História do brasil moderno ernesto geisel



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Como eram suas relações com a Igreja?

Quando fui escolhido, um dos problemas que me preocupavam era o fato de que não sou católico. Por origem, embora não pratique muito a religião, sou luterano. Mas nunca fui muito apaixonado pelas divergências religiosas e tinha muitos amigos na Igreja católica, como ainda tenho. A Igreja tinha uma certa expectativa em relação a mim. Golbery andou conversando com dom Arns sobre a distensão. Na mi-

79 Trata-se de José Cortez Pereira de Araújo. #



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nha posse, compareceram vários bispos e cardeais, o que me impres- sionou. Concluí que esse comparecimento traduzia a esperança da Igreja de que, no meu governo, a situação interna se normalizasse.

Tive boas relações com alguns bispos, principalmente com o cardeal do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales, que conheci quando era bispo auxiliar na Bahia. Outro com quem tinha boas relações era o cardeal Vicente Scherer, do Rio Grande do Sul. Havia alguns de quem eu não gostava, inclusive os dois Lorscheider. Dom Aloísio, que estava no Ceará, era mais tratável doque dom Ivo. Também não gostava do cardeal de São Paulo, dom Arns, e do bispo Casaldá- liga. Os problemas que havia eram com a Igreja progressista, que era favorável às açôes da esquerda subversiva e as fomentava. Essas questões eram analisadas e comentadas nas minhas audiências com o núncio. Nós nos entendíamos muito bem. Quando ia a Roma, ele me perguntava se havia alguma coisa que pudesse conversar com o santo padre. Eu mostrava o que o Casaldáliga estava fazendo, certas atividades da Conferência dos Bispos, e os problemas que surgiam. Quando voltava, ele vinha me visitar. Eu perguntava: "Conversou com o santo padre?" Ele: "Conversei e muito. Presidente, o senhor te- nha paciência porque a Igreja resolve, mas é muito lenta". Eu con- cluía: "Vai resolver essa situação quando eu não for mais presidente, não é? Está muito bem!" Morreu poucos anos depois. Era um ho- mem muito interessante, cordial e compreensivo.

Ao longo de seu governo o general Golbery continuou mantendo contatos com a Igreja?

Sim, quem conversava mais com eles era o Golbery. Podia con- versar mais desembaraçadamente do que eu. Contudo, pessoalmen- te, não tive maiores conflitos. Uma ocasião tive uns problemas no Pará, porque o general Euclides Figueiredo, irmão do João, prendeu um bispo, que mandei soltar.

Outro bispo que teve problemasfoi dom Adriano Hipólito, de Nova Iguaçu.

Foi o bispo que um dia apareceu nu depois de ser sequestra- do. Aconteceu no meu governo, mas não se conseguiu apurar a auto- ria. Creio, contudo, que foi o pessoal da linha dura. #

Quais eram exatamente as restrições que o senhor fazia a esses bíspos de quem o senhor não gostava?

Era a ação que desenvolviam. Não ficavam confinados aos seus problemas religiosos, envolviam-se em problemas que eram atribuição inerente do Estado. Tinham uma atuação nitidamente de apoio à esquerda subversiva, faziam uso da palavra contra o gover- no, exploravam a classe estudantil, defendiam o asilo a subversivos, a invasão de terras etc.

As igrejas protestantes procuraram se aproximar do governo?

Alguns me procuraram, mas não me interessei. Recordo que uma vez fui a um culto na igreja protestante em Brasília. Como a Igreja católica, a protestante também tinha infiltrações da esquerda. Num seminário no Rio Grande do Sul, em São Leopoldo, havia mui- ta infiltração esquerdista, fomentada por pastores alemâes. Como muitos padres católicos, eles também exploravam o problema da re- forma agrária, da distribuição de terras a colonos pobres.

No início de seu governo, quando o deputado baiano Francisco Pinto criticou a visita do general Pinochet ao Brasil, e o caso foi enca- minhado ao Supremo Tribunal Federal, íssofoi considerado um sinal de que o senhor não pretendia usar o AI-5. Era essa a sua idéia inicial?

Em relação a esse caso, entre os crimes que a Lei de Seguran- ça Nacional capitulava estava a ofensa a chefes de Estado de países amigos. Esse deputado faltou com o respeito ao chefe de Estado de um país amigo, e, ainda mais, um chefe de Estado em visita ao Bra- sil. Era criminoso por crime capitulado em lei. Já que havia a lei, achei que ela devia ser aplicada. Por que iria usar a legislação excep- cional se dispunha da lei normal?

Minha idéia, na verdade, era tanto quanto possível evitar o uso do AI-5. Mas aí se manifestou a falta de compreensão da oposi- ção. Dei demonstraçôes, em discursos e em atos como esse do Fran- cisco Pinto, de querer normalizar a vida do país, acabar com a cen- sura à imprensa etc. Eles consideraram isso uma fraqueza e resolve- ram passar ao ataque. Foi uma manobra imprópria - pelo menos assim considero. Com isso, me obrigaram a reagir. Há um princípio de que a toda ação corresponde uma reação equivalente e de senti- do oposto. Se eu não reagisse, evidentemente meu poder iria se en-

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fraquecendo, e aí uma série de projetos que eu pretendia realizar, in- clusive a abertura, talvez se tornassem impossíveis.

Quer dizer o senhor precisava ter o controle da transição?

Sim, evidentemente. Mas quero reafirmar que nesse problema a oposição não quis saber de diálogo e não facilitou minha ação. Pe- lo contrário. Criou dificuldades. A abertura talvez tenha demorado muito por isso. Se a oposição se tivesse conduzido de outro modo, certamente a abertura se realizaria muito antes.

Há uma expressão sua, divulgada pela imprensa, de que o senhor "não morria de amores pelo AI-5".

É possível que eu tenha dito isso. De fato, eu não morria de amores por ele. Mas era um instrumento de que eu dispunha. Era preciso mostrar à oposição que, afinal de contas, havia poder. Que tinham que ser comedidos, porque eu tinha poder para reprimir.

O que, basicamente, o senhor não aceitava na oposição?

As expressões, o tom, a virulência das manifestações.

Uma certafalta de respeito para com a autoridade? É isso que o senhor quer dizer?

É. E a falta de respeito para com uma autoridade que tinha que vencer o problema da abertura na sua própria área. É evidente que se eu não agisse contra a oposição com determinadas formas de repressão, inclusive com a cassação, eu perderia terreno junto à área militar. Sobretudo na área mais exacerbada da linha dura. Era preciso de vez em quando dar um pouco de pasto às feras. Não pen- sem que sou maquiavélico, mas vamos analisar a realidade. Eu não podia dar-lhes argumentos contra mim: "O senhor está sendo tole- rante, está sendo ridicularizado, está sendo desmoralizado pela opo- sição". Não podia deixar que chegássemos a isto.

Diante de que situações concretas o senhor chegava à decisão de que ia usar o AI-5 efazer cassações?

Geralmente diante de críticas a militares, que tinham refle- xos muito sensíveis na área militar revolucionária. Como já disse, #



eu sofria pressão dos dois lados: da oposição e da área militar, in- satisfeita com as críticas e as expressões usadas. Quando eu verifi- cava que o problema era mais grave, pela análise que eu fazia ou que o SNI me dava, ou pela conversa que tinha com o Golbery, às vezes eu chegava à conclusão de que a melhor solução era cassar. A cassação tinha suas vantagens, no sentido de arrefecer o ímpeto da oposição, que passava a ter receio das conseqüências se conti- nuasse no mesmo estilo, e de arrefecer a pressão da área militar. Passei todo o meu governo nesse jogo. Foi isso que levou à demo- ra da solução final, de acabar com o AI-5. Enquanto a oposição se mostrava agressiva, não era possível aliviar e satisfazê-la. Eu não podia me afastar dos militares, que, a despeito da cooperação da Arena, eram os principais sustentáculos do governo revolucio- nário.

E nesse jogo o senhor conseguia impor a sua autoridade como che- fe político e como chefe militar?

Acredito que sim. É uma história muito difícil de ser conduzi- da e vivida por quem se considera responsável pela condução nacio- nal. Não desejo isso a ninguém.

Em 1976foi promulgada a Lei Falcão, também considerada uma maneira de calar a oposição. Como o senhor a via?

A propaganda no rádio e na televisão é um problema muito di- fícil. Quem assiste àqueles programas? São um bocado indigestos, não é? Muitas vezes, em vez de fazerem uma propaganda positiva, ela se torna negativa. Não sei se é assim com todos, mas acho que muita gente não gosta, inclusive porque fica privada daquele horário da televisão em que queria ver qualquer outra coisa.

Pela Lei Falcão, a participação dos políticos na televisão era muito sumária. É claro que, com isso, havia de certa forma a defe- sa da revolução. Porque deixar a televisão aberta para a oposição fa- zer a propaganda que quisesse, nos termos que ela gostaria de fa- zer, seria criar um maior número de áreas de conflito. A Lei Falcão foi muito criticada, porque seria como colocar uma rolha na boca

da oposição. #



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Em abril de 1977, o governo colocou o Congresso em recesso por meio de um ato complementar e baixou uma série de medidas queficaram conhecidas com o nome de "pacote de abril". Como foi esse processo?

Aconteceu o seguinte. Pouco tempo depois de eu ter assumido, fui fazer uma visita de cortesia ao Supremo Tribunal Federal, por- que quase todos os ministros tinham ido à minha posse. Conversa- mos muito, e eu lhes disse que achava que a nossa Justiça não fun- cionava bem, sobretudo pela morosidade das decisões, pela possibili- dade de muitos recursos nos diferentes níveis, que representavam delongas nos processos. Havia processos que rodavam anos e anos, como até hoje. Eu achava que era preciso estudar uma maneira de reformar o Judiciário e torná-lo mais ágil, sem prejuízo do valor das sentenças, que deviam ser justas e de acordo com a lei. Além disso, havia outro problema. O juiz, como é natural, goza de uma série de direitos. É inamovível, não pode ser demitido, tem uma sé- rie de garantias para o exercício da função. Mas deveria haver, ao la- do dessas garantias, fórmulas ou maneiras de punir ou afastar o mau juiz. Era preciso fazer alguma coisa, providenciar uma reforma no Poder Judiciário, e eu achava que não havia ninguém mais capa- citado para trabalhar nesse sentido do que os ministros do Supre- mo Tribunal Federal, não só porque eram a cúpula do poder, como porque eram homens que tinham larga experiência e cultura. Essa foi, mais ou menos, a abertura do problema.

Os ministros concordaram comigo e aí levaram um tempo enor- me para chegar a certas conclusões. Fizeram um inquérito em todo o país sobre os problemas do Poder Judiciário e no fim chegaram a uma reforma que importava alterar alguns dispositivos da Constitui- ção. Não era uma solução completa como eu desejava, mas sempre era um avanço, e o projeto de lei foi enviado ao Congresso. Antes dis- so, conversei com Petrônio Portela, e ele foi se entender com a oposi- ção, que se mostrou, de certa maneira, favorável ao projeto, sugerindo algumas modificações que foram feitas por nós. Eu estava convicto de que assim o projeto da reforma iria ser aprovado. Não havia ali nada que se relacionasse com a revolução, nem com matéria partidária. Era uma medida que, realmente, podia trazer grande benefício ao país.

Contudo, na votação, eram necessários dois terços dos votos, e nós não tivemos esses dois terços. A oposição votou contra. Assim, não haveria reforma do Judiciário. Qual era a solução que eu tinha?

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Pensei muito e achei que era um desafio da oposição. Era uma de- monstração de força usada em detrimento do real interesse da na- ção. Eu também estava preocupado em permitir que o meu sucessor pudesse governar em melhores condições. Uma dessas condições es- tava ligada à eleição dos governadores, em 1978. Eu vinha matutan- do como isso podia ser feito. Em vez de voltar ao voto direto, eu achava mais conveniente manter o voto em dois níveis. A única ma- neira de fazer isso era realmente através de um ato de força. Creio que o problema da reforma do Judiciário me incentivou a fazê-lo de uma vez e então juntei as duas matérias. Para realizar a reforma e atender ao problema de viabilizar o novo governo, resolvi colocar o Congresso em recesso e baixar um novo ato que a oposição chamou de "pacote de abril". Há nele muita coisa que hoje em dia pode ser criticada, mas eu tinha reais motivos para fazer o que fiz. Fez-se a re- forma do Judiciário, que, entretanto, não deu os resultados que se esperava, mas o general Figueiredo pôde levar avante o problema da abertura, até chegar a dar a anistia. Essa é a história, a gênese da re- forma do Judiciário e do pacote de abril. Nele muita gente cooperou, principalmente Golbery, Petrônio, Marco Maciel e Falcão. Nós nos reu- nimos nos dias da Semana Santa no Riacho Fundo, tivemos muitos debates e por fim fomos redigindo a lei.

Uma das medidas tomadasfoi aumentar o mandato presidencial para seis anos. Por que os senhores imaginaram que assim seria melhor?

Até hoje eu acho que é melhor. Agora, na reforma da Constitui- ção, querem reduzir para quatro anos, acrescentando uma excrescên- cia, ou seja, permitindo a reeleição do presidente da República, dos governadores, dos prefeitos. Todos podem ser reeleitos. Que pressão vai exercer o prefeito do município do interior para ser reeleito, que marmelada de favores vai conceder? O presidente da República, que- rendo ser reeleito, com os poderes que tem, o quanto irá manobrar? Um governador, querendo continuar? Será que isso se conjuga com a índole brasileira? Quatro anos, para quem quer realizar um programa de governo, é muito pouco. O presidente da República da França tem sete anos e pode ser reeleito por mais sete. Não sei se essa medida vai dar certo no Brasil. Acabar com o vice-presidente da República? O que vai acontecer? Se o presidente, em qualquer circunstância, fica im- pedido, ou porque morre, ou porque está doente, assume o presiden- #

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te da Câmara, que dentro de um certo prazo tem que fazer nova elei- ção. Vem um novo período eleitoral, e muito dinheiro se vai gastar, porque uma eleição é cara. Gastam os candidatos e gasta o governo. E é mais uma fase de agitação dentro do país. Por que acabar com o vice-presidente? Por que acabar com o vice-governador? Será que é por economia de salário? Quando fiz reformas políticas, o objetivo foi criar condições favoráveis para o futuro governo, que, sem elas, teria sérias dificuldades. O que eu fiz foi com o conhecimento do Figueire- do. Eu queria habilitar politicamente o país para que o novo presiden- te pudesse enfrentar o problema da abertura e assim governar.

Por que o senador "biônico"?

Veio dentro desse mesmo objetivo. Houve ainda uma outra medi- da importante: acabou-se com a exigência do quorum de dois terços para a reforma da Constituição. Às vezes há necessidade de uma re- forma da Constituição no interesse do país, e por questões de politica- gem, de um partido em oposição, não se faz. O que aconteceu com a reforma instituída pelo pacote de abril? Levantou-se novamente a questão do divórcio, que fora proposto no Congresso muitas vezes, so- bretudo pelo Nelson Carneiro, sem obter a aprovação de dois terços. O divórcio não passava nunca. Aí votaram, o divórcio obteve apenas a maioria de votos, e foi aprovada a correspondente reforma da Consti- tuição. Deputados e senadores vinham a mim perguntar o que eu achava, qual era o meu ponto de vista, o que eu queria. Eu respondia que não queria nada, que votassem de acordo com as suas consciên- cias. Cada um vote como quiser. Sou favorável ao divórcio, mas não influí. Posso ter influído indiretamente, estabelecendo o dispositivo da maioria simples, não com o objetivo do divórcio, mas das reformas de que o país precisava. Fiz mal ao Brasil? Quantos casais que esta- vam vivendo muito bem, mas em situação irregular perante a socie- dade e a lei, hoje em dia legalizaram a sua situação e vivem felizes?

Antes de tomar a decisão de decretar o recesso do Congresso, o senhor reuniu o Conselho de Segurança Nacional?

Creio que não reuni, embora não tenha certeza. Contudo, mui- tas vezes eu já tinha discutido com o Golbery com o Petrônio e com outros ministros a necessidade de assegurar condições melhores do que aquelas que eu tinha para governar ao presidente que me sucedes- se, que teria mais dificuldades no governo. Eu, afinal, tinha o AI-5, ti- #



nha o poder de cassação, mas quem viesse depois de mim não teria mais nada disso. Era preciso que se desse a ele alguns instrumentos que lhe permitissem assegurar a sua autoridade e continuar no cami- nho de arcar com os resquícios próprios da revolução, principalmen- te decretando a anistia. Essa questão não surgiu inopinadamente. Já vinha sendo debatida e discutida entre nós.

Daí a sua idéia de salvaguardas constitucionais?

Sim. Foi uma outra fórmula para dar certo poder ao presiden- te. O estado de sítio era mais complexo, enquanto a imposição da salvaguarda era mais simples.

Na época dofechamento do Congresso o senhor sofreu pressões da área militar para cassar deputados?

Não. Mesmo porque minha resposta foi rápida. Houve a vota- ção da reforma do Judiciário pelo Congresso, e a decisão de fechá- lo veio logo em seguida. Por isso é que eu creio que não houve reu- nião do Conselho de Segurança.

Pouco depois dessas medidas, o senhor utilizou em uma entrevis- ta a expressão "democracia relativa".

E até hoje, para mim, a democracia é relativa. Temos uma de- mocracia dos teóricos, dos homens do direito, que partem de Mon- tesquieu e na sua imaginação idealizam a democracia. Mas essa de- mocracia só é viável para o homem perfeito. Se você quiser adotar medidas democráticas e ao mesmo tempo garantir a viabilidade de um governo - estou dando uma opinião pessoal a respeito da ques- tão, que difere muito do que é corrente por aí -, será necessário ve- rificar o estágio de civilização do povo, ver o que é esse povo, quais as suas tendências, como se comporta, que nível cultural atingiu, quais as suas aspirações. Os democratas da democracia plena acha- vam que não, achavam que o grande problema da democracia era vo- tar. Então, gritaram pelas "diretas já, vamos votar, temos que votar". Mas o problema não é apenas votar, não é apenas o povo escolher o seu dirigente através do voto. Escolheram deputados à vontade, mas escolheram deputados que são um bando de ladrões! Há muito depu- tado decente, correto, cumpridor dos seus deveres, mas também há muito deputado que não vale nada! #



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Eu não posso pegar o que se usa e se faz nos Estados Uni- dos, ou na Alemanha, ou na França, ou na Inglaterra, e transplantar integralmente para aqui. Não é judicioso. O país é diferente! É mui- to mais atrasado! O povo é mais inculto e de outra natureza! Quan- do eu falava em "democracia relativa", eles diziam: "Não, democra- cia não se adjetiva! Nós queremos democracia plena!" Como se esse "plena" não fosse uma adjetivação! Acho que um dos erros que o Brasil tem cometido, ao longo de sua história republicana, é viver nesse sonho de uma democracia no papel, mas que depois, na práti- ca, não se cumpre. A diferença entre o estado ideal que se coloca nos papéis e aquele que realmente existe na vida cotidiana do povo é muito grande! Será que nós vamos querer viver nessa ficção? Não será melhor viver a realidade? E procurar modificar progressivamen- te a realidade até chegar a esse estágio mais avançado?

O senhor leu Oliveira Viana e Alberto Torres?

Li, e muito, Oliveira Viana e alguma coisa de Alberto Torres. Foram grandes homens. Posso não concordar com tudo o que pensa- vam mas, na essência, estão certos. O que eu trago em mim, de um lado, vem evidentemente das minhas observações, dos dados da mi- nha vida, da minha experiência profissional. Mas sofro muito a influ- ência natural dos livros que li. Muitos eu descartei, mas de outros incorporei certas idéias, certos princípios, certas análises. Sob esse ponto de vista Oliveira Viana é, talvez, uma das melhores figuras. Há uma grande diferença entre o mundo ideal e o mundo real. E nós temos que pensar e viver o mundo real. Claro que sem muito conformismo, e sempre tendo em mira o ideál que queremos algum dia atingir, nós ou as futuras gerações. Mas temos que ser realistas nas nossas ações. Não podemos sair voando. Quando se começa a voar, diz-se bobagem. E assim o país não progride, vive na inflação crescente, no desemprego e na miséria. O povo está com fome, e aí resolvem distribuir comida, o que, ao longo do tempo, não é solu- ção. É medida momentânea, que não dura.

Para negociar a distensão, que era uma das principais metas de seu governo, foi criada a chamada "míssão Portela". Como se defi- niu com quem o senador Petrônio Portela deveria conversar?

A história do Portela vem de mais longe. Logo depois que eu assumi, havia o problema da eleição dos novos governadores pelas #



assembléias estaduais. Tinha-se que examinar, dentro da Arena, quais os melhores candidatos, e pedi ao Portela que percorresse o país e procurasse nos quadros políticos do partido quais eram as fi- guras que poderiam aspirar aos governos estaduais. Portela viajou e trouxe relatórios com muitas informaçôes que me facultaram esco- lher a maioria dos novos governadores. Nem todas as escolhas fo- ram felizes. Houve algumas, como já mencionei, independentemente do Portela, que não satisfizeram. Mas desde aí o Portela sempre ficou muito ligado a mim. Quando eu tinha problemas no Congres- so, no partido, o homem que eu chamava em primeiro lugar para conversar era ele. Também conversávamos sobre certos pontos dos meus discursos, certas reuniões que fazíamos, certas comemorações. Quando resolvi fazer a abertura, pedi a sua cooperação. Tivemos vá- rias reuniões, inclusive com Golbery e Figueiredo, para trocar idéias sobre a extinção do AI-5 e a elaboração da necessária legislação. A colaboração do Portela, como em outras oportunidades, foi muito lú- cida, objetiva e eficiente. No governo Figueiredo ele foi ministro da Justiça, mas pouco tempo depois faleceu, prematuramente.

Quanto à missão Portela, não havia agenda. Ele conversava muito com os diferentes setores políticos, inclusive com a OAB e o clero. Politicamente tinha muita influência, como presidente da Are- na e do Senado, e trânsito fácil nas diferentes áreas. Costumava dar- me conhecimento das suas conversações em relatórios verbais.

Ele conversava com as pessoas dizendo da sua intenção de aca- bar com o AI-5?

Sim, naturalmente. Era sabido, publicamente, que o meu go- verno estava empenhado em normalizar a vida do país, acabando com o AI-5.

Alguns dirigentes da Arena eram contra o fim do AI-5. O senhor reuniu o partido para tratar disso?

É possível que tenha reunido, mas não me recordo. Pode-se comparar essas organizações coletivas - como o Colégio Militar, a Escola Militar ou um partido político - a um jardim zoológico: tem bicho de toda espécie! É possível que muitos membros da Arena não quisessem o fim do AI-5: um governador de estado podia dese- jar continuar a governar com o AI-5, que o favorecia. Mas os princi- pais chefes, e incluo aí Portela, Francelino e Marco Maciel, eram fran- #

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camente favoráveis a que se acabasse com o AI-5. Achavam que o país não podia continuar a viver eternamente num regime anormal.

Entre as pessoas queforam chamadas a conversar sobre ofim do AI-5, estavam Lula e dom Paulo Evaristo Arns?

É possível que tenha havido uma conversa do Portela com o Lula, mas não me lembro. Quanto a dom Evaristo Arns, quem con- versou muitas vezes com ele foi o Golbery. Eu nunca quis conversar com ele e até hoje não quero. Acho que é um farsante, com aquela vozinha... Mas é um homem muito querido lá em São Paulo.

Por que o senhor não deu a anistia no seu governo?


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