humanista e imediato, o Charon, de Pontano, que tem as mesmas tendências anticlericais. O gênero causará grande efeito jornalístico em Fontenelle e Voltaire; e Alfonso
de Valdés é digno da companhia de todos êsses nomes. Em outro trabalho jornalístico, o Diálogo de Ias cosas ocurridas en Roma, Alfonso de Valdés defendeu a política
imperial, que levara ao saque de Roma em 1527, alegando como motivo suficiente da devastação a decadência moral do alto clero romano. Tomando essa atitude contra
o centro da Renascença, Alfonso de Valdés está, consciente ou inconscientemente, no campo da Reforma; mas morreu com a profissão de fé católica, sincera, nos lábios:
era, pelo gênio e pela incoerência, um discípulo de Erasmo. Representa a época curta e esplêndida em que Carlos V, imperador erasmiano, governou uma Espanha "liberal",
se bem que imperialista.
O irmão do secretário imperial, Juan de Valdés (2% já pertence, não cronológicamente, mas espiritualmente, à época posterior e última do erasmianismo espanhol. Quanto
à sua atitude religiosa, não pode haver dúvidas: é protes
27) Juan de Valdés, c. 149O-1541.
Diálogo de ia lengua (e. 1535) ; Alfabeto cristiano (1536) ; Las
dento diez consideraciones divinas; Comentarios a Ia epístola
de S. Pablo a los romanos; Comentario a los salmos; Diálogo de doctrina christiana, etc., etc.
Edições do Diálogo de ia lengua por J. F. Montesinos (Clásicos Castellanos, vol. LXXXVI), e por J. Moreno Villa, Madrid, 1919. Edições várias das obras protestantes:
Consideraciones por E.
Boehmer, Madrid, 186O; Diálogo de doctrina christiana por M. Bataillon, Coimbra, 1925.
B. Wiffen: The Life and Writings of Juan de Valdés. London, 1865.
M. Menéndez y Pelayo: Historia de los heterodoxos espanoes. vol. II. Madrid, 188O.
H. Heep: Juan de Valdés in seinem Verhaeltnis zu Erasmus und dem Humanismus. Leipzig, 19O9.
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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 643
i
tante. Contudo, em tôrno de todos os erasmianos existe ambigüidade inquietante, e se católicos ortodoxos e protestantes liberais estão, desta vez, de acôrdo, levanta-se
em tôrno de Juan de Valdés outra discussão entre os protestantes ortodoxos e os filólogos. Êstes últimos afirmam que Juan de Valdés só tem importância pelo Diálogo
de Ia lengua, defesa da língua castelhana contra os latinistas intolerantes; a obra conhecidíssima é o primeiro tratado filológico em espanhol, e a defesa da literatura
espanhola "antiga", das Coplas de Manrique, da Celestina, dos "romances viejos", é muito digna de nota, como atitude de um humanista tolerante. Mas Juan de Valdés
nunca mais voltou ao assunto; por isso, os filólogos consideram o diálogo como aperçu genial de um grande precursor, enquanto os historiadores da literatura o preferem
classificar como obra de ocasião, sem afinidade com as outras atividades de Juan de Valdés. Esta última afirmação não está certa. O Diálogo de Ia lengua parece-se
bastante com os Asolani, de Bembo, e outras defesas da língua italiana contra os latinistas. Mas Valdés não é, como os italianos, ciceroniano, e sim erasmiano; a
sua atitude não pode ter os motivos de um Bembo - sentimento da nacionalidade romano-italiana - e sim outros: a preferência pela língua nacional, contra o latim
da Igreja católica, é comum a todos os reformadores. Nesta altura, intervêm os protestantes ortodoxos: na "nuvem de testemunhas", que é a glória do século XVI, entre
Lutero e Melanchthon, Calvino e Beza, Zwingli e Farel, Ochino e Knox, falta um espanhol; e quem poderia melhor preencher a lacuna do que Juan de Valdés, que traduziu
o Evangelho de Mateus e os salmos para o castelhano e catequizou até os heréticos italianos? Valdés, porém, não é luterano, nem calvinista, nem ortodoxo de qualquer
Igreja protestante. Partindo da seita mística dos "Alumbrados", fundando em Nápoles um grupo de "cristãos interiores% "catequizando en mal hora" a poetisa mística
Vittoria Colonna, Juan de Valdés é um mís
tico; e místicos não havia nem podia haver entre luteranos
e calvinistas. Em Valdés revela-se de novo a raiz mística,
derivada dos místicos holandeses, do pensamento de Erasmo. O ideal secreto de Erasmo fôra uma "Terceira Igreja",
entre Catolicismo e Protestantismo, a Igreja do humanis
mo cristão; nesta, o misticismo teria sido substituído pela
inteligência esclarecida - mas não se fundam Igrejas sôbre a inteligência. Em Juan de Valdés, erasmiano místico, sucumbiu a última possibilidade de uma Igreja erasmiana.
A idéia da Terceira Igreja sobreviveu apenas fora do humanismo, entre os sectários anabatistas, nas massas incultas e excitadas pela inquietação social. Por isso,
essas seitas e as suas sucessoras contribuirão, no século XVIII, para a vitória do racionalismo e da Revolução. Na hora de Juan de Valdés, porém, a aliança entre
a Igreja romana e o humanismo, concluída em face da fogueira de Savonarola, estava quebrada; o concílio de Trento acabara com os restos do erasmianismo, e a hora
do Barroco chegara.
A Reforma não podia deixar de exercer poderosíssima influência em tôdas as literaturas. A arma literária da Reforma era a tradução da Bíblia. Com a tradução do Novo
Testamento por Lutero, em 1522, iniciou-se a Reforma alemã, e a Reforma inglêsa não ficou consolidada antes da aceitação da "Authorized Version", em 1611. Como nenhum
outro livro, antes ou depois, á Bíblia divulgou-se nos países dos novos credos, tornou-se leitura diária de tôdas as classes, da aristocracia e dos eruditos até
aos artífices e camponeses, conferindo nova dignidade, quase dignidade sacral, à língua na qual o Verbo divino foi lido, e unindo a nação inteira em tôrr_o dessa
língua, que era ao mesmo tempo a do culto, comum a todos; a Bíblia alemã, inglêsa, holandesa, consolidou nações já conscientes;, a nação dinamarquesa e a sueca foram
criadas pelas Bíblias
dos seus reformadores (27-A),
27A) H. Schoeffler: Das Abendand und das Alte Testament. Frankfurt, 1941.
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"Bíblia" não significa "livro", mas "livros". Com efeito, não se trata de um livro só, ou de dois - o Velho e o Novo Testamento - mas de duas coleções de literatura
religiosa, histórica e poética, ou antes, de duas literaturas inteiras. O Velho Testamento é tudo o que ficou da literatura do antigo povo judeu, mas bastante para
constituir uma literatura. Os grandes símbolos cosmológicos e os trabalhos e viagens pré-históricas dos patriarcas no Gênese, a legislação severa e teocrática dos
outros livros do Pentateuco, as histórias de bravura e crueldade, devoção e apostasia de pastôres e reis orientais, nos Juizes e Reis, a visão misteriosa da história
universal, no Daniel, o idílio pastoral de Rute, a paixão nacional de Ester, o ardor sensual do Cântico dos Cânticos e o pessimismo desesperado de já, o cepticismo
do Eclesiastes e a sabedoria prática dos Provérbios, e o desespêro e júbilo lírico do Saltério, os hinos de Isaías e as lamentações de jeremias, as reivindicações
sociais de Amos e as visões de Ezequiel e dos
outros profetas - nessa "velha" Bíblia há tudo o que a gente pode sentir e pensar e exprimir.
O Novo Testamento também constitui uma literatura independente: não está escrito no grego de Sófocles e Platão, mas na koinê, na "língua geral" das classes baixas
da parte oriental do Império Romano, e é o único grande monumento literário daquele conglomerado de nações e das suas angústias e esperanças: os grandes discursos
éticos de Jesus no Evangelho segundo S. Mateus, as parábolas novelísticas do Evangelho segundo S. Lucas, a teologia mística do Evangelho segundo S. João, as vicissitudes
da primeira história eclesiástica, nos Atos dos Apóstolos, eloqüência, sutileza teológica e abundância de coração, nas epístolas de S. Paulo, visões monstruosas,
ameaças terrificantes e hino interminável do Apocalypsis - os "livros" compreendem tudo, do comêço até o fim do
mundo.
HISTERIA DA LITERATURA OCIDENTAL 645
O conhecimento dêsse Cosmo religioso e poético através das traduções abriu às nações européias mundos históricos e lados da natureza humana dos quais -a literatura
greco-romana não soubera nada. A transformação de todos os conceitos emocionais e intelectuais que a Europa experimentou pelo conhecimento da Bíblia, só pode ser
apre ciada através da história complicada e edificante das traduções.
A primeira é a tradução alemã de Lutero (28) : o Novo
Testamento, de 1522, e o Velho Testamento, de 1534. As traduções que os protestantes alemães hoje usam, exibem ainda o nome do reformador, nas fôlhas de rosto; mas
diferem essencialmente do original. As sucessivas revisões do texto impuseram-se, não apenas pelos progressos da ciência filológica e exegética, mas em primeira
linha pelos progressos da língua; só dificilmente se lê hoje o original. Lutero não criou a língua alemã moderna - só a usou e aperfeiçoou com mestria incomparável
- nem a moldou definitivamente. Mas encheu-a. A língua alemã, da expressão solene ou erudita até a conversa simplíssima dos camponeses, está cheia de citações e
alusões bíblicas, as mais das vêzes já não reconhecidas como tais. Um alemão não pode dizer vinte palavras sem pregar uma expressão bíblica, quer dizer, luterana,
e isto se aplica também aos católicos, que durante a unificação lingüística do século XVIII adotaram a língua de Lutero. Nem o sacionalismo nem o classicismo de
Weimar foram capazes de eliminar o caráter bíblico da língua alemã; um estudo especializado revelou a existência de inúmeras expressões e metáforas da Bíblia luterana
nas poesias e escritos do me
nos cristão entre os poetas alemães, Goethe (29) ; en28) Cf. nota 2.
P. Pietsch: Martin Luther uno die neuhochdeutsche Schriftsprache. Breslau, 1884.
G. Buchwald e outros: 4OO Jahre deutsche Lutherbibel. Stutrgart, 1934.
29) V. Hehn: Gedanken ueber Goethe. 7.a ed. Berlin, 19O9.
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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 647
contram-se metáforas bíblico-luteranas, e isso em número considerável, nas pastorais dos bispos católicos, que adotaram dêste modo a língua do livro cuja propriedade
os seus predecessores puniram pela morte dos heréticos. A unidade real da nação alemã ainda é duvidosa: até onde existe, é obra da Bíblia luterana.
O mesmo fenômeno repetiu-se em várias outras nações
européias. A "Statenbijbel" (29-A)~ projetada pelo sínodo da
Igreja calvinista holandesa, em Dordrecht, em 1619, e realizada por uma comissão de seis tradutores até 1637, consolidou definitivamente as diferenças entre a língua
holandesa e a língua alemã. A presença de dois flamengos entre aquêles tradutores deu à "Statenbijbel" um aspecto lingüístico mais geral e facilitou, três séculos
mais tarde, a unificação lingüística dos holandeses protestantes e dos flamengos católicos. Na Escandinávia, a Bíblia quase criou línguas, literaturas e nações.
Christiern Pedersen (3O), padre dinamarquês que traduzira a crônica nacional de Saxo Grammaticus, tornou-se, por outra tradução, o reformador da Dinamarca: a Bíblia
que se chama, do nome do rei que a autorizou, "Kong Christierns Bibel", e que é o primeiro monumento até hoje vivo da literatura dinamarquesa; em Pedersen encontram-se
as últimas lembranças do passado pagão, conservadas na crônica de Saxo, com a cristianização enfim completa. Entre os tradutores-reformadores do século XVI, a única
personalidade que se pode comparar com o próprio Lutero, é o sueco Olaus Petri (S1), chance
29A) C. C. De Bruin: De Statenbijbel en zijn Voorgangers. Leiden,
1937.
3O) Christiern Pedersen, c. 148O-1554.
Novo Testamento (1529) ; Christierns III. Bibel (155O). - Tradução de Saxo Grammaticus (1515). C. T. Brandi: Christiern Pedersen og hans Skrifter. Kjoebe
nham, 1882.
31) Olaus Petri, 1493-1552.
Novo Testamento (1526) ; Velho Testamento (com o irmão Laurentius Petri; 1541); Saltério (1526). H. Schueck: Olaus Petri. 4.a ed. Stockholm, 1922.
ler, reformador, historiador, poeta, que deixou a memória do caráter mais poderoso e mais duvidoso da história nacional; em todo o caso, criou aos suecos a língua
e a consciência nacional. Com Pedersen e. Petri entram na literatura européia as duas nações que darão Ibsen e Strindberg. A Reforma, que significou retirada da
Europa para os alemães, significou europeização para os povos nórdicos.
O caso mais importante é a Bíblia inglêsa (32). Mas
a história é complicada. O primeiro tradutor é o principal: William Tindale. Da sua tradução do Novo Testamento, em estilo solene e arcaico, que é um equivalente
perfeito do latim da Vulgata, sobrevivem, quase sem alteração, os salmos como parte da liturgia anglicana. Tindale era protestante; mas a Inglaterra seguiu o caminho
diferente de uma Reforma parcial, pela mera vontade do rei. Em 1539, o Bispo Miles Coverdale deu à nova Igreja Anglicana a Great Bible, da qual no ano seguinte,
sob os auspícios do Arcebispo Cranmer, foi feita uma revisão: a Cranmer Bible. A reação católica da rainha Maria Tudor interrompeu a evolução, e nesse tempo, os
protestantes inglêses, não satisfeitos com os trabalhos anteriores, criaram a Gengiva Bible (156O), obra de William Whittingham.; é a Bíblia dos puritanos, a Bíblia
em cuja língua Cromwell arengou aos seus soldados, a Bíblia que acompanhou os "Pilgrim Fathers" para a América. Após a consolidação da Igreja Anglicana pela rainha
Isabel I, o Arcebispo Parker editou, em 1568, a Bishop:"s Bible; mas esta não satisfez, depois, o rei Jaime I, que dirigiu a Igreja anglicana definitivamente para
a "via media", meio têrmo entre protestantismo e catolicismo. Em 16O4, o rei recomendou aos bispos nova tradução, que foi elaborada durante sete anos, por uma comissão
de 47 tradutores, entre êles homens tão
32) A. S. Cook: The Bibie and English Prose Style. Boston, 1892. J. Brown: The History of the English Bible. Cambridge, 1911. D. Daiches: The King James:" Version
of the English Bible. Chicago, 1941.
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eruditos e santos como Andrewes. O resultado foi a tradução de 1611, chamada King James:" Bible, do nome do monarca, ou Authorized Version, porque o seu uso foi
"autorizado".
Que significam essas complicações históricas?
Em parte, são conseqüências da índole bem inglêsa daquela Igreja. Não foi criada pela consciência de reformadores eclesiásticos, nem pela vontade da nação, e sim
por um ato arbitrário do rei Henrique VIII, que pretendeu conservar as instituições católicas e substituir apenas a autoridade papal pela autoridade do monarca.
Não era possível, porém, afastar as influências protestantes, e o resultado, após muitas fases dolorosas de transição, foi aquela "via media": um compromisso bem
inglês. A própria King James:" Bible é, aliás, um compromisso entre a Bishop:"s Bible e o texto de Tindale. A Authorized Version é uma obra de arte extraordinária:
reúne ao gênio lingüístico de Tindale, só comparável ao de Lutero, a serenidade equilibrada dos bispos e eruditos da "via media". O estudo das evoluções do texto,
de Tindale até 1611, é sobremaneira atraente e esclarecedor quanto ao gênio da língua inglêsa. Mas a Authorized Version não foi elaborada, afinal, para fins literários;
tratava-se da tarefa de tornar aceitável à nação inteira o texto do Verbo divino. Aquelas oscilações, durante quase um século, devem ter outro sentido, mais profundo
do que os motivos políticos e filológicos indicam. A verdade é que a chamada Authorized Version nunca foi realmente "autorizada"; venceu pelo uso, o que é também
um processo bem inglês, indicando que a obra resolvera satisfatóriamente uma dificuldade que ninguém quisera admitir. A língua inglêsa é resultado da fusão de duas
nações : dos anglo-saxões, de língua germânica, e dos normandos, de língua francesa. O equilíbrio, alcançado em Chaucer, foi novamente ameaçado pela Renascença,
em favor dos elementos latinos. Quer dizer, a europeização da literatura inglêsa era capaz de separar, outra vez, a nação em duas classes de línguas sensivelmente
diversas.
HISTQRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 649
Só a Bíblia, o livro comum de todos, podia restabelecer o equilíbrio. Na língua da Authorized Version, escreveu Milton a sua poesia classicista e escreveu Bunyan
a sua alegoria popular. A Authorized Version terminou, na Inglaterra, a fase da Renascença de importação estrangeira; transformou-se em fundamento lingüístico da
literatura iaglêsa moderna.
Já se mencionou a idéia algo fantástica de explicar as particularidades da Espanha e da Rússia pela "falta de uma Renascença". Daria um resultado mais restrito e
mais seguro a classificação das literaturas européias conforme as influências que receberam ou deixaram de receber das traduções bíblicas. Na Espanha, a influência
da língua bíblica, através da Vulgata latina, limita-se a escritores eruditos. Em Portugal, a tradução da Bíblia (1791), pelo padre oratoriano Antônio Pereira de
Figueiredo, partidário de Pombal, é uma obra notável de arte literária; mas chegou tarde demais. O sentido da expressão "influência das traduções da Bíblia" não
se pode esclarecer melhor
do que a propósito das traduções francesas (33). Surgiram
trabalhos apreciáveis: a primeira tradução (1528/153O) por Jacques Le Fèvre d:"Étaples, protestante e antierasmiano;
depois, a tradução calvinista (1535), de Robert Olivétan; enfim, a tradução de Sébastien Castellion (1555). Na literatura francesa existe uma grande tradição de
linguagem
bíblica: em Malherbe, Racine (AMalie), Bossuet, Chateaubriand, Lamennais, Vigny, Hugo. Contudo, é menos uma tradição do que uma série de casos individuais, porque
no país católico não existe um texto bíblico geralmente conhe
cido e aceito que tivesse entrado na consciência lingüística da nação. Uma literatura coerente de inspiração bíblica só poderia existir, na França, entre os huguenotes
33) E. Petavel-O11iff: La Bible en France ou Les traductions françaises des Saintes Écritures. Paris, 1864.
#65O OTTO MARIA CARPEAUX
do século XVI; existe, e é um dos resultados literários mais importantes da Reforma.
A literatura dos huguenotes perdeu a importância já muito antes da revogação do edito de Nantes; o classicismo vitorioso, católico, humanista e conformista, era
incompatível com o calvinismo. A crítica francesa julgou a literatura dos huguenotes do ponto de vista do classicismo e chegou a equívocos: apreciou Marguerite de
Navarre e a Satire Ménippée como representantes do "espírito gaulês"; desprezou Du Bartas; e quase esqueceu D:"Aubigné. Evitando-se o anacronismo, o julgamento será
diferente: não se encontrará muita coisa nos dois primeiros; D:"Aubigné já foi reconhecido como o grande poeta que é; e quanto a Du Bartas, resta colocá-lo na situação
histórica
que lhe cabe.
Marguerite de Navarre (34) foi uma grande personalidade, de costumes severos e profundamente religiosa. É necessário prestar atenção às lições morais tiradas por
ela dos contos licenciosos do Heptaméron, obra à maneira de Boccaccio. A sua poesia religiosa não é menos moralista, de tipo medieval, e as suas poesias profanas
não revelam espírito da Pléiade, e sim o estilo de Marot. O protestantismo de Marguerite de Navarre é oposição de uma alma medieval, à qual não são alheias certas
licenças, inadmissíveis dentro da Renascença cristã; é êsse medievalismo que parece "espírito gaulês".
Equívoco parecido torna possível um julgamento mais
favorável da Satire Ménippée (36). Brunetière, munido dos
34) Marguerite de Navarre, 1492-1549.
Le miroir de i:"âme pécheresse (1531) ; Les Marguerites de ta Marguerite des Princesses (1547) ; Heptaméron (1558).
Edição do Heptaméron, por F. Dillaye, 3 vols., Paris, 1879.
P. Jourda: Marguerite d:"Angouléme, duchesse d:"Alençon, reine de Navarre, 2 vols., Paris, 1931.
L. Febvre: Autour de 1:"Heptaméron. Paris, 1944.
35) Satire Ménippée de ia vertu du Catholicon d:"Espagne et de Ia tenue des Etats de Paris (1594).
Edição crítica por F. Giroux, Laon, 1897.
F. Giroux: La composition de ia Satire Ménippée. Laon, 19O4.
antolhos do classicista e do político tradicionalista, negou valor à obra, que é a sátira mais elaborada da literatura francesa, sátira contra os revoltados católicos
da Ligue e em favor do rei legítimo Henrique IV, que terminará a guerra civil, convertendo-se ao catolicismo e concedendo tolerância aos protestantes. As "parades"
dos católicos e as "harangues" dos seus chefes são obras-primas de jornalismo parodístico. A forma é das danças macabras ou do Narrenschiff, e os autores são burgueses
do tipo da burguesia medieval, se bem que de formação humanista: o juiz Nicolas Rapin, o Cônego Pierre Le Roy, o Professor Jean Passerat, o clero jurídico Jacques
Gillot, o jurisconsulto Pierre Pithou, o advogado Gilles Durant, o Professor Florent Chrestien. É uma obra de espírito "flambloyant", não "gaulês", e o uso ocasional
de latim macarrônico lembra mais Folengo do que Rabelais. "Ces messieurs" são representantes do antifeudalismo da cidade medieval, apoiando o rei contra os aristocratas
"fuori le mura". O fato, salientado por Brunetière, de que a Satire Ménippée, chegando tarde, não contribuiu muito para a vitória do rei, e só sintoma político do
arcaísmo literário da sátira. E se a Satire Ménippée não pertence ao número reduzido das grandes sátiras que sobrevivem aos acontecimentos que as produziram, é porque
não se apóia em convicções morais, permanentes, e sim em conveniências políticas do momento.
Dêste modo, nem as obras de Marguerite de Navarre nem a Satire Ménippée constituem contribuição real para uma literatura francesa da Reforma; o lugar que a história
literária lhes deu, cabe a Du Bartas e D:"Aubigné.
No conceito usual da sátira acentua-se demais o elemento cômico; as grandes sátiras da literatura universal nem sempre dão para rir, e o próprio riso é amargo. Há
a sátira à maneira de Juvenal, na qual a "indignatio facit
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versus", e é dêsse tipo a sátira de D:"Aubigné (36). O clas
sicismo francês, porém, não admitiu esta variedade do gênero; sátira, para Boileau e para Voltaire, significa riso elegante ou de bonhomme sôbre as grandes e pequenas
fraquezas de outra gente, sátira à maneira de Horácio; e as Tragiques, essa sátira imensa contra a aliança do catolicismo fanático e do maquiavelismo cruel, só podiam
ser interpretadas como poema épico das guerras de religião, gênero que repugna, uma vez mais, ao gênio francês. Além de tudo isso, a ideologia protestante de D:"Aubigné
era incompatível com o conformismo dos clássicos franceses; e D:"Aubigné foi esquecido. Quando o redescobriram, a superficialidade de um Faguet podia falar em "grande
jornalismo metrificado", e a crítica psicológica podia explicar tudo pelas terrificantes lembranças de infância do poeta, que já com oito anos assistira à execução
indescritivelmente cruel dos protestantes em Amboise, e a quem o cheiro de -sangue perseguiu durante a vida inteira. A noite de S. Bartolomeu encontrou em D:"Aubigné
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