O dono do morro dona marta



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afirmado o adolescente.

A princípio todos resistiram à idéia, porque achavam que Dario seria

muito maltratado pela polícia na cadeia. Mas Juliano argumentou que se

ele permanecesse foragido, o risco de linchamento seria bem maior e o

obrigaria a viver eternamente na clandestinidade, um permanente pesadelo

para a família.

- Tudo tem que ser negociado antes com a polícia. Entreguem o moleque,

mas desde que garantam a segurança dele. Peçam garantias de

segurança, até mesmo, contra linchamento. Passem a responsabilidade

para eles - sugeriu Juliano.

Também tentou convencê-los de que a idade de Dario, 17 anos, era

um fator que iria beneficiá-lo na hipótese de uma apresentação espontânea

à polícia.

- Com 17 anos ele não poderá ser levado a julgamento, estará protegido

pela lei e, se for como no Brasil, logo estará de volta ao convívio de

vocês.

A sua experiência com os jovens dos morros do Rio de Janeiro foi o



que mais pesou na decisão da família. Ele citou vários exemplos de adolescentes

infratores que se entregaram à polícia para, paradoxalmente,

receber penas mais brandas. No caso de Dario, a rendição demonstraria

respeito à lei, arrependimento, coragem de enfrentar a punição e ainda

poderia contribuir para melhorar a sua imagem na cidade, que era a de
um assassino frio, perverso.

Escolhido o horário estratégico, seis horas da manhã de um domingo,

para evitar a imprensa e sobretudo os curiosos, Juliano e Maria foram

pessoalmente acompanhá-lo em sua rendição no Palácio da Polícia de

Córdoba. Pouco antes de entrar no prédio, Dario trocou abraços demorados

de despedida com os dois. A família já havia providenciado os

contatos com o chefe da delegacia, que estava atrasado. Depois de meia

hora de espera, Juliano resolveu apresentar o adolescente ao sonolento

policial de plantão, que não acreditou na surpresa.

- Que desea? - perguntou o policial enquanto olhava o relógio e bocejava.

- Quero apresentar um foragido de la policia, de la justiça... - respondeu

Juliano.


- Solo uno? No tengo tiempo ahora, espere, espere... Siéntese alli...

Juliano ficou impressionado com a indiferença do policial.

- Solo uno! Solo uno! Carajo, que tira folgado. Qué o quê? Meia

dúzia de foragidos! - comentou Juliano com Maria, enquanto aguardava

sentado o policial concordar em recebê-los.

- No hables asi. Él puede provocar un arresto por desacato a la autoridad

- cochichou Maria.

- Mas carajo! O moleque é a figura mais procurada da cidade e o cara

faz esse corpo mole, olha lá: só falta dormir na cadeira.

Os procedimentos burocráticos da apresentação do irmão de Maria

só começaram com a chegada do chefe da delegacia, um oficial que,

ao contrário do sonolento plantonista, era ativo, estriônico, desconfiado,

muito desconfiado.

- Y usted? Hable de su vida... Nacionalidad? Brasileño? Que hace en

Córdoba... La identificatión... Su nombre? - perguntou o oficial a Juliano,

enquanto preparava o cartório para lavrar os termos de apresentação de

Dario e de seu depoimento como réu confesso.

Para mudar de assunto, Juliano orientou Maria a questionar o oficial

sobre as garantias de segurança do irmão, com a desculpa de que a delegacia

começava a ficar movimentada.

- Si el pueblo supiera que mi hermano está aqui, no existirá fuerza en

el mundo que les reprima. Van a querer hacenie pedazos - disse Maria.


- Ya vamos a hablar con usted e también con su enamorado. Preparense,

que nuestra conversacion será larga...

Na hora em que o escrivão o chamou para depor, Juliano tinha se

afastado do cartório para ir até o banheiro. Maria também não estava ali

para ouvir o chamado. Fora tomar água no bebedouro de uma máquina

instalada ao lado da porta da entrada. Minutos depois os dois saíram da

delegacia abraçados, como se fossem namorados. Pegaram um táxi e foram

direto para a rodoviária de Córdoba, onde chegaram quase em cima

da hora marcada no bilhete comprado com antecedência. As oito horas

da manhã, Juliano e Maria partiram de ônibus em direção a Buenos Aires,

onde ele combinara gravar os depoimentos comigo.

- Nunca he hecho eso, Juliano. Huir asi de una comisaria... - disse

Maria, já com o ônibus iniciando a manobra para partir.

- Eu não posso dizê a mesma coisa - respondeu Juliano.

- Cómo? Nosotros no teníamos motivo para huir, y ni la policia deveria

interrogarnos... Soy yo culpada por ser hermana de mi hermano?

- disse Maria.

- Eu não posso dizê a mesma coisa - repetiu Juliano.

- Cómo? - Tienes culpa, hombre?... Juliano, el forajido número uno,

és eso?


- Si, si... uno, lo único!

- Además, la policia deveria agradecerte. A ti te pertenece la idea de

la rendición. Nuestra familia tambien tiene que agradecer... reza por mi

hermano, si?

- Si, si. Um dia chegará a vez dele rezar por nós?

- Nosotros?

Na viagem de nove horas de Córdoba a Buenos Aires Juliano se deixou

interrogar por Maria. O caso do irmão havia reforçado a amizade

dos dois, achava que já poderia confiar nela. Precisava falar a verdade

também porque pretendia consolidar ainda mais a relação dos dois. Esperava

contar com a ajuda dela para enfrentar as dificuldades da vida

clandestina.

Juliano falou muita coisa do seu passado, principalmente dos melhores

amigos que perdeu na guerra do tráfico. Não disse que estava na lista

dos dez procurados pela polícia do Rio de Janeiro. E para confessar o seu
maior segredo exigiu uma promessa de Maria.

- Tu promete? Todas as noites?

- Prometo. E tu confiesas?

- Confesso. Sô como o seu irmão era. Sô um foragido - disse Juliano

- Éssssss? - surpreendeu-se Maria.

- Sooooooou! - confirmou Juliano.

Juliano sabia que telefonar não era um meio seguro de comunicação.

Imaginava que os celulares - embora seus donos não tivessem contas

registradas na operadora - pudessem estar sob escuta informal da polícia.

Mas a saudade e a solidão eram mais fortes. Bastava ver um telefone para

esquecer a prudência e deixar de lado a cautela de segurança sugerida

pelo missionário Kevin. Desde o primeiro dia de fuga, os dois vinham se

comunicando pela rede mundial de computadores, a internet.

Para isso, por pressão do missionário, Juliano teve que acrescentar

um equipamento eletrônico à sua mochila de foragido: o computador

portátil.

Havia anos Juliano tentava usar o computador nas suas atividades

no morro. Gostava de mostrá-lo às pessoas que o visitavam na boca, sobretudo

se os convidados fossem os intelectuais que vinham do asfalto.

Percebia que eles ficavam impressionados ao ver a figura do chefão do

tráfico exibindo o inseparável fuzil atravessado no peito e um notebook

pendurado no ombro.

Sua iniciação na informática teve alguns acidentes por falta de noção

dos cuidados que deveria ter com o equipamento. Ganhara dois notebooks

de uma vez, em troca do pagamento de uma dívida de pó dos fregueses

da boca. Perdeu os dois. Uma das perdas aconteceu num dia em

que estava recluso na Toca.

Depois de escrever até tarde da madrugada, dormiu com o equipamento

no chão, ao lado da cama feita com papelão e mantas de lã. Só

ao acordar percebeu que o computador estava coberto pelas águas das

chuvas de verão que inundaram o seu esconderijo e muitos barracos do

morro naquela noite.

O outro notebook foi destruído numa briga de rua com um de seus

vapores, o adolescente Robertinho. Juliano desconfiava que estava sendo

roubado. Irritado com os erros constantes na prestação de contas das car
gas de pó, Juliano inicialmente convocou um júri para decidir o que fazer

com ele. Mas acabou apelando para uma decisão mais simples e brutal.

Dar uma surra de socos, pontapés e que culminou com uma violenta

pancada de notebook na cabeça do adolescente. Os pedaços da tela do

computador quebrada se espalharam para todos os lados e

Robertinho teve que ser levado para o hospital com suspeita de afundamento

do crânio.

Só na Argentina Juliano se tornaria um usuário efetivo do computador.

Nele escrevia as mensagens sigilosas para o missionário. Passou a

usá-lo também com regularidade para escrever bilhetes e poemas para a

namorada, Milene, que deixara no Brasil, produzir alguns textos para o

teatro e o cinema, gravar alguns rascunhos de crônicas e principalmente

para honrar uma antiga dívida com o pessoal da boca. Ele sempre fora

cobrado por não enviar cartas aos dirigentes mais antigos do Comando

Vermelho, que estavam nas cadeias.

Solitário na Argentina, finalmente encontrara tempo para escrever aos

chefões. Por respeito à hierarquia, a primeira carta foi escrita ao mais

poderoso na época, o presidente do CV, Isaías:

“Senhor presidente ISAIAS,

Muita paz de expírito e saúde para suportá esses momento defíceis. Vou le

falá um pouco do que está acontecendo com migo, porque não me comunico.

Porque estou em outro país, e tive que me disfazê dos documento que estava.

Poriso a nessecidade de me mantê sumido até eu tê algum tipo de documento

e podê me locomovê, no país que tô para qualquer lugar que você fô tem que

entregá os documento ao entrá no ônibus. Porque eu estou aqui!

Eu sempre vivi mais na visão de filozofia da família de Paz Justiça e Liberdade.

Acredito sinceramente nisso. Acredito que esse é o caminho da Liberdade.

Quando fui traído pelo Paulo Roberto irmão do Germaninho eu estava indo

fazê um curso de guerrilia no México, cheguei no México mas não fiz o contato,

pois tive que voutá agora quando os putos tomaram o morro. Eu tentei de novo.

Tenho contatos com a FARC da Colômbia, pretendo i lá para abisorvê também

sua filozofia.

Liga praÍ meu Presidente, pocibilitá a condição de me localizá, pois todos

os telefones estão tendo escuta aí, bem como qualqué pista. Assim humildimente

pesso a oportunidade de dezenrrolá por cartas, que logo que chegá na baze

da guerrilia ou no Brasil eu desenrrolo toda essa falta de contato. Sei que pode


ria fazê melhó mas no dia a dia eu me esplico, para todos, pesso se tem alguém

que acha isso o aquilo fale o que qiser sabê que eu proponho a desenrrolá. Pois

vivo na pureza!! Temos muitas coisas pra conversar.

Desde já quero dizê que eu acredito que nossa saída é botarmos na prática

a filozofia. Eu tenho muito a ajudá para a Liberdade de todos dessa maneira,

pois o que penso tem futuro.

Espero humildimente a oportunidade de demostrá também a prática de Paz

Justiça e Liberdade!!

Bem como uma carta para procegirmos nessa vizão!!

Sem mais no momento. Meu respeito e adimiração.”


CAPÍTULO 34 VERMELHO ARACAJU

A perseguição da polícia na Argentina não impediu que a cada três

horas Juliano conversasse com seus homens da Santa Marta. Os encontros

eram marcados por meio de senhas digitais e invariavelmente atrasavam,

porque tanto o chefe quanto seus subordinados chegavam depois do

horário marcado ao local do encontro, alguma sala de bate-papo da rede

mundial de computadores, a internet.

Sem saber que estávamos sendo procurados por dezenas de policiais

no centro de Buenos Aires, eu e Juliano nos encontrávamos durante o dia

nas ruas de comércio mais movimentadas, onde era possível encontrar

vários locutórios, os postos de comunicação multimídia argentinos.

O primeiro encontro foi numa sala virtual do provedor ZAZ. Por medida

de segurança, Juliano usou o codinome Gue, abreviação do nome de

seu ídolo guerrilheiro Che Guevara, para ter acesso ao espaço de conversação

na tela. E, também por medida de precaução, começou escrevendo

como se estivesse na capital do estado brasileiro de Sergipe:

Gue: Aqui é o Gue de Aracaju... estou no aguardo...

Havia apenas cinco pessoas na sala Vermelho Aracaju, e como ninguém

respondeu a sua mensagem, Juliano aproveitou para tentar outro

tipo de contato.

Gue: Auguma gatinha de Aracaju para tc com migo? solitario, comprensivo,

carenti, procuro garota pra levá um papo manero sem azarazão...

Noviça: ihhhhhhhhhhhhhhhh que papo, Gue... apresenta logo as medidas:

Duro, cinco centímetros? E mole, quantos?

Kevin (entra na sala): Como tá aí, irmão? Na santa paz...

O contato na Santa Marta, o missionário Kevin, entrou na sala virtual

com meia hora de atraso e foi recebido com entusiasmo por Juliano, que

já estava ficando impaciente. O último encontro havia sido há menos de

seis horas, mas ele já tinha muitas perguntas a fazer.

Gue: Salve. Salve. Muita P.J.L (Paz, justiça e liberdade). Aí, conte

uma novidade do morro? Os homens tão muito em cima?

Kevin: O morro tá tranqüilo. Os homens estão mais na deles. Deu pra


fazer um churrasquinho na laje da Dona Virgínia, na segunda-feira, no

aniversário do Rivaldo....

Cantamos até parabéns... Ele assoprou velinha e tudo...

Gue: Quero falá com o Rivaldo, chama ele aí...

Kevin: O Rivaldo está na pista...

Gue: Manda um avião atrás dele...

O diálogo ia além do desejo de matar a saudade. Juliano estava compenetrado

na tela, tentando tirar o máximo de proveito daquele contato.

Era como se fosse o executivo de uma empresa cobrando o retorno de

ordens passadas e planejando as atividades dos jovens que estavam administrando

o morro.

Manifestava preocupação com o destino deles. No último ano, onze

homens haviam sido mortos e 23 presos. Na outra ponta, no morro, Kevin

fazia o papel de datilógrafo, digitava as respostas dos homens da

quadrilha ao chefe na Argentina.

Gue: Como tá o pessoal na cadeia? O dinheiro tá sendo levado pras

famílias? E o desenrole do 33? Aí, tem mole, não.

Kevin: O 33 está aqui no seu lado. Tá bolado com muito tempo de

responsa. Quer dar um tempo, tá sem uma treta (casa) no morro e por isso

quer pegar uma namorada lá fora, sabe como é?

Gue: Tem essa, não. Sem caô. Fica na responsa, fica na responsa.

Kevin: E a filha do Tá Manero quer voltar para o morro. Tá rolando o

maior caô, diz que vai subir na moral porque o barco tá afundando, aí.

Gue: Vai subir, o caralho! Quando mandei ela caí fora, ela ficou, não

foi. Depois era pra não sair mais, não, e ela saiu. Foi. Agora tem mais

volta, não. E se ela tivé colada num alemão? Sobe, não. Guenta!

Quis saber por que Juliano estava sendo tão intransigente com a mulher,

Solange, filha do ex-gerente geral Tá Manero, um dos que foram

presos em 1999. Ela namorava um inimigo, que era do bando de Paulo

Roberto e sobrinho do ex-chefão Carlos da Praça. Juliano explicou que

tentou muitas vezes convencê-la e acabar com o namoro, mas ela se negou.

E agora estava querendo voltar ao morro porque havia rompido o

romance com o inimigo.

- Ela tinha que tê feito isso quando a gente falô pra fazê. Agora não

dá mais. Perdi a confiança.
A conexão da internet caiu e Juliano tentou nervosamente retomá-la,

já preocupado com o tempo mal aproveitado. O locutório cobrava um

dólar por minuto de comunicação na rede.

- Perguntei nada ainda, caralho - disse ele enquanto tentava restabelecer

a conexão.

Gue: Kevin você continua aí nessa terra bendita?

Kevin: Na santa paz, estou vendo o cruzeiro iluminado lá no Cantão.

Tem saudades, não?

Gue: Fofoca, quero fofoca. Quem tá comendo quem, quero detalhe,

isso que faz a diferença.

Kevin: A Luz tá doente, diz que tá precisando pegar um na firma...

precisa comprar remédio. Tá sem telefone, pediu pra eu levar pra ela no

barraco ou entregar pra alguém da família dela. Posso pedir para o 33?

Gue: Fala pro 33 dá cem pra Luz e pro Rivaldo botá na contabilidade.

Mas cadê o Rivaldo, caralho, mandei chamá e o puto não vem nunca... Tá

na pista ou deu um perdido pra comê alguéns?

Kevin: Tá vindo, tá vindo...

Gue: Tu disse que o morro tá quieto e isso não é bom. Vem ataque

alemão por aí, vem não?

Kevin: Outro dia eu estava com o Pardal em Ipanema e batemos o

olho num cara que estava atrás de nós. Depois que passou por nós ele entrou

num camburão da PM estacionada lá. Porra! Hoje eu vi esse mesmo

cara entrando no 44, ali na Jupira.

Gue: Isso é pouco. Fala mais, fala mais...

Kevín: Entrou no prédio e ficou um tempão lá.

Gue: Porra, mole. Manda o pessoal levantá, saber qualéque é. Quero

saber mais, mais...Depois eles me informam.

Kevin: Ontem o Tucano estava chamando 33 de patrão. É isso aí mesmo,

não é? Ele vai se impondo na frente...

Gue: Tá certo, tá certo... É por aí, o 33 só precisa ficá mais na dele,

mais na paz, cacete, é cadeeiro velho, tem que levá na manha essa garotada...

E o aniversário do Julianinho?

Kevin: O pessoal tá dizendo que vai arrebentar no dia 30. Puta festa!

Vão botar três celulares na parada pra tu falar um monte com ele e os

amigos todos.
Gue: Vê aí!, tem dois anos que ele não tem uma festa....

Juliano não queria admitir, mas os contatos pela internet mostravam

a sua tentativa de reorganizar a boca, que vivia a maior crise sob o seu

comando. Desde a prisão do gerente Tá Manero, ficara praticamente à

deriva, reduzida a menos de vinte homens e nenhum deles da sua geração.

Foi obrigado a escolher os mais maduros para os cargos de gerência,

embora alguns não tivessem muita afinidade com a função. A maioria das

armas agora pertencia aos próprios homens, apenas quatro revólveres e

uma pistola eram de Juliano.

Apesar do quadro de quase falência, desde a saída do Brasil, em agosto

de 1999, Juliano mantivera precariamente o seu poder sobre o grupo.

E agora, menos envolvido no projeto de abandonar o tráfico, procurava

via internet mantê-lo ativo e injetar ânimo no pessoal que estava bastante

desmotivado por causa da falta de dinheiro, de armamento e de matéria-

prima, o pó.

No último contato pela internet que eu acompanhei, a conversa de

Juliano foi mais explícita, o que demonstrava uma retomada concreta

das atividades. As dificuldades de comunicação continuavam. O computador

do outro lado, o da Santa Marta, continuava sob o comando de Kevin,

o único que tinha familiaridade com os teclados. Ninguém aparecia

em frente à tela na hora combinada para o diálogo com Juliano. Apenas

o contador, Rivaldo, o chefe dos plantões, Tucano, e o gerente-geral, o

frente Kito Belo, também chamado de 33, atendiam à convocação para

a reunião virtual. Mas eles também preferiam obedecer às ordens por

telefone.

Gue: Aí, irmão. Tá vendendo?

Kevin: O 33 está dizendo que as vendas viraram uma merreca. Mas

pra quem tava parado...

Gue: Caralho, Kevin. Cadê o pessoal? Mandei esperá o meu contato

aí, mandei não? Porra, pergunta para o 33, cadê o Rivaldo? Cadê o resto

da rapaziada?

Kevin: Estão na pista... mas já estão estourando aqui, já, já

Gue: Qual é?

Kevin: O pessoal não entende direito de computador. Acham um saco

ficar lendo essas letrinhas e alguns nem acreditam que é você mesmo que
está escrevendo, preferem te ouvir pelo celular.

Gue: Quero falá também com o pessoal do Hip Hop.

Kevin: O Fom-Fom está pedindo uma graninha, senão ele vai tirar o

som, sabe como é que é?

Gue: Dá 100 pro Fom-Fom... o Hip Hop tem que tê toda a força. O

som é importante, caralho...Por isso tenho que falá com o Rivaldo.

Kevin: Tá chegando, tá chegando... ele tá bolado porque não tem pó,

não tem movimento e todo mundo fica pedindo grana.

Gue: Manda o Rivaldo fazê contato com a comadre... Ou manda um

avião levá um celular até a comadre que eu ligo daqui e acerto com ela.

Kevin: O 33 pergunta prá carregar com quanto?

Gue: 100 gramas, 200 é demais pra esse momento. 100.

Kevin: A comadre passou na boca ontem e sugeriu um reforço de um

quilo, pra levantar a moral.

Gue: Manda o avião até lá que eu falo com ela... E as fofocas. Vocês

só falam de trabalho... Tem notícia do Lincon? E quem tá comendo queeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeemmmm??

Kevin: Se quer saber de fofoca vai aqui uma boa. Sabe aquele cara

de sociedade cidadania. o presidente, o missionário, teu amigo? Ele está

pensando em ir para a Europa e ficar um tempo lá...tem ouvido comentários

os PMs estão falando muito dele, dizendo que tem que dar um jeito

nele.

Gue: Aí, ele tem que aproveita e ir embora mesmo.



Kevin: O triste é que o cara vai deixar a mulher para poder cair

fora...


Gue: Calma... a esposa de um cara como nós tem que tê a paciência

da mulher de mahatma gandi.

Kevin: O Rivaldo está voltando para a pista..

Gue: Pergunta pra ele se tá vendendo bem.

Kevin: Ele está respondendo que não, mas que hoje, como é sexta-

feira, pode melhorá... isso se os homi não vierem pra cima.

Gue: Agora quero trocar uma idéia com o 33.

Kevin: Tá difícil, O 33 tá boladão mesmo, mais ainda depois que tu

mandou ficar na responsa.

Gue: Qual é? Quer colhê tem que plantá.


Kevin: Tenho uma boa notícia e uma ruim. Qual tu quer ler primeiro?

Gue: A boa!

Kevin: Sabe aquela história do PM que entrou lá no 44 da Jupira? O

pessoal levantou tudo. Sabe o Poliga, professor de natação, gente boa,

que mora ali em frente do 44? Ele contou a história do cara. Coincidência.

É policial mesmo, mas está de caso com uma garota ali do 44, nada

demais.

Gue: Mas mantém a rapaziada de olho no cara.



Kevin: Agora a notícia ruim.

Gue: Esta eu quero ouvi não. Sexta-feira não é dia de ouvir coisa

negativa... Segura até amanhã. Ok, vamo de senha Chiapas, lembra da

contra senha?...

Kevin: Lembro. Te cuida! Te cuida! Te cuida!

Foi o último contato pela internet da Argentina com a Santa Marta.

À noite, voltamos a caminhar sem rumo pelas ruas centrais de Buenos

Aires. Conversamos longamente sobre a sua mais recente e confusa decisão.

Ele continuava interessado em abandonar o tráfico, mas agora com a

pretensão de mudar a sua estrutura, por meio de um caminho que incluísse

os homens do morro.

Pensava em se aproximar dos dirigentes do Comando Vermelho, atitude

que nunca havia tomado em 16 anos no tráfico. Queria propor à cúpula

um julgamento para resolver as antigas diferenças internas da organização

sobre o destino da Santa Marta. Em outras palavras, desejava que

a organização assumisse a administração da boca e cuidasse de distribuir


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