os fatos não são a base do aprendizado”; dominar um conjunto maior ou menor de fatos não quer dizer absolutamente nada sobre a educação de uma pessoa (a não ser., talvez, o quanto ela tenha sido mal educada): ”os fatos têm um papel importante no sistema educacional porque são muito fáceis de testar. E são esses testes (em geral provas altamente irrelevantes) que vêm moldando o seu aprendizado desde os seis anos de idade”.41
Shank trabalha em ciência da computação. Ele sabe que, para ”educar” um computador, é preciso programá-lo com a possibilidade de tirar algumas conclusões, inferir crenças e aprender com os erros. Espanta-se, portanto, quando nota os professores de seus filhos tratando-os como se eles fossem muito nnenos inteligentes do que os computadores do seu laboratório, uma vez que se limitam a lhes ensinar ”coisas” e ”nomes”. Assim como os computadores, as pessoas precisariam aprender afazer coisas - na verdade, só se aprende fazendo. Esse axioma é bastante antigo, mas persiste pouco aplicado, uma vez que, quando o aluno de fato faz, o seu produto foge ao controle do professor: o que de fato se faz, se constrói, não cabe mais no gabarito fechado de um teste.
O modo como os fatos são encarados é muito mais importante do que os fatos em si. Decorar a lista dos afluentes da margem direita do rio Amazonas provavelmente não ajudará muito a alguém que se encontre perdido, mais tarde, na floresta amazônica - ou frente aos dilemas ecológicos do nosso tempo. Certo, ninguém mais cobra os afluentes da margem direita do Amazonas (Javari, Juruá, Purus, Tefé, Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins!), mas decerto outras listas extensivas ocuparam o seu lugar... Ser capaz de enunciar fatos é útil, apenas., para passar em provas, impressionar amigos (facilmente impressionáveis) e se dar bem em programas de auditório, mas serve para muito pouco além disso.
41 Em John Brockman. Obra citada, p. 196.
77 O princípio do aprendizado científico é o mesmo que orienta o caçador ”primitivo”: nós aprendemos melhor aquilo que queremos. O motor da inteligência é o desejo, condição de possibilidade da imaginação. E a imaginação não é, como queria Malebranche, ”a louca da casa”, mas sim a própria antecipação do conhecimento. Não há conhecimento sem antecipação; não há conhecimento sem a imaginação que formule as condições prévias para o conhecimento.42 A hipótese outra coisa não é do que a antecipação, forçosamente imaginária, do conhecimento que não se tem, mas se deseja alcançar.
Em sentido estrito, a dedução é a forma do raciocínio que parte do geral para o particular, enquanto a indução é a forma do raciocínio que faz o caminho inverso, do particular para o geral. Qual é o caminho que se toma primeiro, é questão fundamental para a educação. Considerando que parece mais ”lógico” partir do conhecido para o desconhecido, muitas pessoas dirão que o caminho indutivo precede o caminho dedutivo, uma vez que se conheceria antes o que parece mais perto da pessoa: o particular, o concreto, a parte - só depois se teria acesso ao geral, ao abstrato, ao todo. A escola concorda com isso; tanto, que seus instrumentos pedagógicos são eminentemente indutivos, admitindo que um acúmulo de observações indutivas (corporificadas num acúmulo de questões sobre aspectos particulares, concretos e parciais da matéria) leve, algum dia, à compreensão do todo, ou seja, dos conceitos, dos fundamentos e da estrutura. A escola parte do ideal positivista, pelo qual a verdade dos fatos pode ser alcançada tão-somente pelos sentidos, vale dizer, pela observação e pela experimentação, mas o deforma um pouquinho, na medida em que não ensina a observar, mas sim o que já foi observado; não ensina a experimentar, mas sim o que já foi experimentado (mesmo nos raros e precários laboratórios, não se fazem experiências legítimas, mas exibições controladas de procedimentos que, algum dia, fizeram parte de alguma experiência). A ciência
42 Albert Jacquard. Obra citada, p. 75.
78 contemporânea, ao contrário, admite-se (com Popper e Kuhn, por exemplo) como eminentemente dedutiva.43
Se concordássemos com o ideal positivista, precisaríamos colocar o argumento indutivo na frente do argumento dedutivo. Como não concordamos com ele, optamos (seguindo, inclusive, a maioria absoluta dos livros de Lógica) pela precedência do argumento dedutivo, o que implica afirmar que a imaginação é precondição para o conhecimento dos fatos. E, em ciência, o lugar privilegiado de realização da imaginação é a hipótese.
Não estamos sendo especialmente revolucionários, se lembrarmos o que Aristóteles escrevia há 24 séculos: ”a marcha natural do intelecto é ir das coisas mais conhecíveis e mais claras para nós às que são mais claras em si e mais conhecíveis. Ora, o que para nós é primeiramente manifesto e claro são os conjuntos mais misturados; é só depois que, dessa indistinção, os elementos e os princípios se destacam por meio da análise”. »
Em outras palavras: conhecemos antes as idéias (nossas), e depois as coisas. Conhecemos antes os conjuntos, para só depois conhecermos os elementos particulares dos conjuntos. Precisamos, antes de qualquer outro processo intelectual, imaginar o mundo como mundo (como conjunto de coisas e fenômenos), para podermos então observá-lo (espantados). O leitor sabe que está lendo este modesto livrinho no quarto, mas certamente ignora o número de tábuas que compõem o assoalho de seu quarto. E, se acaso o souber (ó erudição!), é provável que ainda não tenha tido tempo (ou necessidade) de contar o número de nós que se acham na madeira. Da mesma maneira, a criança pequena não diferencia um terra-nova de um golden retriever (tal como muitos leitores adultos, enfurnados nos seus mínimos apartamentos), porque aprende, em primeiro lugar, a reconhecer um cão (au-au...), passando depois, se puder e quiser, à distinção das raças.
43 Maria José Coracini. Obra citada, p. 26.
44 Em Pascal Ide. Obra citada, p. 5.
79 Os ocidentais acharemos graça nos japoneses, por exemplo, pressupondo-os todos iguais - mas o mesmo acontece entre eles, em relação aos brasileiros (todos iguais, tudo samba e futebol...). A medida que se convive (que se investiga, que se pensa), reconhecem-se as enormes diferenças individuais. Ou, como diria Pascal: ”à medida que se tem mais espírito, descobre-se que há mais homens originais. As pessoas do vulgo não vêem diferença entre os homens”.45
A metáfora da montanha e do vale, usada por nove entre dez mitos (e por dez entre dez filósofos), é esclarecedora. A inteligência partiria do alto da montanha, porque só de lá se pode ter uma visão global do vale (da realidade). Mas, se quiser conhecê-lo melhor, deverá descer para a sua visão se detalhar. Quanto mais desce no vale, ou nele penetra, entretanto, mais a inteligência descobre o quanto não conhece: a extensão infinita, microscópica e macroscópica, dos seres, das coisas e dos acontecimentos que povoam o vale.
Do alto da montanha, percebemos a necessidade de um modelo e de um ideal, não apenas para nortear as nossas ações, mas também para orientar as nossas observações. Esse modelo funciona como um horizonte regulador que, paradoxalmente, nos move e nos orienta. O substantivo ”modelo” implica uma ação: a ação de modelagem. Modela-se uma abstração, do latim abstrahere, justamente para extrair das realidades sensíveis, materiais, sua essência inteligível e universal. Como não podemos conhecer todos os homens e mulheres, designamos a todos por um nome genérico. Como não podemos dar um nome a todas as folhas que caem das árvores, batizamos a todas pelo nome ”folha” (embora a dita cuja, em si, também não exista).
Assim se fazem os conceitos - derivados, precisamente, de uma concepção.
O mesmo se pode dizer a respeito de todas as coisas que compõem a realidade e, na verdade, da realidade mesma.
45 Idem, ibidem, p. 11.
80 porque o que chamamos realidade ”é uma hipótese que formulamos a propósito do que nos rodeia”.46 Dito de outro modo, o nosso acesso à realidade só pode ser mediato, e não imediato. Reconhecê-lo, entretanto, não precisa implicar a desvalorização da percepção sensível, como o fez Platão na famosa alegoria da caverna. Heisenberg, com o seu primado da incerteza, permitiu-se reescrever o mito da caverna, na qual nos iludimos com as sombras que pensamos que são reais, ao orientar a ciência em uma direção diferente: ao invés de buscar o conhecimento das ”coisas”, devem-se buscar as condições pelas quais temos acesso às ”coisas”.
A ênfase deste livro e projeto no argumento - vale dizer, na lógica e na retórica - se preocupa menos com as idéias ou as coisas ”em si” e mais com as condições através das quais pensamos e expressamos o nosso pensamento, admitindo, inclusive, que não se pensa sem expressar o que se pensa. A ênfase deste livro no argumento, de resto óbvia em função do seu título mesmo, na verdade deseja que essa se torne a ênfase da escola.
Mais importante do que saber (isto ou aquilo), colecionando neuroticamente dados, datas e fatos que não estarão à mão na hora que se precise deles (a menos que sejamos dotados de uma memória anacrônica e nos encontremos no palco de um programa de televisão tipo ”o céu é o limite”), deve ser saber como expressar e defender o que se sabe, ou seja, como delimitar, sempre provisoriamente, as condições pelas quais temos acesso à realidade e às suas partes infinitas (e infinitamente parciais).
Supondo que todos concordemos com isto, a tal ponto que realmente deixemos de dar e cobrar ”coisas”, para de fato exigirmos, dos nossos alunos, argumentos cada vez melhor elaborados, retornamos ao alto da montanha para falar do fundamento do argumento dedutivo, qual seja, a hipótese.
Albert Jacquard. Obra citada, p. 192.
81 A hipótese (primeira tese, primeira idéia) é o fundamento desse argumento, bem como de toda a ciência, da Biologia História. Para melhor exemplificar, acompanhemos, com Irving Copi, a fortuna de duas hipóteses rivais muito famosas.4’’!
Trata-se da polêmica sobre a forma da Terra.
Na antiga Grécia, os filósofos Anaxímenes e Empédocles sustentavam que a Terra era plana, acompanhando, portanto, senso comum, que não admitia o planeta como esférico (senão,! todos estaríamos escorregando). Mais tarde, Nicolau Copérni- co afirmou o contrário, com o seguinte argumento:
Que os mares assumem uma forma esférica é percebido pelos navegadores. Pois quando a terra ainda não é discernível do convés de um barco, já é visível do alto dos mastros. E se uma tocha for atada ao mastro, quando o navio se afasta da terra parece aos observadores postados no litoral que a tocha vai descendo, pouco a pouco, até desaparecer totalmente, como o ocaso de um corpo celeste.
Portanto, da hipótese de que a Terra é plana, infere-se que o barco desaparecerá por inteiro, o convés ao mesmo tempo que o alto do mastro. Da hipótese de que a Terra é esférica, infere-se que o mastro do barco continuará visível por algum tempo ainda, depois de o convés ter desaparecido da vista.
Na verdade, os observadores, na Grécia ou no tempo de Copérnico, não podiam subir em uma nave espacial para ver, com os seus olhos, a forma indubitavelmente esférica (quer dizer, mais ou menos esférica) da Terra (na verdade, mesmo hoje, poucos de nós podemos fazê-lo, mas acreditamos nos que foram, bem como, é claro, nas imagens da televisão). A polêmica se prolongou por muito tempo, porque nem os partidários de uma concepção nem os da outra podiam ver, e fazer ver, aos demais, a Terra como plana ou esférica. A hipótese da Terra plana servia para explicar o que os sentidos percebiam.
47 Irving Copi. Introdução à lógica, pp. 406-416.
82 Entretanto, a hipótese de Copérnico, da Terra esférica, também se baseava nos sentidos.
Havia uma falha no argumento de Copérnico que os seus adversários poderiam ter usado. Sua experiência do navio se afastando dependia não apenas de considerar a Terra como redonda, mas de considerar uma hipótese adicional da maior importância: a de que a luz siga um trajeto retilíneo. Um defensor da Terra Plana poderia muito bem refutar Copérnico dizendo, ao lado dele, no mesmo cais, vendo o mesmo navio, que a Terra era plana sim; a luz é que se propagava em curva, atraída, por exemplo, pela gravidade da Terra (embora, à época, ainda não se tivesse formulado a teoria da gravidade). E agora? Em função dos elementos conhecidos à época de Copérnico, uma suposição, uma hipótese, seria tão boa quanto a outra. O argumento de Copérnico se complica se lembrarmos que mais tarde admite-se a possibilidade do trajeto curvilíneo da luz (embora não exatamente nas condições que envolvem um observador no cais olhando para navio ao longe).
O que se deve destacar, aqui, é a extrema importância de se explicitar com toda a clareza todas as hipóteses e suposições que orientam o raciocínio e as conclusões. Que a luz viaja em linha reta era pressuposto no argumento de Copérnico, mas tratava-se de uma suposição oculta. Para o real desenvolvimento do progresso científico, bem como para o permanente aperfeiçoamento dos nossos argumentos, é fundamental explicitar todas as suposições que nos orientam, explicitando tudo o que ainda permaneça implícito - esse é o trabalho maior do educador, que não deixa de ser, aliás, fundamentalmente político.
Mas, muitas vezes, os livros didáticos (e os professores cansados) apresentam a descrição dos fenômenos apenas a partir do final do argumento, sem explicitar as suposições básicas. Da mesma forma, e em conseqüência, os alunos apressados tendem a apresentar somente a parte final do seu raciocínio - a resposta, a solução -, sem explicitar as hipóteses que os orientam, o que enfraquece, sobremaneira, a sua argumentação. Às vezes, é isso o que os professores percebem, embora confusamente,
83 quando escrevem na margem da redação: ”desenvolva mais o seu pensamento”. Nesse caso, a melhor recomendação não seria ”desenvolva mais”, que sugere ao aluno que ele deve acrescentar elementos a partir do que escreveu, mas sim ”explicite as bases e as hipóteses que orientaram o seu pensamento”. Não é ”diga mais”, mas sim: ”diga o princípio”.
O princípio de tudo é a hipótese. Mesmo as nossas observações são orientadas por hipóteses prévias, sem as quais sequer conseguimos começar a abrir os olhos. A frase de Einstein, nesse sentido, torna-se um axioma: ”é a teoria que decide o que podemos observar”.48
Não vemos, na verdade, apenas com os nossos olhos - porque os nossos olhos só podem ver depois que os ”informamos” como e o que ver. A ciência conseqüente é mais cética ainda do que São Tome: duvida dos próprios olhos, porque sabe que os olhos são ”programados” para ver de tal ou qual maneira, o que significa que poderiam ser programados para ver de outras maneiras.
É o hábito dessa dúvida que permite formular as hipóteses (enquanto tal). Quando o que inicialmente se sugere como uma hipótese é confirmado por diferentes cálculos e observações, costuma-se elevá-lo à categoria de uma ”teoria”. A partir de um grande volume de provas, alcançando aceitação próxima da universal, a teoria, por sua vez, se eleva ao status maior de ”lei”.
Essa hierarquização da terminologia científica, entretanto, nem sempre é seguida à risca: a descoberta de Newton ainda é conhecida como ”Lei da Gravidade Universal”, enquanto a contribuição de Einstein, que aperfeiçoou e, em parte, substituiu a de Newton, é designada como ”Teoria da Relatividade Geral e Restrita”. Na verdade, os termos ”hipótese”, ”teoria” e ”lei” não são muito felizes, porque obscurecem a questão fundamental: todas as proposições gerais da ciência são consideradas hipóteses, e não dogmas: ”na ciência, toda explicação é proposta a título de ensaio e provisoriamente. Toda explicação proposta
48 Em Werner Heisenberg. A parte e o todo, p. 78.
84 considera-se uma simples hipótese, mais ou menos provável, com base nos fatos acessíveis ou provas relevantes”.49
Jacquard chega a propor deixar o termo ”lei” tão-somente para uso dos juristas (mesmo assim, mantendo-os sob suspeição).50 O termo ”lei” sugere que os objetos estão submetidos a uma decisão arbitrária da natureza; a fórmula matemática que sustenta a lei tende a ser percebida como uma decisão cifrada tomada por um tribunal, que poderia, quiçá, ter decidido de outra maneira. No entanto, as leis científicas são apenas a conseqüência lógica, necessária, dos conceitos adotados para se descrever o real. O perigo mais grave da referência constante a leis é descrever o mundo real como uma acumulação desordenada de fenômenos, cada um deles acompanhado de um programa de funcionamento - a ciência não seria mais do que a decifração desses programas. Essa maneira de pensar, parece claro, é antes religiosa do que científica, na medida em que supõe, implícita ou explicitamente, um programador onisciente.
Essa maneira de pensar tende a deixar os cientistas em palpos de aranha, quando deparam com fenômenos que não se encaixam de modo algum nas explicações (nas hipóteses) existentes. A descoberta do ornitorrinco, animal australiano, por exemplo, provocou exclamações surpreendentemente estúpidas por parte de cientistas renomados. Ao verem um animal que não se encaixava nas classificações estabelecidas, parecendo antes misturá-las ironicamente, alguns disseram, frente a frente com o bichinho: este animal não existe.
Se seguissem a lógica clássica até o fim, precisariam dizer: este animal não existe; ora, mas eu o vejo; logo, eu não existo.
Não é o lugar nem o momento de fazermos uma história da ciência, mas importa lembrarmos que o que conhecemos como ciência é uma construção histórica da modernidade (ou, do que conhecemos como modernidade). Nesse processo, intensificou-se o procedimento dedutivo, ou seja, a visão especulativa
49 Irving Copi. Obra citada, p. 382.
50 Albert Jacquard. Obra citada, p. 173.
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do alto da montanha, até porque, progressivamente, começou-se a estudar tanto o infinitamente grande, como o cosmos, quanto o infinitamente pequeno, como o átomo. Telescópios e microscópios passam a ocupar o topo da colina, mas não são suficientes: para explicar certos fenômenos, é preciso abstrair o que se consegue ver, para ”ver” além (e aquém).
O limite da abstração é o número.
No século XVII (época das maiores descobertas científicas, fundando o conhecimento subseqüente), o filósofo e matemático alemão Leibniz propõe transformar todo raciocínio em uma espécie de cálculo, por considerar que os métodos da Matemática podem se estender até abranger a totalidade do conhecimento.
Se a gente argumenta na maneira usual, é difícil chegar a um acordo. Vamos transformar os raciocínios em cálculos e obter as conclusões como se fossem resultados aritméticos.51
Levar essa idéia às últimas conseqüências pode redundar em perigosa forma de cientificismo, forjando a ilusão (positivista) de que, se tudo pode ser reduzido a uma bela fórmula matemática, tudo pode ser conhecido. Entretanto, a proposta de Leibniz obviamente tinha e tem muita importância, se ajudou a fundar a ciência e o mundo modernos. Ainda que nem tudo possa ser reduzido a cálculos e números, números e cálculos ampliam significativamente as possibilidades do nosso conhecimento (e, em inevitável decorrência, a consciência de nossa ignorância).
O que importa é não acreditar nos números como se eles fossem a Verdade maiúscula e única. A Matemática nada mais é do que uma linguagem de símbolos, representando objetos ou conceitos um pouco à maneira como os ideogramas chineses também o fazem. É extremamente curioso como a escola transformou a Matemática na disciplina mais difícil do currículo,