Acho que havia entre os dois uma diferença de orientação, do que devia ser um serviço de informações. A declaração do Médici di- zendo que o SNI "agora seria diferente" apenas agravou sua desfeita ao não aceitar o convite prévio do Golbery. De toda forma, com o Médici, o SNI não ficou melhor. Ficou talvez até pior.
Ele conhecia o Médici como eu, do Colégio Militar. Eu era de uma turma depois da do Médici, e o Orlando de uma turma antes. Houve ocasiões em que ambos serviram no Rio Grande. Aquelas relaçôes anti- gas perduraram e se estreitaram aqui no Rio.
Vários generais queriam que o Orlando fosse o escolhido, mas ele não queria. Vinha sofrendo de enfisema havia alguns anos. Ti- nha sido asmático na infância e fumado durante muitos anos. Embo- ra já tivesse deixado de fumar, estava começando a ter dificuldades respiratórias. Veio a morrer devido ao enfisema. Creio que já achava que não teria condições... Mais tarde, quando surgiu o problema da minha candidatura, eu reagi e disse a ele: "Por que não vai ser vo- cê?" Ele me respondeu: "Eu não posso, porque minha saúde não permite".
Seu irmão Orlando conversava com o senhor sobre esse processo que resultou na escolha de Médici?
Às vezes ele ia me visitar, mas nem sempre. A única coisa que eu tinha naquela ocasião, como já disse, era um telefone na minha cabeceira. Às vezes conversávamos por telefone. #
O senhor não foi cogitado para candidato?
Mas eu também não podia! Além de doente, não fora do gru- po do Costa e Silva.
Esse processo de escolha do presidente, através de listas, causou algum trauma ou mal-estar nas Forças Armadas, ou foi, ao contrá- rio, uma forma de dar legitimidade ao escolhido dentro da área militar?
Foi, de certo modo, uma forma de dar legitimidade e assegurar apoio para o novo presidente. Não gostei da publicidade que houve. A publicidade maior, a movimentação maior foi do grupo que apoia- va o Albuquerque Lima. Mas tudo devia ter sido feito com muito
mais recato.
Mesmo dentro das Forças Armadas algumas pessoas não se com- portam de acordo com certas regras de autoridade, não é?
Claro. A corporação militar é como toda e qualquer corpora- ção. Tem de tudo. Tem gente devotada, tem gente dedicada, tem gen- te mais ou menos, tem gente menos. Não se pode pensar que seja uma organização homogênea e completamente diferente do resto do país. A mesma família que dá um político, dá um bacharel ou dá um médico, dá um militar. Os defeitos de educação ou as virtudes são os mesmos. É claro que dentro da área militar o espírito de classe tem uma importância, uma influência muito grande. O oficial vive anos e anos na caserna, convivendo e trabalhando em conjunto, o que forma e desenvolve o espírito de classe.
E as Forças Armadas, naquele momento, estavam muito dividi- das, não?
A base de todo problema era a divergência dos que queriam continuar com a linha dura e dos que queriam normalizar o país, sabendo que a normalização tinha que ser progressiva e que não se podia fazê-la do dia para a noite. #
<214 ERNESTO GEISEL>
O governo Médici era uma perspectiva de normalização?
Era. Inclusive pelo temperamento do Médici. Era um homem de bem, um homem bom. Era simpático, todos gostavam dele. Ti- nha as condiçôes para a tarefa. É verdade que não era um homem de grandes luzes, também não era um homem de trabalhar muito... Ficava nas grandes linhas. E era apaixonado pelo futebol. Naquela situação, naquela emergência, foi a melhor escolha. Quem podia ter sido se não fosse o Médici? Lyra? Muricy? Sou muito amigo do Muricy, mas o temperamento dele é impulsivo, nem sempre muito refletido.
Ainda no período da Junta, antes da posse do presidente Médici, houve o sequestro do embaixador americano. Vários grupos de es- querda estavam então optando pela luta armada. Como isso reper- cutia nas Forças Armadas?
Muito mal. Houve roubos de bancos. Quanto roubaram dos bancos? Era evidente que o dinheiro do roubo se destinava a sus- tentar a subversão armada. E o seqüestro do embaixador america- no tornou-se um problema muito sério. Houve, inclusive, na época, uma insubordinação de pára-quedistas, que, em protesto contra a negociação para libertar o embaixador americano, se recusaram a participar da parada de 7 de setembro. O comandante dos pára- quedistas era um general-de-brigada. Quando eu era presidente, veio o problema da sua promoção a general-de-divisão. Apesar de ser das minhas relações, não o promovi, porque ele revelara não ter qualidades de chefe naquele acontecimento. Mas o que se podia fazer com aquele caso de sequestro? Qual era o dilema do gover- no? Ia sacrificar o embaixador americano? Como ficariam as rela- ções com o governo americano? Acho que se tinha que negociar e li- berar aquela turma toda de não sei quantos, que foi de avião para o México. Era uma capitulação de um lado, mas, mais adiante, po- deria vir a reação.
O senhor acha que os militares se sentiam preparados para com- bater a luta subversiva?
Não, não estavam preparados. Foram aprendendo. Mas rou- bos a bancos haviam se verificado em quantidade, houve o proble- #
ma do seqüestro do embaixador, depois, em São Paulo, houve o as- sassinato de um capitão do Exército americano. Houve a morte de um líder da Oban, um empresário que dirigia uma companhia de distribuição de gás, que foi assassinado. Era um radical, contra os comunistas. Houve um atentado contra o quartel-general do II Exér- cito com um carro-bomba. Mataram um sentinela. E diversas ou- tras ações subversivas. Cada vez que acontecia uma dessas ações, criava-se um clima de exacerbação e, assim, a reação foi num cres- cendo.
Em que momento se concluiu que a polícia seria incapaz de com- bater sozinha a subversão e que seria necessário a participação das Forças Armadas?
Não tenho uma informação precisa sobre essa decisão, mas creio que foi quando a subversão passou a ser armada. Desde o co- meço a polícia coadjuvava, enquanto o papel principal coube às For- ças Armadas. Na repressão, a polícia que mais atuava era a de São Paulo.
A gente entende que violência gera mais violência. O senhor não acha que, se estivesse no poder um grupo que tivesse mais bom senso e não quisesse botar mais lenha na fogueira...
Aí vem a história do "se"... Isso tudo é muito subjetivo. Vocês acreditam que, se houvesse um grupo mais ponderado, que não botas- se lenha na fogueira e procurasse moderar suas açôes, o quadro se iria amainando e a subversão desapareceria? Mas o inverso também seria possível: se houvesse tolerância, cada vez que se fosse cedendo, os subversivos haviam de querer mais e mais e acabariam tomando conta do poder. Porque o outro lado tinha um objetivo determinado. Grande parte era realmente da esquerda comunista. Quer dizer, eles tinham uma ideologia e não parariam enquanto não conseguissem im- plantá-la. Não é verdade? Até hoje, apesar da derrocada da Rússia, ainda há um bocado de comunistas por aí, ainda que se apresentem um pouco mais pacíficos. E para nós, essa ideologia não servia. Achá- vamos que devia ser combatida. Como já disse, isso remonta aos acontecimentos da revolta de 35. Desde 35 está aberta a ferida. #
<216 ERNESTO GEISEL>
O senhor acha então que no combate à subversão o remédio foi adequado?
A subversão estava crescendo e, evidentemente, tinha que ser enfrentada. Não sei se as medidas ou os processos que foram adota- dos para enfrentá-la estavam certos, se eram os mais adequados, mas ela tinha que ser enfrentada.
Esse combate à subversão acabou dando um poder muito grande à linha dura.
Eu sei. O problema é, depois que se solta a fera, conseguir do- miná-la e prendê-la novamente. É realmente um problema difícil. Mas eles não tinham um lema de ir contra a subversão? Então eram o grupo mais indicado. Havia, entretanto, muitos que não eram do grupo e que participaram da luta.
E ofato é que esse grupo acabou se convertendo em um grupo po- deroso e autônomo dentro do próprio Exército.
Não creio que fosse autônomo, mas exercia influência junto a alguns chefes. Acho que esse grupo prosseguiu com o tempo, quan- do a situação já era outra, e veio a influenciar mais tarde, no meu governo, a candidatura do Frota. E praticamente só veio a diminuir, e a se extinguir, quando eu tirei o Frota do ministério. É possível que até subsistam alguns desses elementos com suas idéias, com sua visão da subversão. Por outro lado, até hoje não existem alguns comunistóides ainda por aí? É a mesma coisa. São fenômenos so- ciais, em que o aspecto psicológico, o espírito de grupo, a visão ca- tastrófica etc., tudo isso entra em cena e procura influenciar os que são responsáveis pela coisa pública.
Foram tempos difíceis. E é claro que, olhando para trás, a gente gostaria que certas coisas não tivessem acontecido na história do país. . .
Claro. Gostaríamos que a situação tivesse sido diferente, mas, infelizmente, há muitas cabeças que pensam, ou acham que pen- sam, e sobre elas é dificil exercer uma ação adequada. #
Foi nessa época que se criou o CIE.
O CIE foi proposto no governo Castelo, por intermédio do Cos- ta e Silva, mas Castelo não aprovou a proposta. Eu e Golbery fomos contra, mostramos ao Castelo seu inconveniente, e ele concordou conosco. Achávamos que a centralização das informações e contra- informações tinha que estar junto do governo. E esse era o órgão e a tarefa do Golbery Mas, assim que Costa e Silva assumiu a presi- dência, sendo Lyra Tavares o ministro, criou-se o CIE. Vieram, en- tão, os desdobramentos, que, no meu modo de ver, se em alguns ca- sos foram positivos, em muitos outros foram prejudiciais à imagem do governo. O CIE passou, com a capa do Ministério do Exército, a atuar independentemente, e muitas vezes efetuou ações autônomas. Nós só vínhamos a saber o que estava acontecendo no CIE depois de ocorrido.
Nós achávamos que se o SNI fosse organizado adequadamen- te, resolvia todo o problema. Seria também o caso de se acabar com o Cenimar e o Cisa. O serviço de informaçôes do governo era o SNI. Esses serviços de informações dos ministérios só se justifica- riam se fossem limitados a colher informaçôes no âmbito das res- pectivas forças e não extravasassem para a vida nacional, como ocor- reu. Como já disse, a informação que o Exército tinha que colher era relacionada apenas aos problemas dentro dele, não se tinha na- da que extravasar para a área civil. Tinha-se que saber qual o esta- do de disciplina, qual o estado de organização, quais os problemas internos, qual o grau de adestramento etc. O que interessava era o amplo conhecimento do quadro interno do Exército. "O Exército não está satisfeito porque os vencimentos são muito baixos." Era um problema. "O Exército não está satisfeito porque a alimentação não é adequada. Nessa unidade houve demonstrações de indiscipli- na, descontentamento, por causa disso e daquilo." Essas é que eram propriamente as informações que deviam interessar diretamen- te à administração do Exército. E o mais que o Exército necessita- va, como informações relativas à subversão do país, fatos que acon- teciam fora da corporação, eram próprios do SNI. Na Marinha e Ae- ronáutica do mesmo modo. Partia-se, entretanto, do princípio de que o SNI não funcionava, seja porque estava na mão do Golbery, seja por isto ou por aquilo, e resolveu-se criar um serviço próprio, #
<218 ERNESTO GEISEL>
numa superposição às vezes conflitante. Era uma mentalidade egoís- ta, que o francês usava muito e nos vendeu ensinando nas nossas escolas militares: "Nunca se é melhor servido do que por si mes- mo". Não aceitavam a idéia de cooperação ou de correlação. Já os americanos, com a experiência da guerra, insistiam, no ensino, em duas expressões: "coordenação e cooperação".
A existência de vários serviços gerou divergências e ações isola- das. Muitas vezes, a ação de um era feita à revelia do outro, cada um agindo por conta própria. #
13 - O governo Médici
Por que, no governo Médici, o almirante Rademakerfoi escolhido vice-presidente?
Primeiro, porque era da Marinha, para não mostrar exclusivismo do Exército. Depois, o Rademaker era ministro da Marinha já no tempo do Costa e Silva. Tinha feito parte do célebre comando revolucionário sob a chefia do Costa e Silva e que o Castelo se empenhou em dissol- ver, exonerando os ministros da Aeronáutica e da Marinha. Desde en- tão, o Rademaker ficou contra o Castelo, mas Costa e Silva continuou seu amigo e o defendia muito. Quando assumiu a presidência, nomeou- o ministro da Marinha. E o Médici, que conheceu o Rademaker nessa época, quando foi designado para ser presidente, escolheu-o para ser o seu vice. Rademaker não quis aceitar, mas, diante da intransigência do Médici, que exigiu a cooperação de todos, rendeu-se e aceitou.
Rademaker era considerado uma pessoa da linha dura?
Era. Integrava o grupo das "Dionnes".63
63 O termo "Dionnes", uma referência a cinco gêmeas idênticas nascidas no Canadá, foi usado para designar os cinco almirantes considerados mais radicais: Augusto Ra- demaker, Levi Aarão Reis, Melo Batista, Saldanha da Gama e Mário Cavalcanti. #
<220 ERNESTO GEISEL>
E como se deu a escolha de seu irmão Orlando para o Ministério da Guerra?
Não conheço detalhes, mas, como já disse, ele se dava muito com o Médici, desde os tempos do Colégio Militar. No governo Costa e Silva, as relações se estreitaram. Orlando se empenhou na escolha do Médici para presidente. Tinha muita autoridade e ascendência so- bre os seus camaradas, e foi o fator decisivo para que todos aceitas- sem a escolha. Era avalista do Médici junto aos demais generais.
Já que o senhor mesmo foi convidado a assumir a presidência da Petrobras, percebe-se que houve uma aproximação entre o presi- dente Médici, seu irmão e o senhor.
O convívio era muito mais com o Orlando do que comigo. Pou- cas vezes procurei ou estive com Médici quando ele estava na presi- dência. Mas o Orlando tinha muito contato. Ele gozava de toda a confiança do Médici. Acredito mesmo que em certas matérias ele ti- nha ascendência sobre Médici. Uma ascendência intelectual. Médici o ouvia muito e confiava nele.
Conta-se - não sabemos se é verdade - que o general Orlando teria dito que só seria ministro se tivesse carta branca.
Não acredito. Ele não precisava dizer isso, de certa forma esta- va subentendido. Em primeiro lugar, pelas relações entre ambos, em segundo lugar, pelo conceito que o Orlando tinha no Exército. Toda a vida ele foi um oficial brilhante. Foi muito prejudicado na época do Jango, passou quase todo o tempo desse governo preteri- do nas promoçôes, e no entanto sua conduta sempre foi exemplar. Orlando teve uma ação muito grande, no governo do Juscelino e no começo do governo do Jânio, como chefe de gabinete do ministro Denys. Tinha, como já disse, grande ascendência sobre os generais, que eram muito mais modernos do que ele. Que ele tenha imposto ao Médici "só vou se tiver carta branca", eu não acredito.
Como o senhor vê o papel dos chamados "três grandes" - Figuei- redo, Leitão de Abreu e Carlos Fontoura -, que tomavam café da manhã todos os dias com o presidente Médici?
O governo Médici se apoiou, principalmente, em três figuras: Lei- tão de Abreu, Delfim e Orlando. Delfim tomava conta da área econômi- #
ca e financeira, Leitão de Abreu, um grande ministro, era um homem da lei e manobrava na área política, e Orlando cuidava mais da área militar. O Fontoura era do setor do SNI, de informações. E o Figueire- do era o chefe da Casa Militar, da intimidade do presidente, mas sem maior expressão, e isso porque a área militar estava com o Orlando.
Então, aquela reunião matinal dos "três grandes" era mais conver- sa do que poder efetivo?
Creio que sim. Mas era conversa em que os assuntos aborda- dos eram os acontecimentos do dia.
O minístério do presidente Médici conciliou muito com os duros. Ha- via Márcio de Sousa Melo, Andreazza, Costa Cavalcanti, Buzaid...
Não creio que o Costa Cavalcanti e o Andreazza fossem muito radicais. Eles cuidavam de suas respectivas áreas. Andreazza era di- nâmico e sempre queria mais dinheiro, para fazer mais estradas, e Costa Cavalcanti era um homem inteligente e mais pacífico. Já o Márcio e o Buzaid eram radicais.
O senhor não sentia uma continuidade entre os governos Costa e Silva e Médici?
Não posso afirmar. O governo do Médici era mais dinâmico e teve que enfrentar maiores ações subversivas do que o do Costa e Silva. Não vivi muito os pormenores do governo Médici, pois estava restrito à vida da Petrobras. Minhas preocupações e minhas ativida- des eram absorvidas pela Petrobras. De muitas coisas que aconte- ciam no país eu só vinha a saber pelos jornais.
Uma vez tive uma pendência com o Delfim. Fazia parte da Pe- troquisa a Fábrica de Borracha, a antiga Fabor, atual Petroflex. Esta empresa, quando assumi a Petrobras, estava no vermelho, dando prejuízo. Eu procurava ver a causa do prejuízo e concluí que era de- vido ao preço da borracha, que o Delfim não deixava aumentar. Pa- ra combater a inflação, ele, sem maior exame, não deixava aumen- tar os preços. Depois de algum tempo e de ponderaçôes sobre a ne- cessidade do aumento, mandei um recado ao Delfim. Ao emissário dei a seguinte orientação: "Diz a ele que eu vou entregar-lhe a chave da Fabor com a fábrica fechada e noticiar o fato nos jornais, se con- tinuar nessa política de não aumentar o preço". O governo tinha #
<222 ERNESTO GEISEL>
uma empresa boa, nova, funcionando com um produto de largo con- sumo no Brasil por causa da indústria automobilística, e não podia subir o preço, apesar de os custos crescerem com a inflação. Assim o caso foi resolvido mais racionalmente, com o aumento adequado do preço. Delfim era muito centralizador dos assuntos relativos à economia. Tomava conta de tudo, conversava com o Médici, e este concordava com o que ele queria fazer.
O governo Médici teve a característica de estimular um certo tipo de ufanismo, com campanhas do tipo "Brasil grande", "Brasil, ame-o ou deixe-o". Foi a época do "milagre econômico"...
Eles tinham as suas razões para isso, porque tanto o Médici quanto o Costa e Silva se beneficiaram muito do que foi feito no governo Castelo, com a ação do Bulhões conjugada harmoniosa- mente à do Roberto Campos. Ambos, prestigiados pelo Castelo, se entenderam muito bem, sem divergências, e implantaram uma polí- tica financeira e econômica que, embora tenha posto o país no co- meço em recessão, deu resultados e frutos que foram aparecendo depois. A inflação caiu, a produção aumentou, o balanço de paga- mentos melhorou. Os resultados positivos alcançados beneficiaram o governo do Costa e Silva e mais ainda o do Médici. Delfim, que já vinha tratando do problema financeiro no governo Costa e Silva, continuou com o Médici, centralizou e trabalhou no sentido de de- senvolver o país, sobretudo com crédito externo. Naquele tempo o crédito externo era barato, os juros muito baixos e as ofertas de re- cursos para o país eram grandes. Delfim trabalhou muito com cré- dito. Ele dizia: `Já que nós não temos poupança própria para apli- car no país, vamos aproveitar a poupança dos outros que está dis- ponível, para o nosso desenvolvimento". Assim, ele desenvolveu o país, em muitos setores da produção. Vivia-se relativamente bem, tendendo para o pleno emprego, embora os reajustes de salários não fossem os desejados. A inflação continuou diminuindo. Daí, com o Brasil ingressando no Primeiro Mundo, veio o slogan "Nin- guém segura mais esse país!" Ainda mais quando, com o nosso fu- tebol, conquistamos o tricampeonato mundial. Médici teve um pa- pel importante nessa vitória, porque influiu na nossa representa-
ção, inclusive na escalação da delegação brasileira e na escolha
dos técnicos.
Quem fazia as campanhas publicitárias do governo?
A Aerp, órgão de relações públicas do governo Médici. Por ou- tro lado, havia medidas coercitivas, como a censura à imprensa e a repressão contra a guerrilha, contra os problemas criados pela sub- versão. Ações adversas, como o seqüestro de embaixadores, criaram problemas complexos para o país no quadro internacional. Houve, conseqüentemente, uma forte repressão. Acusam muito o governo pe- la tortura. Não sei se houve, mas é provável que tenha existido, prin- cipalmente em São Paulo. É muito difícil para alguém como eu, que não participou nem viveu diretamente essas ações, fazer um julga- mento do que foi realizado. Por outro lado, parece-me que, quando se está envolvido diretamente no problema da subversão, em plena luta, não se consegue, na generalidade dos casos, limitar a própria ação. Houve aí muita cooperação do empresariado e dos governos estaduais. A organização que funcionou em São Paulo, a Oban, foi obra dos empresários paulistas. As polícias estaduais também parti- ciparam da repressão. O problema da subversão tinha caráter nacio- nal, e o seu combate, principalmente por isso, devia ser feito pelas Forças Armadas. A polícia, em geral, não tinha organização para es- sa luta. Contudo, a de São Paulo muito atuou. A do Rio também participou. Na realidade, a polícia não foi preparada para esse tipo de luta. Ela é mais uma polícia de ocorrências do dia-a-dia, pega um ladrão, prende um assassino etc. No caso, havia um confronto ideológico, uma luta civil, na realidade uma guerra civil, embora de reduzidas proporções, mas abrangendo praticamente todo o territó- rio nacional.
Àquela altura o senhor também achava que o país estava vivendo uma guerra?
Achava que era um confronto que era preciso enfrentar. Acha- va que era uma questão que tinha de ser liquidada. O Brasil não podia estar vivendo situações como a de meia dúzia de esquerdis- tas seqüestrarem um embaixador! Ou roubarem bancos! E havia conluios nessa história. Parte do clero estava envolvida, apoiando a subversão ideologicamente, apoiando os estudantes. Estes eram explorados pela religião e por meia dúzia de líderes. Havia a parti- cipação do exterior, de Cuba principalmente. Havia líderes tradi- cionais, como Marighella. Mais tarde surgiu Lamarca, com suas #
<224 ERNESTO GEISEL>
guerrilhas, e que teve de ser liquidado. Era essencial reprimir. Não
posso discutir o método de repressão: se foi adequado, se foi o me-
lhor que se podia adotar. O fato é que a subversão acabou. Quan-
do assumi o governo, havia ainda casos isolados em que a linha
dura se engajava, mas o problema do Araguaia tinha acabado.64 O
de Caparaó estava extinto. No Sul, as ações do Brizola também ti-
nham cessado.
A impressão que se tem é de que, às vezes, não se considerou
muito os métodos para acabar com a subversão...
É possível. É possível que muita coisa que foi feita não se de-
vesse fazer. Mas não podemos julgar isso à distância, sem estar vi-
vendo diretamente o problema. A posição do outsider, daquele que
está de fora e que, depois do fato passado, faz a sua crítica, é mui-
to diferente da daquele que viveu diretamente o problema e enfren-
tou a situação. Houve o caso em que jogaram um caminhão com ex-
plosivos no prédio do Quartel-General em São Paulo e mataram
uma sentinela. Invadiram o Hospital Militar de São Paulo e se apode-
raram do armamento da guarda. Vários casos dessa natureza consti-
tuíram uma verdadeira provocação. Dá-se então a represália e, na
hora da represália, muitas vezes se chega ao excesso. Então aí vem
a tortura etc.
Entre os militares, há desde os que negam a existência da tortura
até os que a justificam.
Eu acho que houve. Não todo o tempo. Uma das coisas que
contavam do Frota era que ele, quando comandou o Exército no
Rio, impediu a tortura. Ia lá, visitava a área onde estavam os pre-
sos e impedia a tortura. Acredito. Mas já outros... Por exemplo, um
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