O que acontece é que o Castelo achava que o período revolu- cionário já estava praticamente extinto, e que era preciso entregar o #
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governo aos políticos e restabelecer a ordem constitucional no país. Restabelecer a vida normal da nação. Ele achava que com a nova Constituição, com o regime de dois partidos e talvez com a institui- ção da eleição indireta, Costa e Silva ficaria enquadrado e o país po- deria caminhar normalmente. E os outros achavam que não, que era preciso continuar contra a corrupção e contra o comunismo. Is- so era continuar com a revolução. Até quando, eles não diziam.
Era a tal história da ausência de projeto.
Havia um projeto, um projeto negativo, mas havia. Costa e Sil- va talvez não participasse diretamente dele. Era um homem pacífi- co. Sua tendência pessoal era governar tranqüilamente e normalizar a vida do país. Estou convencido disso. Entretanto, ele era um ins- trumento na mão daquela gente, sobretudo do Portela. Portela, a pre- texto de diligentemente auxiliá-lo, mandava e desmandava, porque o Costa e Silva não queria se dar ao trabalho.
Na ocasião eu disse ao Castelo que o governo Costa e Silva ia ser um governo ruim, e ele respondeu: "Não, você está enganado. O Costa e Silva, com essas coisas que eu estou fazendo, com a nova Constituição, os problemas no campo econômico-financeiro resolvi- dos, com a reforma administrativa..." - e citou várias outras medi- das - "vai ficar enquadrado. Vai ficar tolhido por esse conjunto le- gal e vai seguir o caminho certo, porque não poderá fugir disso. Ele estará cercado por esses dispositivos". Eu disse: "Presidente, o se- nhor está enganado. O Costa e Silva, na primeira dificuldade séria que tiver, vai derrubar tudo isso e se tornar ditador". E foi o que aconteceu. Na primeira dificuldade, ele baixou o AI-5.
O atentado que Costa e Silva sofreu em Recife, no aeroporto de Guararapes, teria influenciado esse endurecimento?61
É, talvez os outros explorassem... Foi um atentado praticado pela esquerda. Ele escapou porque seu avião se atrasou, mas houve
61 No dia 25 de julho de 1966, um atentado no aeroporto de Guararapes, Recife, con- tra o então ministro do Exército general Artur da Costa e Silva. matou o almirante Nélson Fernandes, diretor da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, e o jornalista Édson Régis. #
mortos e feridos. . . Esse fato pode ter influído e servido de justificati- va para a repressão. São, da minha parte, apenas suposições. Supo- nho que quem deve ter influído muito no espírito do Costa e Silva, na ambição de se tornar presidente, deve ter sido dona Yolanda. Ela era conhecida como a pessoa que conduzia o Costa e Silva para a frente, impulsionando-o. Era ambiciosa.
Seu irmão Orlando também era contrário à candidatura Costa e Silva?
Era, mas não tanto quanto eu. Ele tinha tido um incidente com o Costa e Silva logo no começo da revolução. Quando a revolução venceu, em 64, ele foi designado para comandar a Vila Militar. Mon- tou o seu comando, e um belo dia começaram a mexer nesse coman- do, designando outros oficiais para lá à sua revelia. Ele não aceitou e em conseqüência foi exonerado. Foi essa a turra que ele teve com o Costa e Silva. Mas depois as coisas foram se acertando, e ele foi nomeado comandante do Exército do Sul. Talvez meu irmão fosse um pouco mais habilidoso do que eu. Ele tinha as suas idéias pró- prias, o seu ponto de vista. . . Já contei que no golpe do Lott eu fui contra e ele foi a favor. Por isso é que nós dois, às vezes, tínhamos as nossas divergências. Contudo, creio que ele não morria de amo- res pelo Costa e Silva.
E Pedro Aleixo? Como surgiu sua candidatura a vice-presidente?
A candidatura do Pedro Aleixo surgiu por iniciativa do Castelo para melhorar o quadro sucessório com um vice que era político e civil, e assim demonstrar que o governo não era um governo militar. Pedro Aleixo era semelhante ao seu antecessor, Alkmin, mas de melhor caráter e um pouco mais ativo. Era um político, um homem da lei, tinha sido líder do governo na Câmara. Foi ministro da Edu- cação do Castelo. Quando saiu do Ministério da Educação, o pes- soal fez um versinho malicioso cujo final dizia: "Nada fiz, nada dei- xo. Assinado: Pedro Aleixo"... Ele se dava bem com o Costa e Silva, que aceitou a indicação, dizendo inclusive que Aleixo era o nome do seu pai. #
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O senhor no Gabinete Militar certamente acompanhou o dia-a-dia dessa transição para o governo Costa e Silva.
Sim, mas nem sempre com profundeza. Eu procurava ser mui- to cioso do meu lugar. Tinha intimidade com o Castelo, conversava com ele, trocava muitas opiniões com o Golbery, mas em muitas coi- sas eu não me envolvia. Não futricava. Podia conversar com o Caste- lo e dar as minhas opiniões. As coisas que eu ouvia, que chegavam a mim, e que eu achava que tinham substância, eu as transmitia a ele. Mas tinha cuidado em não ultrapassar os limites da minha fun- ção. #
12 - O fechamento do regime
O endurecimento ocorrido durante o governo de Costa e Silva te- ria sido menos de responsabilidade dele mesmo do que do grupo que o sustentava?
A responsabilidade era toda dele, como chefe, como presiden- te. Diante das dificuldades criadas pelos estudantes e pelos políti- cos, fez o AI-5. Mas o fez sob uma certa pressão.
Quem eram os mais radicais do grupo que o apoiava?
Eram Portela, Andreazza, Albuquerque Lima, Sizeno, Costa Cavalcanti, Boaventura. . .
O senhor não ficava preocupado vendo que Jaime Portela era a eminência parda do governo?
Preocupado, propriamente, não. Achava, entretanto, que era ruim. Mas esse sentimento não era só com relação ao Portela. Havia outros cuja posição era difícil aceitar. Em todo caso aquela situação não me afetava pessoalmente, embora o Portela vivesse dizendo que o Exército estava farto dos Geisel... Mais tarde, no tempo do Médici, quando meu irmão era ministro do Exército, houve uma cerimônia #
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de fim de ano, e os generais que estavam em Brasília foram cumpri- mentá-lo. Quando chegou a vez do Portela, o Orlando lhe disse: "Olha, Portela, o meu desejo é que nesse próximo ano você conspire menos". Espantado, ele perguntou: "Eu, ministro?" E o Orlando: "Sim. Você vive conspirando. Você pensa que eu não sei o que você anda fazendo por aí?" Já no meu tempo, ele montou um gabinete em Brasília para a propaganda da candidatura do Frota. Depois se reconciliou com o Figueiredo, porque o Figueiredo nomeou um filho dele diretor do Banco do Brasil. Figueiredo o comprou. Mas pouco tempo depois ele morreu, de câncer.
Por que Jaime Portela teve tanta influência?
Ele teve influência junto ao Costa e Silva. Era operoso, tomou a si os problemas, e Costa e Silva descansou. Dizem que foi ele quem convenceu o Costa e Silva a entrar na conspiração contra o Jango e a participar da revolução. Porque o Costa e Silva, até en- tão, tinha sido contra a revolução. Havia apoiado o golpe do Lott, quando estava no comando da Brigada de Infantaria em Caçapava, São Paulo.
Entre os oficiais superiores do Exército predominava naquela épo- ca a perspectiva de endurecimento ou a de retorno à normalidade?
No Exército, como em toda corporação, toda coletividade, rela- tivamente a uma ideologia ou a determinado problema, uns são radi- calmente a favor, outros radicalmente contrários. E a grande maio- ria permanece indecisa, quando não indiferente, muitas vezes olhan- do para onde vai pender a balança. Havia uma minoria radical, que ficou em torno do Costa e Silva; havia a grande massa que estava alheia e que, evidentemente, com o Costa e Silva no poder, acabou por apoiá-lo, e havia uma outra parte que era pela normalização, que não conspirava, e estava com o Castelo.
Como foi sua experiência de ministro no Superior Tribunal Militar durante o governo Costa e Silva?
Na composição do Tribunal, havia 11 ministros, dos quais quatro eram civis, togados, três eram generais do Exército, dois al- #
mirantes da Marinha e dois brigadeiros da Aeronáutica, além de um procurador-geral. E, subordinadas ao Tribunal, havia auditorias, que eram de primeira instância e funcionavam nas áreas dos exérci- tos, dos comandos navais ou das zonas aéreas. O Tribunal tinha, na- quela ocasião, dependendo de seu julgamento, em grau de apelação ou de revisão, dois tipos de crimes. Um tipo eram os crimes milita- res. O processo, nesse caso, era distribuído a um ministro militar, que seria o seu relator, e a um ministro civil, que seria o revisor. Co- locado em pauta pelo presidente, realizava-se o julgamento em ses- são plenária. O relator fazia a exposição da matéria e emitia seu pa- recer e voto. A seguir o revisor se pronunciava, concordando ou dis- cordando do relator, e dava seu voto. O procurador-geral também tinha a palavra e falava sobre o processo, dando as razões da acusa- ção. A defesa, por seu advogado, justificava o pedido de absolvição. Debatida a matéria pelos ministros, e se não houvesse pedido de vis- tas por qualquer um deles, procedia-se ao julgamento final, com o voto de todos. Era, na realidade, o processo normal de julgamento dos tribunais. Os crimes civis - que constituíam o segundo tipo- obedeciam a idêntico procedimento, mas nesse caso o relator era um ministro civil, e o revisor era militar.
Qual era a proporção entre processos militares e civis?
Não tenho dados para dizer. Talvez, naquela época, houvesse mais processos civis. Mas eu não gostava de ser juiz. Não era do meu feitio. Não tinha vocação de magistrado. Julgar os outros é mui- to ruim. Eu estava ali porque era uma saída para os meus escrúpu- los em relação ao governo Costa e Silva.
Os processos chegavam ao Tribunal bem instruídos?
Em geral os processos eram bem instruídos, mas se estives- sem incompletos ou mal instruídos, voltavam para a primeira instân- cia ou eram anulados. No julgamento, se não houvesse base suficien- te para condenar, não se condenava. Havia advogados que funciona- vam no Tribunal. Um dos que mais deblateravam era Sobral Pinto, que foi advogado do Prestes. Havia outros, como Técio Lins e Silva, estreando, e Heleno Fragoso. #
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Passaram pela sua mão processos relativos a estudantes?
Sim. Naquele tempo também tivemos lá o problema de Capa- raó.62 Havia guerrilhas se organizando. Caparaó foi liquidada pela polícia de Minas Gerais quando ainda estavam numa fase preparató- ria.
Quando chegava um processo relativo a estudantes, como o se- nhor se sentia, julgando os mais jovens?
É o problema dos jovens... Recordo que havia um ministro ci- vil que, nos debates, dizia: "Estudante não comete crime". Eu retru- cava: "Não vamos ao exagero". Crime é uma coisa, estudante é ou- tra. Há atitudes, gestos, arroubos de estudantes que são perdoáveis, inclusive porque são jovens, imaturos. Mas um jovem de 20, 21, 22 anos que pratica um crime, que rouba, que mata, não é responsá- vel? O que se pode fazer, levando em conta o fato de ele ser jovem, é admitir atenuantes e dar-lhe uma pena menor. Mas o fato de ser estudante, eu não achava que fosse suficiente para absolvê-lo. Se ele dá um tiro e mata uma pessoa, deverá ser absolvido porque é estu- dante?
Como o senhor encarava as passeatas estudantis, o congresso da UNE em Ibiúna? Isso não lhe lembrava seus tempos de mocidade, quando o senhor, como nos contou, também gostava de ser contra o governo?
Não recordo como foi Ibiúna. Mas a questão é que na minha juventude, quando nós éramos contra o governo, não partíamos pa- ra a ação. Achávamos que era ruim, que era malfeito, e ficávamos nisso. Quando alguém se envolvia na sedição era expulso, e mesmo condenado. A absolvição de estudantes que infringem a lei constitui, de fato, um incitamento, um estímulo para novas ações subversivas.
62 No início de 1967 houve uma tentativa de guerrilha rural na serra do Caparaó, en- tre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Os guerrilheiros, em sua maioria ex- militares expulsos da corporação no início do governo Castelo Branco, foram desco- bertos e capturados pela Polícia Militar de Minas ainda durante a fase de treinamento. #
O ano de 1968 foi um marco no Brasil e no mundo. Por aqui surgi- ram algumas greves operárias, houve mobilização de estudantes... Como o senhor via esse clima de radicalização? Achava que leva- ria inevitavelmente a um confronto?
Era, de fato, um clima de radicalização, uma reação contra o governo. Na realidade, os acontecimentos, as perturbações que na época se verificaram em outros países, particularmente na França, promovidos principalmente pela classe estudantil, fortemente infiltra- da e seduzida por agentes comunistas, estimularam e incentivaram os estudantes brasileiros. E evidentemente o governo, tanto quanto possível, fez a repressão. Na França, De Gaulle resolveu o proble- ma. A polícia entrou, houve muita cacetada, muita violência.
Mas a impressão que se tem hoje é de que o governo exagerava muito o peso desses movimentos, bem como os métodos para com- batê-los. A Passeata dos Cem Mil, por exemplo...
Não creio que tenha havido exagero nos métodos do governo. A Passeata dos Cem Mil não era apenas de estudantes. Havia ali ou- tra gente. E o que queria o Vladimir Palmeira? O que quer até hoje o presidente da UNE? Estudar, para mais tarde ser útil à nação? Ou se tornar estudante profissional e explorar o espírito da classe? Os estudantes levaram a questão no deboche. Foram conversar com o presidente da República em mangas de camisa, tratando-o por "vo- cê". Será que isso é democracia? Líder trabalhista também acha que deve ir em mangas de camisa conversar com o presidente da República. Há certas coisas que envolvem certa mística, exigindo res- peito e acatamento.
O senhor acha que o AI-5 foi inevitável, ou havia outra saída?
Agravaram o problema sem necessidade. Foi o discurso do Márcio Moreira Alves na Câmara dos Deputados que acelerou o pro- cesso. O discurso foi desaforado, aconselhando entre outras coisas que o povo não fosse assistir à parada de 7 de setembro, em repú- dio ao Exército. Os ministros militares tomaram isso como ofensa. Exigiram a cassação do mandato político do Márcio, Costa e Silva os apoiou, mas o Congresso votou contra a cassação. Daniel Krie- ger, que era partidário do Costa e Silva e senador com largo tirocí- nio, disse-lhe que o Congresso não aprovaria a cassação e aconse- #
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lhou-o a retirar a proposição. Deu-se aí o choque entre o Congresso e o governo, e Costa e Silva, pressionado por alguns líderes milita- res, inclusive os ministros, possivelmente a contragosto, acabou edi- tando o AI-5. Para tanto muito influiu o ministro da Justiça, Gama e Silva, que era homem querido e da absoluta confiança do Costa e Silva, desde a primeira fase da revolução. Era um exaltado, e já ti- nha preparado um AI-5 ainda mais forte. A proposta apresentada por ele foi abrandada pelo Costa e Silva, e o AI-5 foi aprovado pe- los ministros.
O pronunciamento do Márcio Moreira Alves, em si, não tem significação alguma. Foi importante em função do quadro que o país estava vivendo. O que eles poderiam ter feito era uma desforra pes- soal com o Márcio. Resolvia-se o problema muito melhor, em cará- ter particular. É preciso, entretanto, ver o quadro que o país estava vivendo. Deve-se levar em conta o clima, os diferentes acontecimen- tos que iam se somando, criando um ambiente perturbador, um qua- dro subversivo e de desmoralização que ia se ampliando, tendo ressonância e acabando por descambar na reação. Olhando-se fria- mente o acontecido em relação ao Márcio, conclui-se que foi uma bo- bagem sem maior importância. Mas quem tem responsabilidade e es- tá vivendo o dia-a-dia, vai vendo mais uma coisa e mais outra se amontoando, até que chega a um ponto de saturação e parte para a reação.
Ainda mais quando quem está no poder é um grupo que não sabe negociar.
Não creio que o governo não soubesse negociar. Basta que se considere a audiência que Costa e Silva deu aos estudantes e que te- ve de interromper. A negociação era inviável. Não justifico o AI-5, mas entendo por que foi feito. Costa e Silva só tinha duas soluções: ou fazia o AI-5 ou renunciava. Não tenho dúvida em relação a isso. Sua situação, naquele momento, era muito pior que a que o Castelo passou em Itapeva quando do seu próprio discurso, que já mencio- nei. Castelo nunca chegou a esse ponto. Na minha opinião pessoal, Costa e Silva, como presidente, fez o AI-5 contrariado, porque esta- va sofrendo grandes pressões da área militar. Não era só dos três ministros militares, não eram só o Lyra, o Rademaker, o Márcio. Ha- via vários outros. O general Sizeno Sarmento comandava o I Exérci- to, e um general vinculado a ele foi ao palácio várias vezes queren- #
do falar com o Costa e Silva, que não o recebeu. O presidente ficou a noite inteira estudando e pensando. No outro dia convocou o mi- nistério, que aprovou o ato. O máximo que conseguiu foi abrandar um pouco o texto que o Gama e Silva havia preparado.
Antes do AI-5 e depois, Costa e Silva procurou melhorar a situa- ção fazendo uma nova Constituição, ou remendando a existente, com a colaboração íntima de Pedro Aleixo. Dizem que a nova Constituição estava praticamente pronta quando ele teve o acidente vascular. Pode- se concluir que ele tinha a convicção de que o AI-5, que tinha sido a solução na emergência, e que ele teve que adotar, não era uma solu- ção definitiva. Era preciso promover uma solução constitucional.
Os governantes achavam realmente que o país estava à beira de uma guerra?
Não sei. Mas havia uma subversão. Qual o objetivo dos mani- festantes, de Márcio Moreira Alves e outros empenhados nas mani- festações? Desmoralizar o governo, derrubar o governo? Não posso avaliar corretamente o que aconteceu, porque eu estava inteiramente alheio a isso. No Superior Tribunal, não participava de reuniões, dis- cussôes etc. com pessoas vinculadas ao governo. Conhecia os fatos através dos jornais e conversava apenas com alguns amigos. Como disse, estava desligado do governo.
E o general Golbery? O senhor continuava a manter contato com ele?
Não, nessa época nós quase não tínhamos contato. Ele estava no Tribunal de Contas, em Brasília, e eu no Superior Tribunal Mili- tar, que nessa época funcionava no Rio.
O senhor acompanhou a doença do presidente Costa e Silva e a formação da Junta?
Aí aconteceu o seguinte. Em 1969, comecei a sentir fortes do- res no estômago, e os médicos não atinavam com o que era. Em maio tive uma crise maior, e meu médico diagnosticou uma pancrea- tite. Fui transportado para o Hospital do Exército, onde entrei num rigoroso tratamento. Estive lá entre a vida e a morte. Vencida a cri- se, após alguns dias, foram verificar a causa da pancreatite, e con- cluíram que era a vesícula que estava cheia de pequenas pedras. #
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Eram pedrinhas translúcidas que não apareciam na radiografia co- mum. Fui então operado da vesícula. A operação transcorreu nor- malmente, e, no fim, um médico mais graduado que estava assistin- do determinou que me fizessem uma transfusão de sangue. O opera- dor lhe disse que não era necessário, porque eu havia perdido muito pouco sangue. Mas diante da insistência daquele médico, aca- baram por fazer a transfusão. Dias depois, tive alta e fui para casa. Passados uns três ou quatro dias, comecei a ficar verde, amarelo, e com febre. Estava com hepatite. Fiquei espichado em cima de uma cama até o começo do mês de novembro. De maneira que todas aquelas questões decorrentes da doença e da morte do Costa e Sil- va, assim como da escolha do Médici, eu as vivi em casa. Pelo telefo- ne, no meu quarto, recebia informaçôes de amigos sobre o que ocor- ria. Também por visitas que me faziam, ficava a par dos aconteci- mentos. Já em convalescença, já autorizado a caminhar, recebi o convite do Médici para exercer a presidência da Petrobras.
Por que Pedro Aleixo não tomou posse?
Fala-se em golpe de 64, mas o golpe realmente foi dado quan- do impediram Pedro Aleixo de tomar posse. Por que Pedro Aleixo não assumiu? Porque era um político, e fora o único membro do governo a votar contra o AI-5. Achavam que ele não ia dar conta do problema. A primeira coisa que haveria de querer era derrubar o AI-5. Por isso, concluíram que não podia assumir.
O senhor acha que outro político civil que estivesse no lugar de Pedro Aleixo assumiria?
É difícil dizer. Mas, pelo estado de ânimo que prevalecia no go- verno, talvez eu possa responder negativamente. A não ser que fosse um civil muito entrosado com a revolução e com a área militar.
O general Muniz de Aragão criticou muito Costa e Silva naquela época.
Sim. Ele inclusive achou que havia desonestidades no governo e, por isso, teve um conflito com o ministro do Exército, o Lyra Ta- vares. Meu irmão defendeu o Aragão, de quem era muito amigo. Sei que o Aragão era muito impulsivo e atacou Costa e Silva e sua famí- lia, mas não conheço detalhes. #
Como se processou a consulta sobre candidatos à sucessão de Costa e Silva entre os oficiais das Forças Armadas?
O quadro do que aconteceu nessa época foi muito lamentável. Havia um general mais moço, Afonso de Albuquerque Lima, da ar- ma de engenharia, que tinha sido ministro do Costa e Silva, no mi- nistério que fora do Cordeiro: o dos Organismos Regionais. Albu- querque Lima fora afastado em virtude de um atrito com o todo po- deroso ministro Delfim Neto, e, conseqüentemente, passou a dirigir uma espécie de oposição, principalmente no meio militar. Ele ambi- cionava a presidência da República. Começou a se cercar de milita- res mais jovens, e boa parte do pessoal de engenharia do Exército se engajou na sua campanha. Quem era mais a favor do Afonso era o Rodrigo Otávio - aí vinha a mentalidade do companheirismo da arma, da engenharia. Mas o comando superior do Exército não con- cordou com esse aliciamento. Primeiro, porque o Afonso era gene- ral-de-divisão e os outros eram todos generais-de-exército. Estes úl- timos, mais responsáveis, trocaram opiniôes e acabaram por fazer uma espécie de escrutínio. Muricy foi um que muito trabalhou nes- se problema. Creio que ele já fez um relato, inclusive na imprensa, de como foi feita a escolha do novo presidente. Dessa escolha, e muito por influência do meu irmão Orlando, resultou a aprovação do Médici.
Médici comandava o Exército do Sul. Era um general muito benquisto, desde o Colégio Militar e durante toda a sua carreira. Foi um aluno médio, nunca se destacou como estudante, mas era muito bom jogador de futebol. Fez carreira como oficial de cavala- ria, principalmente no Rio Grande do Sul, onde foi chefe do estado- maior do Costa e Silva quando este foi comandante da região. Quando o Costa e Silva assumiu a presidência, foi chefiar o SNI. Fa- lava-se nele para ser o chefe do Gabinete Militar, mas o Portela se atravessou, e ele acabou indo para a chefia do SNI. Era benquisto, como já disse, não era radical, e tinha a vantagem de ser amigo do Costa e Silva. Não iriam escolher alguém que tivesse sido hostil ao Costa e Silva.
Médici também havia sido colega do Golbery, e ambos ha- viam conspirado pela revolução. Mas depois se desentenderam. Ti- veram um incidente que veio até a repercutir no meu governo. No governo Castelo Branco, Golbery chefiava o SNI. Quando termina- va o período, Médici foi escolhido para o seu lugar, e Golbery man- #
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dou-lhe um recado dizendo que estava à disposição para mostrar- lhe o que era o Serviço, como funcionava, fazer-lhe um briefing. Médici não foi. E numa entrevista que deu, declarou: "O SNI agora vai ser diferente, vai ter uma outra orientação..." Golbery se cho- cou com isso. Passou a chefia do SNI para um subordinado ime- diato e se afastou. Já tinha sido nomeado ministro do Tribunal de Contas. Quando Médici foi assumir a chefia do SNI, estranhou que Golbery não estivesse presente para lhe passar as funções e, des- de aí, se tornou inimigo do Golbery. Achou que era um desaforo o Golbery não lhe ter passado o cargo. Criou-se, assim, uma ques- tão insanável. 212>210>208>206>204>202>200>
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