Língua, texto e ensino Outra escola possível



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Língua, texto e ensino

Outra escola possível

Irandé Antunes

São Paulo

Parábola Editorial

2009
SUMÁRIO

Apresentação 11

Introdução 13

PARTE I - A LÍNGUA SOB NOVOS OLHARES



Capítulo 1 - A língua e a identidade cultural de um povo... 19

Capítulo 2 - Língua e cidadania: repercussões para o

Ensino... 33

PARTE II - O TEXTO SOB NOVOS OLHARES

Capítulo 3 - Textualidade e gêneros textuais: referência para o ensino de línguas.... 49

Capítulo 4 - Ir além dos elementos linguísticos do texto:

um desafio para os interlocutores 75



Capítulo 5 - Mas... e a coerência do texto a partir de seu material linguístico? 91

Capítulo 6 - Os vazios naturais do texto e sua coerência ... 105

Capítulo 7- O que é mesmo a informatividade do texto?... 125

Capítulo 8 - As funções do léxico na construção do texto ....141

Capítulo 9 - Da intertextualidade à ampliação da competência

na escrita de textos 161

PARTE III - O ENSINO SOB NOVOS OLHARES

Capítulo 10 - E se o ensino de línguas não perder de vista as

funções sociais da interação verbal? 173



Capítulo 11 - A leitura: de olho nas suas funções ....185

Capítulo 12 - A escrita de textos na escola: de olho na diversidade 207

Capítulo 13 - Concepções de língua: ensino e avaliação - avaliação e ensino .... 217

Capítulo 14 - Resumindo a escuta 229

Bibliografia 235
......

A Marcuschi,

a quem se ligam muitos dos fios com que fui

tecendo a rede semântica destes textos.

........
Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento



(Chico Buarque)

......

APRESENTAÇÃO

Os textos que compõem este livro foram, originalmente, apresentados em congressos ou seminários de linguística; alguns foram publicados depois em anais ou revistas especializadas. Responderam, portanto, a pro­pósitos acadêmicos de pesquisa e divulgação científica, dirigidos a um pú­blico de especialistas, quase sempre, professores e alunos universitários.

Ter acesso a esses textos, dispersos assim em diferentes épocas e su­portes, é pouco prático, sobretudo para os professores do ensino funda­mental e médio e para alunos dos diversos cursos de graduação do país. Decidi, então, juntá-los numa única publicação.

Mais: professores do ensino fundamental e médio e alunos dos cursos de graduação são leitores para quem a literatura disponível ainda é pouco farta. Por isso, decidi, também, dar a esses textos uma orientação mais explicitamente pedagógica e acessível.

Com esse propósito, revi-os todos e fiz significativas alterações, acres­centando, exemplificando, relacionando-os mais diretamente às práticas de ensino, na tentativa de promover um encontro maior entre a pesquisa que se faz na universidade e a orientação que o ensino de línguas exige, seja de língua materna, seja de línguas estrangeiras.

Os encontros frequentes com professores do ensino fundamental e médio e com alunos da pós-graduação me deixam sempre na escuta. É essa escuta que alimenta a minha disposição de lhes trazer um pouco

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mais de luz e apoio para enfrentarem tantos problemas que dificultam seu trabalho e deixam mais tardios os ideais de uma educação linguística relevante. A queixa dos professores de que "já não sabem, por vezes, o que fazer nas aulas de línguas" pode encontrar neste trabalho – espero - algumas, mas significativas respostas.

Meus agradecimentos a quem, implícita ou explicitamente, soube ter a disposição de me pedir essas respostas.

Mesmo, por vezes, atordoada, eu permaneço atenta a todas as perguntas!



Irandé Antunes

Recife, fevereiro de 2009



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INTRODUÇÃO

Uma professora me confessou que, ao voltar à sala de aula, depois de estar afastada por dez anos, constatou que se mantinha na escola a mes­ma programação de ensino da língua: cada uma das classes gramaticais - repetidas à exaustão, do fundamental ao ensino médio. Quase nada havia mudado, portanto, nesse espaço de tempo, apesar de tantos avanços das teorias, respaldados pelas pesquisas mais contundentes e especializadas. Como se isso pouco significasse, constatou também a professora que esse estudo era comprovadamente ineficaz, pois, no final do ensino médio, seus alunos ainda demonstravam ter grandes dificuldades, até mesmo frente aos mais elementares padrões da ortografia oficial.

Essa limitação do ensino às categorias gramaticais e suas funções sin­táticas se evidencia ainda no discurso da escola, pois, referindo-se às au­las de português, é comum, por exemplo, falar-se simplesmente em aulas de gramática, como se uma coisa equivalesse à outra. Mais de uma vez, acompanhei, em Recife, o comentário que, numa emissora de TV, é feito às provas do vestibular das universidades federais de Pernambuco. Nes­se programa, o comentário à prova de língua portuguesa foi anunciado por um professor como comentário à prova de gramática. De fato, parece acreditar-se que uma coisa equivale à outra.

Conclusão: ainda falta perceber que uma língua é muito mais do que uma gramática. Muito mais, mesmo. Toda a história, toda a produção cul­tural que uma língua carrega, extrapola os limites de sua gramática.



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Uma questão que se impõe diante de tais constatações tem a ver com o fosso existente entre os avanços teóricos das ciências da linguagem e a prática pedagógica do ensino de línguas; entre as orientações oficiais - pelo menos aquelas divulgadas por instituições dos governos - e o dia a dia da sala de aula.

Parece que são dois caminhos paralelos, que nunca vão se encontrar: por um lado, os cientistas e pesquisadores, com suas investigações e achados; por outro, os professores, com suas atividades diárias de ensino. Cada um olhando para seu próprio mundo. A especialização fica confinada no espaço da acade­mia e, assim, se torna patrimônio de poucos. O ensino continua preso às suas próprias justificativas e conveniências, e assim, vai-se reproduzindo nos mes­mos perfis e parâmetros. Muitos dos temas mais atuais desenvolvidos pela linguística ainda são estranhos aos programas estudados nas escolas. Parece que ainda falta acontecer a mútua relação entre a teoria - que inspira e funda­menta a prática - e a prática - que realimenta e instiga a teoria.

O que falta, para que a produção científica dos pesquisadores, dos lin­guistas e pedagogos tenha mais força junto ao trabalho feito na escola? O que falta para que a teoria linguística consiga desinstalar a tradição ('o modelo que se seguiu sempre') como a única referência para a prática pedagógica da escola?

O esforço por uma maior divulgação dessa produção dos centros de estudo pode ser uma das saídas para o impasse. De fato, trazer para o entendimento dos professores princípios teóricos, consistentes e bem fundamentados, explicitar teorias que possam alimentar seus debates e reflexões pode promover uma intervenção mais significativa da escola. Sobretudo, no que se refere às questões textuais ou quando se trata de ultrapassar as costumeiras questões morfossintáticas das palavras e das frases feitas a propósito.

Na verdade, os professores:

- precisam estar conscientes das amplas funções desempenhadas pelo uso das línguas na construção das identidades nacionais e na participação dos indivíduos nas mais diferentes formas de promover o desenvolvimento das pessoas e dos grupos sociais;



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- precisam saber mais sobre as questões textuais - coesão, coerência, graus de informatividade de um texto - sobre os vazios linguística e prag­maticamente autorizados pelos contextos da interação;

- precisam conhecer melhor as implicações lexicais, gramaticais e discursi­vas da diversidade de tipos e de gêneros de texto;

- precisam saber como se pode dar um tratamento textual às unidades da gramática;

- precisam conhecer mais sobre a intertextualidade e seu peso na atividade de ler e elaborar textos, sobretudo aqueles mais complexos;

- precisam saber mais sobre as grandes funções da leitura e da escrita; na verdade, precisam saber como promover a gradativa inserção do indiví­duo no mundo da escrita, ou melhor, no mundo da cultura letrada;

- precisam saber como articular ensino e avaliação, avaliação e ensino.

Tudo isso - e mais, que não dá para enumerar aqui - a fim de que, por seu trabalho, o professor consiga, de fato, alfabetizar, fazer crescer o letramento dos alunos e ampliar as competências mais significativas para as atividades sociais, interativas e de encantamento, relativas aos usos literários ou não das línguas (atividades de fala, escuta, leitura, escrita, análise).

Meu empenho com a publicação deste trabalho, conforme já fiz notar na apresentação, vai exatamente nesta direção: refletir com os professo­res, com os alunos de letras, de pedagogia, com os alunos das licencia­turas, enfim, sobre alguns aspectos das questões linguísticas. Não tenho a pretensão de trazer aqui grandes novidades teóricas. Este trabalho é, antes, uma espécie de apoio, de confirmação, de reiteração de princípios já definidos, mas que ganham ainda mais força se vistos com outros olhos, se ditos de outra forma, com outras perspectivas e outros destinos.

Digamos que faço com este livro uma tentativa de tradução de alguns dos princípios linguísticos mais amplos, que podem fundamentar um trabalho de ensino das línguas, na verdade, de educação linguística, que capacite a pessoa para atuar, com sucesso, nas atividades sociais que im­plicam, sob qualquer forma, algum tipo de linguagem.

Numa primeira parte, encaro mais de perto a relação entre língua, in­divíduo e cultura; entre língua e exercício da cidadania. Numa segunda, fixo-me em algumas questões mais especificamente textuais, para depois,



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numa terceira parte, centrar-me na atividade pedagógica do ensino, com foco em leitura e escrita. Em todo o trabalho, a perspectiva pedagógica aparece, uma vez que sempre procuro estar atenta às implicações que as teorias podem ter para o ensino.

Quero sentir-me como que me aproximando dos professores e alunos: para uma conversa. Para uma troca de ideias. Sem pretensões maiores que ajudá-los a encontrar jeitos de ver a linguagem e seu ensino com outros olhos: os olhos da interação, do diálogo, da funcionalidade, da diversidade, do encantamento. Quem sabe, assim, todos poderão sentir-se estimulados a ampliar as competências comunicativas que a convivência social exige?

Sentemo-nos, pois, para conversar um pouco!

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PARTE I


A LÍNGUA SOB NOVOS OLHARES
Este trabalho foi originalmente apresentado no VIII Fórum de Estudos Linguísticos, em novembro de 2005, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
capítulo I

A LÍNGUA E A IDENTIDADE CULTURAL DE UM POVO

O tema em apreço neste capítulo põe em con­fronto quatro realidades: língua, cultura, identidade, povo; na verdade, todas irremediavelmente indisso­ciáveis. O povo tem uma identidade, que resulta dos traços manifestados em sua cultura, a qual, por sua vez, se forja e se expressa pela mediação das lingua­gens, sobretudo da linguagem verbal. Dessa forma, não há jeito de se debruçar sobre cada um desses itens sem visualizar os outros três e os elos que os unem. Os paradigmas teóricos que tentaram isolar língua e povo, por exemplo, ou língua e cul­tura, serviram a outros objetivos que não o de dar conta da real natureza da linguagem, na sua abrangência de sistema de signos em uso, para fins da interação social.

Nessa perspectiva bem abrangente, vamos tentar mostrar os efeitos da interferência conjunta entre língua e cultura, povo e identidade, nas concepções e atividades pedagógicas do ensino da língua materna e, por extensão, no ensino de línguas estrangeiras. Devido à já referida indis- sociabilidade desses quatro elementos, evitaremos tratar cada um deles

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isoladamente. Ao contrário, a partir do fenômeno da língua, vamos pres­supor a conexão existente e determinante entre eles.

Vamos começar pela questão de base: o que é uma língua?

A escola e, em geral, o consenso da sociedade ainda se ressentem das heranças deixadas por uma perspectiva de estudo do fenômeno linguísti­co cujo objeto de exploração era a língua enquanto conjunto potencial de signos, desvinculada de suas condições de uso e centrada na palavra e na frase isoladas. Nessa visão reduzida de língua, o foco das atenções se res­tringia ao domínio da morfossintaxe, com ênfase no rol das classificações e de suas respectivas nomenclaturas. Os efeitos de sentido pretendidos pelos interlocutores e as finalidades comunicativas presumidas para os eventos verbais quase nada importavam.

Consequentemente, os fatos da interação verbal se reduziam à sim­ples condição de material linguístico, de itens gramaticais, cujo estudo, por sua vez, se exauria na simples análise dos componentes imanentes a cada um dos estratos que compõem a língua. Não foi por acaso que a exploração das classes de palavras, com todas as suas divisões e subdi­visões, constituiu o eixo dos programas de português. Uma análise de qualquer livro didático e, até mesmo, de certos compêndios de técnica de redação comprova esse dado.

Mas a integração da linguística com outras ciências, a abertura das pesquisas sobre os fatos da linguagem a perspectivas mais amplas, so­bretudo aquelas trazidas pela pragmática, provocaram o paulatino surgi­mento de novas concepções.

Com efeito, a compreensão do fenômeno linguístico como atividade, como um dos fazeres do homem, puxou os estudos da língua para a consi­deração das intenções sociocomunicativas que põem os interlocutores em interação; acendeu, além disso, o interesse pelos efeitos de sentido que os interlocutores pretendem conseguir com as palavras em suas atividades de interlocução; trouxe para a cena dos estudos mais relevantes o discur­so e o texto, desdobrados nas suas relações com os sujeitos atuantes, com as práticas sociais e com as diferentes propriedades que asseguram seu estatuto de macrounidade da interação verbal.



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Nesse cenário, era natural que ganhassem maior visibilidade as rela­ções entre a língua e seus contextos de uso, o que implica dizer entre as manifestações linguísticas e a produção e a expressão da cultura de cada comunidade de falantes.

Estava admitido, assim, o fenômeno linguístico sob a ótica de uma rea­lidade multifacetada e complexa. Aliás, muito complexa, insistimos. Isto porque incorpora elementos de diferentes ordens, uma vez que se situa também em múltiplos domínios.

Isto é, a língua, por um lado, é provida de uma dimensão imanente, aquela própria do sistema em si mesmo, do sistema autônomo, em poten­cialidade, conjunto de recursos disponíveis; algo pronto para ser ativado pelos sujeitos, quando necessário. Por outro lado, a língua comporta a dimensão de sistema em uso, de sistema preso à realidade histórico-social do povo, brecha por onde entra a heterogeneidade das pessoas e dos gru­pos sociais, com suas individualidades, concepções, histórias, interesses e pretensões. Uma língua que, mesmo na condição de sistema, continua fazendo-se, construindo-se.

Pela ótica dessa última dimensão, a língua deixa de ser apenas um conjunto de signos (que tem um significante e um significado); deixa de ser apenas um conjunto de regras ou um conjunto de frases gramaticais, para definir-se como um fenômeno social, como uma prática de atuação interativa, dependente da cultura de seus usuários, no sentido mais am­plo da palavra. Assim, a língua assume um caráter político, um caráter histórico e sociocultural, que ultrapassa em muito o conjunto de suas de­terminações internas, ainda que consistentes e sistemáticas.

Dessa forma, todas as questões que envolvem o uso da língua não são apenas questões linguísticas-, são também questões políticas, históricas, so­ciais e culturais. Não podem, portanto, ser resol­vidas somente com um livro de gramática ou à luz do que prescrevem os comandos de alguns manuais de redação.

Restringir-se, pois, à análise dos fatos da lín­gua, como se ela estivesse fora das situações de interação, é obscurecer seu sentido mais amplo

...

Marta Scherre (2005, p. 43), refletindo sobre o preconceito linguístico, se expressa nesses mesmos termos: as questões que envolvem a linguagem não são simplesmente linguísticas.



...

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de condição mediadora das atuações sociais que as pessoas realizam quando falam, escutam, leem ou escrevem. É subtrair das línguas o que de mais significativo elas têm: seu poder de significar, de conferir sentido às coisas, de expressar esses sentidos e, sobretudo, de mediar as relações interpessoais envolvidas na interação social.

A troca dos bens simbólicos, que constituem o patrimônio cultural dos grupos humanos, passa irremediavelmente pela mão dupla da interação verbal. Quer dizer, a linguagem é o suporte, a mediação pela qual tudo pas­sa de um indivíduo a outro, de um grupo a outro, de uma geração a outra. E é também o meio pelo qual se criam e se instauram os valores que dão sen­tido a todas as coisas, inclusive ao próprio homem. Ninguém pode, pois, reduzir a linguagem à questão menor de falar certo, de falar sem erro.

Efetivamente, a língua, sob a forma de uma entidade concreta, não existe. O que existe são falantes; são grupos de falantes. A língua, tomada em si mesma, não passa de uma abstração, de uma possibilidade, de uma hipótese. O que existe de concreto, de observável são os falantes, que, sempre, numa situação social particular, usam (e criam!) os recursos lin­guísticos para interagirem uns com os outros e fazerem circular a gama de valores culturais que marcam cada lugar, cada situação e cada tempo.

Nessa concepção, a língua só pode ser vista como um conjunto siste­mático, mas heterogêneo, aberto, móvel, variável: um conjunto de falares, na verdade, já que é regulado por comunidades de falantes.

Em qualquer língua, de qualquer época, desde que em uso, ocorre­ram mudanças, em todos os estratos, em todos os níveis, o que significa dizer que, naturalmente, qualquer língua manifesta-se num conjunto de diferentes falares, que atendem às exigências dos diversos contextos de uso dessa língua. Pensar numa língua uniforme, falada em todo canto e em toda hora do mesmo jeito, é um mito que tem trazido consequências desastrosas para a autoestima das pessoas (principalmente daquelas de meios rurais ou de classes sociais menos favorecidas) e que tem confun­dido, há séculos, os professores de língua.

Exatamente, por essa heterogeneidade de falares é que a língua se tor­na complexa, pois, por eles, se instaura o movimento dialético da língua: da língua que está sendo, que continua igual, e da língua que vai ficando diferente.

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Não querer reconhecer essa natural tensão do movimento das línguas é deixar de apanhar a natureza mesma de sua forma de existir: histórica e culturalmente situada.

Por conta dessas vinculações da língua com as situações em que é usada, a voz de cada um de nós é, na verdade, um coro de vozes. Vozes de todos os que nos antecede­ram e com os quais convivemos atualmente. Vo­zes daqueles que construíram os significados das coisas, que atribuíram a elas um sentido ou um valor semiológico. Vozes que pressupõem papéis sociais de quem as emite; que expressam visões, concepções, crenças, verdades e ideologias. Vozes, portanto, que, partindo das pessoas em interação, significam expressão de suas visões de mundo e, ao mesmo tempo, criação dessas mesmas visões.

A língua é, assim, um grande ponto de encontro; de cada um de nós, com os nossos antepassados, com aqueles que, de qualquer forma, fize­ram e fazem a nossa história. Nossa língua está embutida na trajetória de nossa memória coletiva. Daí, o apego que sentimos à nossa língua, ao jeito de falar de nosso grupo. Esse apego é uma forma de selarmos nossa adesão a esse grupo.

Tudo isso porque linguagem, língua e cultura são, reiteramos, realida­des indissociáveis.

É nesse âmbito que podemos surpreender as raízes do processo de construção e expressão de nossa identidade ou, melhor dizendo, de nossa pluralidade de identidades. É nesse âmbito que podemos ainda experi­mentar o sentimento de partilhamento, de pertença, de ser gente de al­gum lugar, de ser pessoa que faz parte de determinado grupo. Quer dizer, pela língua afirmamos: temos território-, não somos sem pátria. Pela lín­gua, enfim, recobramos uma identidade.

Na verdade, a língua que falamos deixa ver de onde somos. De certa forma, ela nos apresenta aos outros. Mostra a que grupos pertencemos. É uma espécie de atestado de nossas identidades. Revelamo-nos pela fala. Começamos a dizer-nos por ela. Simplesmente pela forma, pelos sons,

...

...


De fato, o que se diz só faz sentido em relação aos sen­tidos preexistentes. Nenhum discurso é o ponto primeiro de uma cadeia. Todos nós apenas continuamos o discurso que já está em circulação.

...


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pela entonação, pelo jeito com que falamos. Antes mesmo que nos revele­mos pelas coisas que dizemos. As ideias, se dizem de nós, só vêm depois do que já disseram nosso sotaque, nossas entonações, nossas escolhas lexicais e opções sintáticas.

Existe, consequentemente, uma relação de estreita interdependência entre variedade cultural e variedade linguística. Dois contextos cultural­mente distintos - mesmo no seio de um território em que se fale a mesma língua - terão, necessariamente, distinções também no âmbito de suas realizações linguísticas.

Nesse caso, estão Portugal e Brasil, por exemplo: territórios com vi­síveis diferenças geográficas, étnicas, históricas, socioculturais. Conse­quentemente, realidades presas à condição inevitável de apresentarem uma também visível diversidade linguística, sobretudo naqueles aspectos mais acidentais, que não afetam propriamente o cerne de sua identidade de sistema único.

Como realidade teórica, esse princípio se mostra inteiramente aceitável e parece não gerar maiores controvérsias. Ninguém duvida de sua perti­nência. Todos acham até mesmo engraçadas as diferenças entre os falares de Portugal e os do Brasil, nomeadamente aquelas diferenças que envol­vem diversidades lexicais. As coisas mudam, no entanto, quando a ótica pela qual essas diferenças são vistas tem a ver com a gramática, melhor di­zendo, tem a ver com a questão do português certo e do português errado.

Nesse domínio, as complicações são muitas. Por exemplo, se compa­rados os dois falares, e se constatadas diferenças (sobretudo de ordem sintática), a diferença é vista como erro, e o erro é sempre atribuído ao português brasileiro. Evidentemente, esse julgamento é, em última aná­lise, herança de uma história de colonização e dominação política, e re­monta a relações seculares de uma pretensa superioridade cultural do povo colonizador.


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