Gustavo Bernardo educaçÃo pelo argumento colaboração de gisele de carvalho rio de Janeiro – 2000 Copyngh, 2000 by Gustavo Bernardo Direitos desta edição reservados à editora rocco ltda rua Rodrigo Silva, 26 5° andar


Em Carlos Lungarzo. O que é lógica, p. 22



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51 Em Carlos Lungarzo. O que é lógica, p. 22.

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quando ela seria, por definição, o caminho da simplificação, da economia e, portanto, do menor esforço e da facilidade. Jacquard lembra que, ”para desmistificar a Matemática, é bom considerá-la como a invenção de indivíduos preguiçosos, desejosos de resumir pela formalização a escrita de seus raciocínios. Mas essa formalização não passa de uma atividade de escriba que, graças à sua experiência, encontra o melhor artifício para simplificar o seu trabalho”.52

Considerada o modelo das ciências mal ditas ”exatas”, tem sido fonte de um equívoco básico: deixa crer que a realidade pode ser adequada e completamente representada, o que nunca é o caso. Quando os astrônomos ”medem” a distância do Sol à Terra, o resultado não pode ser exato, pela razão muito simples de que semelhante distância, modificada segundo a segundo, nem chega a ser definível. Existe, tão-somente, média, ou aproximação.

Na verdade, em cada ocorrência, o número não assume o lugar de grandeza, numa relação de identidade, mas apenas a representa, numa relação de equivalência.”53 Isto significa que o número não se encontra numa relação unívoca de identidade, mas numa relação, necessariamente parcial, de representação. Nem todas as propriedades da grandeza em questão resultam caracterizadas pelo número que lhe é associado. Quando se numeram as salas de um corredor, não se pretende que exista uma correspondência completa entre as propriedades da sala 8 e as do número 8. Pode ser que a sala 8 situe-se entre as salas 7 e 9, mas não se espera que ela seja necessariamente maior que a 7 (ou com o dobro do tamanho da sala 4). Nessa representação, apenas se considera, no máximo, o aspecto ordinal do número. Analogamente, se um aluno obtém notas 4 e 6 em duas avaliações independentes, é rigorosamente exato dizer-se que a média aritmética de suas notas é 5, mas não é necessariamente verdadeiro que ele conheça 50% da matéria trabalhada



52 Albert Jacquard. Obra citada, p. 102.

53 Nilson Machado. Obra citada, p. 41.

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em sala. É tão difícil medir exatamente esse percentual quanto medir exatamente a distância entre a Terra e o Sol, simplesmente porque nenhuma das duas medições exatas é possível. Ainda aqui, trata-se.de média, ou aproximação, não mais.

Para demonstrar numericamente o caráter representativo e inexato do número, faça-se a seguinte experiência: divida-se uma fita de um metro de comprimento em três partes idênticas. Não há maiores dificuldades técnicas para se fazer essa divisão, com uma boa tesoura e um bom ”olhômetro”. Depois, se podem juntar as três partes para se ter de volta a fita original. A seguir, divida-se matematicamente um metro por três partes iguais: encontramos, como comprimento de cada uma das partes, 0,333... (ad infinitum...}. Somando as três partes, encontramos o estranho número de 0,999... (ad infinitum...), que é menor do que 1!

Se a Matemática é uma ciência exata, por que ela não consegue exprimir uma divisão materialmente possível? A pergunta é perturbadora, mas não deveria perturbar os bons matemáticos. Eles sabem, primeiro, que a Matemática não é uma ciência exata, e sim uma ciência rigorosa. Eles sabem, também, que nem mesmo o final da experiência que dividiu materialmente a fita é possível, uma vez que a reconstituição da fita à situação anterior depara com impasses milimétricos. A tesoura mais afiada do mundo cortando a fita mais fina do mundo não consegue fazê-lo em uma linha absolutamente reta. Olhando a fita mais de perto (muito de perto), observam-se minúsculas reentrâncias e ziguezagues que farão com que, se juntarmos os três pedaços sobre uma mesa absolutamente lisa (o que também não existe, a não ser como abstração), teremos uma fita não de um metro, ou medindo 0,999... (ad infinitum...) metros, mas, provavelmente, uma fita de pouco mais de um metro.

Para continuar a complicar, podemos tentar medir a extensão do litoral da ilha de Paquetá. Imaginemos um grupo de geógrafos fazendo isso, e chegando a um determinado número. Então lhes perguntaríamos como o fizeram, e eles mostrarão seus instrumentos de medição - por exemplo, uma fita de dez

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metros. Qualquer que fosse o número obtido, e ainda sem considerar que o litoral de uma ilha se modifica segundo a segundo, com as ondas que vão e vêm, com a maré que sobe e desce, poderíamos dizer que a medida está errada. Ao esticarem a fita de dez metros, deixam de considerar as reentrâncias maiores e menores das pedras e da areia, a tal ponto que, naquele espaço que eles determinaram como medindo ”dez metros”, poderíamos encontrar, digamos, dez mil metros, computadas as menores reentrâncias visíveis a olho nu. Se usássemos microscópios mais e mais poderosos, chegaríamos, no espaço dos dez metros daquela fita dos geógrafos, a um número potencialmente infinito - logo, imagine-se o número que se pode obter como medida de todo o litoral da ilha de Paquetá: teria uma extensão equivalente a várias vezes a distância (estimada) entre a Terra e o Sol.

Em conseqüência, se uma questão de prova perguntasse, ”qual a extensão do litoral da ilha de Paquetá”, sem outros dados adicionais, haveria apenas duas respostas corretas: ”depende do metro”; ou, então: ”°°”.

Os bons matemáticos sabem, igualmente, que tudo isso é que torna a disciplina fascinante, permitindo-nos não só nos aproximar da realidade (mais não nos é dado) como brincar com paradoxos resultantes das tentativas. A formulação de Einstein se afigura emblemática: ”na medida em que as leis matemáticas referem-se à realidade, elas não são exatas, e na medida em que são exatas, elas não se referem à realidade”.54 Portanto, ”é essencial o reconhecimento da importância dos resultados aproximados, das estimativas, das questões em aberto ou impossíveis de responder no seio de problemas caracteristicamente matemáticos”.55

A base da Matemática é, como veremos um pouco mais adiante, o fundamento da lógica do argumento, estabelecendo relações na forma ”se a, então (3” (a implica 3). Nesse caso,

54 Idem, ibidem, p. 32.

35 Idem, ibidem, p. 136.

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toda proposição é apresentada como decorrência da admissão de outra, ou de outras. A questão da verdade matemática reveste-se de caráter exclusivamente hipotético: quando afirmamos ”se a, então P”, garantimos que não é possível se ter P falsa se a for verdadeira, mas nada podemos afirmar sobre a veracidade de a ou P isoladamente.

Dizer que um carro ”tem” velocidade de 60 km/h ao passar por determinado ponto significa afirmar que, se o carro se mantivesse em movimento uniforme por mais uma hora, sem nenhuma interferência do trânsito, então na próxima hora ele percorreria 60 quilômetros. O conceito de velocidade envolve sempre um ”se a, então P”; uma afirmação condicional relativa a um hipotético movimento uniforme.

Há uma expressão latina que deveria acompanhar todo problema de Matemática ou Física: ceteris paribus. Pode ser traduzida como ”tudo o mais sendo invariável”. As explicações científicas, fundamentalmente hipotéticas, devem buscar o máximo de simplicidade e economia de meios para serem realmente produtivas. Precisam reduzir as variáveis ao mínimo, para que haja possibilidade de solução. Entretanto, a vida e os seus fenômenos não são, definitivamente, simples: contêm, sempre, um número potencialmente infinito de variáveis.

O antropólogo Pascal Boyer alerta: ”as idéias científicas não são, não podem ser, nem deveriam ser fiéis à vida”.56 Produzir uma teoria, ou um argumento, não implica levar em conta todos os possíveis aspectos do fenômeno que se procura descrever, pela razão, essa sim muito simples, de que todo fenômeno é muito mais complexo do que possa sonhar a nossa vã filosofia (ou ciência). Em prol da simplicidade, descrevemse os aspectos relevantes do fenômeno, estabelecendo, arbitrariamente, que todos os demais aspectos ”permaneçam” invariáveis, imutáveis, vale dizer, neutralizados.

Para resolver o problema mais simples, é preciso ”congelar”, com a sentença-limite ceteris paribus, todas as questões

56 Em John Brockman. Obra citada, p. 186.

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secundárias e laterais. Determinar a velocidade de um carro, por exemplo, depende de a consciência não considerar (mas apenas enquanto se resolve o problema!) o trânsito, a qualidade da estrada, a polícia rodoviária, o sono do motorista...

Essa consciência ”desconsiderante”, vale dizer, seletiva, coloca a si mesma, porém, problemas mais graves - muito mais graves. Como resolvê-los? O que considerar variável, portanto relevante, e o que considerar invariável, logo, irrelevante?

Nos debates que nos afetam mais de perto, os cientistas, usando métodos semelhantes, usando os mesmos e melhores recursos de argumentação, discordam entre si. Porque, assim como os fenômenos não se deixam descrever completamente a verdade é não-toda, nos diria um psicanalista famoso -, o argumento é necessário, é indispensável, mas não suficiente.

Por exemplo: como a consciência pode saber o momento em que nasce a consciência? Essa pergunta, que se fazem médicos, biólogos, antropólogos, lingüistas, geneticistas e, last but not leasí, religiosos, é crucial para o debate sobre o aborto.

Vamos fazer um raciocínio, válido (no entanto, no seu limite, apavorante). Pressupomos, e o leitor ou leitora deve concordar com isto, que um óvulo, apesar de conter as condições para que o processo da vida se desenrole, não tem consciência - tanto isso é verdade, que não se lamentam os óvulos que ”morrem” todos os meses. O mesmo pode ser dito a respeito do espermatozóide - tanto isso é verdade, que não se lamentam os espermatozóides que se ”perdem” e ”falecem”, desde as primeiras e adolescentes poluções noturnas. Ora, o ovo fecundado, resultante do encontro dos dois, também não terá consciência - ou alguém pode demonstrar o contrário? O mesmo, então, deve acontecer com o embrião resultante das diferenciações celulares que ocorreram naquele ovo - por que não com o feto que sucede ao embrião? - e por que não com o neném que acaba de nascer? - e assim por diante, justificando-se todos os crimes...

Agora, façamos o raciocínio inverso, conduzindo-nos a outro absurdo. Evidentemente, respeito a vida de um bebê.

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Nesse caso, devo respeitar a vida de um feto - logo, devo respeitar a vida de um embrião - logo, devo respeitar a vida de um ovo que acaba de ser fecundado - logo, devo respeitar a sagrada vida de todos os óvulos e de todos os espermatozóides do mundo - logo, para ser absolutamente coerente, devo respeitar a vida do menor micróbio e da menor célula, e em conseqüência não devo tomar antibióticos (antivida!) nem ministrá-los a ] meu filho, deixando-o, em nome do respeito absoluto à vida, morrer de pneumonia...

Fica claro, esperamos, que não é nestes ou naqueles termos que se pode colocar o problema do aborto. A ciência limita-se a construir uma descrição da realidade que se pode ver, ceteris paribus. Da descrição, não se infere alguma regra moral absoluta. Compete a cada um tomar a sua posição, fundar e sustentar o seu argumento a respeito. A posição do filósofo Albert Jacquard, que nos emprestou os argumentos-limite sobre o aborto, é fundada ”no respeito pela jovem mulher que, tendo refletido, decide que o aborto é para ela a solução menos má. Coloco esse respeito acima do respeito - que, no entanto, é muito grande - pelo futuro neném que ela traz em seu seio”.57

Como se pode depreender, essa questão, bem como todas as demais que realmente importam, não está resolvida - o que reforça a necessidade de aperfeiçoarmos o nosso estudo e o nosso argumento.

A dedução costuma se confundir com a própria lógica, devido à tradição do pensamento ocidental, que deriva diretamente da lógica aristotélica. Aceitemos, momentaneamente, essa interposição, procurando o princípio que funda a lógica e, em conseqüência, a formulação de todas as hipóteses. Trata-se do princípio de não-contradição, que não pode ser demonstrado. Dele partem os dois outros princípios que o completam: do terceiro excluído e da identidade.

Pode-se enunciar assim o princípio de não-contradição: ”não podemos afirmar e negar um enunciado ao mesmo tempo

57 Albert Jacquard. Obra citada, p. 16.

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e sob o mesmo aspecto”. O princípio do terceiro excluído se enuncia desse modo: ”dado um enunciado ou ele é verdadeiro ou é falso. Não existe terceira hipótese”. O princípio da identidade é bem claro: ”dado um enunciado, ele é sempre igual a ele mesmo”.

Como não se pode demonstrar o princípio de nãocontradição, pode-se ilustrá-lo por uma fábula bem interessante. A fábula é de Nahra e Weber, e se chama ”DISCUSSÃO NA FAMÍLIA LOGUS”.58

Era uma vez três irmãos, Aristóteles, Dialéticos e Sofísticos, filhos de Dona Sophia e de Seu Logus. A família vivia muito feliz, como geralmente viviam todas as famílias de classe média do mundo (naquele tempo não existia ainda crise econômica), sendo a paz familiar apenas abalada pelas constantes disputas entre Aristóteles, Dialéticos e Sofísticos, que tinham sérias e profundas divergências intelectuais e existenciais.

Dialéticos era um sonhador e vivia ”no mundo da lua”, como costumava dizer Dona Sophia. Rebelde com causa, vivia questionando Seu Logus e desrespeitando as regras familiares. Seu Logus costumava queixar-se, dizendo: ”Desrespeitando-me desse jeito, esse menino não vai aprender nada e nunca vai ser alguém na vida”.

Sofísticos era o ”espertinho” da família. Pedante como só ele, achava que sabia tudo e que era mais inteligente que todos. Tinha uma boa lábia, mas conhecimento mesmo tinha pouco. Dona Sophia e Seu Logus, quando faziam aquelas reflexões privadas que todo casal faz sobre sua prole, costumavam dizer: ”Esse menino, se facilitar, é capaz de convencer os outros de que uma vaca tem cinco patas... Isto não é nada bom”.

Aristóteles era o orgulho da família. Rapaz educado, inteligente e vivo, impacientava-se com o comportamento de seus irmãos, que viviam a provocá-lo intelectualmente. Suportava tudo sem nada dizer, até que um dia resolveu dar

58 Cynara Nahra e Ivan Weber. Através da lógica, pp. 53-7.

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um fim a essa situação e chamou seus irmãos para o que ele denominou de ”uma discussão em família”.

- Dialéticos - disse Aristóteles - você sabe o que é o princípio de não contradição?

- Claro! O princípio de não contradição diz que ”é impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo tempo e sob a mesma relação ao mesmo sujeito”.

- Exatamente. Poderíamos também dizer mais informalmente que o princípio de não contradição enuncia que ”nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”. Pois eu lhe pergunto, Dialéticos, se você acha que é possível desrespeitar esse princípio.

- Pois eu lhe digo que é possível. E lhe digo, também, que o princípio de não contradição deve ser dialeticamente superado.

- Ah não, Dialéticos! Seu caso é pior do que eu pensava. Você está querendo me dizer que as coisas podem, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, ser e não ser?

- Sim. Veja bem, Aristóteles, as coisas estão sempre emm movimento, o que mostra que aquilo que é hoje pode não ser mais amanhã. Nós nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. As águas que nos banham hoje não serão mais as mesmas que nos banharão amanhã, porque amanhã as águas de hoje já terão passado.

- É realmente profundo, Dialéticos, mas acho que você está compreendendo mal o princípio de não contradição. O que o princípio diz é que as coisas não podem ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Isto significa que não podemos, em um mesmo instante, estar e não estar nos banhando em um rio. Afirmar isto seria contraditório. Nada impede, entretanto, que hoje estejamos nos banhando em um determinado rio, com águas que amanhã não serão mais as mesmas. Em tempos diferentes, podemos ter diferentes estados de coisas no mundo.

- Explique isto melhor, Aristóteles! Quer dizer que você, como eu, acha que as contradições podem existir e que o mundo é movido a contradições?

- Pelo amor de Deus, Dialéticos, pare de querer forjar consensos e não coloque palavras na minha boca! Contradições

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jamais, eu digo, jamais podem existir. Jamais alguma coisa poderá ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Por exemplo, mano, um mesmo indivíduo jamais poderá dizer: ”eu vi e não vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas”. Se alguém dissesse isto, estaria dizendo que viu e não viu um determinado acontecimento em um mesmo instante, o que é evidentemente impossível. Nada impede, entretanto, que alguém diga: ”eu vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas” e ”eu não vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas e 2 minutos”. Obviamente o que aconteceu nesse caso é que, ao passar o tempo, o Gato Frajola saiu da cadeira e foi para outro lugar, quem sabe, foi caçar ratos. Nada impede, também, que João diga: ”eu vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas”, e Pedro diga: ”eu não vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas”. Nesse caso, Pedro e João estavam sob diferentes relações quanto ao objeto (no caso, o gato) em questão. Pedro, provavelmente, estava próximo à cadeira e por isso viu o gato, e João, provavelmente, estava na rua, longe da cadeira, e por isso não viu o gato.

Nesse exato instante, o irmão Sofísticos se intromete na discussão. Ele pede a Aristóteles uma demonstração do princípio de não contradição e diz que sem essa demonstração ele não pode dar-se por convencido da existência desse princípio.

- Ora, Sofísticos! É impossível demonstrar o princípio de não contradição. Exatamente por ser um princípio, ele é a base de onde todas as outras demonstrações procedem. Não podemos demonstrar aquilo que é o princípio de tudo. Se tentarmos tudo demonstrar, regrediremos ao infinito e não demonstraremos nada.

- Pois se não podemos demonstrar o princípio de não contradição, não me dou por convencido e simplesmente não o aceito.

- Não posso lhe dar uma demonstração, Sofísticos, mas lhe darei uma prova que tem a mesma força de uma demonstração. Chamarei essa prova de ”refutação” ou ”demonstração indireta”. Peço-lhe, então, Sofísticos, que você simplesmente me diga qualquer coisa.

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- Digo-lhe que eu gosto de bananas.

- Quando diz isto, Sofísticos, você já está respeitando o princípio de não contradição.

- Como assim?

- Você não pode me informar que gosta de bananas, desrespeitando o princípio de não contradição. Se o desrespeitasse, você estaria dizendo: ”Eu gosto e não gosto de bananas”, e não estaria, portanto, enunciando nada sobre seu gosto por bananas. É sempre assim. Se você me diz coisas contraditórias como ”Eu gosto e não gosto de Maria” ou ”O gato está e não está em cima da cadeira” ou ainda ”Mr. Hyde foi e não foi um monstro”, eu nada posso saber sobre seus gostos, sobre o local onde o gato está e sobre o que você pensa sobre Mr. Hyde. Quando desobedece ao princípio de não contradição, você simplesmente não enuncia nada, não informa nada a respeito do mundo.

- E daí? O fato é que eu posso dizer estas coisas, eu posso dizer: ”eu gosto e não gosto de bananas”, eu posso desrespeitar o princípio de não contradição. Você ainda não o demonstrou, Aristóteles.

- Veja bem, Sofísticos, você está pedindo que eu demonstre o princípio de não contradição, certo? Mas se você, de fato, desrespeita esse princípio, então esse diálogo simplesmente não estaria sendo travado, porque você estaria me pedindo para dar e não dar uma demonstração do princípio de não contradição, não é mesmo?

- Como assim?

- Se você desrespeita o princípio de não contradição, não pode enunciar nada, nem enunciar que você deseja uma demonstração desse princípio. Quando diz: ”eu quero uma demonstração do princípio de não contradição”, você não está dizendo: ”eu quero e não quero uma demonstração do princípio”. Você está me informando que quer essa demonstração e, para informar isto, você precisa respeitar o princípio. Se para enunciar qualquer coisa você não pode desrespeitá-lo, então o princípio tem validade universal. Se desrespeitamos o princípio, nada no mundo pode ser informado, nada pode ser comunicado, nada pode ser dito. Vejam, então, meus irmãos, a força desse princípio! Ele não pode ser

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diretamente demonstrado, porque ele é a condição de toda e qualquer demonstração. Podemos, entretanto, refutar, como eu fiz agora, todo aquele que diz ser possível desrespeitar esse princípio, mostrando que desrespeitá-lo é condenar-se ao silêncio eterno, a nunca usar a razão, é condenar-se a passar a vida sem nada afirmar e sem nunca julgar.

Dona Sofia e seu Logus que a tudo assistiam deram um sorriso largo, satisfeitos com aquele que seria seu mais ilustre filho.

A fábula sobre a discussão na família Logus merece, por sua vez, muita discussão (que rende um debate interessante em turmas motivadas). Não estamos inteiramente convencidos de que os dialéticos sejam exatamente sonhadores, menos ainda de que vivam no ”mundo da lua”. Da mesma forma, guardamos sérias dúvidas sobre o caráter dos sofistas, usualmente representados como pedantes de muita lábia e pouco conhecimento. A despeito destas dúvidas, a pequena fábula mostra, com clareza, o predomínio do pensamento aristotélico na história do Ocidente e, a partir dele, a importância do princípio de não-contradição.

Ao se dizer ”Pégaso é indizível”, por exemplo, se incorre em uma autocontradição, uma vez que se está dizendo algo mais: está se dizendo algo sobre Pégaso.59 Aquele que diz ”eu não existo” igualmente incorre em uma autocontradição - pois se não existisse de fato, como poderia falar para negar a sua existência? Uma série enorme de equívocos e falácias ocorrem porque se desrespeita o princípio de não-contradição, em especial nos argumentos que definem e delimitam as coisas de que se falam.

Quando se escuta a expressão ”isso não existe!”, sempre se pode retrucar: ”se não existe, como você pode falar disso?”. O ateu dirá ”Deus não existe”, e o religioso (ou o lógico) poderá rebater, argumentando que se Deus não existisse, sequer se

59 Mário Guerreiro. O dizível e o indizível, p. 83.

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poderia fazer uma frase em que Deus ocupasse justamente o lugar de sujeito. O ateu mais calmo, entretanto, nesse caso poderá replicar que Deus não existe ”concretamente”; sua existência teria tão-somente o estatuto lingüístico-imaginário,! tanto quanto os unicórnios e as quimeras. Se quisermos, essa discussão vai longe.

Momentaneamente, a suspendemos, para reforçar que o princípio de não-contradição é inestimável em enunciados factuais (ou atos de fala constativos), mas problemático em juízos de valor.60

Fulano pode afirmar que nenhuma coisa pode ser vermelha e não-vermelha. Sicrano discorda: o mesmo tomate verde fica vermelho, ao longo da mesma extensão, quando amadurece. Diante do argumento, Fulano acrescenta duas cláusulas restritivas: ”nenhuma coisa pode ser vermelha e não-vermelha ao longo da mesma extensão e ao mesmo tempo”. Explicitados os limites, Sicrano não conseguirá encontrar um contra-exemplo, de modo a violar a formulação mais forte formulada por Fulano. Logo, enunciados factuais têm de comportar a possibilidade de contradição no sentido mais forte, de tal modo que a e não-a não possam ser verdadeiros ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista.

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