Gustavo Bernardo educaçÃo pelo argumento colaboração de gisele de carvalho rio de Janeiro – 2000 Copyngh, 2000 by Gustavo Bernardo Direitos desta edição reservados à editora rocco ltda rua Rodrigo Silva, 26 5° andar



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A escola torna-se um aparelho de exame ininterrupto. Compara-se, o tempo todo, cada um com todos, o que permite medir e sancionar. O exame faz a individualidade entrar num campo documentário, arquivando cada um dentro de uma rede de anotações escritas; sucedem-se boletins, relatórios, avaliações, em que não apenas mestres controlam alunos, mas coordenadores

123 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 177.

124 Jeremy Bentham. The panopticon writings, p. 31.

125 Idem ibidem, p. 43.

126 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 165.

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controlam mestres, pais controlam coordenadores, todos controlam todos. O controle, todavia, não parece garantir um melhor ensino, ou um aluno melhor, e menos ainda um professor melhor. Reúnem-se então circunspectos Conselhos de Classe para, depois de prolongadas e cansativas discussões não remuneradas, propor-se... mais controle. A semelhança com as campanhas pela reforma das prisões não é mera coincidência.

Recentemente, no Brasil, o Ministério da Educação nos oferece mais um exemplo do frisson examinante, criando o chamado ”provão” de fim de curso, nas universidades. A pretexto de examinar a qualidade das universidades, submetem-se os alunos que se graduam a um exame nacional, para conferir se eles foram bem ”formados”. Gasta-se uma fortuna para saber o que já se sabe: os alunos que estudaram em faculdades devidamente autorizadas pelo poder público são informados, pelo mesmo poder público, que foram ”mal formados”. Pressupondo que haja verdade e sinceridade nas intenções oficiais (logo, supondo ingenuidade nossa), sobraria o veredicto de ”estupidez” - por que atirar no pato (no graduando) para acertar no lago (na faculdade ruim)? - se a medida não fosse isonômica, portanto coerente, com a (ir)racionalidade dominante.

Antes, estudavam-se cuidadosamente os heróis, os reis, ou os grandes bandidos; agora, estuda-se com cuidado indivíduo por indivíduo, mas o processo não é mais o de heroificação, antes de objetivação e de sujeição. Os sujeitos tendem a se individualizar antes por desvios - por desobediência, loucura, ou delinqüência - do que por proezas. Substitui-se a individualidade do homem memorável pela do homem calculável.127 Essa é a utopia panóptica - que, para meia-sorte nossa, não se pode realizar plenamente. Detentos fogem, loucos riem de enfermeiros, alunos namoram e ”colam”, doentes desobedecem às prescrições médicas.

Freud já lembrava que o objetivo do Eu (do ego, como também se traduz) é manter a qualquer preço o controle da

127 Idem, ibidem, pp. 166-172.

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situação para conservar o prestígio. Nisto as doutrinas pedagógicas seriam eu-óicas, pois visam primordialmente ao domínio da criança e de seu desenvolvimento, implicando o desconhecimento da impossibilidade estrutural desse domínio. Não há outro domínio que o do Eu, mas trata-se de um domínio ilusório (domínio de uroboro). Na relação pedagógica, como, aliás, em qualquer relação, o inconsciente do educador possui peso muito maior que todas as suas intenções conscientes. Freud, com conhecimento de causa, incluía a educação entre as profissões impossíveis, ao lado da psicanálise e da arte de governar. As três repousam sobre os poderes que um homem pode exercer sobre outro mediante a palavra, e as três encontram os limites de sua ação, em última instância, no fato de que não se submete o inconsciente - pois é ele que nos sujeita.128

Mas, para meio-azar nosso, e dos alunos, o esforço de controle e de domínio implica conseqüências que põem do avesso princípios e ideais. O poder panóptico pretenderia eliminar a cola, o que, indubitavelmente, não consegue. Isto pode ser bom, porque significa que o indivíduo reage ao controle e à desindividualização. Mas isto mesmo pode ser mau, se termina por tornar a cola uma das subinstituições mais fortes da escola, ensinando, desde os primeiros exames, a desonestidade intelectual - mãe de todas as corrupções. Proibir promove - e promovendo, ainda assim controla. Ou, controla melhor assim. A prisão, criada para ressocializar criminosos, produz, na verdade, como pós-graduação do crime, delinqüentes em profusão. A escola, criada para ensinar e formar cidadãos, forma, também, contingentes de trabalhadores semi-honestos e semicapazes - em outras palavras, desonestos consigo mesmos e com seus parcos saberes.

São falhas ou condições do sistema? É o que se tentará responder a seguir.

128 Catherine Millot. Freud antipedagogo, pp. 149-151.

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12 À SOMBRA DO FÓRUM

Manchete do jornal O Globo, de julho de 1996, conta que a Justiça interditou o Presídio de Guarulhos, em São Paulo, transferindo os presos para outro local. Um exame técnico havia indicado que a fundação do prédio fora danificada e ameaçava desabar, graças aos túneis construídos por presos em fuga. A polícia já havia encontrado 56 túneis sob o presídio.

Como é que se podem cavar 56 túneis sob as barbas dos diretores, dos guardas e dos carcereiros, a ponto de ameaçar ruir toda a construção? A pergunta é, ao mesmo tempo, ingênua e esperta. A pergunta é ingênua, porque supõe diretores, guardas e carcereiros, todo o sistema, como unívoco, sem contradições, sem corrupções. A pergunta é esperta, porque aponta para uma excelente, ainda que casual, metáfora: o presídio que ameaça ruir, com suas fundações minadas por dezenas de túneis cavados diuturnamente pelos presos, como se fossem toupeiras que às cegas procurassem a luz - encontrando, no lugar, a delinqüência.

A prisão constrói as suas próprias cavernas de sombras, o que nos remete à afirmativa categórica de um dos mais importantes juristas brasileiros: ”a prisão não regenera nem ressocializa ninguém; perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece, é uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas onde se diploma o profissional do crime”.129 Esse jurista vê a prisão, na verdade, como uma incubadora, uma reprodutora de criminosos: ”a prisão é má por si mesma, pela própria prisão, e

129 Evandro Lins e Silva. De Beccaría a Filippo Gramática.

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o mal ainda se agrava, nas nossas penitenciárias e nos xadrezes das delegacias de polícia, pela promiscuidade, pela superlotação, pela ociosidade, daí decorrendo toda a sorte de perversões e brutalizações sexuais, que atingem, de preferência, os mais jovens.”130

Evandro Lins e Silva completa seu argumento, falando da hipocrisia do sistema penal:

Jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma outra terrível condenação: - o desemprego. Legalmente, dentro dos padrões convencionais, não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou sob o pretexto hipócrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, o excondenado só tem uma solução: - incorporar-se ao crime organizado.131

O advogado tem consciência do clamor popular por mais prisões, por penas mais duras (leia-se, mais cruéis), e, em última instância, pela pena de morte, mas não se furta a pensar a contradição embutida nesse clamor: ”os partidários da volta a métodos bárbaros de repressão. Não entendem que estão transformando homens em feras e aumentando a legião dos desajustados.”132 O que nos obriga a dar ouvidos a outro eminente jurista brasileiro, Nelson Hungria, citado por Evandro: ”o crime não é apenas uma abstrata noção jurídica, mas um fato do mundo sensível, e o criminoso não é um impessoal modelo de fábrica, mas um trecho flagrante da humanidade.” Entender o criminoso como um ”trecho flagrante da humanidade” implica admiti-lo, também, como sintoma e como sombra, quer do

130 Evandro Lins e Silva Arca de guardados, p. 240.

131 Evandro Lins e Silva. De Beccaría a Filippo Gramática.

132 Idem, ibidem.

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legislador, quer do cidadão. Exterminá-lo, pura e simplesmente, ou enclausurá-lo, não dá conta do problema social: novos sintomas e novas sombras se produzem.

No Brasil, o censo penitenciário de 1996, realizado pelo Ministério da Justiça, contabiliza números vergonhosos:

148.760 presos (15% a mais do que em 1994), com pelo menos um terço em situação irregular, isto é, cumprindo pena não em presídios, mas amontoado em delegacias ou cadeias. Só para colocar os condenados em celas minimamente decentes seria preciso construir 145 presídios, ao custo de 1,7 bilhão de reais

- o que é inteiramente inviável (logo, mantêm-se 150 mil pessoas em condições de barbárie e crueldade).

Alguns países já conseguiram avançar para privilegiar penas alternativas, que não impliquem encarceramento: na Inglaterra, o índice de penas alternativas é de 50%; nos Estados Unidos, de 68%. No Brasil? Apenas 1% (para ser exato, um vírgula dois por cento) dos condenados brasileiros cumpre penas alternativas.133 Não só fomos o último país do Ocidente a abolir a escravidão, como permanecemos na retaguarda dos retardatários. Como já admitia Beccaria, no século XVIII, e admite Lins e Silva, no século XX, a prisão é sombra da hipocrisia de um poder, ou de um fórum, que constrói imensos prédios para melhor ressocializar, de acordo com suas intenções explícitas, aqueles que se tenham desviado, sem aparentemente observar o óbvio: o efeito de fato alcançado é o avesso do efeito assumido como desejado.

O procedimento do exame, que se espalhou do tribunal à escola, passando pela burocracia e pelo hospital, intenta controlar as próprias intenções dos sujeitos, no afã de prevenir e dirigir mesmo os atos que ainda não foram consumados. A ética pragmática de Beccaria, no entanto, já admitia que ”a única e verdadeira medida dos delitos é o dano provocado à nação, e por isso erraram aqueles que pensavam ser a real

133 Dados da revista Veja de 23 de outubro de 1996.

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medida dos delitos a intenção de quem os comete”.134 Entendia, com propriedade e bem antes de Freud, que não temos nem podemos ter acesso direto às reais intenções das pessoas, porque nem podemos ter acesso direto e completo às nossas próprias intenções mais profundas - tantas vezes, sabemos o que queríamos só-depois: ”a gravidade do pecado depende da imperscrutável malícia do coração, a qual não pode ser conhecida, por seres finitos, sem uma revelação. Como, pois, poderia essa malícia constituir-se em norma para a punição dos delitos?”135

Logo, ”resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido”. O fim último de todo sistema penal, portanto, seria apenas o de ”impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo”.136 Ele admitia a prisão apenas como recurso extremo, ou, como ecoa Evandro, ”ultima ratio, ou seja, a segregação só em último caso, para os perigosos”.137 O que se viu, entretanto, foi a aplicação da prisão em todos os casos, multiplicando os problemas de verba e de superlotação dos presídios. Desde seu advento institucionalizado, crescem as críticas ao fracasso da prisão, sem que se abale seu prestígio público. As campanhas contra a impunidade exigem que se prendam mais pessoas, mesmo quando se publica que o número de crimes não diminui, que o número das reincidências aumenta, não decresce.

Texto de 1831, assinado por Julius, já compreendia:

O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado habitual de cólera contra tudo que o cerca; só vê carrascos em todos

134 Cesare Beccaria. Obra citada, p. 55.

135 Idem, ibidem, p. 57.

136 Idem, ibidem, p. 65.

137 Evandro Lins e Silva. De Beccaria a Filippo Gramática.

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os agentes da autoridade; não pensa mais ter sido culpado; acusa a própria justiça.138

A despeito, a prisão se mantém. As críticas sugerem somente reformas, dando a prisão (melhorada) como remédio da própria prisão, ”a realização do projeto corretivo como o único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade”.139 Ora; o pretenso fracasso da prisão pode estar escondendo, cinicamente, o seu verdadeiro sucesso. A hipótese de Foucault é de que a prisão e seus castigos não se destinam a suprimir as infrações, mas antes a distingui-las e utilizá-las; não visam a tornar dóceis potenciais transgressores, mas antes organizar a transgressão num sistema de sujeições. A prisão não pretenderia nem eliminar nem reduzir a criminalidade, mas antes organizá-la numa espécie de economia de poderes subterrâneos e eficientes.140

Não à toa colarinhos brancos entram na prisão apenas como diretores ou visitadores. A mais ingênua das polyanas sabe, hoje em dia, que a lei se diz feita para todo mundo em nome de todo mundo, mas na verdade, verdadeira, é feita para alguns e se aplica a outros. A prisão não teria fracassado em reduzir os crimes, antes tido sucesso em ”produzir a delinqüência, tipo especificado, forma política ou economicamente menos perigosa - talvez até utilizável - de ilegalidade”.141 A existência visível, marcada, da delinqüência, pesa sobre outras ilegalidades e revoltas populares que ameaçariam, estas sim, os poderes vigentes. Produz-se um mal menor, isto é, o sofrimento de delinqüentes e suas vítimas de ocasião, para controlar o mal maior, ou seja, o risco de perder qualquer fatia de poder. Nesse sentido, o pretenso mal menor se torna um bem: a marginalidade delinqüente se torna fundamental para circunscrever e fixar as fronteiras da sociedade.

138 Em Michel Foucault Vigiar e punir, p. 235.

139 Idem, ibidem, p. 237.

140 Idem, ibidem, p. 240.

141 Idem ibidem, p. 244.

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O caso do Rio de Janeiro, cidade em que moramos, em 1997, ano em que começamos esta pesquisa, é emblemático. A cidade se encontrava aparentemente sitiada pelos traficantes de drogas, encastelados nos morros e nas favelas. Expedições policiais e militares para desalojá-los representaram fracassos vergonhosos. É impossível compreendermos a situação se não a pensarmos como resultante de um conjunto de acordos, íntimos, entre as forças da ”ordem” e as forças, paradoxalmente muito melhor armadas, da ”desordem”. Tais acordos não precisam estar escritos, nem serem claros; basta que funcionem, à sombra, e como sombra mesma, do fórum, das leis, e do parlamento democrático.

A prisão é a região mais sombria do aparelho de justiça, e não apenas porque os seus túneis de fuga seriam um pouco mais escuros do que os corredores dos tribunais. A prisão ”é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber”.i42

Um juiz de direito lembra o serviço que o crime presta à lei:

Logo, se não há crime sem lei anterior que o defina, por outro lado não há lei sem crime posterior que a ratifique, sendo só meia verdade declarar que a lei serve ao Direito: a irreverência também serve, ao impedir que o sistema jurídico se dilua no vácuo, sem respostas. E como a norma jurídica, para sobreviver, reclama desobediências eventuais, ela própria arruma então um jeito fundamental de ser contrariada: e no simples brandir do castigo já ela excita à rebeldia pois de antemão não se anunciam penas quando se crê na força do comando. Perfeita réplica do verbo divino, a lei assim freia ostensiva através do preceito e estimula dissimulada justo mediante a propaganda da sanção com a qual de

1«Idem,ibidem,p.227.

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l

público admite previamente que será violentada, emitindo dessa maneira, como fizera Jeová, um convite tão subliminar quanto rendoso à insurreição.143

Os fatos, às vezes, mentem; contêm mentiras que, curiosamente, os esclarecem. A lei, que reprime, estimula o que reprime, será possível? Parece: ”a lei proíbe sim o uso de armas porém autoriza a respectiva fabricação e em tal quantidade que, em vez de sequer dificultar, praticamente impinge o desacato. Limita a velocidade do trânsito permitindo entretanto a produção de veículos quase capazes de voar.”144 Se correr, o bicho (a lei) pega; se ficar, o bicho (a infração) come. Somos presos por ter cão, e depois (ou ao mesmo tempo) presos por não ter cão. Trata-se de duplos vínculos: ordens que se anulam mutuamente, ordens proferidas não para serem cumpridas, mas para obrigar à culpa.

Em Bentham, isto já tinha um nome: thefiction ofGod.

143 João Uchôa Cavalcanti Netto. O Direito, um mito, p. 52.

144 Idem, ibidem, p. 98.

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13 À SOMBRA DO DEUS

A utopia panóptica - em si mesma uma obra de ficção gerou outras tantas obras de ficção. Muitos livros tematizaram o panóptico, em geral para repudiá-lo, ou exorcizá-lo. Dentre eles, o romance mais conhecido é 1984, de George Orwell, em que a figura onipresente e onividente (entretanto, inexistente) do inspetor-geral toma a forma do Big Brother, enfim, de um grande Olho que pode ver todos os recantos. Orwell escreveuo em 1948, invertendo os dois últimos algarismos para situar sua utopia negativa. Depois dele, outros autores exploraram o medo de um futuro monista e panóptico, como Aldous Huxley (Admirável mundo novo), William Golding (O senhor das moscas) e Anthony Burgess (Laranja mecânica). Mas, antes deles, um dissidente russo, Eugene Zamiatin, já enfrentava a idéia panóptica, com sua obra-prima: Nós.

Nós foi escrito em 1921, mas não o aceitaram para publicação. Lido, conforme era costume à época, numa reunião do Sindicato dos Escritores Russos, em 1923, provocou violentos ataques dos críticos e escritores do partido - exatamente porque se tratava de uma sátira cáustica às sociedades esquemáticas e totalitárias. No ensaio ”Literatura, Revolução, Entropia e Outros Temas”, o escritor defende sua opção estético-política com clareza: ”A literatura nociva é mais útil do que a literatura útil, porque é antientrópica, é um meio de combater a calcificação...”.145 Eugene mostrava-se, assim, ”mais” dialético do

145 Eugene Zamiatin. Nós, p. 9.

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que os defensores ”oficiais” da dialética. Formulava seu argumento como um paradoxo - a literatura nociva seria mais útil do que a literatura útil, isto é, do que a literatura que vê a si mesma como ”útil” à Revolução - revolução que se calcifica no instante exato em que se arrota maiúscula.

Um dos pontos altos do romance é o tributo irônico ao ”Horário, coração e pulso do Estado Uno”. A crítica ao panoptismo aqui se apresenta com todas as letras (e algarismos):

O Horário... Nesse momento, da parede da minha sala, seus algarismos roxos em campo dourado olham-me nos olhos, meigos e sérios. Involuntariamente, meus pensamentos se voltam para o que os antigos chamavam de ”ícone” e sinto um desejo intenso de compor poemas ou preces (que são a mesma coisa). Ah, por que não sou poeta, para render um merecido tributo ao Horário, coração e pulso do Estado Uno? Quando crianças, na escola, todos lemos (talvez você tenha também lido) o maior monumento literário que herdamos dos antigos - ”O Guia das Estradas de Ferro”. Mas compare-o com o nosso Horário, e verá que parece grafite na presença de um diamante; ambos são constituídos do mesmo elemento - carbono - no entanto, como é eterno, como é transparente o diamante, como brilha! Quem não perde o fôlego folheando ansioso ”O Guia das Estradas de Ferro”? Mas o nosso Horário? Ora, ele transforma cada um de nós numa imagem de aço, num herói de seis rodas de um fantástico poema épico. Todas as manhãs, com a precisão de seis rodas, à mesma hora e no mesmo instante, nós milhões de nós - levantam-se como se fossem um só. À mesma hora, num uníssono de milhões de cabeças, começamos a trabalhar; e num uníssono de milhões de cabeças paramos. E fundidos num único corpo de milhões de braços, no mesmo segundo, determinado pelo Horário, levamos nossas colheres à boca. No mesmo segundo, saímos para passear, vamos ao auditório, vamos ao ginásio para fazer ginástica Taylor, adormecemos...

Serei inteiramente franco: mesmo nós ainda não encontramos uma solução absolutamente perfeita para o problema

178
da felicidade. Duas vezes por dia, das dezesseis às dezessete, e das vinte e uma às vinte e duas horas, esse poderoso mecanismo único subdivide-se em células individuais; são as Horas Pessoais determinadas pelo Horário. Nessas horas podemos observar persianas recatadamente baixadas nas salas de alguns; outros caminhando compassadamente pela avenida como se subissem os degraus de bronze da Marcha; ainda outros, como eu agora, sentados à escrivaninha. Mas tenho confiança - e você pode chamar-me de idealista, de sonhador - tenho confiança de que mais cedo ou mais tarde conseguiremos integrar também essas Horas Pessoais na fórmula geral. Algum dia, esses 86.400 segundos também farão parte do Horário.146

A sátira contida nos romances de Eugene Zamiatin e George Orwell não se coloca por acaso, no capítulo que se refere à ”sombra de Deus”. Jeremy Bentham propõe sua Inspection House a partir de uma elaborada ontologia da ficção. Ele se preocupava menos em distinguir as ficções da realidade, ou as diferentes ficções entre si, para explorar os efeitos que a ficção exerce sobre a realidade - em outras palavras, para produzir a ficção que melhor atuasse sobre a realidade.

A semelhança com o pensamento de Platão - que proibia com o máximo rigor que se mentisse para o governo ou para o professor, mas reservava a ambos o direito de empregar a mentira como legítimo instrumento de educação, ou de governo não será mera coincidência. Também para Bentham, os poetas, como Zamiatin, seriam perigosos, porque ”mentem” para pessoas que sabem que eles ”mentem”, ou seja, porque jogam, às claras, um jogo de verdades e de perspectivas. Em contrapartida, filósofos do quilate de Platão e Bentham pretendem se reservar o monopólio da ficção, com o objetivo de melhorar a humanidade.

Miran Bozovic, na apresentação dos Escritos panópticos de Jeremy Bentham, observa: ”Aos olhos de Bentham, a

146 Idem, ibidem, pp. 26-7.

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punição é em primeiríssimo lugar um espetáculo: na medida em que a punição não é dirigida ao indivíduo a ser punido, mas a todos os demais, é que a execução da punição é um espetáculo”.147 Para Bentham, qualquer punição deve ser encarada antes de tudo como espetáculo; importa menos o seu efeito sobre quem é castigado, do que as impressões que recebem todos aqueles que vêem o castigo ou dele são informados. Na sua prisão panóptica, ocasionalmente gritos horríveis se escutariam só que não de prisioneiros, mas de pessoas contratadas exclusivamente para semelhante propósito: ”enquanto os outros pensariam que os infratores estavam sendo punidos por suas ações, na verdade, ninguém estaria sofrendo punição alguma. Um bem de segunda ordem poderia então ser produzido sem requerer nenhum mal de primeira ordem.”148 A punição aparente, fictícia, produziria um bem para todos - a ordem, a disciplina -, ao mesmo tempo que produziria nenhum mal, exatamente porque o ”mal” produzido teria sido ”de mentirinha”.

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