Língua, texto e ensino Outra escola possível



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Não deixa de ser, portanto, resquício de uma ideologia, baseada num certo etnocentrismo, que deixa o colonizado na condição de inferior, eter­namente subalterno. Por isso é que os brasileiros, por exemplo, têm car­regado a vida toda o peso ou a culpa de terem "maculado", "subvertido",



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"deteriorado" "corrompido", "empobrecido", "atropelado", "assassinado" o português de Portugal. Este, sim, é um português "elegante", ou melhor, é "o verdadeiro português".

Nesse meio de campo, resvala-se facilmente para uma associação im­procedente, simplista (mas muito arraigada!), que consiste em se fazer uma ligação entre, por um lado, beleza e feiura e, por outro, língua certa e língua errada. Ou seja, na concepção de muitos, "língua certa" é "língua bonita"; "língua errada" é "língua feia". "Até dói nos ouvidos". Nessa visão, não apenas o português do Brasil é mais errado que o português de Por­tugal. É também mais feio e mais pobre.

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Pesquisa realizada por Auxiliadora Coelho, em 1998, em Belém de São Francisco, alto sertão de Pernambuco, confirmou significativamente a veracidade desses dados.



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Pesquisas etnográficas já demonstraram a for­ça dessa associação: interrogados sobre quem falava mais bonito, se os nordestinos ou os pau­listas, nordestinos do sertão pernambucano de­clararam, com ares de quem dizia obviedades, que a fala do nordestino é muito mais feia, muito mais desagradável e deselegante que a do paulista, evi­dentemente. Essa associação, na ingenuidade de muitos, leva a afirmar que o próprio falante nordestino é mais feio que o falante paulista.

O pior é que, implícita ou explícita, sutil ou ostensivamente, a es­cola reforça tais distorções. Reforça, porque deixa de trazer para o debate aberto o princípio do relativismo cultural, pelo qual se pode admitir que, de fato, não existe língua feia ou deselegante; não existe língua que se degrade, que entre em decadência. O que existe é língua que muda, que varia, que incorpora novos sons, novas entonações, novos vocábulos, que altera seus significados, que cria associações diferentes, que adota padrões sin­táticos novos, sobretudo quando essa língua é exposta a variadas situações de uso, a outras in­terferências culturais.

A cultura do erro, tão forte no espaço da escola e nas folhas, ondas e imagens da mídia, tem reforçado essas distorções acerca do fenômeno linguístico e tem alimentado as confessadas ou discretas manifestações do preconceito linguístico.

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Vale a pena consultar os trabalhos de Marcos Bagno (cf. Bibliografia), que tem desenvolvido significativas pesquisas e reflexões em torno da questão do preconceito linguístico e das particularidades do português do Brasil.



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Aos partidários do conservadorismo, até parece razoável admitir que mudanças na língua tenham acontecido no desenrolar da história, ao longo dos séculos passados. Assim, a todos eles, parece natural que o português do século XXI seja diferente do português do século XVI, por exemplo. Estranham, contudo, que esse processo de mudança continue acontecendo, ainda hoje, presentemente. Estranham que, no Brasil, ago­ra, se fale um português com diferenças - da fonética à semântica - do português de Portugal. E aí apontam como erro o que, de fato, são apenas mudanças; são apenas outras normas.

Poderíamos exemplificar com o que acontece em relação aos padrões da colocação pronominal. Na escola brasileira, é tradição se considerar erro começar um período com um pronome oblíquo.

De fato, a gramática do português prescreve que "Não se inicia período por pronome átono" (cf. Becha­ra, 1999, p. 588) ou "Não se principia o período pelo pronome átono" (cf. Hildebrando, 1997, p. 451). Na verdade, essa é a norma que predomina no português de Portugal. Lá, não é preciso ser escolarizado para saber disso. Até uma criancinha diz: "Dá-me", ou ain­da, "Minha mãe disse-me que...", pois, lá, a ênclise é a norma geral da colocação dos pronomes átonos.



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A propósito de toda essa questão da norma - bastan­te complexa, por sinal - incluindo os conceitos de norma culta e norma-padrão, vale a pena ler o livro de Faraco (2008). Muitos equívocos podem ser desfeitos.

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Mas é diferente no português do Brasil. Neste, ao contrário, o padrão comum é a próclise, que comparece no uso da língua em geral, da culta à menos culta. Por que, então, não assumir como corretamente gramatical o que, de fato, é norma, isto é, é prática regular, na fala (e até em exempla­res da escrita formal) do português do Brasil?



Se analisarmos as observações com que, em algumas gramáticas, se abre o capítulo da colocação pronominal, temos a impressão de que, fi­nalmente, vai ser reconhecido como certo o padrão de uso dos pronomes no português do Brasil.

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Com efeito, Bechara (1999, p. 587), introduzindo o tópico sobre colo­cação dos pronomes átonos, admite que:

Durante muito tempo viu-se o problema apenas pelo aspecto sintático, criando-se a falsa teoria da "atração" vocabular do não, do quê, de certas conjunções e tantos outros vocábulos. Graças a notáveis pesquisadores, e principalmente a Said Ali, passou-se a considerar o assunto pelo aspecto fonético-sintático. Abriram-se com isso os horizontes, estudou-se a questão dos vocábulos átonos e tônicos, e chegou-se à conclusão de que muitas das regras estabelecidas pelos puristas ou estavam erradas, ou se aplicavam em especial atenção ao falar lusitano. A gramática, alicerçada na tradição literária, ainda não se dispôs a fazer concessões a algumas tendências do falar de brasileiros cultos, e não leva em conta as possibilidades estilísticas que os escritores conseguem extrair da colocação de pronomes átonos. Daremos aqui apenas aquelas normas que, sem exagero, são observadas na linguagem escrita e falada das pessoas cultas. Não se infringindo os critérios expostos, o problema é questão pessoal de escolha, atendendo-se às exigências da eufonia. É urgente afastar a ideia de que a colocação brasileira é inferior à que os portugueses observam (os destaques são nossos).


De fato, as observações de Bechara parecem abrir para a possibili­dade de se reconhecer como certo o fato de o português do Brasil adotar outros critérios além do puramente sintático para o lugar dos pronomes na frase. No entanto, na maioria das gramáticas, quando as regras da colo­cação pronominal são apresentadas, fecha-se totalmente a possibilidade de um padrão brasileiro diferente. Ao contrário, se assume um tom os­tensivamente prescritivo ("Não se inicia período por pronome átono") e indiscriminado (sem referência nem a Portugal nem ao Brasil), valendo, assim, para um português geral, abstrato, sem referência localizada.

Vale a pena perguntar-se e avaliar: qual o conceito de norma que adotamos quando propomos certas regras da língua? Pelo que se sabe, o conceito de norma "se encontra no cen­tro de numerosos debates" e remonta à complicada questão da padronização das línguas (cf. Charaudeau & Maingueneau, 2004,348-350). O conceito de norma pode equivaler a regra, que todos devem incondicio­nalmente seguir, sendo, assim, projetiva, no sentido

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O que acontece é que a escola, em geral, enxerga a norma mais pelo ângulo da normatividade do que pelo outro, da regularidade.



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de que regula as produções que vão acontecer, como pode corresponder àquilo que regularmente ocorre em um determinado contexto, sob certas condições, correspondendo, portanto, àquilo que é regular, que costuma acontecer nos usos cotidianos da língua.

São dois sentidos, então, para o conceito de norma: o que é regra, pres­crição de uso; o que é regular, costumeiro nos usos de determinado grupo. No primeiro caso, norma implica normatividade; no segundo, implica re­gularidade. Nessa perspectiva, afirma Faraco (2002, p. 38): "Os grupos sociais se distinguem pelas formas de língua que lhes são de uso comum. Esse uso comum caracteriza o que se chama de a norma linguística de determinado grupo" (essa dupla conceituação de norma Faraco reitera e deixa muito bem esclarecida em seu livro de 2008).

Nessa ótica, a norma que desconsidera o uso real dos diferentes gru­pos sociais revela-se inconsistente; consequentemente, é improcedente o julgamento da correta padronização da língua que deixa de levar em conta o que, de fato, se diz em determinada comunidade de falantes. Entender bem essa diferença entre norma-padrão e norma culta é crucial para quem trabalha à volta das questões linguísticas e suas repercussões sociais.

Vale lembrar que as comunidades de falantes não vivem isoladas umas das outras. Pelo contrário, estão em constantes situações de intercâmbio, o que significa dizer que as normas particulares de cada comunidade tran­sitam também para outras, em um movimento dinâmico e contínuo de vai­vém. Esse movimento torna ainda mais complexa qualquer possibilidade de definir com precisão aquilo que poderia ser a norma-padrão nacional. Ou seja, são muitos os fatores implicados na determinação dos fatos lin­guísticos, pela razão mesma de sua vinculação à vida sociocultural das co­munidades. A questão da norma ultrapassa, assim, os limites da gramática e do léxico da língua. Infiltra-se nas intrincadas veredas das identidades culturais, das ideologias, dos valores e das crenças dos grupos sociais.

Parece oportuno ir mais adiante e perguntar: por que não assumir essa perspectiva da natural complexidade dos fatos linguísticos? Por que não trazer, do discurso teórico para a prática social e pedagógica, as implicações das teorias sociolinguísticas, que defendem a legitimidade da variação linguística de nossas interações verbais concretas?

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Até quando vamos contar como erro - erro que deve ser corrigido - o uso da próclise no Brasil, em começo de frases? Quando, de fato, vamos admitir que não existe um "português de verdade" (o europeu) e outro, "caricato", "cópia enviesada e desfigurada" (o nosso)? Quando vamos ad­mitir que o gramaticalmente certo do Brasil não precisa coincidir com o gramaticalmente certo de Portugal?

É essa ótica estreita e simplista que sustenta o sentimento verde-amarelo de que "o brasileiro não sabe falar", "fala um português estro­piado", "comete atentados contra o idioma português", "não respeita as regras da gramática". A persistência na denominação pejorativa de vícios de linguagem - tão a gosto dos escolarizados e até mesmo de professores - denuncia bem claramente esse olhar preconceituoso sobre os fatos do português do Brasil.

Seria bem mais proveitoso e mais animador se as mudanças linguís­ticas fossem vistas simplesmente como mudanças, como diferenças, algo inevitavelmente esperado na normalidade dos fatos sociais e históricos. Ou algo inteiramente previsível nos contextos regulados pelas institui­ções humanas. Numa palavra: algo normal. E mais: até enriquecedor. Des­sa forma, se evitaria ajuntar à identificação das diferenças um juízo de valor, que acaba por enquadrar os usos do passado nos usos melhores, e os de agora, nos piores, ou como práticas que ameaçam desfigurar a integri­dade ou, pelo menos, a beleza original da língua.

Num exercício de classe, uma professora solicitou que os alunos ana­lisassem um texto escrito em português do século XVII e pediu que eles opinassem sobre a linguagem usada pelo autor. A maioria dos alunos foi taxativa em mostrar que "o texto estava cheio de erros". Ou seja, os alunos cedo aprenderam a ver, nas mudanças, simplesmente, erros. Na verdade, simplesmente expressam o que a opinião geral da escola lhes tem feito ver acerca das mudanças linguísticas.

Em síntese, uma associação clara, explícita, reiterada, entre a língua e as situações culturais e históricas de seus usos poderia evidenciar que as mu­danças linguísticas são apenas decorrências normais das mudanças históri­cas e culturais sofridas pelos grupos sociais em que essas línguas são faladas. Na verdade, o que faria bem a todos nós seria mudar de óculos. Ou seja, enxergar

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a língua com os olhos da ciência, com os olhos da pesquisa linguística, da investigação antropológica ou de outra qualquer que integre o homem e sua atividade no rol das coisas em movimento, em mutação, em construção permanente. Somente assim se poderia romper com a visão ingênua subja­cente ao mito da imutabilidade e da homogeneidade linguísticas.



Evidentemente, nessa área, se situa o conflito entre a necessidade da padronização e o respeito às diferenças. A complexidade do fenômeno linguístico tem raiz também aqui: por um lado, a língua não pode per­der sua identidade; por outro, não pode deixar de incorporar mudanças e diferenças. Resta aos interlocutores equilibrar esses dois lados, o que, intuitivamente, é feito pela própria necessidade que os falantes têm de garantir a mediação da linguagem em suas atuações sociais.

A escola, nesse particular, pode assumir o papel de explicitar esse con­flito, orientando os alunos a perceber a existência das línguas como algo feito e, ao mesmo tempo, fazendo-se. A identidade de cada língua é apenas alguma coisa em viagem; sem que o padrão anterior seja melhor ou mais puro que o atual. Simplesmente, os dois lados fazem parte da original e sempre inacabada constituição das línguas. As identidades linguísticas - e todas as outras - são múltiplas, precárias e transitórias.

É lamentável que o trabalho da escola ainda obscureça esses aspectos contidos na complexidade dos fatos linguísticos. De fato, o trabalho da esco­la, à volta com as nomenclaturas, ou fechado na análise apenas sintática de frases soltas, de textos construídos artificialmente para exemplificar unida­des linguísticas, tem, na grande maioria, deixado de fora a exploração dos sentidos, das intenções, das implicações socioculturais dos usos da língua. Tem deixado de fora, sobretudo, o papel das atuações verbais na condução da própria história das pessoas e dos mundos que elas constroem e habitam.

Seria extremamente importante que a escola concedesse mais espa­ço a um trabalho de análise sobre os fatos da língua. Uma análise que ti­vesse base científica e, assim, se soltasse das impressões pessoais e das concepções ingênuas do senso comum. Uma análise que se detivesse nos aspectos mais relevantes de sua constituição; ou seja, na língua enquanto fato social, vinculado à realidade cultural em que está inserida e, assim, sistema em constante mutação e a serviço das muitas necessidades comunicativas de seus falantes.

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Uma análise que incluísse, evidentemente, questões de gramática, mas que soubesse ir muito além do que descre­vem ou prescrevem os manuais. Uma análise, enfim, que explorasse os usos reais que são feitos e, assim, pudesse surpreender o movimento de criação e de vida que passa pelo interior da história de todas as línguas. Nessas análises, a produção literária teria um lugar de destaque: seria uma forma de vivenciar o gosto pela admiração dos bens simbólicos e estéticos que fazem o patrimônio nacional.

Vale a pena sonhar com o dia em que a escola saiba despertar nos alu­nos a paixão pela língua portuguesa; inclusive pela língua portuguesa fala­da no Brasil. Saiba fazer ver que a metrópole, da qual os mares atlânticos nos separam, não pode constituir a única referência de nossa identidade linguística. A língua portuguesa falada no Brasil precisa ter como foco de sua legitimidade as manifestações da plural e mestiçada cultura brasileira.

O certo no Brasil é se falar conforme falam os brasileiros. Sem adotar, contudo, a estreiteza de negar-se a conhecer outros exemplares da lusofonia intercontinental, tão culturalmente diversificada, tão impregnada de história, de mares e de terras, tão misturada de cores (e sabores!), de sons e ritmos; por isso mesmo impossibilitada de ficar igual a si mesma, petrificada ou cristalizada numa forma única e invariável.

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Quando o debate sobre essas questões vai se tornar rotineiro nas escolas e na mídia nacional?

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Capítulo 2



LÍNGUA E CIDADANIA: REPERCUSSÕES PARA O ENSINO

1. Introdução

Mantendo a consciência da interdependência entre língua, cultura, identidade e povo, pretendemos, neste segundo capítulo, explorar, mais especificamente, o entrosamento entre língua e cidadania - o que impli­ca a relação direta entre escola e sociedade. Ou seja, pretendemos considerar a dimensão social e política do ensino da língua, ou o ensino da língua como meio e possibilidade de a escola atuar na formação, cada vez mais consciente e participativa, do cidadão. Em síntese, queremos trazer elementos que nos ajudem a compreender como o ensino de línguas - línguas que marcam a identidade cultural de um povo - pode favorecer a formação do sujeito para a cidadania.

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Este trabalho foi originalmente apresentado no XIX Congresso da Federação Internacional dos Professores de Línguas Vivas, realizado na UFPE, Recife, no mês de março de 1997. Traz agora significativos acréscimos.

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2. Ensino de línguas e concepções acerca da linguagem

O ponto crucial da questão no momento levantada reside no âmbito das concepções que temos acerca do que é uma língua, das funções que a

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gramática e o léxico desempenham, dos fins a que se destina uma língua, imediata e mediatamente, no plano individual e no plano social. Tal ponto é crucial porque representa o fundamento de tudo. As decisões pedagógicas que tomamos, as ativida­des que empreendemos - quer se trate de objetivos, quer se trate de currículos, ou de avaliação - depen­dem do conjunto das concepções que temos, mes­mo que não saibamos explicitá-las.

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Uma pesquisa feita por Maria Helena Moura Neves, em 1994, revelou que, entre tantas outras opções, os professores de português se concen­tram em atividades de reconhecimento das classes gramaticais e das funções sintáticas das palavras nas frases.

(Outros trabalhos da professora Ma. Helena tratam de questões rela­tivas à gramática e a seu ensino. Cf. Bibliografia)

Em muitas escolas do Brasil, ainda persistem esses tipos de atividades e faltam oportunidades de leitura e de escrita. A obsessão pela gramática "engole" a maior parte do tempo em sala de aula. Os pais dos alunos, alheios às exigências de uma educação linguística mais ampla, reforçam esse ensino e ingenuamente creem que assim se aprende a ler e a escrever com sucesso.

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A pesquisa acerca do que se faz nas aulas de línguas - embora aqui nos detenhamos mais nas aulas de português - tem revelado que ainda pre­valece (salvo algumas exceções) uma concepção de língua demasiado estática (sem mudanças), demasiado simplificada e reduzida (sem indefini­ções, sem imprevisibilidades), descontextualizada (sem interlocutores, sem intenções) e, portanto, falseada.

Isto é, ainda predomina uma concepção de língua como um sistema abstrato, virtual apenas, desprega­do dos contextos de uso, sem pés e sem face, sem vida e sem alma, "inodora, insípida e incolor". Uma língua que, nesses termos, facilmente se esgota em um estu­do da morfologia das palavras e da sintaxe das frases. Ou se satisfaz na exploração de nomenclaturas e clas­sificações, com requintes de pormenores, beirando, na maioria das vezes, os dogmatismos infundados das abordagens simplistas.

Os resultados desse ensino também já se deram a conhecer: o declínio da fluência verbal, da compreensão e da elaboração de textos mais complexos e formais, da capacidade de leitura da lingua­gem simbólica, entre muitas outras perdas e reduções.

Em resposta a toda essa experiência, consolida-se, por parte do aluno, a aversão quase generalizada e quase incontornável ao estudo do português,

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além da convicção de que se trata de uma língua "inaprendível", "comprovadamen­te mais difícil que todas as outras". Por parte do professor, fica a certeza de muito pouco retorno para tantos esforços, retorno que não satisfaz nem mesmo no domínio da própria vida escolar. E, como saldo final, fica a disse­minação hegemônica da "ideologia da incom­petência", isto é, a internalização pelos alunos do sentimento de que não têm competência, não sabem falar, não sabem escrever (nem conseguem aprender); enfim, não conseguem resolver, com êxito, as tarefas comunicativas do dia a dia. É curioso que essa consciência de que são linguisticamente incompetentes os alunos só desenvolvem quando passam a frequentar a escola.

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Vi, muito recentemente (2007), um grupo de crianças que brincavam de escola. O "professorzinho" passava a tarefa: um ditado das seguintes frases: Vovó vai à vila. A pipa é do papai. O pião é do Dudu. Vovó vê o ovo. Lili caiu.

Aparentemente, nada de mais. Na verdade, tem muito de menos. Falta a essa atividade o exercício de uma interação; falta uma função, uma finalidade para essas frases; falta uma unidade semântica. Quando alguém, numa situação real de interação, diz: "Vovó vai à vila", sem dúvida, está respondendo a perguntas de outro, como: Pra onde vovó vai? O que vovó vai fazer hoje? Vovó vai sair? Ou seja, ninguém diz as coisas à toa, fora de um propósito comunicativo qualquer. Fora de uma dialogicidade, pelo menos, presumida. No caso em análise, pode­mos ver que as frases se sucedem sem nenhuma motivação interacional. Muito significativo é o fato de as crianças - brincando de escola - estarem repro­duzindo fielmente o que vivenciam em sala de aula (em pleno século XXI). Se não se concebe a linguagem como uma atividade constitutivamente dialógica e funcional, seu estudo vira um exercício inócuo e sem sentido.

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2.1. Mas, que concepções de língua pode­riam favorecer um ensino que repercutisse positivamente na formação do cidadão? Em linhas muito gerais, vamos lembrar algumas.

Em primeiro lugar, a língua é uma ativida­de funcional. Isto é, as evidências nos dizem que nenhuma língua existe em função de si mesma, desvinculada do espaço físico e cultu­ral em que vivem seus usuários ou indepen­dente de quaisquer outros fatores situacio­nais. As línguas estão a serviço das pessoas, de seus propósitos interativos reais, os mais di­versificados, conforme as configurações con­textuais, conforme os eventos e os estados em que os interlocutores se encontram. Daí por que o que existe, na verdade, é a língua-em-função, a língua concretizada em atividades, em ações e em atuações comunicativas; isto é,



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a língua como modo de ação, como forma de prática social, direciona­da para determinado objetivo. Na verdade, existem muitas formas de se exercer a prática social. A linguagem é apenas uma delas e se concretiza linguisticamente, por meio do discurso falado ou escrito.

Dessa forma, vale dizer que as pessoas, quando falam, evidentemen­te, dizem coisas; mas dizem coisas para fazer outras, para praticar ações, para intervir, agir ou cumprir, em relação a um outro, certas funções. Isto é, o que dizemos tem uma força, que se manifesta em atos, os quais têm seus efeitos: são explicações, declarações, pedidos, oferecimentos, ordens, advertências, ameaças, promessas etc. O falar por falar, na prática, não existe. Se, por alguma conveniência, afirmamos isso, estamos na verdade recorrendo a uma estratégia discursiva para deixar velado um propósito que não podemos ou não queremos assumir.


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