No entanto, para não deixarmos esse importante ponto em branco, queremos destacar algumas questões sobre o sofisma que nos parecem centrais. Um dos primeiros eixos da expressão sofismática seria, a nosso entender, a figura de linguagem conhecida como ”eufemismo”. O eufemismo pode ser considerado a figura falaciosa mais marcante de todas, porque explica e reforça as alternativas da imprecisão, da generalidade
Carl Sagan. Obra citada, pp. 200-217. Bertrand Russell. Obra citada, pp. 92-142.
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e da abstração. Implica perda de reflexividade, e tem sua contrapartida no ”eruditismo”, a faceta perversa da erudição aquilo que Luís Fernando Veríssimo, numa crônica exemplar (Jornal do Brasil, 12/09/1997), chamou de ”errodição”.
Ironizando discurso do presidente brasileiro e duble de sociólogo, Fernando Henrique Cardoso, Veríssimo comenta, num trecho:
Valiosa também, num plano de conceitualização primitiva que nos remete à consciência imanente de que falava Hegel, é a exposição de Anthony Giddens da Silva, agricultor semterra que há dias disse, ao ser emboscado por seguranças de um latifúndio, derrubar dois com a sua foice e ser metralhado: ”Ahrk”. No que estava apenas ecoando, sucintamente, a filosofia de Albert Hirschman da Silva, recentemente desempregado, autor de uma instigante teoria da dependência do que seus filhos ganham com esmolas para poder sobreviver embaixo do viaduto, ou viaduct, como diria Hobbes. E não se pode esquecer a contribuição de Norberto Bobbio da Silva para o debate. Ou se pode esquecer, porque o Beto morreu de sarampo há pouco, sem saber se a epidemia que o levou era de esquerda, direita, centro-esquerda, centro-direita, meio-centro-esquerda, meio-centro-direita ou meio-centro.
A ”errodição”, que se apoia no abuso do jargão especializado - ”sociologuês, economês, politiquês” -, é um instrumento verbal de poder, afastando a turba ignara da comunicação, discursando e escrevendo não para ser entendido ou convencer, mas para impressionar e submeter.
Teixeira Coelho vê o eufemismo procedendo por metástase, degradando e corrompendo o objeto a que se refere, ao corromper a célula semântica inicial. Na busca de ”outras palavras”, que não firam a sensibilidade popular (na verdade, a condição infantilizada do interlocutor), o eufemismo tenta substituir palavras ”feias” por ”neutras”. Entretanto, como não existem palavras neutras, liquefaz-se a linguagem e, em conseqüência, difunde-se a ignorância.
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Essa liquefação da linguagem faz parte de um processo maior de erosão dos laços éticos da sociedade. É bem de ética que se trata, não de moral. Não é o caso de preservarse nenhuma moral, trata-se de vitalizar a ética. Ao contrário do que dizem os dicionários comuns, ética e moral não são sinônimos rigorosos, ou não mais podem assim ser vistas. Essa mesma linguagem já se encarregou de desgastar o sentido de ”moral”. A moral é hoje aquilo que emana de focos isolados da sociedade, geralmente formados pelos que detêm alguma forma de poder. A ética é o que vem de baixo, de todos os lados, que todos secretam para que a vida em comum se torne possível e desejável. A moral, hoje, freqüentemente está contra a ética e atua para seu esboroamento. Revigorar essa ética implicará, não raro, atacar aquela moral. E certamente implica refazer a linguagem. A linguagem não está como está porque a ética se mostra nesse estado: a ética está como está porque a linguagem, entre outras construções humanas, está assim. A linguagem não é mero fenômeno periférico, manifestação superestrutural de uma realidade mais central, mais importante, que determina o restante. Não há resto: a ética não existe no ar, a ética não está em si mesma como não está na linguagem (e em outras dimensões): a ética é a linguagem, como é a arte e a economia. Não haverá modificação na ética se a linguagem não se modificar.80
Esse trecho de Teixeira Coelho faz um outro elogio da linguagem e, em decorrência, do argumento, tão importante quanto o elogio de Perelman, que mostramos no início do ensaio. A linguagem que usamos, os argumentos que construímos, têm participação direta, quer estejamos conscientes disso ou não, na condição ética das nossas relações sociais e da sociedade como um todo. Resistir ao eufemismo é uma das maneiras de precisarmos e explicitarmos estas preocupações.
A variante contemporânea do eufemismo se mostra no argumento ”politicamente correto”, através do qual alguns
80 Teixeira Coelho. Dicionário do brasileiro de bolso, p. 293.
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setores da sociedade tentam impor aos demais como se deve pensar e falar. O filme Oleanna, de David Mamet, confrontando um professor universitário inseguro e uma aluna ignorante, dá um show de argumentos eufemísticos e politicamente corretos, na verdade sofismas, de parte a parte - mas, principalmente, por parte da aluna, que força uma acusação de assédio sexual, acabando com a carreira e com a família do professor. Apoiada num grupo feminista, que lhe dizia o que fazer e pensar, e com base em expressões confusas do docente, a aluna, não por acaso má aluna, forja uma realidade perversa em cima de pura fumaça.
O filme se passa quase inteiro dentro do gabinete do professor, mostrando diálogos entrecortados e intenções ambíguas. O espectador se debate entre uma identificação inicial com a aluna, rejeitando o professor, pedante e paternalista, para, aos poucos, ver-se forçado a ”trocar de lado”, absorvendo a perspectiva do mestre e a monstruosidade da atitude da aluna, que na verdade se esconde sob a capa de um coletivo rancoroso - mas, nem por isso, menos perigoso.
Esse filme nos oferece um excelente exemplo, artístico, da necessidade de ”dar mais uma olhada”, isto é, de nos forçarmos a procurar pensar em mais de uma perspectiva, não só para melhor argumentar, como para melhor viver. E viver implica desconfiar das verdades fáceis que, à força da repetição e outros fogos de artifício, tentam se impor sem se acompanhar minimamente de evidências. Ao lado do eufemismo como fonte de equívocos e falácias, encontramos, então, a aberração popular conhecida como ”onde há fumaça há fogo”.81
É esse provérbio o principal responsável pela força dos boatos e das calúnias. A lógica mental do público, preguiçosa, contenta-se com um índice vago e superficial para concluir dele uma verdade geral e irrefutável. Não se trata apenas de preguiça mental, mas também de perversidade emocional: por um processo de transferência do mal que Freud já explicou,
81 Pascal Ide. Obra citada, p. 44.
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aceitamos com facilidade uma calúnia apressada contra o outro, especialmente se esse outro for uma pessoa bem-sucedida, porque assim nos vemos como os mocinhos da história. Sabendo muito bem disso, os estrategistas políticos e os jornalistas inescrupulosos tiraram uma regra de ação eficiente: caluniar sem parar, que sempre sobra alguma coisa (a calúnia vem na primeira página, em letras garrafais, enquanto a retratação e o desmentido aparecem em reles corpo 8, na seção de cartas, na página 6).
Até a própria verdade literal pode ser um veículo para a falsidade e a calúnia quando colocada num contexto equívoco. Para ilustrar, Copi conta a piada do marinheiro:82 no navio, brigavam o capitão e o imediato. O imediato bebia demais, e o capitão era um fanático da abstinência. Numa das brigas, o capitão registrou o fato no diário de bordo: ”o imediato hoje estava bêbado”. O imediato se assustou, porque o dono do barco leria o diário e o demitiria. Como o capitão se negasse a retirar o registro, no mesmo dia o imediato colocou no mesmo diário: ”o capitão hoje estava sóbrio”, querendo dar a entender que só naquele dia o seu desafeto não estava bêbado. Não era mentira, mas induzia a uma interpretação mentirosa.
No cartum de Edgar Vasques, o conhecido personagem Rango pergunta, assustado com a chacina na favela: ”por que morreram?” A resposta do ”PM” encapuzado não é mentirosa:
82 Irving Copi. Obra citada, p. 95.
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porque estavam vivos, ora bolas.83 Só que não era exatamente isso que tinha sido perguntado. Nesse sentido, o sofisma provoca trocadilhos, provoca mal-entendidos, provoca piadas e tiras de humor, como essa - que, no entanto, ao mesmo tempo chama a atenção para a tragédia contida no ”argumento” e no raciocínio vicioso, circular, formador de todos os preconceitos e justificador, aposteriori, de chacinas e genocídios.
O avesso da calúnia, com poder nefasto equivalente, deriva do culto da personalidade, do endeusamento de certas figuras públicas. A publicidade abusa dessa falácia, ao vincular astros do esporte a produtos farmacêuticos, por exemplo, como se o jogador Fulano fosse também formado em Medicina, a ponto de se colocar como autoridade com direito a prescrever medicamentos. Em nome do primado da fama, subproduto daquele culto, intensifica-se a síndrome de Andy Warhol, que a formulou de maneira muito precisa: ”no futuro, todos terão direito a quinze minutos de fama”. Em função da síndrome, centenas de pessoas se submetem a humilhações apenas para aparecer por reles 15 segundos num programa imbecil de televisão. Em contrapartida, figuras de fato públicas, que se destacaram no mundo dos espetáculos esportivos e artísticos, são objeto de uma pressão desmedida para sustentar precariamente a sua imagem a toda hora ameaçada - o caso ”Ronaldinho na final da Copa da França” ilustra bem esse drama.
Por último, devemos comentar um terceiro germe formador das demais falácias, qual seja, a compulsão cientificista e matematizante para tudo medir. Grande parte de absurdos costuma se gerar quando se esquece que a Matemática estabelece menos respostas absolutamente precisas, antes limites aproximativos. Não à toa os problemas mais importantes de Matemática precisam determinar até que casa decimal se admite a resposta, deixando implícito que a resposta não pode ser mais do que aproximativa e parcial.
83 Bdgu- Vasques. O gênio gabiru, p. 28.
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Já se disse que números, massageados com um pouco de estatística, tornam-se fatos. É preciso dizer, também, que é impossível medir um conjunto; só se pode medir o que se apresente como unidimensional. Todas as medições de QI (quociente de inteligência) embarcam na falácia da medição de um conjunto complexo por instrumentos lineares.
Os defensores do QI, muitos deles pedagogos ansiosos por saberem ”que aluno devem formar”, defendem seu instrumento com base na constatação de que, sempre que o QI é medido no conjunto de uma população, sua distribuição fica bastante próxima da célebre curva de Gauss, discriminando com precisão terços superiores, medianos e inferiores de inteligência. Poderíamos retrucar afirmando que a grande maioria dos testes escolares produz o mesmo efeito, simplesmente porque desde o princípio se precisam produzir poucos alunos ”bons”, que comprovem o sucesso da metodologia, muitos alunos ”médios”, que comprovem a necessidade do professor e da escola, e poucos alunos ”maus”, que funcionem como alerta para os demais quanto ao poder da instituição, camuflado pelos seus instrumentos de avaliação.
Jacquard ainda observa que a constatação da curva de Gauss nos testes de QI é, ao contrário do que pensam seus defensores, ”uma forte indicação a favor da hipótese de que ele não mede nada”.84 Baseia-se no teorema de Liapounof, que afirma: se estabelecermos para cada indivíduo vários caracteres sem vínculo entre si (altura, fortuna, andar do apartamento em que mora, data de nascimento, tamanho do sapato, número de sapatos no armário, número de glóbulos vermelhos...) e calcularmos a média dos resultados encontrados, quanto mais numerosas forem as características, menos significativa será a média obtida, porque mais próxima da conhecida ”curva de sino” será a sua distribuição. A distribuição ”gaussiana”, então, seria uma mera ilustração de uma propriedade matemática, não conferindo a menor validade aos testes de QI.
84 Albert Jacquard. Obra citada, p. 133.
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O que se mede, principalmente, nesse tipo de teste? A rapidez. Desenvolvendo-se sob o controle do cronômetro, o sujeito sob teste sabe que tem de responder depressa. Admite-se que essa predominância é consonante com a velocidade da nossa época, que produz muita coisa que deve ficar obsoleta em pouco tempo para se poder produzir muito mais coisa, mas isto não tem nada a ver com a inteligência, antes pelo contrário: reflete uma concepção produtiva ligeiramente burra (digamos).
A rapidez é menos essencial para a construção de nossa própria ferramenta intelectual do que a capacidade de nos interrogarmos e colocarmos em questão nossa compreensão. com toda a certeza, na nossa sociedade, é quase sempre útil ter reflexos rápidos, mas trata-se de uma característica com pouco interesse em inúmeras culturas. O camponês de outrora, vivendo ao ritmo das estações, não tinha, de modo algum, de tomar decisões rápidas, mas amadurecê-las durante um tempo bastante longo. Tomava o seu tempo e não era menos inteligente do que o citadino de hoje, obrigado a enfrentar, permanentemente, um ritmo desenfreado, do qual não é o senhor.85
Observados esses aspectos sobre o sofisma, cabe pensar na origem do próprio termo, que nos obriga a ver sob outra perspectiva até mesmo o erro lógico.
”Sofistas”, no século V, eram os filósofos preparados para mostrar de que maneira se argumenta contra e/ou a favor de qualquer opinião. Pretendiam seguir um argumento aonde quer que o dito cujo os levasse, independentemente de considerações morais, cívicas ou religiosas. Entendiam que a busca da verdade, quando sincera, deve ignorar dogmas, conselhos e regras sociais: quem busca a verdade não pode saber se encontrará verdades consideradas ”boas” pela sociedade.
Outros filósofos, interessados menos na defesa da verdade e mais na defesa de determinada verdade, como, por exemplo,
85 Idem, ibidem, p. 136.
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Platão, combateram os sofistas, ajudando a forjar o sentido pejorativo de ”sofisma”. A palavra ”sophisma”, com efeito, vem do grego e pode ser lida como ”só-pensamento”, o que admite quer a perspectiva positiva dos sofistas (o pensamento livre dos interesses humanos) quer a perspectiva negativa que hoje atribuímos ao termo (o pensamento que se expressa desprezando a ancoragem nos fatos e na realidade). Tem parentesco interessante com o adjetivo ”sofisticado”, que tanto pode significar ”pedante” como ”refinado”, ”elaborado”.
Levando esse histórico em conta, precisamos compreender que um mesmo raciocínio ou texto pode ser encarado como um sofisma, se estiver, por exemplo, no discurso de um político ou na petição de um advogado, ou como estilo e verdade, se estiver, por exemplo, presente na fala de um personagem de romance. Não há, portanto, reflexão sobre o sofisma independente da observação cuidadosa do texto e do contexto.
Pensando no sofisma como um erro, temos de pensar não apenas que errare humanum est, mas que ”errar”, no sentido de tentar, de experimentar, de viajar, de errância, enfim, é também necessário, aliás inevitável. Para lidar com o erro como trampolim para o acerto, vale dizer, para novo argumento, cabe um certo esforço dialético.
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8 O ESFORÇO DIALÉTICO
Dialética é uma dama com três vestidos, um sobre o outro. Na Grécia antiga, dialética era a arte do diálogo (do logos a dois). com o tempo, passou a ser a arte de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão. Modernamente, com Hegel e depois Marx, tornou-se a arte de, no diálogo, demonstrar uma tese distinguindo os conceitos envolvidos na discussão, para compreender o movimento perpetuamente contraditório da realidade.
Desde os gregos, opõe-se à metafísica. Enquanto a dialética procura investigar os aspectos mais dinâmicos e instáveis da realidade, a metafísica estaria tentando definir os aspectos mais estáveis da mesma realidade. No limite, esta afirma que o movimento e a mudança são fenômenos superficiais, porque, conforme Parmênides, ”a essência profunda do ser é imutável”, enquanto aquela diz que tudo é movimento e portanto instabilidade - ”um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”, de acordo com Heráclito (um dos principais sofistas, também conhecidos como filósofos pré-socráticos, como vimos, páginas atrás, na fábula da família Logus).
Os partidários da metafísica opõem-se à dialética, considerando-a um exercício sofista. Schopenhauer, por exemplo, via na dialética um método sem grande valor cognoscitivo, servindo no máximo para polemizar. Levava ao extremo a recomendação de Aristóteles: não se deve dialetizar, discutir ou polemizar com quem não conheça o assunto e as regras da
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argumentação válida: contra negantem principia non est disputandum.
Os partidários da dialética costumam considerar a concepção metafísica conservadora, na melhor das hipóteses, e reacionária, na maior parte dos casos. A estabilidade desejada pelos metafísicos corresponde à estabilidade desejada pelas classes dominantes, para manter a sociedade dividida em classes e perpetuar a sua dominação.
Podemos, por um momento aristotélico (ou mineiro), procurar a virtude no meio. Os metafísicos mais inteligentes sabem ser, quando necessário para a sua argumentação, profundamente dialéticos, como o faz Schopenhauer ao combater Hegel através da sua tese sobre a ironia. Em contrapartida, os dialéticos mais conseqüentes conseguem ser, quando necessário para a sua argumentação, profundamente metafísicos, como o faz Marx ao procurar definir as bases, que precisariam ser estáveis, da nova sociedade que antevia.
Entretanto, apesar da nossa solução mineira (ou aristotélica), faremos antes o elogio da dialética, porque a ciência positivista e a escola contemporânea já puxaram de sobra a brasa para a sardinha da metafísica, enfatizando a tal ponto a estabilidade das coisas que criaram a ficção, infelizmente poderosa, ainda que anticientífica, da resposta ”certa”.
A antiga história do mestre Protágoras e seu oportunista discípulo, Eulato, ilustra, à perfeição, o desenvolvimento do nosso argumento.86 Protágoras foi um filósofo sofista que viveu na Grécia, durante o século V antes de Cristo. Da sua obra, ficou a frase: ”o homem é a medida de todas as coisas”. Ensinava a arte da advocacia (que, há quem diga, outra coisa não é do que a arte de sofismar). Eulato era seu aluno, mas, como não podia pagar os estudos, fez um acordo com o professor: só pagaria quando ganhasse o primeiro caso. Quando concluiu o curso, porém, protelou o início da sua prática profissional. Cansado de esperar pelo pagamento, Protágoras processou
86 Irving Copi. Obra citada, p. 222.
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o ex-aluno em juízo - que resolveu defender a si mesmo, confiante nas lições que recebera. No tribunal, o mestre apresentou a sua versão do caso através de um dilema esmagador:
Se Eulato perde esse caso, então, pela sentença do tribunal, terá de me pagar; se Eulato ganha esse caso, então, pelos termos do nosso contrato, terá igualmente de me pagar. Ora, ele só pode perder ou ganhar esse caso, não há outra alternativa. Logo, Eulato deve, de qualquer modo, me pagar.
O dilema é uma figura de retórica conhecida como syllogismus cornutus, porque se trata de um silogismo com duas pontas. A situação não parecia boa para Eulato, mas ele usou as mesmas armas, replicando com um contradilema:
Se ganho esse caso, então, por decisão do tribunal, que deve ser respeitada, não terei de pagar ao professor; se, todavia, perco esse caso, pelos termos do nosso contrato tampouco terei de pagar ao ilustre mestre, pois nesse caso não terei ganho, ainda, o meu primeiro caso. Ora, devo ganhar ou perder esse caso, realmente não há outra alternativa. Logo, não tenho, em caso algum, de pagar a Protágoras.
Imagine-se o leitor na posição do juiz: o que decidiria? À primeira vista, os críticos da dialética parecem ter razão. A arte do diálogo tem uma enorme tendência a ser pouco ética, visto que as mesmas palavras e a mesma forma de argumentar podem servir tanto para defender A quanto o contrário de A. Eulato fez um acordo e deliberadamente não o cumpriu, protelando a sua iniciação profissional e deixando o seu professor sem o pagamento que lhe era devido. Quando forçado a se defender, e portanto a defender o seu primeiro caso, volta as armas da lógica contra o próprio mestre para continuar não cumprindo a sua parte do acordo - o que é imoral.
Na verdade, o esforço dialético de Protágoras apenas teria começado. A pequena história não nos conta a tréplica do professor, nem qual teria sido a sentença do juiz. Portanto, é preciso trazer para esse tribunal de 2.500 anos atrás um personagem
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do ano 2500 depois de Cristo, a saber, o eminente lógico vulcaniano, Doutor Spock.
O leitor tem memória do futuro, para se lembrar de Spock? Onde nenhum homem jamais esteve? Pois então: em Star Trek VI, filme dirigido por Leonard Nimoy (que também representava Spock), ele nos dizia: ”logic is just the beginning of wisdom, not the end”.
A lógica é o começo da sabedoria, não o seu final. Protágoras se teria empolgado com os seus recursos retóricos, permitindo a réplica homóloga do seu ex-aluno. Spock, levantando a sobrancelha, desfaria ambos os dilemas com apoio no conceito com que começamos este livro: o conceito às pressuposição.
O acordo entre mestre e discípulo forçosamente pressupunha não só o compromisso de pagamento, como também o compromisso de o aluno iniciar a sua prática profissional tão logo terminasse os seus estudos. Protelar essa prática era demonstração flagrante de má-fé, que deveria ser punida não só com o pagamento dos honorários do professor, como com uma multa significativa, para que se respeitasse mais a lógica. O jovem advogado Eulato, atendo-se estritamente à letra do acordo, desrespeitava frontalmente os seus pressupostos mínimos, isto é, desrespeitava o próprio espírito do acordo.
Trazendo a pendência para o nosso momento e para a nossa preocupação com o argumento, podemos afirmar que o texto não vive, não significa, sem o contexto que o gera e mantém, contexto no qual se inserem o falante e os interlocutores, assim como os ouvintes e os querelantes. Nem Eulato, nem Protágoras e nem Spock podem esgotar todo o contexto a que se refere qualquer texto (de vez que a verdade é não-toda...), mas também não podem denegá-lo. As relações entre texto e contexto são propriamente dialéticas, o que, vale dizer, dinâmicas e permanentemente superáveis.
Caso contrário, permanecemos em paradoxos, por um lado interessantes para demonstrar a arbitrariedade e os limites do signo, por outro tão estéreis quanto os dilemas dos advogados sofistas. As diferentes variantes do paradoxo do mentiroso, por
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exemplo, podem ser desmontadas com a atenção ao contexto e aos pressupostos da interlocução.
Quando Epimênides, um cretense, diz que ”todos os cretenses são mentirosos”, se ficarmos presos à sua declaração não podemos saber se ele diz a verdade ou se mente. De maneira mais condensada ainda, se alguém nos diz, ”eu estou mentindo”, não temos como saber se a frase é mentirosa ou verdadeira, porque parece paradoxalmente mentirosa e verdadeira ao mesmo tempo, rompendo com o princípio da não-contradição. Mas, na verdade, estas afirmações não são nem verdadeiras nem mentirosas, porque dizem o mesmo que ”negócio é negócio”, ou, ”pai é pai”, quer dizer: nada. Em outras palavras, são auto-referentes, demonstrando, sim, o limite do discurso humano - limite com o qual, entretanto, não precisamos nos conformar, buscando dialeticamente superá-lo.
Quem se veda, por razões religiosas ou filosóficas, de matar um ser vivo, pode ser arrastado a uma incompatibilidade de proposições, se admite igualmente que é preciso cuidar dos doentes que sofrem de uma infecção:87 irá ou não servir-se da penicilina que pode destruir um grande número de micróbios, isto é, de seres vivos? Impasses como esse não se resolvem apenas com a lógica ou com a retórica, mas também com a lógica e com a retórica. São necessárias, ainda, escolhas morais, que só são escolhas porque não há garantia de verdade, ou, em outras palavras, porque não temos acesso direto e completo à verdade.
A dialética lida, exatamente, com a contradição, bem como com as possibilidades teóricas e práticas de superar a contradição. Os livros dos filósofos brasileiros Leandro Konder, O que é dialética (1985), e Gerd Borheim, Dialética: teoria e práxis (1977), estudam exaustivamente toda a história do pensamento dialético e os seus principais recursos, devendo, portanto, ocupar lugar de honra naquela estante das salas de aula e de professores.
87 Chaim Perelman. Obra citada, p. 230.
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No nosso livro, que é antes um projeto interdisciplinar com eixo no argumento, devemos enfatizar que a dialética, tanto quanto a lógica e a retórica, se referindo às regras e às possibilidades da argumentação, procura igualmente se aproximar da verdade, reconhecendo relações dialéticas na própria realidade.
O dramaturgo David Mamet pode então afirmar, na sua teoria sobre os três usos, ou três atos, do teatro: ”os alemães criaram e aceitaram a dominação nazista em nome da autodeterminação; nós criamos e aceitamos ignorância e analfabetismo em nome da informação.”88 As coisas convivem com os seus contrários, as sombras da realidade volta e meia tomam o lugar das coisas. Os alemães, em determinado momento, teriam criado e aceitado a dominação nazista em nome da autodeterminação, e a partir daí passaram a negar, pela guerra, a autodeterminação de outros povos. Nós, hoje, quando se publica cada vez mais e se lê cada vez menos, em nome da informação e sob a égide da World Wide Web, estamos criando, aceitando e difundindo ignorância e analfabetismo. Já comentamos, em outro lugar, como outros, antes de nós, comentaram: à expansão desmedida do poder da espécie humana, que nos permite destruir-nos completamente ene vezes, parece corresponder, dialeticamente, a redução flagrante do poder do indivíduo.
Como fomos educados numa simplificação da lógica aristotélica, tendemos a achar que pão é pão e queijo é queijo, assustando-nos com o queijo-quente, em que uma coisa se mistura com a outra e faz uma terceira. Pois é preciso aprender a pensar e aprender a ensinar, na hora em que o queijo-quente está... quente. É a hora em que a realidade derrete e se espalha, movimentando-se sob as nossas palavras.
Superam-se os sofismas e as falácias através do esforço dialético. Pascal lembra, com muita propriedade: ”o erro não é o contrário da verdade; é o esquecimento da verdade contrária”.89 Erra, portanto, quem procura a verdade como se ela existisse, e
s David Mamet. Time uses oftlie knife, p. 55.
89 Em Jean-Pierre Lentin. Obra citada, p. 177.
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não fosse, já, a própria procura em si. Erra, portanto, quem procura imobilizar um acerto qualquer, sem atentar para os aspectos inevitavelmente paradoxais e dialéticos não só da realidade que observa, como da própria teoria que constrói.
Erra, em última análise, quem tem pavor do erro e não percebe o seu valor.90 O ”erro” ensina a pensar, e não a reincidir. Mas a escola faz todo o contrário e continua a penalizar o erro e fetichizar o acerto, ao invés de desenvolver o argumento e a pesquisa da verdade - que depende de ”erros” para ser ciência e filosofia.
Em 1980, na França, fizeram uma experiência maquiavélica, cujos resultados surpreenderam até mesmo os autores da experiência. Em 15 turmas dos cursos fundamental e médio, nos testes de Matemática, propuseram-se problemas do gênero: ”num barco se encontram 26 carneiros e 10 cabras; qual é a idade do capitão?”. Ou então: ”numa classe há 12 meninas e 13 meninos; qual é a idade da professora?”.
Os pesquisadores esperavam que a maioria dos alunos percebesse imediatamente o absurdo das perguntas - o que aconteceria, imaginamos, se as perguntas tivessem sido feitas no recreio. Entretanto, os resultados são deprimentes: 90% dos alunos do curso fundamental e 30% dos alunos do curso médio combinam tolamente os dois números do problema para ”dar” uma ”solução”. Discutindo estes resultados constrangedores, os pesquisadores decidem ir mais longe e propõem a outros professores 15 problemas, dos quais 13 são do tipo acima, ou seja, problemas para os quais não há resposta possível (logo, não são ”problemas”, na acepção completa do termo). Novamente para sua surpresa, a maioria dos professores ”cai como um patinho” (a classe dos professores, portanto, demonstrou um desempenho pior do que os alunos do curso médio...).
O filósofo Daniel Dennett escreveu um pequeno artigo que deveria, como já sugerimos com outros trabalhos, também ser
90 Idem, ibidera, p. 244.
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reproduzido para professores e alunos. O artigo se chama ”Como se devem cometer erros”.91
Dennett reconhece que há momentos em que não se deve cometer erro algum, como sabem os pilotos de avião e os cirurgiões. Em outro cartum de Quino, paciente na maca chega para uma operação mas se assusta quando lê a inscrição latina que encima a sala de cirurgia: ”errare humanum est”.92 Ora, há certos erros que não se podem cometer, pensa o paciente, com boa dose de razão. Mas tanto os pilotos quanto os médicos precisam errar para aprender, devendo recorrer a simuladores de vôo e de cirurgia (cadáveres, por exemplo). A escola deveria ser, por definição, o lugar para se errar, e assim retirar a inscrição latina da porta da sala de cirurgia, lugar no qual ela se torna perversa e irônica.
Logo, na maioria dos momentos, em vez de se evitarem os erros, se deveria cultivar o hábito de cometê-los: ”em vez de renegar seus enganos, você deveria se tornar um connoisseur de seus próprios erros, analisando-os como se fossem obras de arte, o que, de certo modo, eles são. Você deveria procurar oportunidades para cometer grandes erros, só para então se recuperar deles”. À medida que a pessoa trabalha melhor com os próprios erros e percebe, relativamente surpresa, que a terra não a engole quando ela fala ”você tem razão, acho que eu cometi um erro”, torna-se muito menos provável que se cometa um erro daqueles horrendos, na mesa de cirurgia ou na pista de aterrissagem.
Quando o aluno, na sua redação, regulariza um verbo irregular, o professor não deveria considerar a ocorrência como um mero erro a ser punido e desqualificado, mas como evidência de um raciocínio válido, em que ocorre a aplicação de uma regra previamente observada. Ainda que não ”caiba” (olha só um verbo que não deveria ”caber” numa frase decente) naquele
91 Em John e Katinka Matson. As coisas são assim, pp. 151-8.
92 Quino. Obra citada, p. 33.
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exemplo, demonstra-se um raciocínio pertinente. O que o professor deve fazer é explicitá-lo e, sim, valorizá-lo, sem deixar, está claro, de corrigir a ocorrência.
Para o crítico literário, o princípio é básico. Importa menos analisar a obra que leu do que ler a leitura que fez, isto é, do que analisar-se lendo aquela obra. O que se enfatiza aqui? A necessidade primordial da segunda leitura, tanto dos livros quanto do mundo e dos fenômenos. Transpondo essa necessidade para a prática da redação, responsável pela construção dos argumentos, reforça-se a necessidade do rascunho e da reescritura, vale dizer, do momento em que se aprende com os próprios erros.
Não à toa o físico Niels Bohr afirmava: ”o oposto de uma afirmação correta é uma afirmação falsa, mas o oposto de uma verdade profunda pode muito bem ser outra verdade profunda”.93 A sentença estava de acordo com o seu conceito de ”complementaridade”, que tentava enfrentar, sem eliminar, as contradições entre as teorias da matéria.
Numa discussão entre dois cientistas, um afirma que nunca se pode resolver mais de uma dificuldade de cada vez, enquanto outro retruca que nunca se pode recuperar uma dificuldade isolada, devendo-se sempre ultrapassar várias delas ao mesmo tempo. Ambos parecem se encontrar em campos irremediavelmente opostos, até que comecem a argumentar, levando sempre em conta as objeções do outro. O primeiro cientista - tratase de Paul Dirac - pretende dizer apenas que qualquer um que procure enfrentar vários problemas ao mesmo tempo peca por arrogância, já que a ciência caminha devagar, passo a passo. O segundo - trata-se de Werner Heisenberg -, por sua vez, quer apenas assinalar que a solução autêntica de um problema difícil ”não é mais nem menos do que um vislumbre de um contexto mais amplo, um vislumbre que nos ajuda a eliminar também outras dificuldades”. Desse modo, ambas as formulações
93 Em Werner Heisenberg. Obra citada, p. 122.
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parecem conter um pedaço da verdade, indiciando não um desacordo irredutível, mas perspectivas opostas e complementares, que melhor se aprofundaram quanto mais se dialetizaram.
Os argumentos convencionais tendem a ter dificuldades com a dialética, exatamente porque não reconhecem nem os próprios erros nem admitem a força da verdade contrária. Nesse momento, abdicam da sua condição de ”argumentos” e passam à categoria inflexível dos dogmas (ou das opiniões frouxas). Nos dias que correm, a forma típica do raciocínio antidialético é o argumento que se autoconsidera ”politicamente correto”, escolhendo a sua perspectiva como a única admissível. Nesse sentido, os defensores do antitabagismo, baseados em razões absolutamente corretas - de fato, o fumo faz mal à saúde, e também por isso os dois autores deste livro não fumam - passam a discriminar e agredir as pessoas que fumam com a alegação, essa sim, contestável, de que o ar que eles respiram está sendo poluído, como se os veículos que todos continuamos dirigindo não fossem de longe os principais responsáveis pela poluição do ar (mas é mais fácil criticar o cigarro do vizinho do que a indústria automobilística ou o seu próprio sonho de consumo).
Tira de Laerte94 é emblemática dessa discussão:
94 A tira se encontra no site do cartunista: www.laerte.com.br.
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Quem afirma que o símbolo ”está proibido” se encontra na sombra, pois é ele mesmo sombra das suas palavras. O dono da camiseta com a suástica ostenta-a à luz do dia, e faz perguntas incômodas. A essência do argumento ”politicamente correto”, que não pensa sobre os seus fundamentos, é apenas sombra de discurso, sem perceber que, em determinado momento, ”the Germans created and accepted Nazi domination in the name of self-determination”. Assim como Hitler subverteu a filosofia individualista de Nietzsche e, em nome do Übermensch, do seu Super-Homem solitário e heróico, produziu o Untermensch, o Infra-homem dissolvido na Juventude Nazista, também tomara um dos símbolos mais antigos da humanidade, a suástica, que manifestamente indica um movimento de rotação em torno de um centro, representando portanto ação e perpétua regeneração.95 A suástica estiliza o movimento do próprio pensamento, segundo muitos filósofos e psicólogos, que se desenrola, propriamente, de modo não linear, mas espiralado: em círculos que progridem sempre em círculos, sem retornar, todavia, ao ponto de partida.
Resistir ao nazismo proibindo o símbolo do nazismo é decretar a vitória final... do nazismo. Pensar dialeticamente o nazismo implica desconfiar da sua derrota na guerra, percebendo como estratégias nazistas se tornaram vitoriosas posteriormente. Não precisa ir muito longe, basta pensar no grande medo que os autodenominados ”Aliados” tinham de que os alemães construíssem a bomba atômica, destruindo cidades inteiras, com a sua população civil. O medo era tanto que ”nós” construímos primeiro e lançamos logo duas, sobre duas cidades japonesas. Quem venceu? A democracia ocidental, ou o medo? Ou a Bomba?
É uma discussão - dialética.
95 Jean Chevalier. Dicionário de símbolos, p. 852.
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A REDE DE ARGUMENTOS
Se o movimento do pensamento se desenrola de modo não linear, mas espiralado, em círculos que progridem sem retornar ao ponto de partida, então toda a nossa reflexão sobre a natureza deve girar em círculos espiralados. É o que conclui o filósofo Carl Friedrich, em debate com o físico Werner Heisenberg.96
Toda a nossa reflexão sobre a natureza tem que girar, necessariamente, em círculos ou espirais, pois só podemos cornpreender a natureza quando pensamos sobre ela, e só podemos pensar porque nosso cérebro foi formado de acordo com as leis da natureza. Em princípio, portanto, poderíamos começar por qualquer lugar, mas nossa mente é feita de tal modo que parece ser melhor começarmos pelo mais simples, isto é, pelas alternativas: sim ou não, ser ou não ser, bem ou mal. Enquanto concebemos essas alternativas da maneira como o fazemos na vida cotidiana, a coisa pára por aí. Mas, como sabemos pela teoria quântica, uma alternativa não eqüivale a um simples sim ou não; implica também outras respostas complementares, em que o grau de probabilidade do sim ou do não é explicitado, bem como sua interferência mútua. Em conseqüência disso, temos todo um continuam de respostas possíveis, ou, falando matematicamente, um grupo contínuo de transformações lineares de duas variáveis complexas.
96 Weraer Heisenberg. Obra citada, p. 282.
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” Para conhecer a realidade, colocamos primeiro os óculos da hipótese - é o que nos permite arrumar os silogismos. Para sustentar as premissas, lançamos âncoras ao mar do texto, apoiando-nos em evidências provisórias, bem como em fatos (consensualmente considerados como tal). Entretanto, os silogismos não aparecem isolados e arrumadinhos, com as suas premissas e conclusão encadeadas: usualmente parte das premissas está implícita (são os entimemas) e muitos silogismos se articulam em seqüência mesclada (chamando-se, então, sorites). As relações de causa e conseqüência entre os fenômenos, e entre os fenômenos e nós, são necessárias e úteis, mas não bastam; há muitas outras formas de ligação entre as coisas do que supõe nossa vã lógica ou filosofia. É preciso ainda explorar as contradições que movem o mundo e as idéias, o que apenas um esforço dialético dá minimamente conta (embora abale, ao mesmo tempo, aquelas âncoras que se encontravam no fundo do texto). Entretanto, a dialética, por sua vez, ainda não é tudo.
Ainda não se trata do argumento final.
Na verdade, não vamos, ao menos neste livro e projeto, encontrar o argumento final, aquele que englobe todos os demais, como uma boneca russa que contém uma boneca menor que por sua vez contém outra boneca menor ainda que por sua vez... Como temos de nos aproximar do ponto final em algum lugar, a novidade avassaladora da Internet e sua linguagem ”HTML”, sigla sucinta para ”Hyper Text Marked Up Language”, nos oferece uma alternativa que combina com os impasses da ciência nesse final de século.
Os modelos binários pergunta — resposta, problema — solução, causa — conseqüência, geral —» particular, e particular —» geral foram e são produtivos até um certo ponto. Eles se combinam com outros modelos, trinários, de conhecer e de argumentar, a saber, premissa maior —» premissa menor — conclusão, todo a é Q — todo Q é P — logo, todo P é a, e tese — antítese —» síntese. Eles todavia se interrompem, ou mesmo
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falham, quando se perde de vista a sua dimensão de ”modelo”, vale dizer, a sua dimensão de conhecimento por simulação.
Todo conhecimento simula a realidade desde a construção da hipótese, por definição uma abordagem simulada de verdade. Todo conhecimento é mimético (assim como a melhor estratégia de sobrevivência é a do camaleão). Na era da informática, o pensamento assume mais claramente a sua condição mista de camuflagem e maquete, para mapear, portanto simplificar, a realidade.
Diz Pierre Lévy que ”a simulação toma o lugar da teoria, a eficiência ganha da verdade, o conhecimento através de modelos digitais soa como uma revanche de Protágoras sobre o idealismo e o universalismo platônicos, uma vitória inesperada dos sofistas sobre o organon de Aristóteles”.97 Os modelos digitais substituem, com vantagem, os modelos analógicos, mas aumentam a distância entre o chamado senso comum e a ciência. Substituir os sulcos de milimetricamente variada profundidade dos discos de vinil, que simulavam as escalas musicais, pelas fórmulas numéricas dos CD-ROMs, confere praticidade ao uso mas dificulta a compreensão, exatamente porque o nível de modelagem, de simulação, se tornou absolutamente abstrato.
O mestre Protágoras ressurge - ”o homem é a medida de todas as coisas” - porque o quadro epistemológico da Física Quântica, da Teoria da Relatividade, da Web e, é claro, da política contemporânea, é relativista. Só há uma proibição: não se pode acreditar que os modelos sejam ”verdadeiros” - todo modelo é construído para determinado uso de determinado sujeito em momento dado.
Os exercícios de simulação por computador permitem, no entender de Lévy, que ”uma pessoa explore modelos mais complexos e em maior número do que se estivesse reduzido aos recursos de sua imagística mental e de sua memória de curto prazo, mesmo se reforçadas por esse auxiliar por demais
97 Pierre Lévy. As tecnologias da inteligência, p. 125.
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estático que é o papel. A simulação, portanto, não remete a qualquer pretensa irrealidade do saber ou da relação com o mundo, mas antes a um aumento dos poderes da imaginação e da intuição”.98
A perspectiva otimista do filósofo nos parece correta, mas não anula outras perspectivas, menos positivas. Há um grande número de professores, para falar apenas de nós mesmos, que demonstra ou muita dificuldade ou muita resistência para lidar com as novas tecnologias e, em conseqüência, com as linguagens associadas. Aqueles que não sabem o que é um dríve e deixam o disquete em cima da mesa, sem entender por que o seu computador se recusa a gravar o seu trabalho no dito cujo, e aquelas que também não entendem como o aparelho de fax devolve o dinheiro que estariam mandando para as suas filhas na Europa, podem parecer apenas casos folclóricos, mas apontam para uma dificuldade intrínseca com os modelos de conhecimento por simulação, por símiles, propriamente.
O que seria, então, um argumento ”hipertextual”? Na verdade, conhecemos o hipertexto há muito tempo. Aliás, desde o início dos textos e dos tempos. Quando um versículo bíblico remete a outro versículo, assim como quando um verbete de enciclopédia remete a outro verbete, ou mesmo a um outro livro, temos o hipertexto. É ”hiper” porque explicita, na sua própria estrutura, que textos nascem de textos e geram textos, que livros se fazem de livros e fazem livros. Cada texto, cada argumento, simula, parcial ou reduzidamente, o Texto Maior a que, obviamente, não temos acesso.
Na parte sobre a preparação do argumento, falamos sobre a importância da leitura instrumentalizada, sobre o reconhecimento de índices, alertando para a necessidade de se aprender a ler, simplesmente, o sumário dos livros. O sumário, texto esquemático, esquematiza o texto a que se refere. Um ensaio acadêmico pode conter notas, ou ao ”pé” (olha a analogia) da página ou ao final, e deve honestamente apresentar a sua
98 Idem, ibidem, p. 126.
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bibliografia, isto é, os livros nos quais momentaneamente se ancorou, para ser, ele mesmo, livro. Como pode fazer citações (em corpo menor, mais destacadas da margem, por exemplo), imbricando outros textos no seu próprio texto.
A configuração do hipertexto, ao alertar para as múltiplas ligações do texto, chama a atenção para o que circula à volta, ou seja, para aquilo que chamamos de ”contexto”. O que é importante acrescentar é que a relação entre o texto e o contexto não é de mão única, com apenas esse produzindo aquele: onde um vai, o outro também vem.
Podemos certamente afirmar que o contexto serve para determinar o sentido de uma palavra; é ainda mais judicioso considerar que cada palavra contribui para produzir o contexto, ou seja, uma configuração semântica reticular que, quando nos concentramos nela, se mostra composta de imagens, de modelos, de lembranças, de sensações, de conceitos e de pedaços de discurso. Tomando os termos leitor e texto no sentido mais amplo possível, diremos que o objetivo de todo texto é o de provocar em seu leitor um certo estado de excitação da grande rede heterogênea de sua memória, ou então orientar sua atenção para uma certa zona de seu mundo interior, ou ainda disparar a projeção de um espetáculo multimídia na tela da sua imaginação. [...] O sentido de uma palavra não é outro senão a guirlanda cintilante de conceitos e imagens que brilham por um instante ao seu redor. A reminiscência dessa claridade semântica orientará a extensão do grafo luminoso disparado pela palavra seguinte, e assim por diante, até que uma forma particular, uma imagem global, brilhe por um instante na noite dos sentidos. Ela transformará, talvez imperceptivelmente, o mapa do céu, e depois desaparecerá para abrir espaço para outras constelações.”
Pierre Lévy define hipertexto como ”conjunto de nós ligados por conexões”.100 Os itens da informação não são ligados
99 Idem, ibidem, p. 24.
100 Idem, ibidem, p. 33.
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em linha, como em uma só corda com diversos nós, mas fazem suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto implica portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível, na medida em que cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira. Quem quer que comece a ”navegar” na Internet sente estimulante e dolorosa sensação de vertigem, porque, permanecendo sentado na sua cadeira, se ”perde” completamente, não sabendo como fazer o caminho de volta - Ariadne não lhe deu nenhum fio para encarar o labirinto informático.
Arlindo Machado também entende que a melhor metáfora para o hipertexto, ou para a hipermídia, é a do labirinto, pois reproduz bem a sua estrutura intrincada e descentrada.101 Na verdade, ”a forma labiríntica da hipermídia repete a forma labiríntica do chip, ícone por excelência da complexidade em nosso tempo”. O labirinto cretense, construído por Dédalo, não era propriamente uma armadilha ou uma prisão, funcionando como um desafio para medir a astúcia do visitante. Pode-se escapar do labirinto pulando os seus muros, mas o que interessa é explorá-lo. O melhor percurso não é aquele que permite chegar mais depressa ao fim, mas o que possibilita visitar o maior número possível de lugares; ”resolver” o labirinto implica percorrê-lo, e não achar uma saída.
Diz Arlindo:
Todo texto, mesmo o texto linear e seqüencial, é sempre a atualização (necessariamente provisória) de uma infinidade de escolhas, num repertório de alternativas que, mesmo eliminadas na apresentação final, continuam a perturbar dialogicamente a forma oferecida como definitiva. Ao longo do processo de escritura, o texto sofre o fogo cerrado dos críticos imaginários que atormentam o autor, multiplica-se numa profusão de possibilidades (que depois se rasuram ou se apagam), bifurca-se diante das soluções diferenciadas.
101 Em Diana Domingucs. A arte no século XXI, p. 149.
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Modernamente, com o surgimento de uma crítica que investiga a gênese do texto, através do exame dos manuscritos ou rascunhos originais, é possível tornar visíveis os descaminhos da obra, as soluções que foram abandonadas, as versões que não chegaram à forma final, toda uma pluralidade, enfim, que precisou ser sacrificada para que o texto pudesse tomar a forma de obra publicável. Essa crítica tem demonstrado que a escritura, no seu momento genético, é sempre plural; ela se dá como feixe de possibilidades e a grandeza do resultado final está menos em escolher a melhor alternativa do que em dar forma orgânica à multiplicidade.102
O que o hipertexto simula, então? Talvez, a própria mente. É muito difícil, mas, se conseguirmos colocar no papel um pensamento como o pensamos (e não como o arrumamos para os outros lerem), encontraremos muito provavelmente uma barafunda completa de idéias, inclusive com palavras sobre palavras e frases sobre frases e ainda por cima múltiplas imagens ao fundo, revezando-se e sobrepondo-se como se vários aparelhos projetassem muitos slides ao mesmo tempo.
De acordo com Marvin Minsky, pesquisador de inteligência artificial do MIT, ”a mente não forma um todo coerente e harmonioso”.103 O crânio humano conteria milhares de computadores diferentes, estruturados conforme arquiteturas distintas e desenvolvidos de forma independente ao longo da evolução humana. Para ele, não haveria sequer um código ou um princípio comum de organização a todo o sistema cognitivo. O psiquismo, nesse sentido, deveria ser imaginado (porque, novamente, não podemos saber como ele ”é”) como uma sociedade cosmopolita, com todos os seus monumentos e todas as suas mazelas, e não como um sistema coerente, ou, menos ainda, como uma substância.
Então, no final das contas, quem pensa?
102 Idem, ibidem, p. 148.
103 ws Em Pierre Lévy. Obra citada, p. 164.
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Uma imensa rede loucamente complicada, que pensa de forma múltipla, cada nó da qual é por sua vez um entrelace indiscernível de partes heterogêneas, e assim por diante em uma descida fractal sem fim. Os atores dessa rede não param de traduzir, de repetir, de cortar, de flexionar em todos os sentidos aquilo que recebem de outros. Pequenas chamas evanescentes de subjetividade unitária correm na rede como como fogos fátuos no matagal das multiplicidades. Subjetividades transpessoais de grupos. Subjetividades infrapessoais do gesto, do olhar, da carícia. É claro, a pessoa pensa, mas é porque uma megarrede cosmopolita pensa dentro dela, cidades e neurônios, escola pública e neurotransmissores, sistemas de signos e reflexos.104
Uma excelente representação do pensamento múltiplo e vário que não se limita a uma linha com princípio, meio e fim podemos encontrar, curiosa e paradoxalmente, em um dos famosos desenhos de uma-linha-só de Pablo Picasso. Ele traça um centauro, misto de animal e humano, de desejo e controle, com apenas uma linha - todavia, com tantos nós, tantos contornos, tantos retornos, tantas bifurcações, que parece o próprio corpo da filosofia, que por sua vez, num gesto rápido, desenha no ar uma letra.105
A compreensão da ”rede” e da multiplicidade originária traz implicações definitivas para o ensino, para a política e para a vida cotidiana. Se a educação é prática política por excelência, lhe cabe então atuar sobretudo como intensificadora do pensamento, o que é todo o contrário da necessidade de controlar (e testar) o pensamento alheio. Em conseqüência, os professores precisaríamos abdicar de toda pretensão de controle.
Esperamos estar deixando claro, pela nossa abordagem do conhecimento (logo, do argumento) por simulação, que, caso uma escola, um grupo de disciplinas e professores, resolva
104 Idem, ibidem, p. 173.
105 Pablo Picasso. Picasso’s one-liners, p. 52.
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seguir de algum modo o nosso projeto e finalize pela invenção do hipertexto como eixo interdisciplinar, que se deve trazer à baila, nas reuniões dos mestres e nas suas aulas, toda a discussão contemporânea sobre o conhecimento, da teoria do caos e dos fractais aos diversos modelos, psicológicos e neurológicos, da mente e do pensamento.
Como é que isso se traduziria no trabalho com a redação propriamente dita? Nessa hora, o texto acadêmico, mais precisamente, o ”ensaio”, deve ser privilegiado, quer como objeto de leitura quer como proposta de escritura. Devem-se compreender e experimentar os links, as maneiras de citar e referir, os princípios éticos que regem as relações com o pensamento alheio. Dessa maneira, o ensino médio já se configuraria o que sempre deveria ter sido, a saber, um verdadeiro ciclo básico para a Universidade.
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