Língua, texto e ensino Outra escola possível



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É assim que são feitas as redações da escola (com algumas raras ex­ceções, é claro!). É assim que se intenta ensinar os alunos a escreverem cartas, relatórios, projetos, depoimentos, justificativas, gêneros que - no exercício de atividades futuras - vão estar nas exigências do dia a dia e vão, muitas vezes, decidir o engajamento profissional de cada um.

Se poderia pensar que esse jogo escapa totalmente ao juízo crítico do alu­no. Há quem intua, ou mesmo explicite, as consequências desse processo de anulação de um sujeito, que planeja, produz e "autoriza" seu texto, a favor de um "sujeito despersonalizado, impessoalizado" que produz uma redação.

Abordados sobre como se pode caracterizar o bom texto, um aluno escreveu:

(8) Atualmente cobra-se do aluno redações que forçam o mesmo a omi­tir sua opinião em função de apresentar um texto mais claro pro sistema, esse estão fabricando pessoas falsas e mentirosas, que deus quera não fassa parte da imprensa.

Até essa situação mudar temos que lidar com isso, mas sem esquecer nossas ideias. (...) Obs: procurei não fazer um texto seguindo tais regras.

Outra observação não se afasta muito dessa primeira, mas toca mais de perto a questão do ensino da gramática. Pelo que se pode ver no fragmento transcrito acima, somos levados a concluir que: tantos esforços nas análises da tipologia de sujeitos, de predicados, de orações e de outras unidades da língua - na verdade, esforços para o saber classificatório sobre a língua -, parecem não resultar na compreensão de que a combinação das palavras nos enunciados não é aleatória e deve promover um sentido inteligível.



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Na verdade, é que, para isso, falta ensino, falta reflexão, falta análise. Ou, mais especificamente, parecem faltar novas situações de ensino. De ensino da necessária passagem do oral informal para o escrito formal, do impreciso para o preciso, do desordenado para o ordenado, do literal para o metafórico, da redação, enfim, para a escrita de textos significati­vamente presos a um propósito comunicativo específico.

O domínio da oralidade informal, o domínio da análise de frases soltas ou da escrita da 'redação escolar', apenas, constituem uma reduzida com­petência comunicativa, bem longe do que é exigido agora para este século - o século, como dizem, do conhecimento, da divulgação e socialização dos saberes, da informação multimídia, das especializações.

No mundo contemporâneo, mais do que oportunidades de trabalho, o que falta são trabalhadores qualificados, setor em que o domínio fluente, versátil, funcional, claro e relevante da linguagem se mostra inteiramente significativo. A escola não pode furtar-se a esse papel formador do cida­dão técnica, política e socialmente capaz.

Que se pense na função social da linguagem - da linguagem oral, da linguagem escrita e da linguagem digital, inclusive - para a produção e a socialização do conhecimento. Que se pense nos benefícios de se saber garantir a coerência linguística do que dizemos, para que aquilo que dize­mos possa ser expressão de nossa crescente disposição de cooperar com o discurso total da humanidade - que ninguém sabe quando começou nem quando vai findar.

...

o que falta ser feito nas escolas para que essas questões sejam entendidas e tantos equívocos, desfeitos?

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capítulo 6

OS VAZIOS NATURAIS DO TEXTO E SUA COERÊNCIA

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Este texto foi, anteriormente publicado, em 2003, na revista Portaldo São Francisco, uma revista do Centro de Ensino Superior do Vale do São Francisco (Belém de São Francisco, PE).

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Uma das grandes questões da interação verbal concerne à competência dos interlocutores para to­mar decisões quanto ao que explicitar e ao que dei­xar implícito. Tais decisões têm que estar apoiadas no conjunto de informações que supomos partilhar com nosso parceiro de interação. Tudo quanto é presumi­do como já 'sabido' não necessita ser explicitado, sal­vo interesses particulares de ênfase, de reiteração etc. O que é certo é que, na trama de nossas interações, há um pano de fundo que regula nosso dizer, ora mais, ora menos, explícito. A competência para administrar essas condições reper­cute na coerência e reitera nossas certezas de que escrever gramaticalmente correto não representa a condição suficiente de um texto bem escrito.

Consideremos um pouco mais essas questões da explicitude e da implicitude do discurso.


1. A explicitude do discurso

É consenso que o discurso das línguas naturais não é totalmente ex­plícito. Ou seja, em todo discurso há proposições que não se expressam

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diretamente e, portanto, não aparecem na superfície, embora possam ser apreendidas a partir de outras que estão literalmente expressadas ou previstas contextualmente.

São proposições implícitas ("enlaces omitidos" "vazios"), que, apesar de não serem expressas, são necessárias ao estabelecimento da coerência ou de seu entendimento. Quem fala ou escreve tem consciência dessa in­completude natural do discurso e vai, com maior ou menor competência, administrando o que traz ou não para a explicitude do texto. Quem ouve e lê, também, sabe que tudo o que é dito não está manifestado nas sinaliza­ções superficiais e, igualmente, vai administrando esses vazios, de forma a calcular o sentido e as intenções pretendidas pelo seu interlocutor.

Por exemplo, quem pega o jornal, na seção de classificados, e lê que:

(1) Quem anuncia vende.

sabe como preencher os vazios aí deixados e recuperar, portanto, os ter­mos que devem complementar a predicação dos verbos 'anunciar', 'ven­der'. Iguais a esses, muitíssimos outros casos pedem a atenção do ouvinte ou do leitor para completar as lacunas deixadas. Vamos ver mais adiante alguns desses casos.

Mais interessante ainda é um anúncio de jornal em que uma dona de casa procura os serviços de uma babá. Se não tivéssemos em conta os ele­mentos de mundo que constituem essa situação, tudo pareceria estranho ou até mesmo absurdo. Vejamos:

(2) Procura-se babá que durma no emprego.

Como esse, grande parte de nossos enunciados, além de seus signifi­cados explícitos, carrega também outros implícitos, subjacentes, contex­tuais, que não aparecem na superfície, mas que são fundamentais para o entendimento global do que é dito.


2. Implícitos: mas em que condições?

Vale a pena indagar: sob que condições o que queremos dizer pode ou deve ficar implícito? Que propriedades das palavras, das orações, das

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sequências de orações, dos gêneros de texto ou do contexto situacional solicitam ou condicionam o recurso a implícitos? Como pressupor o êxito da compreensão interativa, apesar desses implícitos?



Num primeiro momento, convém distinguir, e o fazemos com base em van Dijk, 1984, entre discurso completo (totalmente explícito) e discurso incompleto (com implícitos).

Um discurso é completo se todos os elementos (indivíduos, proprie­dades, relações) que caracterizam uma situação aparecem expressos na superfície do texto. Pela nossa experiência mesma, sabemos que, na maioria das situações, o conjunto de tais elementos é muito amplo, re­sultando daí que o discurso completo é impraticável e pragmaticamente inadequado, pois muito da informação acabaria por ser redundante e não relevante para a interação.

Imagine-se que, em vez de alguém dizer:

(3) O sonho de qualquer universitário é ter um emprego garantido após a formatura,

dissesse o seguinte:

(3') O sonho de qualquer universitário é, após cursar todas as disci­plinas do curso e, desde que comprovada a aprovação em todas elas, após receber o diploma, registrá-lo junto aos órgãos competentes, elaborar um curriculum, procurar uma empresa idônea, apresentar- se como pessoa capacitada, ser avaliado, em diferentes tipos de testes, ser aprovado e ser selecionado, ter um emprego garantido.

É evidente que o sujeito, até mesmo de forma bem intuitiva e natural, seleciona o que dizer dentro do grande conjunto das "informações possíveis", inclusive quantitativamente, para dizer apenas o que é relevante num deter­minado contexto. O critério para discernir sobre o que é relevante é exata­mente optar por aquilo que não pode deixar de ser dito, pois se o for, faz falta.

A decisão de escolher entre o que expressar e o que deixar implícito cabe, pois, ao sujeito autor do discurso, de acordo com o gênero e com outras condições de cada situação de interação, sobretudo, é claro, as con­dições do interlocutor ou dos interlocutores envolvidos na interação. Al­guns

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discursos, evidentemente, podem conter referências ou descrições detalhadas. Outros - por exemplo, os discursos legais ou de processos cri­minais - até devem chegar a todos os detalhes, por vezes, com a máxima explicitude possível, para não dar margem a interpretações equivocadas.

Numa reportagem sobre um acidente, na qual foram referidas as pro­vidências tomadas para garantir o socorro às vítimas, o repórter optou por fazer a seguinte seleção:

(4) De um celular, a enfermeira ligou para o Hospital Santa Clara, onde trabalha, em Jussara. Um rapaz com uma caminhonete transportou os feridos.

Ou seja, muita informação foi omitida na descrição do que aconteceu en­tre o momento da chamada para o hospital e o transporte dos feridos. As informações omitidas não pareceram relevantes ao repórter, pois ele pressu­põe que o leitor é capaz de "recuperar" o que não foi realizado lexicalmente.

Admite-se, assim, para os textos, a existência de:

a) graus de completude e

b) níveis de completude.

Ambos se inter-relacionam e concorrem para a maior ou menor completude do discurso.

Os graus de completude do discurso concernem ao maior ou ao me­nor detalhamento na apresentação das informações. Um discurso em que fossem explicitados todos os pormenores de uma cena, por exemplo, até mesmo aqueles dados por supostos, produziria um efeito desagradável e atenuaria o interesse do parceiro da interação. Faz parte da competência discursiva do sujeito saber garantir a coerência pragmática de sua inter­locução, pelo dizer explícito, apenas, do que é necessário.

Por sua vez, os níveis de completude do discurso concernem aos dife­rentes estratos hierárquicos em que as informações podem ser articula­das na suposta normalidade dos mundos representados em nosso dis­curso. Uma informação mais geral, de maior abrangência, contém outras mais específicas e de menor espectro; estas, naturalmente, são compo­nentes necessários ou prováveis daquelas. Como pode ser considerado a partir do exemplo (3'), conseguir um emprego, após uma formatura

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universitária, é um estado que inclui, necessariamente, concluir um curso, ser aprovado, apresentar-se a uma empresa, ser avaliado etc. etc. Quer dizer, informações mais específicas já incluídas em outras mais gerais não precisam ser explicitadas. Do contrário, a interação se tornaria pesada, desinteressante e improdutiva.

Podemos, então, distinguir entre discurso hipercompleto e discurso infracompleto. Um discurso que chegasse a ser demasiado explícito, de­masiado específico e detalhado, seria um discurso hipercompleto; um discurso em que faltassem pormenores relevantes seria um discurso in­fracompleto. No meio termo, estariam os discursos que satisfazem as ex­pectativas de uma informação contextualmente suficiente, no qual nem sobram nem faltam elementos.

Tanto os graus quanto os diferentes níveis de completude do discurso dependem, fundamentalmente:

- da modalidade (oral ou escrita) em que acontece a interação (um discurso escrito pode exigir um detalhamento maior de informação);

- dos propósitos dos interlocutores no ato comunicativo, (a pretensão de um convencimento, por exemplo, pode requerer estratégias de maior explicitude);

- do conhecimento partilhado pelos agentes da interação (em geral, o que é presumido como sabido não precisa ser explicitado);

- do domínio discursivo e do gênero de texto implicados (tais elementos, por si sós, já dão pistas do conteúdo ou das intenções implicados).

Comumente, mais de um desses fatores se junta para condicionar uma forma de discurso mais completo ou mais incompleto. Como sugeri, o discur­so oral apresenta mais vazios que o escrito devido às suas condições de pro­dução. Basta lembrar os sentidos implicados na copresença dos interlocuto­res e na sua inserção numa determinada cena de interação social, no acesso imediato aos objetos de referência, nos efeitos de sentido promovidos pelas diferenças de entonação, pelas expressões fisionômicas e gestuais etc.

Em decorrência dessas diferenças de grau e de nível de completude, cada discurso tem, numa dada situação, um limite superior de generaliza­ção e um limite inferior de especificação. Cabe aos protagonistas da cena

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discursiva discernir sobre a extensão desses limites. É um desafio. Desafio, reitero, que extrapola, em muito, o conhecimento da gramática da língua.


3. Como se mostra a maior ou menor explicitude do discurso?

A completude e a incompletude do discurso podem assumir formas diferentes. Assim, é possível omitirem-se dados:

- ou porque eles não constituem elementos relevantes para o contexto da inte­ração; em geral, eles são inteiramente previsíveis no contexto da interação;

- ou porque eles estão indiretamente presentes em segmentos de nível mais alto, dos quais são componentes necessários ou prováveis (nesse caso, é mais apropriado dizer-se que tais elementos estão implícitos).

No primeiro caso, trata-se de uma incompletude seletiva: os dados omi­tidos se situam na mesma ordem (ou nível) de generalidade, e a opção por omiti-los, ou não, é uma decisão do interlocutor regulada pelas condições do contexto. No caso do exemplo (4) - notícia sobre um acidente -, as ações mencionadas (a chamada telefônica para o hospital, o resgate da vítima numa caminhonete) constituem fatos da mesma ordem de generalidade. Sua explicitude depende de uma estratégia de seleção do interlocutor.

No segundo caso, a omissão não decorre de uma operação de seleção en­tre várias informações do mesmo nível de especificação. Decorre do fato de uma informação estar contida em outra mais geral, posta anteriormente, e, por isso mesmo, não precisar ser explicitada. A propósito do exemplo (3'), podemos considerar que cursar todas as disciplinas do curso, receber o diplo­ma, registrá-lo, elaborar um curriculum, procurar uma empresa idônea, apresentar-se como pessoa capacitada, ser avaliado, ser aprovado e ser selecionado são componentes necessários de outros fatos mais gerais e, por isso, podem ser dados como previsíveis. Outros exemplos podem ser vistos em (5) e (6):

(5) Evite dor de cabeça. Escolha produtos de qualidade.

embora, nesse caso, a hierarquia de níveis implicada seja de ordem mais pragmática que semântica.

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(6) Do desembarque no aeroporto internacional de Malpensa, em Milão, (...) à partida da Seleção Brasileira contra o Peru, (...) o paulista Ri­cardo Ezecson, o Kaká, de 21 anos, experimentou emoções pelas quais a maioria das pessoas não passa em sua vida inteira.

Repare-se que não é necessário dizer que Kaká chegou a Milão de avião, pois essa afirmação já está contida no segmento que aparece em negrito no trecho.

Vejamos, no pequeno conto a seguir, quanto desses tipos de incomple­tude se poderia atestar.

FUGIR DO CARNAVAL

No carnaval, ou se brinca ou se foge para onde ninguém fala em carnaval. Este lugar existe? Minimiano achava que sim, e procurou-o em praia longín­qua, onde deparou com o banhista fantasiado de pote. Rumou para a mata na montanha, e lá viu uma cenoura sambando, com jeito indubitável de mulher. Minimiano fretou um helicóptero para passar o maior tempo possível afastado da folia. No alto, o piloto pediu-lhe licença para mascarar-se de sagui-caratinga. "Só a máscara, o resto do corpo não. 0 senhor não vai se incomodar, né?" Minimiano ia dizer que sim, que se incomodava e muito, mas a cara do piloto era tão suplicante que ele respondeu: — Claro que não. Você não tem aí outra máscara para mim?

(Carlos Drummond de Andrade, Contos plausíveis.

Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 74).
...

Essa é uma boa oportunidade para lembrar quanto a exploração dessas questões é

fundamental e precisa, por isso, fazer parte do programa das aulas de línguas. O exercício competente da linguagem exige a habilidade de decidir quanto trazer para a superfície do discurso.

...
Repare-se que a relação entre 'carnaval' e 'brin­car', 'carnaval' e 'fantasiado', 'sambando', 'folia' já é dada como sabida e justifica que muitas informa­ções fiquem implícitas; igualmente, a relação entre 'praia' e 'banhista'; entre 'helicóptero' e 'piloto'; entre 'helicóptero' e 'No alto', para referir apenas essas. O fato de dizer que 'Minimiano fretou um he­licóptero' já contém a informação de que o helicóp­tero não lhe pertencia. O segmento "No alto", aliado a nosso conhecimento de mundo, já dispensa refe­rir o vôo do helicóptero. Muitos vazios, portanto,

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são deixados sem que o texto tenha a sua coerência abalada. Pelo contrá­rio, a explicitação de dados supostamente tidos como sabidos produziria um efeito de irrelevância e comprometeria, em muito, sua coerência.
4. A incompletude do discurso e sua coerência

Pelas considerações feitas até agora, pode-se depreender que tanto a infracompletude quanto a supracompletude do discurso podem constituir con­dições de sua incoerência. Mas a incompletude do discurso é, pelo contrário, uma das marcas de sua coerência e, como disse anteriormente, uma conve­niência de ordem pragmática. A interação verbal seria insuportável se não fossem esses "vazios", supostamente dados como preenchíveis pelo próprio conhecimento que temos do mundo onde os estados de coisas acontecem.

Daí que um texto não se faz apenas com o material linguístico presen­te, muito menos com gramática, apenas. Daí que a avaliação de qualquer texto é inconsistente caso seja descartada a consideração às suas condi­ções de produção e de circulação.
5. Os implícitos

A implicitude do discurso tem sido uma questão bastante discutida, tanto no âmbito da semântica quanto no da pragmática, pelo que uma grande variedade de tipos de implícitos tem sido apontada. Uma distin­ção que se tem destacado é aquela que estabelece a diferença entre pres­suposto (dependente de fatores linguísticos) e subentendido (dependente de fatores contextuais). A primeira, envolve a pressuposição e a implica­ção. A segunda, a inferência. Vejamos um pouco dessa questão.

5.1. A pressuposição

5.1.1. Numa dimensão mais ampla

Os locutores envolvidos numa interação, além das informações explí­citas, tendem a supor, como evidentes, uma série de dados, na expectativa de que os destinatários articulem o que é explicitado - isto é o posto - com

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o que está simplesmente pressuposto. Ou seja, na medida em que alguém efetua um ato comunicativo, ele o faz a partir de determinados pressu­postos, ou seja, a partir de um conjunto implícito de dados, anteriores à real efetivação do ato comunicativo.

Uma dessas pressuposições básicas concerne à crença do ouvinte (ou do leitor) de que quem fala (ou quem escreve) está na disposição de só dizer coisas coerentes, coisas que façam sentido e sejam interpretáveis. Por outro lado, a expectativa do falante (ou de quem escreve) é que seu parceiro vai empreender todos os esforços necessários para encontrar um sentido em cada coisa dita ou em cada fragmento que ficou implícito. Certamente, a intuição popular soube descobrir essa teia de pressuposi­ções, de ambos os interlocutores, quando popularizou o dito:

(7) Para o bom entendedor, meia palavra basta.

"Meia palavra" basta, porque a outra "meia" será recuperada pelo par­ceiro, que, assim, pode ser considerado como "um bom entendedor". Esse mútuo empenho de emprestar sentidos à atividade da linguagem é que está na base de uma concepção interacionista da linguagem. Nem falante nem ouvinte é, cada um isoladamente, a matriz do sentido verbalizado numa situação comunicativa. A interação empreendida pelos dois é que constrói a rede dos sentidos e das intenções expressos.

Ou seja, a dependência interpretativa entre as partes de um discurso resulta, entre outros fatores, do fato de que há implicitudes fundadas em informações expressadas explicitamente em segmentos prévios. Dessa forma, esse conjunto de pressuposições, aceitas, de antemão, como ver­dadeiras pelos parceiros da atuação verbal, constitui componentes essen­ciais da situação de comunicação.

Vejamos a graça com que Millôr, na sua finíssima intuição linguísti­ca, expressa a compreensão dessas pressuposições mais amplas, refor­çando a ideia de que nem tudo precisa ser explicitado, considerando o que é situacionalmente presumido numa situação de interação, pelo que a incompletude do texto representa uma condição de sua coerência. Vamos ao texto.

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A mensagem



Num mundo em que a comunicação é tudo e o discurso sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo.

E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: "Nesta casa se vende ovos frescos". Além dos dizeres, recomendou ao pintor que bolasse uma figura, qualquer alegoria referente ao ramo. E per­guntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000 cruzeiros.

- Cinquenta mil o quê? indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro.

- Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante.

- Como não vale? retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia.

- O senhor não poderia reduzir um pouco? arriscou o comerciante.

- Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir afigura e os dizeres.

- Como assim? disse o negociante.

- Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa, não precisamos usar figura ne­nhuma. Se se diz que o senhor vende ovos, não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha.

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