Língua, texto e ensino Outra escola possível



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(Millôr Fernandes)
Numa primeira análise da descrição feita por Millôr, poderíamos ad­mitir que se trata de uma apresentação inteiramente óbvia, portanto, com um nível de informatividade baixíssimo. No entanto, numa segunda análise, tendo em conta o que sabemos acerca do autor, podemos admitir que se trata de um texto escrito propositadamente nessa forma, ou seja, apenas aparentemente informativo, com cara de exposição didática, mas inteiramente vazio de informação, a ponto de tornar-se anedótico.

Possivelmente, Millôr, com esse tipo de descrição, quis retratar (e, cer­tamente, ironizar) aquela espécie de discurso esvaziado, muito em voga no mundo da comunicação politicamente manipuladora, que "fala para

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não dizer nada", embora o faça corretamente e com uma linguagem qua­se rebuscada e meio empolada. Em geral, esse discurso "impressiona" os menos críticos ou menos avisados, exatamente pelo caráter definitório e formal que assume.

Em síntese, da criatividade de Millôr saíram dois textos: o que ele simu­la - e aí, temos um texto esvaziado pela obviedade, com baixíssimo grau de informatividade - e o texto com que, de fato, Millôr critica e até ridiculariza o discurso oco, vazio, inoperante, de quem não diz nada que mereça ser ouvido. E, aí, temos um texto com um alto grau de informatividade pela imprevisibilidade interpretativa que ele acarreta e pela fuga que realiza aos padrões comuns da comunicação: ninguém fala para dizer apenas o óbvio.

Na verdade, trata-se de um jogo em que as duas peças, amalgamadas, assumem caráter e função diferentes. O teor de informatividade é dife­rente em cada uma: a versão que simula traz subjacente a outra - a crítica a possíveis versões reais, dos discursos "mudos" da comunicação vazia (por incompetência ou por causa de outros interesses).

De qualquer forma, vale a pena abrir espaço para considerar as exi­gências do caráter informativo, mais alto ou mais baixo, dos textos.


6. E como ter em conta a informatividade do texto nas aulas de línguas?

Em um passado já meio distante (tomara, meu Deus, tomara!), tive­mos, em nossas salas de aula, as famosas cartilhas, compilações de textos inventados, criados a propósito em função das sequências de letras que precisávamos aprender a reconhecer para ler e escrever com sucesso. Durante décadas, soletramos e lemos que "O boi baba"; que "Mimi mia"; que "Ivo vê a uva" e, até mesmo, que "A vovó vê o ovo novo". A rigor, isso é a linguagem ao contrário: para não dizer nada. Refém do som, da grafia, sem compromisso com o sentido, com os usos, com as intenções de su­jeitos (vivos!) em interação.

Naturalmente, essa experiência iria repercutir depois nos textos que os alunos escreveriam. Textos também escritos para treinar a grafia ou a leitura­

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das letras e não para possibilitar a funcionalidade da interação verbal, o que, na verdade, implicaria a grafia e outras regularidades do sistema.

Sem dúvida, as crianças, mesmo apenas intuitivamente, estranhavam essa linguagem esquisita, usada para não dizer nada e organizada segun­do critérios que não coincidiam com os de suas necessidades interativas. Somente o contrato pedagógico a que estavam submetidas poderia justi­ficar aquelas saídas da rota da linguagem para estranhas esferas, "nunca dantes (por elas) navegadas".

Por essa rota estranha, também circulavam as coisas que as crianças tinham que escrever. Textos sem "a cara específica" de determinado gêne­ro; textos sem destinatários; sem um propósito comunicativo, sem refe­rência a determinado domínio discursivo; textos só para treinar (embora, na verdade, fosse para treinar como não deve ser um texto). Por essa rota circulamos nós; quase todos nós.

A falta de interesse pelos sentidos do texto, a falta de um trabalho pre­paratório de leitura e de comentário acerca do que escreveríamos provo­cavam a pobreza e a obviedade das ideias, das informações. Qualquer coi­sa que se dissesse estava bem, pois o que mais interessava era a forma, era o fato de não cometer erros de ortografia ou outros igualmente salientes.

Evidentemente, o teor de informatividade desses textos resultava em um nível muito baixo. Predominava a irrelevância de um dizer insigni­ficante, sem interesse, sem sabor, sem expressividade. Consolidava-se a prática de um discurso vazio, igual, submetido a uma única fórmula, bem diferente da diversidade de discursos que ocorrem nas interações da co­municação escrita cotidiana.

É que, de fato, as propriedades do texto, inclusive a informatividade - com suas variações de grau e de forma - não foram objeto de exploração na escola.

Focalizar essas propriedades e elegê-las como objeto de estudo impli­ca despertar o aluno para a descoberta explícita de muitas regularidades discursivas, que, de outro modo, passam despercebidas ou, pelo menos, são conhecidas apenas intuitivamente.

No caso específico da informatividade, torná-la foco de estudo implica que o professor:

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  • promova a leitura sistemática de bons textos, de textos informativos, expositivos, opinativos; de textos criativos - literários ou não - explicitan­do, em análises sucessivas, os aspectos que mais diretamente contribuíram para elevar o teor de relevância das coisas que são ditas;

  • chame a atenção dos alunos para a importância discursiva da informatividade, mostrando, inclu­sivamente, a inadequação de dizer o óbvio ou o irrelevante;

  • promova a etapa de preparação e planejamento dos textos a serem elaborados, o que envolve atividades de leitura, reflexão, e discussão pré­via, acerca do tema previsto, sobretudo quando se solicitam que abordem assuntos mais espe­cializados ou fora dos interesses imediatos dos alunos; que o professor instaure a prática de con­ceder aos alunos tempo para que eles preparem os conteúdos de suas produções e para que eles possam, a tempo, hierarquizar esses conteúdos;

- incentive a ampliação do repertório vocabular disponível, salientando a conveniência de, em textos mais formais, saber usar palavras mais distantes dos padrões coloquiais ou mais próximas da ter­minologia específica à área temática em curso;

- explore a diversidade de recursos estilísticos ou re­tóricos, capazes de emprestar à forma efeitos de novidade, como é o caso das metáforas, das metonímias, das analogias, das antíteses, das hipér­boles, das inversões sintáticas, dos paralelismos, das repetições, das transgressões propositadas, entre muitas outras (não basta apenas saber o nome desses recursos);

- procure neutralizar a primazia quase absoluta que a escola tem concedido à correção gramati­cal, salientando que, se determinado texto deve ser correto, deve também apresentar outras propriedades não menos im­portantes; noutras palavras, deve salientar que a correção gramatical não é o único predicado que torna um texto bom e relevante.

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Em geral, a escola não dá muita atenção à ampliação do vocabulário dos alunos; nem incentiva o recurso à quebra das regularidades lexicais ou gramaticais, presa que é à suposta uniformidade da língua padrão. Por essa via, o aluno deixa de explorar sua capacidade de criação, de invenção de novos padrões ou de novas formas de dizer. Evidentemente, há situações em que tais invenções são mais adequadas que outras. A competência ideal do sujeito seria, inclusivamente, aquela de discernir quando cabe ou não uma "invenção", ou "uma transgressão". Por exemplo.

Raquel de Queiroz, em uma de suas crônicas, fala nos escritores "estrelos".

Permitiríamos que um aluno nosso escrevesse isso em uma crônica? O elogiaríamos por isso? Ou apontaríamos o "erro", sem mais comentários?

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Sob muitos aspectos, tem sido mostrado que o uso da língua - em textos orais e escritos, de diferentes tipos e gêneros - ocorre debaixo de certas regularidades discursivas, bem mais amplas e complexas que aquelas específicas ao sistema linguístico. Um programa de ensino de línguas, que pretenda resultados individual e socialmente relevantes, não pode restringir-se a questões gramaticais, apenas. Ao contrário, deve ampliar-se para incluir o estudo e a exploração das questões textuais, questões que extrapo­lam em muito a gramática, suas classificações e nomenclaturas. Ou seja, um programa de ensino de línguas deve incluir, entre outras, noções e atividades acerca dos graus de informatividade de um texto e de como consegui-los.

A abertura da escola para o âmbito da prática discursiva, da ativida­de interativa, amplia os focos de percepção do fenômeno linguístico, um fenômeno pelo qual afirmamos nosso destino de seres criativos, sociais, dialógicos, participativos, significantes e significadores.

É possível, na experiência do estudo das línguas, divisar horizontes bem mais abertos, bem mais libertadores e bem mais fascinantes do que tem sido visto até agora!

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Ainda se pode esperar?

Quem está perdendo?

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Capítulo 8



AS FUNÇÕES DO LÉXICO NA CONSTRUÇÃO DO TEXTO
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Este texto foi, em primeira mão, publicado na revista Investigações (n. 5, p. 7-19, dez. 1995), sob o título "De como se poderia abordar pela textualidade a função coesiva das unidades do léxico".

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O léxico, em geral, tem recebido pouca atenção nos estudos de línguas, sobretudo no estudo da língua materna. Pelo visto, parece que os usos sociais de uma língua não requi­sitam, como condição de seu sucesso e de sua relevância, a utilização de um léxico, de um vocabulário específico, adequado a cada situa­ção. Na sala de aula, as atividades com o léxico têm se limitado (com poucas exceções) à apre­sentação de glossários, a exercícios simplistas de substituição de palavras por sinônimos, quase sempre em pares de frases ou numa perspectiva descontextualizada (frases retiradas de textos sob a forma de unidades autônomas).

A título de recapitulação, retomamos o que foi dito no capítulo 5: o léxico de uma língua, em seu sentido mais geral, corresponde ao inventário total de palavras disponíveis aos falantes. Em geral, essas palavras estão registradas em um dicionário, que, evidentemente,

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nunca está totalmente atualizado, pois sempre estão surgindo no­vas palavras ou novos significados para aquelas já existentes.

Em um sentido mais específico, costuma-se fazer uma distinção semântico-funcional entre as unidades do léxico (unidades lexicais) e as unidades da gramática (unidades gramaticais). Estas últimas remetem, enquanto unidades de relação, para o universo interno da gramática da língua (como as preposições, as conjunções); as outras, as unidades lexicais, remetem para o mundo da experiência real ou fictícia, vivida, pensada ou sentida pelas pessoas conforme a cultura de seus grupos sociais (os substantivos, os adjetivos, os verbos, por exemplo).

A gramática - temos insistido - tem polarizado o interesse de professores e da comunidade escolar e não tem deixado o professor com tempo para o estudo de outros componentes da língua. É estra­nho que bem poucos tenham podido perceber essa polarização da gramática e tenham procurado explorar o domínio do léxico, suas funções textuais, os processos e recursos de sua formação e de sua constante ampliação.

Nesta reflexão, pretendemos focalizar como a questão do léxi­co poderia ser vista de forma mais relevante na escola, com base nas funções que ele desempenha na construção e na organização do texto.

Em última instância, queremos responder às perguntas:

a) como ampliar o estudo do léxico?

b) como tornar esse estudo mais significativo e relevante?

c) como perceber o léxico na perspectiva da construção do texto?


1. O texto: gramática e léxico

Do ponto de vista estritamente linguístico, um texto constitui uma sequência de elementos verbais, os quais, com funções próprias, se alter­nam entre unidades do léxico e unidades da gramática.

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Umas são suporte para as outras, umas requerem as outras, de manei­ra que a totalidade do texto é, na verdade, um tecido integrado de natureza léxico-gramatical. No entanto, para que uma sequência de unidades lin­guísticas resulte comunicativamente funcional, é necessário que tais uni­dades se submetam a padrões sintático-semânticos de combinação e, ainda, a estratégias textuais de encadeamento, organização e hierarquização.

Assim, as unidades verbais presentes em um texto remetem simulta­neamente a dois domínios distintos, embora complementares:

- remetem ao sistema da língua, enquanto elementos do seu léxico ou de sua gramática;

- remetem à instância particular do texto que atualizam, enquanto partes constitutivas da organização de seu sentido global.

Tais unidades conjugam, assim, conforme se designa no quadro da se­mântica instrucional, "instruções canónicas" e "instruções situativas" (cf. Schmidt, 1978, p. 90), uma vez que estabelecem relações, quer como virtualidades, quer como atua­lidades instrucionais. Dessa forma, pode-se dizer que os elementos verbais de um texto providenciam parte do seu sentido, desde o valor sintático-semântico que a língua lhes atribui; e providenciam ainda parte de seu sentido desde a distribuição e a organi­zação que assumem no domínio particular de cada discurso concreto.

Do ponto de vista descritivo, cada instrução lin­guística pode ser encarada isoladamente - quando são focalizados aspectos de seus valores virtuais -, ou pode ser encarada desde a perspectiva das ins­tâncias comunicativas que constituem. Nessa se­gunda hipótese, são focalizadas suas funções tex­tuais ou discursivas, o que, naturalmente, reclama uma visão integrada da instrução, tomada, dessa forma, globalmente, ou seja, desde os aspectos vir­tuais e os outros textuais de seus usos.

...

Alguns autores que se aplicaram ao estudo do texto chegaram a apontar uma série de itens que não podem ser compreendidos apenas no limite da frase. Por exemplo, a alternância entre o uso do artigo definido e o do indefinido só pode ser percebida no percurso do texto. Igualmente acontece com as relações de correferencialidade ou aquelas da associabilidade semântica entre as palavras, recursos tão relevantes para o estabelecimento da coerência do texto.



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Historicamente, a integração implicada na última dessas alternativas parece não ter constituído a preferência das investigações linguísticas, pelo menos até meados do século XX, como parece não constituir - ainda hoje - a preferência de muitos que se ocupam da atividade pedagógica do ensino de línguas. Prevalece, por complexas razões que não cabe agora analisar, uma abordagem, quer do léxico, quer da gramática, dissociada dos usos dessas unidades, ou seja, centrada apenas em suas regularidades virtuais ou restrita aos limites reduzidos da palavra e da frase descontextualizadas. Tais limites, que não incorporam as determinações da prag­mática, são insuficientes para dar conta do fenômeno linguístico original, o qual, bem sabemos, somente se efetiva sob a condição da textualidade.

Ou seja, o estudo da gramática e o estudo do léxico, fora dos parâmetros da textualidade, contemplam apenas parte de suas regularidades e deixam, por isso, de ganhar a relevância e a aplicabilidade que poderiam ter.
2. As unidades lexicais e a construção do texto

Conforme venho pontuando, interessa-me aqui considerar as unida­des do léxico, não como unidades da língua, ou unidades do dicionário, um repertório em estoque; mas como unidades de texto, peças com que se constrói a materialidade significante posta em sua superfície. São, por­tanto, unidades lexicais co-textualizadas, constitutivas de uma unidade de significado, para fins de um propósito comunicativo qualquer. Nessa perspectiva, não me interessa apenas a carga de sentido que as unidades do léxico têm. Interessa-me, e, sobretudo, a função que essas unidades desempenham na organização - coesa e coerente - do texto. Essa função vai além do sentido.

Em termos meio óbvios - mas imperceptíveis, às vezes, - declaro o que pretendo, neste momento: considerar o vocabulário dos textos como elemento de sua construção, de sua "arquitetura", e não apenas como um conjunto de palavras que "têm um significado".

Nessa pretensão, vou procurar deter-me no léxico, sob a perspectiva da construção textual da coesão e da coerência. Parto do principio de que a articulação (a coesão) que promove a unidade semântica do texto (a

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coerência) é conseguida também com os recursos das unidades lexicais presentes na sua superfície. Com base no mesmo princípio, proponho que se empreenda o estudo das unidades lexicais, também, na perspectiva de suas funções no estabelecimento da continuidade e da unidade de senti­do requeridas pelo texto, isto é, da sua coesão e da sua coerência.

Conforme apontam, entre outros, Halliday & Hasan (1976; 1989), a coesão textual que pode ocorrer pelas vias das unidades lexicais acontece graças a dois procedimentos, que eles chamam:

- reiteração;

- colocação.

Em ambos os procedimentos, o que está em jogo é a continuidade e a unidade do texto. Essa continuidade resulta de um processo de enca­deamento, que os sujeitos vão empreendendo com base em ligações se­mânticas, tecidas em operações de base cognitiva e pragmática. Por tais ligações, as unidades, quer dizer, as palavras do texto, interdependem, se articulam, se integram e constituem um todo.

As especificidades da reiteração e da colocação ficam por conta de pe­quenas diferenças no tipo das relações estabelecidas. É o que pretendo apresentar a seguir.


2.1. A reiteração

No domínio da reiteração, uma unidade lexical pode ser:

- repetida - literal ou parcialmente -, conforme se mantenham ou se alterem suas marcas morfológicas, como em 'democracia', 'demo­cracia' e 'democracia', 'democrata';

- substituída por uma outra que, de alguma maneira, lhe é equivalen­te, como em 'articulação', 'encadeamento'.


2.2. A colocação

O procedimento chamado de 'colocação' obedece à condição de que, no texto, as palavras não estão sozinhas; ou seja, vêm "colocadas" umas

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junto às outras. Mais: tendem a procurar "as mesmas companhias", crian­do certa regularidade na composição da sequência, o que, eventualmente, pode resultar na criação de uma "locução fixa". Por exemplo, a palavra jato costuma vir acompanhada da outra avião, ou da outra água. Daí, as ex­pressões avião a jato, e jato d'água, que já se cristalizaram, praticamente, como expressões fixas.

É importante destacar que, sob a ótica da colocação, não se conside­ra apenas que as palavras vêm umas em companhia de outras. O que se ressalta é que a regularidade maior ou menor com que elas costumam vir juntas cria, entre elas, uma espécie de ligação, tanto que a ocorrên­cia de uma puxa a ocorrência da outra. Diz-se, então, que elas tendem a co-ocorrer no mesmo co-texto, ou seja, tendem a 'colocarem-se' na mesma sequência de texto. Por exemplo, basta lembrar como costumam vir juntos os pares: plano econômico; elevação de preços; classe média.

Essa tendência de coocorrência de certas palavras deriva da rede de associações semânticas que elas possibilitam ou de uma certa compatibi­lidade de sentido que elas apresentam. Daí tenderem a aparecer juntas: no mesmo texto e até na mesma oração. 0 contrário também ocorre: ou seja, há pares de palavras que guardam entre si uma espécie de incom­patibilidade e, por isso, não costumam vir juntas. Segundo Ilari (2002, p. 47), a combinação de duas palavras que, em princípio, são incompatí­veis pode surtir um efeito de sentido particular (por exemplo, quando se fala em um 'livro indigesto', uma 'conversa picante', uma 'mente suja', uma 'pessoa quadrada' etc.).

Especificando melhor, lembro que as associações estabelecidas entre as palavras são decorrentes dos mais diversos tipos de ligações - semân­ticas ou pragmáticas - possíveis. Daí por que esse procedimento, de certa forma, equivale ao que tenho considerado como o recurso coesivo da as­sociação semântica ou da contiguidade semântica (cf. Antunes, 2005).

Pela reiteração e pela colocação (naturalmente em conjunção com ou­tros recursos, no momento, fora de questão), se completa o "tecido" do texto, ou seja, se deixa o material linguístico em inteira interligação, de maneira que nada fica solto, isto é, nenhuma palavra está sem vínculo com, pelo menos, uma outra, próxima ou distante.

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A consideração desses recursos da coesão lexical, sem dúvida, propi­ciaria ao ensino das línguas reorientações bem mais significativas para a reavaliação e o tratamento de algumas questões textuais. Ou seja, saber o que se faz com o léxico para deixar o texto com sentido e bem estruturado constitui, de fato, uma competência das mais significativas.

Tomemos como ilustração o trecho seguinte, parte de uma matéria publicada na revista Veja, de 19 de julho de 1995.

OS PREÇOS MUITO LOUCOS DA ERA DO REAL

Culpar a última caipirinha pela total discrepância entre a nota apresentada pelo garçom e a inflação exibida pelo governo é injustiça. Emprestar os ou­vidos para o dono da pizzaria explicar a elevação de preços, apesar da baixa da farinha e dos ovos, é masoquismo. Os preços dos itens que influem no bolso da classe média estão uma loucura. Esse é, hoje, um dos principais desafios do Plano Real. Na semana passada, a Fundação Getúlio Vargas, FGV, calculou para VEJA o índice da inflação da classe média no primeiro ano de real: 46% — nada menos que 11 pontos acima do índice oficial de 35%. Nesse ritmo, a classe mé­dia está sendo surrada.

Um sinal de que o real ainda tem chão pela frente antes de ser encarado como moeda forte para valer: até agora, os centavos quase não existem para os bra­sileiros. Habituados a vê-los varridos para debaixo do tapete a cada novo pla­no econômico, o brasileiro tende a encará-los como moedinhas sem valor. /Is frações do real ainda não emplacaram nas trocas do dia a dia, não foram as­similadas pelo inconsciente popular. Isso tem um peso no aumento dos preços. Ninguém se lembra de que 6 centavos compram um pão. Outros 45 centavos pagam uma passagem de ônibus. Uma garrafa de refrigerante ou uma lata de cerveja custam 50 centavos. Com 54 centavos compra-se um litro de gasolina. Prova do desprezo: as moedinhas não se incorporaram ao vestuário dos bra­sileiros. Nada sobe em centavos, sempre de real em real. Para a classe média, em muitos reais.


Ou seja, muitas questões de ordem lexical poderiam receber um trata­mento mais adequado e, consequentemente, poderiam surtir efeitos mais significativos, se fossem percebidas desde a perspectiva das funções tex­tuais que preenchem, ou seja, se fossem vistas desde a aplicação que po­dem ter, enquanto recursos de construção dos diferentes discursos, orais e escritos, coesos e coerentes, com que interagimos.

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Vejamos como poderíamos adotar essa pers­pectiva.

Em primeiro lugar, dentro do procedimento da reiteração, seria útil rever a forma coercitiva e de­predadora com que a estratégia textual da repeti­ção de palavras tem sido considerada. De maneira absolutamente simplista e infundada, costuma-se coibir a repetição de palavras no texto, vista, na grande maioria dos casos, apenas, como indício da "pobreza vocabular" de quem a ela recorre.


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