(2) R. Jákobson, aBalanço do IX Congresso de Linguistas,>, em
Novoe v lingvuistike,fasc. IV, Moscovo, 1965, p. 579.
(3) De R. Jákobson, «Princípios defonologia histórica>,, N. S.
Trubetzkoy, Principes de phanologie, traduzido por J. Cantineau,
Paris, 1949.
(4) R. Jákobson, «Observações sobre a evoluçãofonológica do
russo comparada com a de outras línguas eslavas, em TCPL, II,
1929, p. 15.
(5) Para a construção dum modelo dinâmico da cultura, cf.
S. Zolkiewski, ,, em Kon-
teksty nauki o literaturzo; Z dziejówform artstycznych ò lite-
raturze polskiej. t. XXXIV, Wroclaw-Varsóvia-Cracóvia-Gdansk,
1973.
(6) No que diz respeito à análise do conceito de «estrutura»,
cf. É. Benveniste, «Structure en linguistique», em Problèmes de
linguistique générale, Paris, 1966.
(73) F. de Saussure, Cours de linguistique générale, Paris, 1968,
p. 142.
(8) A. S. Griboedov, Oeuvres, Moscovo, 1956, p. 340.
(9) V. F. Chichmarev, «Pour une histoire des théories amoureu-
ses au Moyen Age roman», em Chois d'articles, La littératurefran-
çaise, Moscovo-Leninegrado, 1965; cf. M. Lazar, Amour courtois et
fin'amors dans la littérature du XII° siècle Paris, 1964 pp. 268-278;
ibidem, p. 288, a literatura antiga respeitante a Andreas Capellanus.
(10) De Lev Tolstói, Guerra e Paz.
(11) Recueil complet des chroniques russes, t. I, Moscovo, 1962,
p. 235.
(12) `Nemec'formado de `nemoj'-`mudo', 1976.
(13) Ju. Krizanitch, La politique Moscovo, 1965 p. 467. No ori-
ginal: «Búdto czowek niém ná piru» (ibid., p. 114).
(14) «Revi tudo com rigor; / Há mais que uma contradição, / Mas
quefique... » (Cap. I, estrofe LX.)
HISTÓRIA SUB SPECIE SEMIOTICAE
( 1974)
BORfS A. USPENSKII
Numa perspectiva semiótica, pode representar-se o
processo histórico como um processo de comunicação du-
rante o qual a afluência de informação nova não cessa de
condicionar reacções-respostas num destinatário social
(o socius). O papel de código considera-se então como uma
«língua» (este termo, evidentemente, não deve compreen-
der-se num sentido linguístico estrito, mas num sentido
mais amplo, semiótico) 1l>, «língua» que determina uma
certa percepção dosfactos - tanto reais como potenciais -
no contexto histórico-cultural em quefunciona. Assim, os
acontecimentos recebem um sentido: o seu texto é lido
pelo socius. Pode-se, portanto, dizer que, durante umafase
elementar, o processo histórico se apresenta como um pro-
cesso de produção de «frases» novas numa alíngua», sendo
estas lidas por um destinatário social (o socius).
Por um lado, esta «língua» unifica o socius ao criar
entre os seus membros as condições duma comunicação,
duma reacção parecida com os acontecimentos. Por outro,
organiza a própria informação, determinando uma selec-
ção defactos significativos assim como o estabelecimento
dum nexo preciso entre eles: tudo sucede como se o que
não está descrito nesta «língua» escapasse absolutamente
ao destinatário social e se subtraísse ao seu campo visual.
Ao longo do tempo, a «língua» da sociedade, transfor-
ma-se, como é natural, o que não exclui a possibilidade de
realizar cortes sincrónicos que permitam precisamente des-
crevê-la como um mecanismo que trabalha (a situação é,
em princípio, análoga quando se trata de línguas naturais.)
Osfactos objectivamente idênticos que compõem um
88 Ensaios de Semiótica Soviética
texto real de acontecimentos podem interpretar-se diferen-
temente em «línguas» diversas - a do socius e qual-
quer outra «língua», em relação com um outro espaço
ou um outro tempo (o que pode condicionar, por exem-
plo, uma divergência no estrato dos acontecimentos, quer
dizer, uma opção díspar na segmentação do texto, ou
também uma escolha diferente no estabelecimento das
relações de causa e efeito entre estes segmentos). Aliás,
aquilo que se reveste de significação na óptica de uma
época ou área histórico-cultural dada pode não ter ne-
nhuma no sistema de representações de outra era e inver-
samente. Além disso, é indispensável considerar que é pre-
cisamente o sistema de representações do socius que
desempenha o papel de destinatário social que determina
o mecanismo directo do curso dos acontecimentos, quer
dizer, do processo histórico enquanto tal.
Quem queira descrever a «língua» duma área histórico-
-cultural encontrará como particularmente demonstrativas
as situações de conflito, de controvérsias, que condicionam
o enfrentamento de «línguas» diversas quando tratam
duma realidade única e conduzem a uma percepção sem
equivalentes mútuos dos mesmos acontecimentos; pode
acontecer até que o emissor e o receptor duma mensagem
empreguem em realidade «línguas» diferentes, embora re-
correndo aos mesmos meios de expressão exteriores. A
época de Pedro o Grande é particularmente rica em mate-
riais que ajudam a descrever o sistema dos laços associa-
tivos do período precedente, como consequência, prin-
cipalmente, do seu carácter de contradição interna e de
heterogeneidade cultural; parece, aliás, que uma tentativa
para o examinar segundo o ângulo que propomos pode
apresentar um interesse directo para o esclarecimento da
própria personalidade de Pedro. Visto que uma das manei-
ras de interpretar a sua época será precisamente admitir
que o emissor e o receptor das mensagens que eram trans-
mitidas (Pedro e o socius) se serviam, em princípio, de «lín-
guas» diferentes; todavia, examinaremos mais àfrente a
possibilidade de outras interpretações. Seja comofor, temos
ante nós uma situação conflitual claramente marcada, uma
vez que largas camadas da populaçãofaziam, em termos
extremamente negativos, um juízo duma severidade indis-
cutível sobre a actividade de Pedro e dos seus acólitos: sa-
be-se que os seus contemporâneos (e algumas vezes certas
Teoria da Semiótica da Cultura 89
gerações posteriores - pensamos aqui nos velhos-cren-
tes 121) o julgavam o Anticristo, uma visão que determinou
,
por sua vez, a longa série de protestos dirigidos contra ele.
Existe uma enorme quantidade de documentos (dos mais
variados) que testemunha isto. Por outro lado, a análise
destes testemunhos permite pôr ao corrente ofundamento
imediatamenteformal, semiótico («linguístico» - às vezes
até num sentido estrito) desta reacção. Pode-se afirmar
sem qualquer dúvida que era impossível osfactos e gestos
de Pedro serem percebidos de uma outra maneira: dentro
do sistema de representações da Rússia da época, os seus
actos predeterminavam, num grande número de ocasiões
e de maneira mais ou menos unívoca, o ser visto dessa
forma - com uma nitidez quase tão grande como se ele
próprio tivessefeito a declaração.
Nalguns casos, este condicionamento semiótico da
percepção destaca-se segundo uma perspectiva particular-
mente aparente: contentemo-nos em não examinar mais
do que alguns dosfactos que se relacionam, decidindo po-
larizar-nos sobretudo nos seus momentos «linguísticos>,
formais.
1 tanto assim que, se o casamento de Pedro e Cata-
rina 131 suscitou uma reacção tão violentamente negativa, a
razão única não residiu nofacto de estar a celebrar as
suas segundas núpcias quando a sua mulher estava ainda
viva no mosteiro onde a tinha confinado àforça - pelo
menos tinha havido precedentes parecidos (excepcional-
mente embora) no passado. O que não tinha precedente
nenhum era a confusão de parentesco carnal e de paren-
tesco espiritual que havia nesse casamento. Com efeito,
quando Catarina se tornou ortodoxa, teve por padrinho
Alexei,filho do tsar. Era, portanto, sua afilhada (o que
lhe valeu ser aAlexéevna», nome tãofácil de aprender para
um padrinho em sentido estrito!); em relação ao próprio
Pedro, este era seu avô no plano espiritual; precisemos
que naquela altura o parentesco espiritual se distinguia
muito pouco do parentesco carnal, e até era considerado
superior. Assim, ao casar-se com Catarina, era, de certa
maneira, como se Pedro se tivesse casado com a sua neta.
O que não podia tomar-se senão por uma espécie de in-
cesto espiritual, por uma vontade sacrílega de burlar as
ïeis cristãsfundamentais.
90 Ensaios de Semiótica Soviética
Notar-se-á sem dificuldade que é a semântica da pala-
vra «pai» que, em última instância, condiciona esta reacção
tão hostil; desempenhou mesmo um papel muito impor-
tante na atitude suscitada pelas reformas religiosas de
Pedro e Teófano Prokopovitch 1^1.
Em 1721, Pedro adquiriu um novo título;fez-se cha-
mar oficialmente «Imperador», ao Grande» e, ainda por
cima, «Pai da pátria». Defacto este último nome já lhe ti-
nha sido aplicado antes:foi assim que Teófano Prokopo-
vitch o nomeou «Pai da pátria» a partir de 1709 no seu
«Canto de vitória» por ocasião da batalha de Poltava1s1.
Esta expressão vem em linha directa do latim pater pa-
triae - título honorífico dos imperadores romanos. Con-
tudo, a sua ressonância era diferente no contexto cultural
russo. Na medida em que o parentesco podia ser espiritual
ou transmitir-se pelo sangue, e que era evidentemente im-
possível que Pedrofosse o pai consaguíneo do seu povo,
compreendeu-se imediatamente que se pretendia um pa-
rentesco espiritual. Mas somente um sacerdote podia ser
pai espiritual, e o título de «pai da pátria» não podia por
sua vez aplicar-se senão a um bispo, preferentemente a um
patriarca 16>. Aliás, era efectivamente o nome concedido aos
patriarcas ecuménicos (de Constantinopla e Alexandria).
Ora, uma vez que Pedro adoptou oficialmente este título
ao abolir o patriarcado e se proclamou «Juiz sem apelação»
do Ministério do Culto 1'>, pode pensar-se que se tinha
posto à cabeça da Igreja e declarado patriarca. Estafoi
precisamente a interpretação que se deu. Segundo isto, de
acordo com as regras canónicas, para dirigir a Igreja, era
necessário gozar da graça e dos poderes que confere a dig-
nidade episcopal; o próprio patriarca Nikon 181 qualificava
também as instruções do poder laico na alta direcção da
Igreja como manifestações do espírito do Anticristo. Como
consequência, acusou-se Pedro de se ter nomeado pai da
pátria arrebatando para si o poder episcopal». É necessá-
rio sublinhar que, nos seus aspectosformais, esta conclu-
são concorda amplamente com a opinião dos seus apologis-
tas. Assim, na sua «Procura dum pontífice» (1721), Teófano
Prokopovitch propôs-se apoiar com provas a ideia de que
os soberanos pudessem estar habilitados, num certo sen-
tido, a chamarem-se «bispos» e «arcebispos»; é certo que
ele não via estas palavras no sentido estritamente canó-
nico, mas esta distinção casuística era, em princípio, ina-
Teoria da Semiótica da Cultura 91
ceitável para aqueles que tinham pontos de vista mais tra-
dicionais 191. Tudo isto encaixava optimamente na imagem
muito conhecida do Anticristo vociferante sentado numa
cadeira episcopal.
Nas obras polémicas dirigidas contra ele, Pedro era
acusado de ter «arrebatado» um poder não apenas espi-
ritual (episcopal) mas divino e é, por isso, chamado «falso
Cristo». É importante ressaltar que esta conclusão se ba-
seia também em considerações de peso na concepção do
mundo nessa época. Pedro tolerava realmente que se lhe
chamasse «Deus» e aCristo». Tanto é assim que, numa sé-
rie de trabalhos de Teófano Prokopovitch, e de Teofilacto
Lopatinski (que o próprio Pedro tinha corrigido pelo seu
punho e letra!), sustentava-se a tese de que os monarcas
são Deuses e Cristos, e Pedro era tratado desta maneira.
Aliás, embora a palavra «Cristo» esteja aqui usada no
sentido de «ungido pelo Senhor», não era, sem dúvida,
menosfatal que as gentes daquela época a sentissem antes
de mais como um nome próprio e não como um nome co-
mum. Esta era uma concepção do mundo quefavorecia a
conduta de Pedro e, sobretudo, o cerimonial de que se ro-
deava. Assim, em Moscovo, no dia a seguir a uma vitória
sobre o inimigo (21 de Dezembro de 1709),fez-se receber
com a letra dum canto religioso dirigido a Cristo no Do-
mingo de Ramos; «Bendito o que vem em nome do Senhor,
glória no mais alto dos céus, Deus e Senhor e nos apare-
ceu... », quer dizer, como se personificasse Cristo en-
trando em Jerusalém 1l°1. De maneira análoga, quando Pe-
' dro saía do mosteiro do Salvador, saudavam-no cantando:
«Glória ao Deus dos céus... », quer dizer, que mais uma
vez se dirigiam a ele como Deus, sem contar que levava
a coroa, o que permitia uma associação com a coroa de
espinhos. É característico que mesmo este estilo, esta in-
diferença em relação aos textos sagrados, tenha passado
também á vida corrente. Assim, Teófano Prokopovitch
pode receber Pedro que se apresenta em sua casa de noite,
enquantofesteja com os seus amigos - com as palavras
do tropaire: a
desta insigne maneira, ao traçar, numa carta a Pedro, um
quadro das comezainas para celebrar o nascimento do seu
filho na corte (em 1715), B. Cheremetiev elegeu a imagem
tirada do Novo Testamento, da descida do Espírito Santo
sobre os apóstolos («E soubemos esta nova que enche de
92 Ensaios de Semiótica Soviética
alegria todo o universo; e houve um ruído e uma violenta
rajada de vento; e rendemos glória a Deus e à Sua mui
santa Mãe; e regozijámo-nos grandemente»), ou numa
carta a Pedro datada de 10 de Dezembro de 1709 em que
Menchikov chama a São Petersburgo «terra santa». Se no
contexto duma cultura barroca teatralizada taisfenóme-
nos podiam atribuir-se exclusivamente à expressão, reves-
tiam, pelo contrário, para os contemporâneos de Pedro, o
aspecto dum sacrilégiofragrante: Pedro declarava publi-
camente ser Deus, afirmava-se como tal pelo seu compor-
tamento semiótico para não dizer directamente linguístico.
E trata-se, neste caso, duma das celebridades queforam
adoradas quase religiosamente. Tanto é assim que o compa-
nheiro de armas de Pedro, o inválido Kirillov, guardava o
retrato daquele entre os ícones num dos cantos do quarto,
e venerava-o como sefosse um deles: todos os dias o bei-
java, punha-lhe uma vela, etc. Sem evocar os termos de
elogio da oração que, muito mais tarde, Krekchine dirigiu
a Pedro: «Pai Nosso, Pedro o Grande! tu nos levaste do
não ser ao ser; antes estávamos na ignorância... antes de
ti, todos nos consideravam como os últimos enquanto
agora nos vêem como os primeiros», etc. Ficava, portanto,
excluída a ideia de que os contemporâneos do tsar não
discerniam na sua conduta nenhuma pretensão sobre prer-
rogativas divinas - esta conduta correspondia precisa-
mente à que eles atribuíam ao Anticristo (segundo uma
crença que remonta ao Novo Testamento, cf. Mateus,
XXIV, 5).
Em relação directa com estes exemplos, há que si-
tuar as actividades do Concílio bufo, que não podia ser
tomado senão como uma burla injuriosa da Igreja e do
serviço religioso. É importante notar que esta actuação
carnavalesca incluía autênticos elementos de rito cujo sen-
tido se invertia, de certo modo, neste novo ambiente.
Assim, durante as bodas bufas do patriarca, em 13 de
Dezembro de 1715,foi um verdadeiro sacerdote (vindo da
catedral do Arkangel), um starets [ermitão) de noventa
anos, que celebrou a cerimónia. O que há a sublinhar é
que não apenas os observadores, mas também os que to-
mavam parte nestas sessões, tinham estado tentados a
compará-las a missas negras, quer dizer, a ritos dum poder
negativo, satânico (cf. o testemunho de I. Jovanski: «Apa-
nharam-me na aldeia de Preobrajenszoi e, na praça maior,
Teoria da Semiótica da Cultura 93
Nikita Zotovfez-me metropolita, e sobre um texto,fez-me
renunciar a Satanás, e renunciei a ele sobre este texto; e
pediam ao mesmo tempo `bebe' em vez de `crê' e, ao
renunciar, perdi-me mais do que se tivesse mandadofazer
a barba, porque não disse nada; e melhor teriafeito acei-
tando o martírio em vez de realizar tal renúncia.» 1
Ofacto de Pedro mandar ser nomeado sem patroní-
mico contribuiu sem dúvida para confirmar a ideia de que
se tivesse declarado eclesiástico ou até santo; pois era
assim que os tratavam. Maisforte ainda deve ter sido a
impressão produzida pela sua decisão de ser nomeado
Primeiro, um gesto que, sem dúvida, devia parecer uma
pretensão de santidade. A cultura anterior a Pedro caracte-
riza-se, de maneira geral, por uma tendência para identi-
ficar mitologicamente pessoas e objectos com pessoas e
objectos que têm uma categoria hierárquica de «primei-
ros» - e aparecem neste sentido como aprimeiros» - ori-
ginários em sentido ontológico. Por isso, por exemplo, Cons-
tantinopla e Moscovo eram identificadas com Roma e cha-
madas a segunda e terceira Roma; Ivan IIIfoi chamado
o segundo Constantino, etc. Trata-se precisamente duma
identificação que demonstra a essência ontológica autêntica
do que é nomeado. (É significativo que se tenha podido,
nalguns casos, interpelar directamente alguém referindo-se
ao seu santo patronímico. Assim, o metropolita Paisif
Ligarid pode, dirigindo-se ao tsar Alexei Mikhailovitch
,
chamar-lhe: «Alexei, homem de Deus», quer dizer, como se
visse nele uma manifestação muito real de Santo Aleixo,
em honra do qual este tsar tinha sido baptizado; igual-
mente, neste sentido, por exemplo, os Paulistasfaziam-
-se chamar, na sua época, pelo nome do apóstolo Paulo
e seus companheiros e discípulos - considerando-se a en-
carnação destes). Erafatal, dentro de semelhante sis-
tema de pensamento, que a denominação de «Pedro I»
fosse concebida como uma pretensão ilegítima de ser um
ponto de referência, um começo - atributo que, em termos
gerais, não era acessível senão ao sagrado ou, pelo menos,
àquilo que a tradição tinha santificado. A decisão de Pedro
de sefazer chamar «o Grande» testemunhava, para os da
sua época, umafalta de pudor menor que a de ter-se no-
meado aPedro I».
Não é necessário determo-nos em detalhes defactos tão
conhecidos como a obrigatoriedade de cortar a barba e
94 Ensaios de Semiótica Soviética
a substituição da roupa russa pela roupa alemã. Conten-
temo-nos em mencionar que estas duas características se
revestiam naquela época dum sentido particular, na me-
dida em que é com este aspecto que apareciam os diabos
nos ícones 1131. Daí que esta imagem nãofosse nova para
os russos: pelo contrário, conheciam-na; para eles inscre-
via-se num sistema de representação iconográfica perfei-
tamente definido; de acordo com o que por vezes se ouvia
nessa altura, Pedro tinha «disfarçado o povo de diabos».
O cortar a barba podia ser relacionado imediatamente com
a heresia; é característico que o patriarca Filareto tenha
estigmatizado, em conclave, esta «infâmia bestial» e outros
dois patriarcas da época de Pedro - Joaquim e Adriano -
se tenham oposto também, este último ameaçando resolu-
tamente com a excomunhão dos que mandassem cortar a
barba. No que diz respeito à oposição de vestuário russo-
-vestuário ocidental, é significativo, aliás, que o uso de
roupa russa estivesse proibido ainda em 1652, sob pena
de castigos severos, aos estrangeiros que viviam na Rús-
sia; era um ponto sobre o qual o patriarca (Nikon) insistia
especialmente. Por outra parte, há que considerar que o
vestuário alemão era cómico (tratava-se dum disfarce car-
navalesco) na Rússia anterior a Pedro. Assim, nessa época,
eram osfilhos do tsar e as pessoas que o rodeavam que os
podiam usar. Pelo contrário, nos tempos de Pedro,feste-
jam-se os casamentos dos bobos Chanski e Kokochkine
com trajes russos convertidos agora em traços de disfarce
(como mais tarde se castigarão estudantes disfarçando-os
com trajes camponeses, quer dizer, com o traje nacional
russo). Portanto, podefalar-se - à custa duma substitui-
ção de signos - duma conservação da oposição entre tra-
jes russos e trajes ocidentais.
Seria possível alargar consideravelmente esta lista, se
por si só não nos permitisse já tirar conclusões. Visto
desde certo ângulo, o comportamento de Pedro não apa-
rece como uma revolução cultural, mas sim como uma
série de antitextos, um comportamento negativo no âmbito
duma mesma cultura. Em todo o caso, seria assim que
seria visto pelos seus contemporâneos, o que, em prin-
cípio, é extremamente importante. hIoutros termos, por
muito paradoxal que seja, o comportamento de Pedro man-
teve-se, em grande parte, dentro do quadro de normas e
concepções tradicionais: aumentado com um signo nega-
Teoria da Semiótica da Cultura 95
tivo, enxertou-se perfeitamente. Os actos de Pedro não se
teriam podido, pois, manifestar de maneira diferente na
alíngua» daquela época: aos olhos da gente daquela altura,
tudo sucedia como se publicamente se tivesse proclamado
Anticristo.
Destaforma, Pedro conhecia esta «língua,1, podia pre-
ver o efeito que se seguiria aos seus actos. Uma das expli-
cações possíveis para a sua conduta seria o admitir que
muito conscientemente quis ignorar a sua «língua» ma-
terna, ao considerá-la incorrecta e não reconhecendo como
unicamente correcta a «língua,> importada das concepções
ocidentais. Na sua própria relação - quase irracional -
com a «língua»,fica comofilho verdadeiro da sua cultura:
a eleição duma língua «correcta» e a rejeição duma língua
«incorrecta» demonstram serfactores subjectivamente mais
importantes que as consequências possíveis dos actos que
consigo trazem. Se se acredita nesta explicação, aceita-se
que Pedro criou conscientemente textos numa língua dife-
rente da que o socius utilizava ao lê-lo. O que se observa,
duma maneira geral, até num sentido estritamente linguís-
tico (cf., por exemplo, os comentários propostos mais
acima a propósito da expressão «Pai da pátria», que tra-
duz do latim pater patriae sem se preocupar com o seu
sentido nos textos russos; podem-se interpretar da mesma
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