O dono do morro dona marta



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pessoa da quadrilha, Luz. Ela ainda morava no barraco do falecido Mendonça,

na Cerquinha. Pedi uma referência para voltar outras vezes sem

ajuda de um guia.
- Essa favela tem tudo de bom, pode perguntar - disse Luz.

- Tem correio? Aqui fica perto do correio, por exemplo?

- Correio, a favela não tem.

- Cinema?

- Cinema também não.

- Biblioteca?

- Biblioteca não, aí.

- Praça, pracinha.

- Não, não?

- Escola, biblioteca

- Não tem nada disso, mas é só descer que tem tudo lá no asfalto, aí.

Para aprender a me situar melhor, usei uma pequena câmera para gravar

imagens pelos labirintos por onde passava e depois assistia repetidas

vezes até grava-las bem na memória. Aos poucos os moradores e os homens

de Juliano foram revelando seus códigos de referência, criados pela

necessidade da vida clandestina, e não somente criminosa. Só a partir

da década de 1980 as famílias passaram a ter escritura de posse de suas

casas. Mas até o início de 2003 ainda não haviam conquistado o direito

de ter um endereço.

A ausência de referências formais foi apenas uma das dificuldades

para contar a história da geração de jovens que introduziu o Comando

Vermelho na Santa Marta. No começo, acredito que meus critérios éticos

tenham efetivamente prejudicado as apurações.

- Que papo é esse de levantá o meu passado, aí? - perguntou-me Paranóia

depois de ouvir as explicações sobre o meu plano de pesquisa.

Insisti com meus argumentos.

- Digamos que vocês resolvam executar alguém amanhã, ou agora,

aqui, na minha frente. Sou radicalmente contra, vou fazer tudo pra evitar

a morte.

- Mas se o cara é um cobra-cega, X-9 safado, tu qué o quê? Pneu nele,

aí!

- Seja quem for. Não quero ver, não me mostrem nada. Quero ouvir



histórias do passado, combinado?

- Tão não vô falá nada. Meu passado é uma bosta, aí!

Fracassaram também minhas primeiras buscas por diários, cartas da
infância e da adolecência, álbuns de fotografias, boletins escolares, registros

dos empregos nas carteiras profissionais. Julguei que estivessem

desconfiados de minhas intenções. Cheguei a contratar duas pessoas do

morro para ver se dava certo. Meio ano depois, nenhum dos dois havia

conseguido nenhum documento ou lembrança sequer. Só entendi o motivo

do fracasso quando mudei de tática.

Passei a concentrar a pesquisa na história dos homens que morreram

em 15 anos de guerra no morro. Os amigos e parentes passaram a colaborar,

cada um a seu modo. Alguns gravaram horas de depoimentos, fundamentais

para a reconstituição de episódios marcantes. Alguns fizeram

questão de oferecer as lembranças que guardaram dos filhos e amigos

perdidos.

- Este era o Queimadinho - disse Diva ao me mostrar uma foto fora de

foco, granulada, que mal dava para identificar o ex-gerente de Cabeludo

que morreu de tuberculose em 1992.

- A família não tem uma foto melhor, não? De um documento de

identidade, por exemplo?

- Esta é a única. E tava perdida, amassada no fundo de uma gaveta. O

pessoal não tem boas lembranças pra guardar, Caco.

O levantamento da história dos mortos também me ajudaria a resolver

o quebra-cabeça sobre a cronologia das guerras. Foram dezenas em

15 anos de história. Mas, para a maioria, a única referência efetiva era

a guerra grande de 1987. Os santinhos das homenagens póstumas e os

atestados de óbito, que as famílias me cederam, foram de grande valor

para eliminar as informações desencontradas sobre as datas de crises,

invasões, combates, tiroteios. Só depois de um ano aprendi que a cronologia

da guerra, ou de qualquer episódio importante do morro, para

a quadrilha, era marcada pela história de seus mortos. A descoberta me

ajudaria a resolver dúvidas e controvérsias de datas, com perguntas mais

efetivas, do tipo:

- Quando foi a traição do Paulo Roberto? Foi antes ou depois da morte

do Mendonça?

E a saber identificar uma data a partir de relatos como estes:

- Juro! Quebraram a Carlinha, depois do Du e antes do Mendonça.

- Juliano tomô o morro na semana que fritaram o Raimundinho.
- Inverno, não. Foi no verão da ladeira do Careca, lembra?

Durante o processo de apuração, também tive que repensar meus conceitos

sobre as coisas que são públicas e as que são privadas. No começo

tentei manter o rigor do sigilo. Bastava algum policial me seguir para

identificar toda a quadrilha. Procurava ouvir os depoimentos em lugares

mais reservados, quase impossiveis de encontrar na favela. Os homens

mostraram que não havia necessidade disso, não se incomodavam de

falar de seus segredos em qualquer parte do território deles, como se

confiassem em todos os moradores. E até nos momentos mais difíceis

da apuração - quando este livro-reportagem seria denunciado à polícia

- mantiveram a mesma postura, concordando em sair da área de controle

dele. para gravar depoimentos no meu território, no asfalto.

Superado o estranhamento do inicio, passei a ter dificuldade em administrar

o oposto, a confiança extremada.

- Aí, repórti. Tu tá sabendo da parada que rolô ontem? - perguntou

Tênis.


A frase do olheiro da quarta geração marcou o início da nova fase da

pesquisa. Minha intenção inicial era contar exclusivamente a história da

quadrilha do Juliano, cuja base tinha sido a Turma da Xuxa. Depois de

dois anos de apuração, os mais jovens se acostumaram com meus métodos

de trabalho e passaram a me pressionar, com um volume impressionante

de relatos, a contar também a história deles no livro-reportagem.

- Tem que contá a história do meu amigo Nem, aí! - exigiu Tênis.

- Que história? - perguntei.

- A do helicóptero. Não tem sujeira. É do passado, aí!

Histórias como a do helicóptero, que reproduzirei mais à frente, me

apontaram o caminho da estrutura de romance para o livro, o que me

pareceu a melhor maneira de aproveitar o volume impressionante de diálogos

presentes nos depoimentos. Apenas para registrar o relato do início

da amizade de Tênis e Nem, foram horas de gravação.

- Um dia o Nem tava no plantão do preto, me viu e pá: aí, Tênis, me

consegue um emprego no Banco do Brasil? Eu respondi: posso vê, aí. E

tu, Nem, consegue uma vaga pro meu cumpadi mais eu aqui na boca?

- me contou Tênis.

É possível que Tênis e outros parceiros dele tenham contado histórias
exageradas ou mentirosas.

Procurei checá-las cruzando depoimentos e com a consulta das fontes

formais - arquivo de jornais e de TV, inquéritos policiais, processos na

justiça, cartórios de registros civis. Foi sem dúvida a parte mais trabalhosa

da pesquisa, que consumiu dois períodos de férias, todos os meus

fins de semana e três anos de dupla jornada de trabalho, na TV e no livro.

Nesse tempo, procurei não me desviar de meu objetivo: contar a história

da quadrilha pela ótica dos moradores do morro, dos criminosos e da

maioria honesta. Minha maior recompensa, independentemente do resultado,

foi a conquista da confiança.

Indispensável pela natureza da investigação, ela me obrigou a tomar

a atitude arrogante da omissão de nomes, mesmo contra a vontade de

muitos. Para não mutilar os fatos, optei pela exposição dos nomes de

guerra, ou codinomes de alguns. O mesmo critério usei para os policiais

honestos e desonestos, e para os trabalhadores eventualmente envolvidos

com o tráfico, contra ou a favor dele. Por mais que eu tenha alertado

sobre as possíveis implicações legais, julguei que era meu dever minimizar

os danos sobretudo contra aqueles que, estimulados por mim, sem

qualquer forma de juízo, foram seduzidos pela arte de contar a história

de suas vidas.


CAPÍTULO 32 REDE MUNDIAL

O endereço secreto chegou a minha casa por fax, lacônico: “Del

Mayo 1111”.

Era uma avenida das mais movimentadas do centro de Buenos Aires.

Eu viera de ônibus do aeroporto para ter a certeza de que não estava

sendo seguido por algum policial brasileiro, ou argentino, ou americano

da DEA, a Agência de Combate às Drogas. Arrastava uma pequena mala

com rodinhas e passei com atenção máxima pelo número 1111 sem parar.

Percebi que não havia ninguém me esperando ali, como fora combinado.

Andei até o fim do quarteirão seguinte, cruzei a avenida pela faixa de pedestre

e voltei pela calçada oposta para observar melhor o endereço. Era

um hotel antigo, que um dia fora de luxo, o Ritz. As pessoas passavam

ligeiro, agasalhadas por causa do frio de três graus centígrados, algumas

paravam por instantes na banca de revistas quase em frente. Fingi ler as

manchetes dos jornais do dia enquanto olhava discretamente se havia

alguém parado ou circulando com jeito de quem estivesse investigando

alguma coisa. Da banca também dava para observar o movimento na

recepção do hotel.

Aproveitei o momento em que o recepcionista estava sozinho atrás

do pequeno balcão para entrar no casarão de três andares do Ritz. Pedi o

apartamento mais simples. O senhor de cabelos brancos, que aparentava

oitenta anos, pôs as lentes de grau sobre os óculos de sol e exigiu a apresentação

do passaporte.

Fez expressão de desprezo quando constatou a nacionalidade brasileira.

Ofereceu um quarto no andar térreo, ao lado da porta pantográfica

do velho elevador, e que não tinha banheiro privado. Preferi um apartamento

no terceiro andar, com banheiro, com TV em preto-e-branco, sem

telefone para chamadas externas, sem café da manhã e, por medida de

segurança, com uma janela de frente para a avenida. O velhinho cobrou

37 dólares adiantados e avisou que visitas eram proibidas durante as 24

horas.

A primeira visita bateu à porta do 314 quando eu estava no quarto



havia apenas cinco minutos e começava a tirar as roupas da mala. Era um
dos traficantes mais procurados pela polícia do Brasil.

- As visitas estão proibidas.Como você conseguiu entrar?-perguntei.

- Tava te esperando no 310 - respondeu Juliano.

Ele viera da cidade de Córdoba, onde se refugiara havia quarenta dias

em uma pequena pensão familiar.

A conversa começou tensa. Juliano estava preocupado por ter esquecido

uma imagem de São Judas Tadeu no banheiro de um restaurante de

estrada a caminho de Buenos Aires. Restara na mochila, além das apostilas

de um curso de espanhol e de alguns livros de sociologia, as imagens

de Santa Terezinha, de Santo Expedito e de Santa Clara, que, assim como

a de São Judas Tadeu, haviam sido compradas na Basílica de Nossa Senhora

Aparecida, no interior de São Paulo, durante a sua viagem de fuga

do Brasil para a Argentina.

Era o nosso quarto encontro, dessa vez para a gravação dos primeiros

depoimentos sobre a trajetória que o levou ao comando do tráfico e sobre

a sua tentativa de dar adeus às armas. Não fiz muitas perguntas sobre

quem o ajudara a conseguir um passaporte por mil e quinhentos dólares

e a dar cobertura na rota de fuga do Brasil. Já o conhecia o suficiente

para saber que jamais revelaria segredos dos amigos. Durante nossos encontros,

embora estivesse visivelmente apaixonado, ele jamais me falou,

por exemplo, do romance com Luana, em respeito ao pedido dela. Minhas

descobertas vieram do relato dos moradores do morro, que sempre

sabiam tudo de todos. Foram eles que me contaram detalhes da tórrida

paixão e de seu fim, que estava acontecendo naqueles dias.

A viagem de fuga simbolizou o rompimento. Nos últimos meses,

mesmo sabendo do namoro de Juliano com a jovem do morro, Luana

nunca deixou de incentivá-lo a abandonar o tráfico e de ajudá-lo até seus

últimos momentos no país. Na despedida, em algum lugar do Brasil, Luana

escreveu um bilhete sem assinatura na agenda dele, marcando para

sempre o fim do romance mais aventuroso de sua vida.

“Grande amigo. Lindo sempre. Lembre que aqui tem uma pessoa que te admira

muito e eu sei que você um dia vai ser feliz. Espero que você e a Mi sejam

felizes pois ela parece ser a mulher para te tirar dessa.

Nós precisamos das coisas mais humildes para podermos nos levantar. E

ela parece ser isso. Um beijo de sua amiga.

Você sabe quem é.”


Tínhamos pressa em iniciar o trabalho. Combinamos gravar sempre

dentro do quarto, evitando ao máximo sair do hotel para não correr o

risco de alguém o identificar nas ruas de Buenos Aires.

No primeiro dia a regra foi rompida por causa de uma pesquisa que

Juliano vinha fazendo, desde a sua chegada em Córdoba, sobre o comportamento

dos jovens que fumavam maconha na Argentina.

Gravamos o primeiro depoimento durante umas dez horas, com intervalos

para Juliano descansar assistindo à televisão. Paramos à noite. Ele

sugeriu que fôssemos andar pelas ruas à procura de maconheiros. Pela

janela do quarto observamos a movimentação na avenida e aproveitamos

um momento em que não havia ninguém no quarteirão do Ritz para sairmos

do hotel.

- Como você faz para abordar os jovens nessa pesquisa? Você já

aprendeu muita coisa de espanhol? - perguntei quando já estávamos andando

pela noite.

- Marijuana! Yerba buena! Cigarrillo maldito! - respondeu Juliano

tentando mostrar que já conhecia as palavras-chave para introduzir aos

argentinos o assunto da pesquisa.

Andamos sem rumo numa noite gelada. Paramos para tomar um chocolate

quente numa cafeteria Numa delas, Juliano aproveitou para entrar

numa cabine de telefone público e ligar para a casa de Betinha no morro

do Chapéu Mangueira. Tentou várias vezes, mas não conseguiu. Duas

moças, que aguardavam a vez de ligar, ofereceram ajuda para que ele

conseguisse completar uma ligação a cobrar para o Brasil. Juliano viu

que uma das moças fumava e imediatamente perdeu o interesse pelo

telefone. Pediu um “cigarrilho” e ganhou. Partiu um pedaço do cigarro

dado pela moça, extraiu o filtro e jogou fora o tabaco. Sobo olhar curioso

da jovem, pegou o isqueiro e pôs fogo no papel, com o cuidado de aparar

as cinzas na palma da mão. Em seguida esfregou a fuligem preta sobre a

mão da jovem. Virou um pó branco finíssimo, motivo para um conselho

de Juliano.

- Mire, é pura química. Isso vai direto para o pulmão e nunca mais

sai de lá.

A moça concordou, fazendo um sinal de positivo com a cabeça. En


quanto a amiga telefonava, perguntou por que Juliano fazia campanha

contra o cigarro.

- Qué pasa? Por que usted es contra el cigarrillo, asi. No és dañoso de

esa forma, hermano! - disse a moça argentina.

- Depende do tipo de cigarrillo.

- Tu fumas marijuana, por exemplo? - perguntou Juliano.

Marijuana? Si! No, no. As veces! - respondeu nervosamente a moça,

surpreendida pela pergunta.

As moças se afastaram sorridentes e foram do encontro do grupo de

amigos que estava na cafeteria.

- Tu vê. Saíram rindo, na boa. Se eu tivesse um baseado aqui, iam

querê esticá uma idéia... todo maconheiro é assim, aí!

Durante a madrugada, enquanto procurava se aproximar dos usuários

da droga, juliano tentava me convencer de que o comportamento básico

dos maconheiros era igual em qualquer lugar do mundo, descoberta que

ele teria feito a partir de suas viagens de fuga ao México e à Argentina.

- O maconheiro do Brasil ri à toa, tem uma fome maluca e uma preguiça

do cão depois que passa o barato. E os da Argentina, os do Paraguai,

os do Chile e os do México sentem a mesma lesmeira, a mesma larica

e também riem por qualqué besteira quando tão doidão, cara! - disse

Juliano, tentando fazer sociologia.

Entramos num bar com música ao vivo, que anunciava no cartaz da

entrada a apresentação de uma banda de rock. Um local ideal para Juliano

continuar a pesquisa em volta do grande balcão das bebidas.

Pediu uma espécie de vermute e pagou uma cerveja para um jovem

paraplégico, que estava sentado numa cadeira de rodas e agitava os braços

no ritmo da música. Em minutos, Juliano fez questão de me mostrar

que já conquistara a amizade do jovem, que lhe ofereceu uma ponta de

maconha para fumar.

- Aí, brasileiro e argentino numa boa, aí. Tu viu? Em um minuto ele

me passô um pra fumá, na maió confiança, aí. E é da boa, ó! Melhor, só

a da Santa Marta, ó!

Perto das cinco horas da madrugada, ao perceber a animação de Juliano

com a pesquisa, voltei exausto para o hotel. Fui acordado às 11 horas

por Juliano, batendo nervosamente à porta do 314. Ele talvez não tenha
dormido, mas disse que acordara faminto. Insisti para que tomássemos o

café-da-manhã no quarto, mas ele não quis.

- Não agüento mais! Tô há quarenta dias nesse país sem comê feijão...

Aqui é a capital, caralho. Hoje tenho que achá feijão nessa porra

de cidade!

Juliano estava irredutível. Não gravaria depoimento nenhum sem antes

comer feijão-preto, arroz, farofa e bife com ovo, seu prato de todos os

dias no Brasil. Depois de muita insistência, ele concordou em reduzir a

sua exigência ao feijão.

- Trinta anos comendo feijão todo dia cara, todo dia! Sem esse bagulho

não dá, não consigo pensá, me concentrá, não consigo nem dormi

direito...

Contra as próprias regras de segurança que criamos, saímos às ruas

ao meio-dia à procura de algum restaurante que servisse feijão para o almoço.

As ruas do centro estavam movimentadas, cheias de turistas, com

o risco de que o foragido Juliano fosse reconhecido por algum turista

brasileiro.

Caminhamos mais de duas horas sem encontrar nenhum prato de feijão.

Apelamos para alguns supermercados, mas também não tivemos sucesso,

o que aumentou a ansiedade de Juliano. Em alguns momentos de

mau humor, chegou a dizer a si mesmo que iria abandonar o seu projeto

de dar adeus às armas. Tentei convencê-lo de que esse tipo de dependência

era exagerada.

- Nunca vi um negócio desse, Juliano. Imaginava que traficante pudesse

sofrer de dependência de alguma droga. Mas dependência de feijão?

- eu disse.

- Falta de sexo, falta dum baseado... nada se compara. É pior, cara,

muito pior. Aí, fudeu! Nessa terra não fico, vô parti pra outra! - ameaçou

Juliano.

Por volta das três horas da tarde, ainda em jejum, já desanimado de

tanto ler os cardápios colados nas portas dos restaurantes, descobriu um

prato alternativo para amenizar a sua revolta.

- Arroz! Não acredito, arroz! - gritou Juliano já entrando no restaurante

que servia comida coreana a quilo.

- Cuidado para não ter uma overdose - eu disse.
Depois do café-almoço de mais de uma hora, Juliano ficou mais calmo.

Sugeriu que andássemos pela área central da cidade, que ele gostaria

de conhecer, e que pelo caminho fôssemos gravando o seu depoimento.

Nos primeiros minutos de caminhada, falou de sua infância e dos motivos

que o levaram a entrar para o tráfico, mas não foi muito longe em seu

relato. As atrações do caminho o deixaram extremamente dispersivo.

Juliano estava tendo dificuldades em viver numa grande cidade depois

de ter ficado trinta anos praticamente confinado em morros. Vivia

assustado com a falta dos limites no horizonte, incomodavam-no os espaços

amplos e planos em todas as direções de Buenos Aires. Habituara-se

a morar num lugar íngreme, a passar o dia andando sempre a pé pelos

becos estreitos e tortuosos da Santa Marta, tendo que subir e descer escadas,

pular barrancos, saltar de uma laje para outra. Nas ruas da favela, tinha

uma visão limitada pelas paredes dos barracos, quase nunca distantes

mais do que três ou quatro metros dos olhos. Sem o amontoado de alvenaria

da favela a sua volta, que o protegia contra os inimigos que vinham

de fora, sentia-se exposto, vulnerável, correndo perigo iminente.

Também o incomodava a importância que o carro parecia ter na vida

das pessoas da cidade. E vice-versa, não gostava de ver tanta gente dependendo

dos veículos. Freqüentemente parava de conversar para ficar

parado numa rua só para observar o comportamento dos motoristas no

meio de um grande congestionamento ou dos passageiros amontoados

dentro dos ônibus que demoravam para se mover no trânsito.

- Olha lá, cara. Todo mundo paradão, em silêncio. Como podem suportá

um negócio desses? - indignou-se Juliano.

Embora carro sempre tenha sido o seu maior sonho de consumo -

chegou a comprar dois nas épocas de fartura da boca -, pela primeira vez

estava convivendo de perto com eles e compreendendo melhor o que representavam

fora da favela. Nas longas caminhadas pelo centro, demonstrou

desconhecer quase todas as regras básicas do trânsito. Não entendia

os simbolos universais que sinalizavam a contramão, as conversões proibidas,

a permissão para estacionamento. Também não sabia intuir a noção

de distância entre os carros em movimento. Por isso, diversas vezes

tive que alertá-lo ao cruzar as ruas para não ser atropelado.

Demonstrou também não estar habituado às regras de conduta social.
Parecia incapaz de falar por favor ao balconista que servia um café ou de

ser gentil com qualquer pessoa, mesmo que estivesse pedindo um favor a

ela. Para ele, não havia nenhuma diferença entre pedir e dar uma ordem

a alguém, formalidades que vinham dificultando sua adaptação à vida

fora da favela, agravada pelas barreiras da língua e da convivência com

os argentinos, tradicionalmente arredios aos brasileiros.

- Caralho, os caras odeiam brasileiro. E não adianta disfarçá. De longe

eles já fazem cara feia pra você - reclamou Juliano.

- Por que você escolheu justamente a Argentina para se refugiar, Juliano?

- perguntei.

- Eu sabia dessa rivalidade no futebol, mas não imaginava que fosse

tão grande assim, até no meio da rua.

- Qual foi o seu critério para escolher o país?

- Queria que fosse perto do Brasil, pra facilitá a visita dos parentes ou

dos amigos. E que não despertasse a desconfiança da polícia. No Paraguai,

por exemplo, tem uma pá de bandidos vivendo lá. De lá para o norte,

na Bolívia, por exemplo, já entraria na área suspeita do narcotráfico.

- E você está levando realmente a sério o projeto de abandonar tudo e

começar uma vida nova?

- Tá foda! Tá foda! Preciso trabalhá, preciso estuda, quero fazê cinema

mas por enquanto como vou explicá que não tenho nenhum documento

profissional, que não tenho nenhuma prova de tê trabalhado algum


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