as últimas palavras quando Brava foi puxada pelos cabelos e arrastada
para o camburão da polícia.
- Te prepara para contar tudo, sua piranha! - disse o policial, enquanto
algemava os pulsos dela.
Paulista estava usando uma carteira falsa da Ordem dos Advogados
do Brasil, detalhe que assustou os policiais. Num primeiro momento,
acreditando que tivessem matado um advogado, preferiram levar o corpo
ao Instituto Médico Legal como se fosse de um desconhecido. A imprensa
nem chegou a divulgar a identidade dele como um dos mortos na
Tijuca. Na época, a filha de Paulista, Diva, se queixou dos policiais que,
além de terem destruído os documentos com as fotos dele, teriam sumido
também com a aliança de ouro de Paulista, no caminho entre o local da
morte e do reconhecimento do corpo no Instituto Médico Legal.
- Pô, sacanagem. Logo aquela aliança de ouro, que tinha dado um
puta trabalho para meu pai roubá de um bacana, aí - disse Diva. Em 2002
ela voltaria a se queixar do mesmo investigador que teria confiscado a
aliança de Paulista para uso próprio.
- Aquele filho da puta voltô aqui no morro para dar uma blitz. Fui vê
perto e comentei com a minha mãe: Olhá lá, o puto continua com a aliança
de ouro do papai no dedo.
Os policiais puseram Brava na viatura, e em vez de levá-la para a
delegacia, foram interrogá-la na favela do Acari, na zona norte, com a
esperança de que ela delatasse outros nomes da quadrilha de seqüestro
de Paulista e Calunga.
Brava teria sido espancada com socos, pontapés e cacetadas numa
rua de acesso à favela. Amarrada a um poste, chamada de mulher jogo
duro pelos agressores, ela se manteve calada, sem chorar, sem dar gritos
de dor. Para humilhá-la os policiais teriam jogado Brava dentro de uma
caçamba de ferro, cheia de lixo e entulho. Os mais irritados teriam disparado
suas metralhadoras simultaneamente.
- O barulho das rajadas no ferro me deixaram surda, grogue... Achei
que fosse ficar toda furada de bala...
Os espancamentos e a simulação de tortura duraram perto de uma
hora, tempo suficiente para haver alguma reação do pessoal do Acari.
Pelo menos é o que Brava esperava que tivesse acontecido. Mas nenhuma
mulher ou criança apareceu para fazer pressão, como costuma acontecer
durante as ações policiais nas favelas.
- A malandragem do Acari tá me devendo essa... Podiam pelo menos
dar uns tiros pra zoar os homis... Mas nada... Tive que segurá sozinha,
na moral.
Horas depois, Brava foi levada para a carceragem da Delegacia Anti-
seqüestro, que tinha a fama, entre os prisioneiros, de ser uma central de
torturas escabrosas. Arrastada sob a chave de braço do policial, ela imaginou
que estivesse sendo conduzida para uma sala especial de espancamento
de mulheres. Cerrou os dentes e, pensando no que fizeram com o
marido, decidiu continuar se negando a falar tudo que sabia.
Num lugar escuro e fétido, três policiais rasgaram suas roupas e puseram-
na de bruços sobre um velho banco de madeira e passaram a bater
em suas costas e nádegas com um cassetete de alumínio por mais de uma
hora. Durante o primeiro dia, passou por várias surras idênticas e a cada
intervalo era interrogada pelo delegado.
- Tu sabe tudo, não é mulher? - perguntou o delegado.
- Sei. Sei que tu vai morrê de praga, desgraçado - respondeu Brava.
- E tu vai ter que dar cinco seqüestros aqui na minha mão,sua bruxa.
- Vai pros fundos dos infernos...
Os espancamentos teriam se sucedido durante alguns dias, até Brava
ficar com as pernas imobilizadas e apresentar intenso sangramento pelo
ânus. Na fase seguinte, passou a ser arrastada, pelos braços e pelos cabelos,
para os interrogatórios diários no gabinete do delegado. Teria ficado
dez dias presa irregularmente, no chamado enruste, sem a devida comunicação
à justiça. Única mulher na carceragem, era obrigada a dormir
nua no chão de cimento do corredor entre as celas dos homens, sem luz,
sem banheiro, sem comida.
O carcereiro era mestre em tortura psicológica.
- Hoje eu trouxe um colchão pra você - disse ele no dia em que entregou
a ela um jornal com a notícia do fuzilamento da quadrilha de
Paulista.
Pelo menos duas vezes por dia o carcereiro teria esguichado água
sobre Brava para fazer a “faxina” do corredor fétido.
Brava correu sério risco de morrer por hemorragia, infecção, fome
e sede. Foi salva pela solidariedade dos presos. Durante as sessões de
espancamento eles gritavam que era covardia, batiam objetos nas grades
em sinal de protesto. Nos intervalos da tortura, recortavam garrafas de
plástico para improvisar uma pequena colher e servir gotas de água em
sua boca, evitando a morte por desidratação.
Por ironia, alguns dos gestos solidários vieram de policiais. Havia 13
PMs presos na mesma carceragem por crimes de extorsão e seqüestro.
Um deles, o tenente da polícia militar Fernando Rafael, chegou a ser castigado
por protegê-la do frio. Ao vê-la febril, nua, trêmula na cela úmida,
o tenente cobriu o corpo de Brava com a única camisa que tinha. Recebeu
como castigo a perda do direito ao banho de sol. E foi obrigado a usar
apenas sunga durante uma semana.
Brava encarou o gesto como uma lição de vida.
- Porra, cara! Sempre achei que polícia é tudo coisa ruim!-disse ela.
- E bandido é tudo gente boa? - perguntou o tenente.
- Tu é bicho homem, cara! - elogiou Brava.
- Só não gosto de covardia... - respondeu o tenente.
Sem nenhuma prova do envolvimento de Brava, embora tivesse certeza
de que ela fazia parte da quadrilha do marido, a polícia teve de liberá-
la assim que o advogado da família descobriu que ela estava presa
clandestinamente na Delegacia anti-seqüestro. Antes de ir embora, teria
discutido com o delegado Hélio Vigio.
- Desta vez não deu certo, né bruxa? - disse o delegado.
- Te espero lá no inferno, tu e a tua turminha dedo-mole - ameaçou
Brava.
A morte de Paulista, que influenciava a trajetória dos filhos na atividade
criminosa, levaria Brava a assumir o papel do marido. Nos momentos
mais difíceis, como nos dias em que Juliano se recuperava do
grave ferimento na clavícula, ela não saiu do lado dele e o incentivou a
continuar sonhando com o poder da Santa Marta.
- Com a prisão do Claudinho ficô mole, meu filho - dizia a Juliano.
- Vamo precisá de muito apoio, mãe.
- Que nada... Quem ficô mandando lá? O Fernandinho, um senhor
bosta. Ajudado pelo Germaninho, um senhor merda.
Órfão do pai veterano de crimes, sem um amigo poderoso na retaguarda,
restava a Juliano o apoio dos parentes e parceiros dos tempos da
Turma da Xuxa, que se mantiveram unidos e que já eram vistos como
integrantes da nova geração do Comando Vermelho. E não eram muitos.
Dos 16 do grupo original, Juliano só podia contar com cinco. Três estavam
mortos: Renan, Adriano e Vico. Um, Luis Carlos, o Doente Baubau,
enlouquecera e passava odia pedindo drogas aos consumidores da
boca. Soni estava cada vez mais envolvido na atividade de apontador do
jogo do bicho. O antigo rival Claudinho continuava preso e, depois de
ter mandado matar o irmão Raimundinho, era considerado um inimigo
perigoso, um risco para sua virtual condição de dono do morro. Jocimar
nunca se desviara de sua conduta de trabalhador, vigilante bancário.
Depois das desilusões no crime, Flavinho e Mentiroso falavam em
seguir para sempre a trajetória das pessoas honestas. Flavinho lutava para
conseguir economizar e ser dono de um táxi. Mentiroso já era repórter
free-lancer de ONGs, organizações não-governamentais de defesa de direitos
humanos.
Juliano pretendia formar a base do seu grupo com os outros seis,
Mendonça, Paulo Roberto, Rico, Luz, Alen e Du, embora tivessem seguido
caminhos diferentes no crime.
Faltavam as armas. Queria comprar pelo menos dez metralhadoras
e fuzis, mas o dinheiro que ganhara com a venda do caminhão de maconha
não era mais suficiente. Havia gasto quase tudo para subornar os
funcionários do hospital que o ajudaram a fugir e com as despesas desse
período de recuperação na clínica clandestina. Só lhe restava o crédito
com os fornecedores de maconha.
Resolveu fretar outro caminhão de coco turbinado, uma aventura mal
planejada que acabou sacrificando dois homens do grupo durante o transporte
da droga. Monitorado desde sua origem pelos agentes da Polícia
Federal, a carga foi interceptada no caminho e, segundo a polícia, os dois
jovens escalados para a missão, Amendoim e Anarriê, teriam resistido à
prisão a tiros, sendo mortos.
Além de perder o pouco que tinha, Juliano ficou endividado com os
matutos da maconha, o que costumava ser muito perigoso. Teve que agir
rápido para liquidar a dívida e escapar das ameaças. Os contatos de Mãe
Brava, muito respeitada entre os dirigentes do CV, ajudaram-no a conquistar,
de última hora, o apoio da quadrilha de Dudu, o gerente-geral da
Rocinha, que pôs à sua disposição dezenas de armas e mais de dez homens.
Juliano apelou também para a influência de seu amigo missionário
Kevin para tentar convencer os remanescentes da quadrilha inimiga a
abandonarem o morro sem a necessidade de uma guerra.
Uma grande reunião entre os traficantes e as lideranças da comunidade
iria acertar os destinos da boca. Participaram da reunião diretores da
Associação de Moradores, os representantes da escola de samba, vários
birosqueiros e um estudante de direito, Fernandinho, amigo pessoal do
gerente Claudinho, que da cadeia ajudava a administrar o morro do patrão
Carlos da Praça. E, com a ajuda de Kevin, Juliano também conseguiu
participar por telefone. O missionário passava o celular de mão em mão
para todos ouvirem as idéias do traficante e poder discuti-las diretamente
com ele. Kevin intermediou a discussão.
- Tá sabendo, Kevin, desse negócio de o Juliano colá na idéia de
voltá ao morro? - perguntou Fernandinho, cercado pelos seus soldados
armados.
- Estou sabendo, sim. Ele anda telefonando, falando desse desejo -
respondeu Kevin.
- Aí então, Kevin. Dá o desenrole com o cara, aí, que idéia é essa?
A assembléia culminou com uma longa conversa telefônica entre Juliano
e Fernandinho, que reclamava:
- Ninguém qué mais você aqui no morro. Tá pensando que é o rei da
cocada preta, que tu vai voltá e a rapaziada vai fechá contigo, aí?
Intransigente, Juliano avisou que se não houvesse acordo atacaria na
manhã seguinte. Ainda durante a madrugada Fernandinho recebeu uma
mensagem da cadeia enviada pelo chefe preso e que iria definir a postura
de seu grupo nas próximas horas. Claudinho informava que o patrão Carlos
da Praça havia desistido de manter o domínio da Santa Marta, pois
acabara de perder o respaldo do Comando Vermelho.
De manhã bem cedo, 37 famílias abandonaram seus barracos. Mais
de cem pessoas expulsas desceram o morro com crianças e coisas no
colo. Os traficantes derrotados seguiram junto, desarmados, com a cabeça
baixa e mochilas nas costas. Já estavam sendo observados a distância
pelos invasores armados, que ocupavam posições estratégicas. Juliano
era o novo dono do Morro.
Durante toda a manhã os moradores viveram a tensão de um morro
sem comando, porque a mudança de chefia quase sempre envolvia retaliação,
violência, combates. Dessa vez, a transição aconteceu de forma
tranqüila, tão discreta que poucos perceberam a cerimônia de posse de
Juliano, que começou com o pagamento de uma promessa.
Ele reuniu os homens da quadrilha na praça das Lavadeiras e dali
partiram numa espécie de procissão pelo beco que levava à bifurcação da
birosca de seu Tomás. Na frente do grupo, juliano carregava o fuzil Jovelina
nas mãos. Era seguido pela quadrilha, numa fila indiana por causa
doscorredores estreitos. Todos ainda estavam vestidos com o uniforme
de guerra: tênis, bermuda, boné e, no peito sem camisa, muitas correntes
de prata, cordões de couro com santinhos, guias de umbanda.
Parentes, amigos, curiosos desocupados e crianças foram engrossando
a “procissão”. Passaram direto pela birosca do Milton, pararam na
do seu Tomás, que os brindou com uma rodada de refrigerante gelado, e
subiram pela área descampada do grande incêndio de 1988.
O destino era um dos pontos mais íngremes do Morro, a região dos
rochedos. Do alto de uma das pedras, a Pedra de Xangô, Juliano anunciou
que iria inaugurar uma praça naquele ponto para marcar a chegada
deles ao poder na Santa Marta.
Atrás da grande pedra havia uma pequena área plana, de chão batido,
limitada de um lado pelas rochas e de outro por penhascos de trinta metros
de altura. Era um mirante, de onde os olheiros do tráfico vigiavam o
movimento de quase todos os becos e vielas e também era um bom lugar
para as crianças brincarem de soltar pipa. À noite, no passado, fora o
ponto preferido da Turma da Xuxa para fumar maconha e admirar alguns
dos cenários mais lindos do Rio, o Pão de Açúcar, do lado esquerdo, e do
lado direito a lagoa Rodrigo de Freitas. Dali também era possível ver no
alto da mesma montanha o monumento do Corcovado.
Alguns disparos de fuzil anunciaram a inauguração, que era uma
homenagem ao parceiro assassinado na última emboscada do morro, a
mando do próprio irmão. A partir daquele momento, por exigência de
Juliano, todos deveriam chamar de praça o antigo mirante sem nome,
praça Raimundinho.
Inaugurada a praça, Juliano voltou a subir na Pedra de Xangô para
anunciar a nova diretoria da boca, cuja formação seguia o modelo criado
pelo falecido Orlando Jogador, do Complexo do Alemão.
Juliano reservou aos parentes os principais cargos de confiança. Da
família adotiva, o irmão Difé se encarregaria do dinheiro, a contabilidade.
Os cunhados Paulo Roberto, casado com a irmã de criação Diva, e
Alen, irmão de uma das namoradas, Veridiana, e filho da mulher de sua
iniciação sexual, Mada, ficaria com a gerência do pó e da maconha.
Em homenagem ao falecido Cabeludo, tiraria da chefia da endolação
o ex-braço direito de Raimundinho, o evangélico Marco Ferrô, para
pôr em seu lugar o sobrinho de seu ídolo Cabeludo, Mendonça. O único
motorista do grupo, Careca, que já comandara as esticas, ficaria com a
gerência de bondes motorizados. O inseparável amigo da infância, Du,
teria o privilégio de escolher qualquer coisa que quisesse fazer na boca.
As outras funções foram distribuídas para amigos de outros tempos
e jovens da quarta geração do Comando Vermelho. Destinou a dois dos
mais experientes assaltantes da favela - Tucano, de 24 anos, e Tá Manero,
32 anos - as chefias de segurança dos três pontos-de-venda da boca. Em
reconhecimento pela coragem demonstrada em várias situações de risco,
indicou um adolescente de classe média, que morava fora da favela, Dager
Othon Mandarino, o Rebelde, para o comando das pioneiras bocas
de asfalto, as esticas. Apesar de ter completado apenas 15 anos, Paranóia
já era considerado um veterano com oito anos de experiência, que o habilitava
à chefia dos meninos olheiros. Escolheu Tênis para uma função
bem particular: acompanhá-lo de perto, para ajudá-lo a carregar o fuzil.
E de vigiar a arma quando ele se desfazia dela para ir ao banheiro, fazer
as refeições, namorar. E, finalmente, para a chefia do serviço secreto, um
mistério.
- Vai ser uma dupla. Mas como é secreto, fudeu, não dá para falar o
nome, não - disse Juliano.
- Qual que é, Juliano. Tu já começô desconfiando de nóis, aí?
- Só vô dá uma pista... É a maior responsa desse morro.
Parte do segredo de Juliano não resistiria a cinco minutos de insistência.
- Quem quisé sabê que me siga... mas só a diretoria. Vambora.
O primeiro nome da dupla do serviço secreto seria revelado na primeira
visita que fizeram a um morador do morro. O barraco era dos pais
do adolescente Pardal, mas a visita era à amiga Luz, que se recuperava na
casa dele de uma cirurgia de alto risco. Ela ficou emocionada ao receber
do amigo Mendonça um ramalhete de flores.
- Vocês demoraram demais. Pensei que fosse morrê aqui no meio dos
alemão, caralho! - disse Luz, que fizera uma cirurgia do miocárdio para
implantar três pontes de safena.
- Qualé que foi, Luz? Porrada demais dos hômes dá nisso. É ou não
é? - perguntou Juliano.
- Não brinca, não. Meu coração ainda tá apertado, aí. Mas a parada é
outra, Juliano. A parada é outra...
- Tá na hora do trampo, Luz. Tem que saí logo dessa cama, mulhé,
que agora a parada é nossa. Para animá-la, Juliano falou de seus planos
de incluí-la na diretoria da firma, mas Luz reagiu com indiferença. Ela
só ficaria animada com a proposta depois de conseguir convencer alguns
amigos a ajudá-la a se livrar do aperto que sentia no coração, mesmo
depois da cirurgia.
- Não tem operação que resolva, aí. Eu preciso vingá a morte da minha
mãe.
A própria Luz se encarregaria da formação do bonde, com apoio dos
amigos de sua confiança, Careca, Paulo Roberto e Mendonça. Eles precisariam
de um mês para completar a missão na favela de Rio das Pedras.
CAPÍTULO 20 CANSEI DE SER OTÁRIA!
A primeira ação de Rebelde numa função de chefia do morro foi de
ordem particular: salvar a mãe da opressão do padrasto. Reuniu um grupo
de cinco adolescentes e invadiu o próprio apartamento onde morava
em Laranjeiras, decidido a acabar com o casamento de 15 anos entre
Júlia Mandarino e Antônio, o professor de judô.
O motivo eram as agressões sofridas pela mãe, devido às crises de
bebedeira do padrasto. Para Rebelde, essa violência em casa representava
a repetição das cenas que o traumatizaram na infância. No primeiro
casamento, Júlia também foi muito agredida pelo pai de Rebelde, Ernesto.
Ele guardou na memória a briga da separação dos pais, a que assistiu
quando tinha cinco anos. Lembrava-se da mãe com uma faca de cozinha
na mão tentando se defender do pai. E do pai enfurecido de ciúme, cuspindo
no rosto dela e a agredindo a socos, que quebraram dois dentes.
Durante muitos anos Rebelde tolerou a violência do padrasto alcoólatra,
porque nos períodos de abstinência Antônio parecia apaixonado por
Júlia e era bom provedor da casa, a família dependia economicamente
dele. Mas cansou de conviver durante toda a adolescência com as crises
violentas do casal. Rebelde odiava o ambiente de tensão e não sabia o
que fazer para proteger a mãe. Externava a sua insatisfação nas brigas
com as empregadas domésticas, companhias obrigatórias na ausência de
Júlia, que passava o dia inteiro trabalhando como secretária da UFRJ.
Embora a mãe exigisse o contrário, Rebelde não tinha o menor respeito
pela autoridade das empregadas, que nunca tiveram controle sobre ele.
Cheirou cola e cocaína durante dois anos e chegou a ser detido pela
polícia sem que a mãe ficasse sabendo de nada. Embora falasse para Júlia
em seguir a carreira de médico, aos 13 anos Rebelde já havia deixado
a escola, onde estudou até a sétima série, para viver nas ruas em busca
do dinheiro da droga. Durante dois anos também conseguiu esconder da
mãe o primeiro revólver que pôs na cintura.
Júlia só soube do envolvimento dele com furtos quando os vizinhos
o flagraram roubando toca-fitas dos carros da garagem do prédio. A descoberta
desestruturou ainda mais a família. O padrasto queria expulsá-lo
de casa. Júlia tentou ajudá-lo, internando-o numa clínica psiquiátrica e o
inscrevendo numa academia para prática de esportes.
Na academia de natação e capoeira em Laranjeiras, Rebelde conheceu
a turma de Juliano, que traficava pelas ruas do bairro próximas ao pé
do morro. Bastaram poucas semanas de amizade para ele ser integrado ao
grupo como vapor de uma das “esticas” do asfalto e, eventualmente, na
função de olheiro de segurança da base da boca na favela.
No dia em que Rebelde entrou entusiasmado em casa, levantou a mãe
do chão com um abraço e disse que a vida deles iria sofrer uma mudança
radical, Júlia ainda não sabia do envolvimento do filho na quadrilha de
Juliano.
- Hoje vou mudá a sua vida, mãe, se prepare que o bagulho é sério.
No trabalho, Júlia nunca ouvira falar do nome de Juliano entre os
amigos e colegas do meio acadêmico. Embora morasse perto da favela,
em Laranjeiras, também jamais ouviu o nome dele nas conversas dos
vizinhos sobre a ameaça de violência que a Santa Marta representava. Só
quando o filho explicou melhor qual era a novidade do dia, Júlia entendeu
o vínculo entre Juliano e o significado do bagulho sério.
- Juliano é um gênio, mãe. Sem dá um único tiro, é o novo dono da
Santa Marta - disse Rebelde.
- E daí, meu filho? - perguntou Júlia.
- E daí que ele é meu grande amigo.
- Que história é essa? Dono! Por acaso morro se compra e se vende?
- perguntou Júlia.
- Dono é o que manda, é o que garante atividade pra rapaziada, grana,
boa grana com a venda de sal - explicou Rebelde.
- Sal...
- Droga, né, mãe. Pó, maconha... Eu quero uma coisa e a senhora vai
concordá de qualquer jeito - disse Rebelde.
- O quê? - perguntou Júlia.
- Vô morá na favela - disse Rebelde.
Antônio assistia à TV no sofá da sala e levantou-se para discutir com
o enteado.
- Você virou bandido, é? Então rua, rua! - gritou Antônio.
Antônio ameaçou agredi-lo com golpes de judô, mas foi surpreendi
do. Rebelde sacou uma pistola da cintura e apontou para o seu rosto.
- Você é que vai pra rua. Nunca mais bate na minha mãe, seu covarde
-disse Rebelde.
Júlia tentou contornar.
- Não, meu filho!
Mas Rebelde estava decidido.
- Manda esse cara embora, já! Ou eu chamo a minha turma, que tá na
portaria, pra carregá o cadáver dele.
No dia seguinte Rebelde subiu as escadarias da Santa Marta com vários
sacos de plástico cheio de coisas da sua mudança para um barraco
abandonado pelo inimigo e cedido a ele pelo patrão Juliano. Ao lado dele,
a mãe Júlia também carregava a sua parte da mudança. Os dois choravam
de felicidade, emocionados, pela atitude radical de amor da mãe. Júlia
passara a noite tentando convencer o filho a desistir da idéia de morar
na favela. Quando percebeu que Rebelde iria embora de qualquer jeito,
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