Todo o panóptico, na verdade, é estruturado como uma ficção. É precisamente a aparente onipresença do inspetor que sustenta a perfeita disciplina no panóptico, controlando os movimentos de transgressão entre os internos. Entretanto, como a onipresença não pode ser um atributo humano, resta forjá-la, simulá-la, quer por rondas aleatórias, quer pela arquitetura do lugar, que permite a cada um dentro das celas ser facilmente visto, ao mesmo tempo em que dificilmente vê quem o vê.
Em última análise, o inspetor perfeito, o inspetor onipresente, é aquele que nunca aparece - mas pode aparecer a qualquer instante. O inspetor perfeito é, enfim, uma voz, um olho, um ofício carimbado, uma sombra indistinta no fundo do corredor - ”da cela ele é visível como uma silhueta, uma sombra, ou um ponto opaco, escuro”.149 Trata-se da metonímia eficien-
147 Em Jeremy Bentham. Tlie panopticon writings, p. 4.
148 Idem, ibidem, p. 7.
149 Idem, ibidem, p. 13.
180 te de um poder que só pode aparecer indiretamente, por partes de si mesmo. O inspetor onipresente e onisciente acaba por se tomar um ícone do poder e, extensivamente, a própria ficção de Deus - em termos freudianos, a própria Lei Glorificada: ”é conseqüentemente a ficção de Deus que sustenta o universo do panóptico.”150
Nesse tipo de instituição, nós somos vistos, ou pensamos que somos vistos, sem vermos aquele que vê; nós escutamos uma voz, sem vermos o dono da voz. O panóptico deve ser governado por um olhar e por uma voz dessubjetivados, desconectados de seu portador.151 O inspetor torna-se, então, uma espécie de fantasma. O inspetor, em última instância, é uma entidade de ficção - ele não existe. Justamente por isto, ele pode provocar um medo superior ao de um guarda real, por mais cruel e truculento que fosse o guarda. Não temos medo de fantasmas a despeito do fato de que eles não existem, mas precisamente graças ao fato de que eles não existem.
De que, exatamente, temos medo, quando dizemos que sentimos medo de fantasmas? Ora: sentimos medo, precisamente, da invasão de algo radicalmente outro, algo absolutamente desconhecido e estranho em nosso mundo.152 Miran Bozovic faz eco a Lacan e mata a charada, mostrando como o panóptico é uma prisão construída menos com tijolos, antes, com palavras. É uma prisão feita de linguagem, se entendemos a linguagem humana como aquela que não basta, permanentemente equívoca, simultaneamente pletórica e insuficiente.
150 Idem, ibidem, p. 11.
151 Idem, ibidem, p. 11.
152 Idem, ibidem, p. 21.
181 We love God precisely because he does not exist. What we love in an object is precisely that which it lacks. But then what is it in God, who obviously lacks nothing, that we can love? In other words, if it is only giving what we do not have that counts as a sign of love, then is it even possible for God, who lacks nothing, to give anything at ali? Since God simply hás everything, he obviously hás nothing that he could give. The only thing that God, who is supposed to be a total plenitude of being, could lack, is, as Lacan puts it, precisely the principal feature of being: existence. It is an illusion to think that we love God because he is a total plenitude of being; the only reason we love him is that perhaps he does not even exist at ali. If we love God, we love him because he is a non-entity. The inspector certainly knows that, qua God, he does not really exist; qua God, the inspector only exists through an artífice, only as a fiction.153
Amamos a Deus precisamente porque Ele não existe. O que nós amamos em um objeto é, exatamente, aquilo que lhe falta. Mas então o que, em Deus, a quem obviamente nada falta, nós podemos amar? Em outras palavras, se é somente dar o que não temos que conta como sinal de amor, então será que é possível para Deus, a quem nada falta, nada oferecer? Desde que Deus simplesmente tem tudo, Ele obviamente não tem nada que pudesse dar. A única coisa que poderia faltar a Deus, de quem se supõe total plenitude de ser, é, como Lacan coloca, precisamente a principal característica de ser: existência. É uma ilusão pensar que nós amamos Deus porque Ele é uma plenitude absoluta de ser; a única razão pela qual nós O amamos é que, talvez, Ele não exista de forma alguma. Se nós amamos a Deus, O amamos porque Ele é uma não-entidade. O inspetor certamente sabe disso; como Deus, ele não existe realmente; como Deus, o inspetor existe apenas por meio de um artifício, apenas como uma ficção.
Bozovic e Lacan, na verdade, seguem ainda os passos do Sócrates platônico. No Banquete (ou, n’O Simpósio, como prefere a tradução portuguesa), Aristófanes fala do amor como
154 Idem, ibidem, p. 23.
182 um castigo dos deuses, se antes nossos ancestrais eram duplos, divididos em três gêneros: os machos, com dois sexos de homem, as fêmeas, com dois sexos de mulher, e os andróginos, que tinham os dois gêneros de sexo. Quando Zeus decidiu puni-los cortando-os em dois, desfez-se a unidade e a felicidade: cada ser passou a ser obrigado a procurar a sua metade, expressão que se deve tomar ao pé da letra. O mito de Aristófanes explica por que uma pessoa seria homossexual ou heterossexual — depende da metade perdida. Sócrates, entretanto, discorda completamente. Para ele, o amor não se destina à completude, mas sim à carência, à incompletude, à miséria, destinando-nos ora à infelicidade, ora à religião. ”Amor feliz” é uma contradição em termos; a falta de felicidade é o próprio amor. Amor é sempre busca, não fusão; sempre pobreza devoradora, não perfeição plena. Amor, enfim, é desejo, e só há desejo do que falta.
É preciso ser dois para fazer amor (pelo menos dois!), e é por isso que o coito, longe de abolir a solidão, a confirma. Os amantes o sabem. As almas talvez pudessem fundir-se, se existissem. Mas são corpos que se tocam, que se amam, que gozam, que permanecem... [...] Daí o fracasso, sempre, e a tristeza, tão freqüentemente. Eles queriam ser um só e eilos mais dois do que nunca... [...] Isso não prova nada contra o prazer, quando ele é puro, nada contra o amor, quando é verdadeiro. Mas prova algo contra a fusão, que o prazer recusa exatamente quando acreditava alcançá-la. Post coiturn omne animal triste... Porque se vê novamente entregue a si mesmo, à sua solidão, à sua banalidade, a esse grande vazio nele do desejo desaparecido.154
”Senhores, quereis ouvir um belo conto de amor e de morte?...” Assim começa Tristão e Isolda, como poderia começar Romeu e Julieta, Manon Lescaut, Lucíola ou As afinidades eletivas... Na lógica de Eros, Tanatos se impõe: os amantes
154 André Comte-Sponville. Pequeno tratado das grandes virtudes, p. 251.
183 nunca desejam outra coisa que não a morte. Amam o amor, mais do que a vida; a falta, mais do que a presença; a paixão, mais do que a felicidade ou o prazer. Nessa lógica, a verdadeira vida é ausente; o ser se encontra alhures, o ser só pode ser o que falta. Deus, portanto, só pode ser O que falta absolutamente. É em cima dessa falta, principalmente sobre a falta de Deus (da alma, enfim), que se constrói todo o panoptismo, toda a repressão calcada na falta (ou ficção) de Deus.
O escritor Fernando Savater mostra à perfeição esse sistema, usando o personagem de Swift, Gulliver, para descrever o método pedagógico do povo de Fobión.
Para los fobiones no hay más que un principio pedagógico, que utilizan como único estímulo dei aprendizaje y fijador indeleble de lo aprendido: se trata, como es natural, dei miedo. En esto quizá no difieren demasiado de lo usual entre otros pueblos conocidos. Pero su método de ensenanza rechaza el fácil expediente de establecer un juego único de prêmios y castigos, prefiriendo una dosifícación permanente del pânico y un hábil manejo de la inconcreción de las amenazas. Nadie sabe muy bien quê es lo que teme pero todo el que sabe, sabe que teme. Los maestros fobiones son a este respecto insuperables: dominan todos los resortes de la inquietud y el arte sutil de la insinuación pavorosa no tiene secretos para ellos. A los ninos, por ejemplo, no se lês castiga de un modo explícito cuando su comportamiento no está dentro de las normas admitidas: por el contrario, se lês comienza a compadecer con las más expresivas demostraciones de dolor por lo que han perdido. En un principio, como el culpable no echa en falta nada, no se inquieta por esta extemporânea solicitud de sus mayores. Poço a poço, sin embargo, comienza a sentirse menguado por la convincente insistência de los que lê rodean en que lo está; no tardará en echar de menos lo que nunca tuvo y ni siquiera conoce: finalmente, pedirá de rodillas que lê sea devuelto. Sus tutores se harán de rogar: a fin de cuentas, quizá Io que lê falta no sea tan importante ni valga Ia pena inquietarse demasiado por su perdida... Estas consideraciones aparentemente
184 tranquilizadores no hacen sino aumentar la zozabra infantil, pues dejan entrever que lo sustraido es algo irrecuperable. Guando la lección ha sido llevadaa lo suficientemente lejos como para estar seguros de que nunca será olvidada, los educadores aceptan el arrependimento del neófito y hacen profesión pública de que a partir de entonces van a tratarle como si no careciese de nada. Fijalos que no lê restituyen la convicción de su integridad, sino simplemente algo así como un sobreseimiento de la acusación de mengua. El ânimo del discípulo está en un punto tal que ya no aspira a nada más y vive ese retorno al redil con histérico alivio. Pero la sospecha de su incompletitud, junto ai temor de que esta vuelva a hacerse patente un dia, siguen ejerciendo su educativo efecto en la intimidad azarada del párvulo. A la menor recaida en su anterior indisciplina, una palabra ai desgaire lê recordará la grieta que puede abrirse en cualquier momento bajo sus pies. No suele hacer falta más para que acate con renovado entusiasmo la pauta de conducta ortodoxa. Doy fé de la excelência de este procedimiento: entre los fobiones, la posibilidad de incurrir en delito no es virtuosamente detestada, movimiento anímico que suele incluir como contrapartida una oculta tentación, sino francamente temida, pues ei pecado lês recuerda ei oculto despedazamiento primordial de sus almas.155
O inspetor, enquanto ícone da divindade onisciente, é um personagem que finge ser uma pessoa; é uma máscara que finge ser um rosto. Seu poder deriva do simples fato de não ser, o que provoca, justamente, a fobia - o medo.
O médico, ao passar muito rápido pela cama do doente, fazer hum-hum e recusar-se a explicar, com palavras leigas, o problema da pessoa, torna-se um ícone da ciência onipotente, da medicina onipresente, contribuindo para a constituição de uma sociedade hipocondríaca muito interessante - que interessa aos laboratórios farmacêuticos e aos micropoderes que enquadram e controlam o nosso corpo.
155 Fernando Savater. Criaturas del aire, pp. 136-7.
185 O alienista - psiquiatra, psicólogo ou psicanalista -, quando diagnostica esquizofrenia sem considerar a história e o contexto de cada paciente, constitui a si mesmo como parâmetro de equilíbrio, como um ícone da alma - daquilo que, em última instância, não há.
Este último personagem, ninguém o representou melhor do que o brasileiro Machado de Assis, no conto O alienista. Simão Bacamarte, seu protagonista, consegue construir, em pequena cidade do interior, um enorme asilo, uma enorme mad-house, a que apelidou de A Casa Verde. Tanto procura, tanto examina, que logo interna a maior parte da população. De princípio, não duvida de seus próprios critérios; ao contrário, reformula a teoria para adequá-la à sua prática:
A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.156
Mais tarde, depois de internar a cidade inteira, inclusive os amigos, a esposa, o padre, os políticos, o personagem machadiano efetiva o supremo paradoxo irônico, compreendendo que a saúde mental residia ”no perfeito desequilíbrio das faculdades”. Por conseguinte, a verdade última sobre a loucura apontava... para ele mesmo. Isto é, louco seria somente aquele que fosse perfeitamente equilibrado, que não ostentasse o menor defeito. Logo, Simão Bacamarte conclui, com muita gravidade, que só havia um louco na pequena cidade de Itaguaí, e esse louco chamava-se Simão Bacamarte. Então ele interna a si mesmo, e somente a si mesmo, na Casa Verde, proclamando:
A questão é científica; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.157
156 Joaquim Maria Machado de Assis. Papéis avulsos, p. 27.
157 Idem, ibidem, p. 66.
186 Professores de literatura, quando adotamos o pequeno texto de Machado, somos capazes de lê-lo ”nos lendo”? Somos capazes de ler Simão Bacamarte como caricatura legítima do cientificismo e do pedagogismo, dos delírios de controle que tantas vezes pensamos exercer, nas aulas, nos exames, nos corredores, nas noites mal dormidas corrigindo, bacamartianamente, provas mal feitas, como se pudéssemos ser justos? Como se as provas mal feitas não fossem o resultado direto, produto e sintoma indiscutível, das perguntas que fizemos, das aulas que ”demos”?
Infelizmente, não. Não percebemos sequer a crítica certeira de Machado aos arrogantes realistas de sua época - tanto, que o enquadramos, em praticamente todos os manuais didáticos de literatura, como ”realista”. A ficção é transformada em evento histórico, em ”estilo de época”, para que as ficções que fingem que não o são - as mentiras do Estado e da Escola cumpram melhor sua função, construindo as mais seguras prisões do mundo: as prisões de papel.
A ideologização da estética, que sufocou, entre outros, Eugene Zamiatin, torna-se muito mais perigosa quando se transforma em algo que já assustava Benjamin: na estetização da política. No processo de estetização da política, a humanidade faz-se suficientemente estranha para si mesma, permitindo-se viver a própria destruição como um gozo estético. Os escritores se escondem, ou são ”adotados” nas escolas para serem objeto de exame, enquanto os organizadores das paradas militares, dos programas de talk show, das semanas de cultura, dos eventos mais mirabolantes e menos estimulantes, brilham na frente dos holofotes com as suas performances.
Nas paradas militares, as armas e os uniformes brilham, o garbo e a disciplina impressionam, pode-se dizer que emocionam. Um ou outro soldado desmaia sob o forte sol de setembro (no caso brasileiro), enquanto os audazes pilotos da esquadrilha da fumaça evoluem no céu. Ninguém se lembra de que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica representam a Pátria não exatamente Amada, mas Armada, pronta a mandar jovens
187 matar outros jovens. Quando a Argentina decretou guerra à Inglaterra, por conta das minúsculas Ilhas Falkland, as mães dos soldados, quer britânicos quer portenhos, apressaram-se em tricotar casacos de lã para que os ”meninos” comparecessem ao ”teatro de operações” não só agasalhados como esteticamente bem arrumados. Para os que morreram, restaram pais orgulhosos de filhos que caíram - mas agasalhados e bem vestidos - no ”cumprimento do dever”, pouco importa o nível de estupidez do dever.
Quando as escolas promovem ”semanas da cultura”, às vezes professores e alunos se empolgam, parecendo acreditar por um momento que podem ser criativos e significativos para, na semana seguinte, retornar-se sem muito espanto à repetição estéril da educação bancária, congelando a cultura no freezer positivista. Nesse contexto, onde fica o mestre? À sombra de Deus? Representa, ele mesmo, o Deus que não há e nem pode ser? Representa, ele mesmo, a sombra de um saber que não tem dúvidas sobre sua missão, de um saber que não sabe que sabe tão pouco?
188
14 À SOMBRA DO MESTRE
Da ficção panóptica de Bentham, da ficção de Deus, chegamos à sala, como sombra da cela, daí à cola, como sombra do crime, e daí ao aluno, sombra e imagem virtual do delinqüente. As ”Luzes”, que descobriram as liberdades, bem como as igualdades e as fraternidades, inventaram, no mesmo passo, as disciplinas.158 Os mestres somos seus responsáveis (ou, seus primeiros objetos).
A disciplina fabrica, propriamente, indivíduos. Seu poder não é um poder triunfante, que se ancore no próprio excesso, mas sim um poder modesto, desconfiado, que se constrói por dentro. Seu progressivo sucesso deve-se a instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora, e sua combinação no procedimento específico do exame. ”A disciplina é uma anatomia política do detalhe”;159 detalhe que se constrói um a um, sob o princípio básico da localização imediata, ou do quadriculamento: cada indivíduo no seu lugar, e em cada lugar um indivíduo. Devem-se analisar, no sentido estrito de decompor, as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar divide-se em partes que por sua vez se dividem em subpartes.
Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o
158 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 195.
159 Idem, ibidem, pp. 128-153.
189 comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.160
Na escola, o conhecimento se fragmenta em ciências que se dizem ”exatas” (como se toda ciência não tivesse por horizonte a exatidão, ou como se qualquer ciência não fosse, por definição, inexata, isto é, aproximativa) e outras que se dizem ”humanas” (como se conhecêssemos ciências marcianas, ou eqüinas). Cada um destes dois campos se fragmenta em outros tantos, que por sua vez se fragmentam em outros tantos, ad infinitum. Na escola, ordenam-se os alunos por séries, as quais se ordenam por classes, ou turmas, as quais, por sua vez, se ordenam por fileiras e filas, de preferência com lugares marcados. Depois, os mesmos alunos são reordenados pelas notas dos exames, formando terços superiores (popularmente conhecidos como CDFs, ou, cus-de-ferro, em alusão direta ao medo do disciplinador e de seus procedimentos), terços médios (medianos, muito próximos do medíocre) e terços inferiores (compostos por alunos que aprenderam que nunca vão aprender certas matérias, ou certas habilidades, como escrever, ou contar e calcular).
Mas não basta dividir o conhecimento e as pessoas; é necessário dividir, no nível do detalhe, o próprio tempo, levando ao limite da caricatura a convenção que nos faculta ”perceber” o tempo como percebemos o espaço. Divide-se uma manhã em seis tempos, ou horas, de aula, divide-se a semana em 30 ou 36 tempos, ou horas, de aula. O requinte da divisão é tal, que o dia tende a começar em horas ”quebradas” - 7:20, 7 7:30 horas - e terminar do mesmo modo, às, digamos, 13 horas e 10 minutos. Esse esforço minucioso de organização analítica contém em si mesmo, entretanto, curioso contra-senso, como a denunciar a inexatidão da sua compulsão pelo exato, isto é,
160 Idem, ibidem, p. 131.
190 pelo controle de tudo: do aluno, do conhecimento, do tempo. O contra-senso é que, não só no Brasil, as chamadas horas-aula não são de uma hora, exata, mas de inexatos 50, ou 45 minutos. Parecem com aquele refrigerante que vendia ”um litrão” de litro e meio... Um litro não é exatamente um litro, a hora não é exatamente uma hora, como a dizer: nada é o que parece ser.
As conseqüências perniciosas de tanta ”análise”, de tanta fragmentação, são conhecidas, e exaustivamente discutidas em toda reunião pedagógica - sem que se consiga propor mudança substancial. O máximo que se sugere são rearrumações do horário, das classes, das turmas, dos alunos, de disciplinas, ou às vezes a criação de uma nova disciplina com a incumbência de integrar as demais (é a hora de Filosofia entrar no currículo e sair dele, ioiô epistemológico, ao sabor das mudanças que não mudam, e nem podem mudar, o cardápio principal).
O mesmo acontecia e acontece, como vimos, com os reformadores da prisão, quando apresentam, tautologicamente, a própria prisão como solução de si mesma, enquanto problema, sem atinar para a petição de princípio em que se incorre. Percebe-se a questão principal - a prisão como universidade do crime, ao invés de casa de correção, e a escola como lugar de demolição do conhecimento, ao invés de espaço de construção do saber. Não se suporta, entretanto, ideológica e pragmaticamente, a hipótese de abolição, pura e simples, dessa prisão e dessa escola. Logo, desviam-se os argumentos para as questões secundárias, sugerindo-se soluções meramente paliativas. Na verdade, as ”soluções” devem se apresentar entre aspas irônicas, porque continuam a ser parte do problema, isto é, efetuam o controle que criticam.
Por necessidade do argumento, embora se chova o seu tanto no molhado, cabe lembrar algumas conseqüências, diretas e indiretas, do frenesi analítico da escola: (1) a fragmentação do próprio conhecimento, criando sujeitos que, por exemplo, escrevem de modo razoável tão-somente na aula de português; (2) a fragmentação do corpo docente, formado por professores que se esbarram no recreio e desconhecem o que os
191 outros ensinam, por irrelevante para a sua especialidade como podemos exigir que os alunos considerem relevante o que nós mesmos, por conveniência e por sobrevivência, precisamos esquecer?; (3) a desvalorização, progressiva e contínua, em termos tanto morais quanto materiais, da figura clássica do Mestre, se, hoje, ”quem sabe, faz, enquanto que, quem não sabe, ensina” (e quem não sabe ensinar ”ensina educação física”, reforçando, através da piada, o antigo desprestígio platônico pelo corpo). Destas conseqüências gerais, poderíamos desdobrar outras, mas devemos fechar o foco no tema, isto é, num aspecto específico dos procedimentos de exame, na escola. Trata-se do controle da cola, ou seja, do controle dos resultados individuais dos exames.
Talvez o termo ”controle” devesse ter sido colocado também entre aspas, uma vez que esse controle efetiva-se, à primeira vista, de maneira deficiente. Como os leitores já passaram pela escola, ao menos na condição de alunos, sabem que a cola é prática corrente, a despeito dos mecanismos variados de controle. Paralelo ao ditado deprimente que nos põe ensinando em função da incompetência para fazer, determina-se ainda: ”quem não cola, não sai da escola” (a reforçar o título e a rima da segunda parte deste livro). É muito difícil encontrar aquele ou aquela que nunca tenha atirado a primeira pedra, ou surrupiado a resposta alheia, inclusive entre alunos que, mais tarde, não conseguem sair da escola (tornando-se professores). Os mais variados mecanismos de controle, com sua ineficiência, terminam por legitimar e convidar à prática da cola. Um número indecentemente pequeno de alunos, em relação ao número real de infratores, é ”pego” colando, o suficiente apenas para manter a impressão de repressão. Punem-se somente aqueles que ”colam” muito mal, somente aqueles que não respeitam o enorme esforço do examinador em não ver o que vê.
Logo, o controle deficiente da cola pode ser um procedimento bastante eficiente de promovê-la, promovendo subterrânea desonestidade e, conseqüentemente, dependência intelectual, o que seria do interesse de um sistema panóptico de organização
192 social. Da mesma maneira que a prisão fabrica delinqüentes, às avessas de sua definição como casa de correção, a escola fabrica dependentes intelectuais, às avessas de sua definição como espaço de luzes e independência intelectual. No entanto, apesar da institucionalização da cola, o professor tende a se portar de maneira pessoalmente indignada, quando ”consegue” pegar um aluno ”colando”. A indignação - ”como, você me enganou!” - oculta, a seus próprios olhos, o constrangimento de reconhecer que faz parte de um logro. Que é peça de um jogo, jogo esse que tem, como regra de ouro: que as regras não sejam claras.