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1976. Voltou para Nova York em 1980 para criar a Comunidade Zen de Nova York em Riverdale. Em 1982 Glassman abriu a padaria Greyston em Nova York como forma de empregar um punhado dos seus alunos zen. A padaria foi crescendo, e Glassman expandiu sua missão para oferecer emprego para os residentes do bairro próximo considerados "difíceis de contratar", devido à falta de educação formal e competência técnica, e histórias de prisões, viciados e sem-teto. Dessa missão social a Fundação Greyston surgiu e se desenvolveu, passou a ser uma organização de desenvolvimento da comunidade com sede em Yonkers, Nova York, servindo aos economicamente excluídos através de construção de casas, empregos e criação de empreendimentos, serviços sociais, atendimento às crianças e tratamento para HIV-positivos. Desde então a organização se expandiu ainda mais com projetos no Oriente Médio, sob o incentivo da Zen Peacemaker.
Uma das "práticas" que Glassman criou foi chamada de "retiro de rua". Eram imersões de 48 horas nas quais as pessoas que tinham emprego, ternos, tetos sobre as cabeças e família, abandonavam isso tudo voluntariamente - e mais suas carteiras, cartões de crédito e qualquer outro tipo de identidade - e passavam a ser sem-teto. As regras eram se virar sozinho, encontrar abrigo ou qualquer buraco quente, arranjar comida do jeito que desse ou entrar na fila dos sopões de caridade. A experiência era uma chance de sentir essa queda livre sem rede de proteção, sem um ego. Os participantes saíam dela com maior compaixão e sensibilidade para o que os sem-teto enfrentavam realmente todos os dias, e todos, sem exceção, passavam a dar um novo valor às próprias vidas.
Dado o nível de privações que beiravam o masoquismo, esse programa fez um sucesso surpreendente, tanto entre as pessoas que queriam passar por essa experiência mortificante como na mídia. Naqueles anos de instabilidade econômica crescente nos Estados Unidos, havia sempre mais e mais pessoas sem-teto ocupando as calçadas de Nova York e de outras grandes cidades norte-americanas. Eu morava e trabalhava no centro de Manhattan de 1990 a 1992, e quase vinte pessoas se espalhavam pelos dois quarteirões que eu percorria a pé da minha casa para o local de
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trabalho, inclusive algumas que tinham "residência permanente" nos degraus da Igreja Presbiteriana da Quinta Avenida. Toda vez que eu passava por elas acontecia um conflito típico de qualquer um com um mínimo de consciência, tinha de reviver uma saraivada complexa de emoções. Será que devo dar dinheiro para eles? Vai ajudar a melhorar a vida deles? Sinto-me culpado de não dar uns trocados. Essas pessoas são uma praga, um verdadeiro estorvo! Claro que posso me desfazer de 25 centavos. Tome jeito, cara! Eu vou trabalhar todos os dias, por que você também não faz a mesma coisa?
Glassman era um gênio para tocar nos nervos de todos, por atingi-los onde eles moravam e onde não precisavam morar - isto é, na rua. Depois foram os Bearing Witness Retreats em Auschwitz, que também acabaram tão populares que agora são um acontecimento anual que atrai centenas de pessoas de todos os países e religiões. Ficam hospedados em quartos do dormitório de um convento de carmelitas na frente da entrada para Auschwitz e os participantes percorrem durante dias os prédios que agora se transformaram em memoriais comoventes do sofrimento humano. No acampamento das crianças, nas latrinas, no crematório e em diversos outros lugares eles se reuniam, sentavam em círculo de pernas cruzadas, acendiam velas e incenso, recitavam cânticos budistas e meditavam em silêncio obedecendo à tradição soro zen. A noite, depois de um jantar silencioso no refeitório do dormitório, reuniam-se de novo para relatar o efeito daquele dia neles. Imitando uma tradição dos nativos norte-americanos, sentavam-se em círculo e um de cada vez pegava um objeto e punha no meio, simbolizando que tinham o que declarar. Cada orador então procurava, muitas vezes com dificuldade, traduzir em palavras o emaranhado de emoções indescritíveis que sentia. Na primeira noite, depois de ouvir as pessoas — inclusive a mim — falhar nessa tarefa, pensei: "É impossível falar dessas coisas, que dirá escrever sobre elas." Eu estava quase pegando um vôo de volta para Nova York.
Depois de alguns dias e noites assim não conseguimos evitar uma sobrecarga de sentimentos conflitantes. De tristeza, raiva,
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dor, é claro, mas acabei descobrindo também um alívio catártico surpreendente dessa mesma tristeza, dessa raiva e dessa dor.
Eu não planejava fazer daquele lugar a primeira parada da minha viagem. Esperava começar onde Buda nasceu, na aldeia de Lumbini, hoje na fronteira meridional do Nepal com a índia, e seguir cronologicamente a vida dele, depois a história do budismo. Mas a logística acabou com essa esperança. Meu bilhete de volta ao mundo permitia que eu fizesse quantas paradas quisesse, só que tinha de viajar sempre para o leste. Saindo de Nova York, isso significava Polônia antes da índia. O retiro normalmente acontece em novembro, com alguns acréscimos ocasionais no meio do ano. Meus anfitriões poloneses juntaram uma variedade de jovens poloneses e alemães e organizaram esse minirretiro em fevereiro para acomodar os meus horários. Achei que era melhor embaralhar um pouco a escrita de modo que você, leitor, jamais soubesse que não iniciei a viagem no local de nascimento do Buda. Mas, quando cheguei lá, percebi que era o lugar mais lógico para começar.
O representante norte-americano dos Zen Peacemakers que me acompanhou de Nova York à Polônia era Grover Gauntt III, que estava ligado aos retiros de Auschwitz desde o início e que também ajudava nos retiros de rua para a organização. Os numerais romanos depois do nome dele, junto com um certo refinamento da sua imagem, as botas de vaqueiro que despontavam sob a bainha da calça jeans apertada e bem passada, a pedra turquesa e seu envolvimento com o movimento dos nativos norte-americanos, faziam dele uma anomalia cultural ambulante, mas não sei como ele se saía bem sem nenhuma pretensão. Apesar de nunca ter entendido direito de que forma ganhava a vida, seu empenho em descobrir um modo de usar o budismo como catalisador de mudanças sociais obviamente não era apenas uma moda passageira para ele. Chegamos a Varsóvia no fim da tarde. Andrzej Krajewski, que dirige o ramo polonês do Zen Peacemakers, com sua mulher Malgosia Braunek, nos encontrou no aeroporto e nos levou direto para a casa deles. Na viagem de carro pela cidade tive a sensação de
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ter atravessado o espelho e de ter, a meu modo, cruzado a Cortina de Ferro. Era a primeira vez que pisava no lado oriental da mítica barreira, e apesar do resto do mundo ter comemorado seu desmoronamento com a queda do Muro de Berlim em 1989, ainda notei que carregava comigo uma bagagem antiga e preconceituosa de expectativas quanto à vida "do outro lado da Cortina de Ferro". Essas expectativas teriam incluído adjetivos como "deprimente" e "lúgubre". Por isso não tive certeza se havia o preconceito na minha percepção ou se realmente o mundo ali parecia deprimente e lúgubre. Os prédios eram todos cinzentos ou marrons, as pessoas vestidas de cinza ou marrom, até o ar era marrom-acinzentado. As pessoas que eu via na rua não caminhavam, elas se arrastavam, curvadas. Talvez fosse só eu mesmo, com a troca de fusos horários e nervoso no meu primeiro dia de "trabalho". Talvez fosse apenas o mês de fevereiro. Talvez o povo precise de muito tempo para se desvencilhar de tantos anos de governo opressor.
No caminho tive uma pequena aula de história com paradas rápidas no roteiro turístico típico de Varsóvia: o memorial à rebelião do gueto judeu em 1942; o memorial ao movimento de Resistência Polonesa no levante de Varsóvia contra os alemães em 1944; o Monumento a uma Criança Insurgente, estátua diante dos muros da cidade homenageando as crianças que lutaram no levante de 1944. Na verdade, embora o movimento de resistência tivesse ocorrido em todo o país, há um número maior de memoriais de guerra em Varsóvia. A própria cidade foi quase inteiramente destruída depois do trágico fracasso da revolta de 1944. A reconstrução da cidade, especialmente da praça da Cidade Antiga com seus prédios que datavam do século XV ao século XVIII é, em si mesma, um monumento à vontade do povo polonês de sobreviver.
E essa foi a situação angustiante da Polônia por cerca de duzentos anos. Rússia, Prússia e Áustria basicamente recortaram o país para eles em partilhas de 1772, 1793 e 1795, e essa última fez desaparecer qualquer sinal de que uma república polonesa tivesse existido um dia. Não é de admirar que esse povo parecesse cabisbaixo. Vitimização fazia parte da imagem nacional. E é claro, depois vieram Hitler e Stalin, e mais uma vez a Polônia foi peão
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no xadrez estratégico da política de outra nação. Agora, desde 1989, há esperança de que a Polônia e os poloneses sejam capazes de exercer sua liberdade.
Na casa do casal, uma construção pequena mas charmosa, de madeira, num labirinto de ruas que formavam um subúrbio de Varsóvia, nós nos instalamos à mesa da cozinha enquanto eles me contaram histórias de como tinham se envolvido com o budismo e com aquele seu ramo especialmente ativista. Pela janela dos fundos eu podia ver ale'm do pequeno gramado da casa outra construção de madeira: o zendo, ou o centro de meditação zen, onde se reuniam regularmente com membros de sua Sangha Kandzeon, uma em cerca de trinta centros zen similares que existem na Polônia.
Andrzej é tradutor e intérprete, um bonitão de quase um metro e noventa de sessenta e poucos anos, cabelo encaracolado grisalho e maxilar quadrado. No primeiro instante ele me pareceu simpático e agradável, com seu senso de humor rápido e irônico. Em 1974 ele conheceu Malgosia, uma das atrizes polonesas de cinema mais famosas, que se afastou do mundo dos filmes no auge da popularidade, mais ou menos na mesma época em que passou a se interessar pelo zen-budismo. Hoje uma das budistas mais conhecidas na Polônia, ela foi ordenada mestre zen-budista em 1999. Naquela noite que cheguei à Polônia, Malgosia apareceu numa reprise de um programa de entrevistas na televisão, em que três poloneses debatiam por que o budismo estava conquistando os jovens cada vez mais. Enquanto conversávamos ela pareceu um pouco mais arredia, até tímida, preferindo ficar cuidando do fogão.
Fora algumas diferenças de culturas, a odisséia dos dois seguiu basicamente paralela à minha e à dos meus amigos norte-americanos, em busca de alguma coisa que não fosse o que a nossa sociedade e as nossas religiões estavam nos oferecendo.
Andrzej vivia na Suécia no início da década de 1970, conhecendo veteranos da Guerra do Vietnã, desertores e opositores da guerra que o apresentaram ao jazz e aos poetas da geração beat, além de gurus indianos.
A respeito disso, ele disse:
- O Oriente estava indo ao Ocidente para nos buscar.
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"Os anos 60 mostrou que esse novo sistema não funciona, estávamos numa depressão psíquica", Andrzej continuou, referindo-se à resistência comunista na Polônia. "Na década de 1970 continuamos caindo, caindo. Não encontrávamos esperança na política. Temíamos a tomada de poder pelos comunistas; eles estavam se espalhando pelo mundo. Não havia esperança de mudança. 'Onde há esperança?', perguntávamos. Para os poloneses a religião sempre nos manteve unidos. Mas agora não procurávamos mais a igreja em busca da esperança espiritual."
Depois de "farejar como um cão" alguns gurus hindus, como Andrzej diz, ele e Malgosia encontraram Rajneesh, um indiano polêmico, cuja filosofia era um híbrido de hinduísmo e mais uns dois ismos, inclusive (ou principalmente, na minha opinião) egoísmo.
- Ele detonou a minha cabeça — disse Malgosia da cozinha. Ele detonou muitas cabeças. Depois de ser atacado na índia,
mudou-se para o interior do Oregon no início dos anos 80 e supervisionava um ashram gigantesco, atraindo seguidores e controvérsias. Dos muitos gurus que deixaram sua marca no Ocidente, ele não parecia o tipo que atrairia aquele casal tão sensível. Mas o hinduísmo falhou para eles como católicos, pelo mesmo motivo que falhou para mim como judeu. Malgosia explicou:
- Este país é católico. Eu sou polonesa. A minha base é católica, ou, você poderia dizer, cristã.
Como ocorre com as tradições judaico-cristãs, no hinduísmo você acaba precisando de fé, seja no Deus único ou em muitos.
- Você tem de acreditar - ela disse enquanto preparava a kasha, um prato de trigo sarraceno que minha bisavó polonesa tinha, ensinado para a minha mãe. - No budismo não tem nada de crença. Tudo é sentido, vivenciado.
E Andrzej também disse que o hinduísmo era cheio de mitos e magia e mistério. Esses elementos estão presentes no catolicismo, com sua crença na ressurreição, e no judaísmo, com fenômenos do Antigo Testamento como a abertura do mar Vermelho. Tais milagres serviam de distração e entretenimento, mas no fim podiam mascarar a realidade: a pobreza e a poluição que estavam engolindo os países da Cortina de Ferro na época.
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No fim da década de 1970 eles foram apresentados ao zen através de Phil Kapleau, o norte-americano que escreveu o pioneiro Three Pillars of Zen e que dera uma série de palestras na Europa. Então os dois começaram a estudar seriamente com o mestre zen coreano Seung Sahn. E foi assim que descobriram uma prática espiritual que além de promover defendia a "liberdade -liberdade de uma situação política opressora, liberdade de uma igreja opressora", disse Andrzej. Quando conheceram Dennis Genpo Merzel, sucessor de Maezumi Roshi estabelecido na Europa, que morreu em 1995, aprofundaram essa prática. Genpo Merzel criou uma Sangha Kandzeon na Polônia em 1983.
— Hoje temos outro opressor - acrescentou Malgosia. — O capitalismo selvagem. Os jovens estão sob enorme pressão agora para ganhar dinheiro, o consumismo. São como ratos numa roda. Trocaram um opressor por outro. O budismo oferece para eles uma espécie de equilíbrio que não estão encontrando nas igrejas ou nas artes.
Quando conheceram e viram o que era a obra de Bernie Glassman, perceberam que não tinha sentido praticar o budismo sentado numa almofada, mas não praticar no resto da vida.
- Bernie disse: "Saiam por aí e vejam o que podem fazer, não sejam tímidos."
A Sangha Kandzeon foi o primeiro grupo budista na Polônia a adotar uma feição social num país em que não se precisava ir longe para encontrar necessitados.
Na manhã seguinte, antes de partir de carro para Óswiccim, Andrzej e Grover me levaram para ver um dos projetos sociais engajados da Kandzeon.
Depois de cerca de uma hora de viagem para fora da cidade, paramos no que parecia uma casa de fazenda abandonada. Ali era onde uma organização chamada de Fundação Slawek tinha montado abrigo e um centro terapêutico para presidiários recém-liber-tados que tentavam fazer aquela transição para a vida independente. Dentro era tudo bolorento e sujo. Grandes cômodos com quase nenhuma mobília. O ar estagnado se misturava com o cheiro de homens que não se lavavam há um bom tempo, com o cabelo permanentemente oleoso e grudado na testa. Enquanto nos mostravam o lugar os homens deitados em catres mal faziam contato
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visual. Procurei sorrir e parecer impressionado, mas o que eu queria era chorar por aqueles caras, por toda a Polônia. Não conseguia imaginar qual mágica budista que Andrzej e Grover tinham escondida dentro da manga que pudesse abreviar aquele sofrimento.
Logo depois uns sete ou oito homens foram em fila para uma sala grande e sentaram em cadeiras de metal, formando um semi-círculo. Andrzej falou, disse para eles que ia traduzir à medida que Grover os apresentava a uma técnica simples que talvez fosse útil para eles. E Grover ensinou a eles uma meditação curta, enco-rajando-os a simplesmente se concentrar na respiração, deixar os pensamentos irem e virem, sem se apegar a eles. Fiquei de olhos abertos e observei os homens. Eles não paravam quietos, como crianças do ensino fundamental, com a capacidade de concentração talvez tão boa quanto a de um filhotinho de cachorro. "O que eles deviam estar pensando", imaginei. A que idéias ou tristes lembranças poderiam querer se apegar? Será que pensavam como eu, que aquele exercício era tão útil para eles como uma assinatura da revista GQ? Parecia mesmo um bandaid num câncer, se levássemos em conta tudo que tinham enfrentado, todas as suas carências, tudo que desejavam. Mas no caminho de volta para casa os Irmãos Buda, como os chamei brincando, pareciam animados.
- É um começo — Grover resumiu a impressão que teve.
- Vamos continuar indo lá — disse Andrzej. — Isso leva tempo. É preciso conquistar a confiança. Isso é bom.
Admirei o otimismo deles.
A viagem de quatro horas de carro para Óswiccim passou rápido demais, principalmente porque eu não tinha pressa de chegar lá. Encarei o nosso destino e esse episódio com muita apreensão.
Meu pior pesadelo era que as lembranças do sofrimento nesse lugar seriam concretas demais e insuportáveis — reforçadas ao ver as torres de vigia de madeira, as cercas de arame farpado e o corredor de tijolos, triste ícone, por onde passavam os trens carregando os prisioneiros. Tive medo de sentar de pernas cruzadas naqueles trilhos infames, encolhido em silêncio por causa do frio sob
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um céu todo cinza e poluído, procurando observar minha respiração, mas na verdade "observando" os espasmos nas minhas costas. O pesadelo virou realidade. Mas havia outra "verdade" que foi como um tapa na cara e com mais força do que os ventos cortantes: a verdade que sou descendente de poloneses (os pais da minha mãe nasceram na Polônia). A verdade que muitos da família da minha avó morreram no Holocausto. A verdade maior e mais bem ocultada é que estou negando essas raízes polonesas. Principal exemplo: até chegar aqui eu não sabia que Auschwitz ficava na Polônia. Tinha dito para as pessoas que ia fazer um retiro na Alemanha. Ser polonês norte-americano não era algo de que alguém pudesse se vangloriar quando eu era garoto. Com todas aquelas piadas sobre os poloneses...
- Toe, toe?
- Quem está aí?
- O ladrão polonês.
r"Tiii —
Grover Gauntt III de frente para a Primeira Verdade Nobre de Buda no campo da morte de Birkenau na periferia de Óswiccim, na Polônia. Ele é um dos principais organizadores dos Bearing Witness Retreats, patrocinados por Zen Peacemakers, no antigo complexo nazista.
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Quase toda a minha juventude pensei que "polaco burro" era uma palavra só. É um fato da minha vida que raramente reconheci, menos ainda encarei. Mas ali não havia como me esconder. E também não era possível escapar do sofrimento. Ele ainda está no ar, uma nuvem negra permanentemente suspensa sobre a entrada de Auschwitz: "Arbeit Macbt Frei" - "O Trabalho Liberta". Esse slogan nazista escrito em arco sobre o portão não tinha ligação, eu concluí, com a liberdade sobre a qual Andrzej e Malgosia falavam mais cedo.
Quando entramos no campo de Auschwitz, hoje um museu, Andrzej explicou de que forma a ironia debochada de Hitler ia até mais além, talvez sem querer.
- Existe uma explicação num livro de história daqui em que alguns historiadores associam o nome Óswiccim ao tempo em que os cristãos, há mais de mil anos, jogavam a imagem esculpida do deus pagão Swiatowid no rio Sola - disse ele. - E depois santi-ficavam o lugar, oswieconc ou "abençoado". Mas a palavra também significa "forte" no polonês antigo. Para nós budistas oswieconc significa "iluminado". Luz, santidade, poder. Há uma pequena vírgula pregada embaixo da letra e na palavra, como um rabinho. Essa vírgula modifica um pouco o som e denota um aspecto também um pouco diferente: sem a vírgula é oswiecic, iluminar; com a vírgula, tornar sagrado, abençoar.
Essa observação etimológica é mais irônica ainda quando justaposta à nova definição dessa cidade, tirada de alguma literatura do museu:
Criado na primavera de 1940, Auschwitz foi ao mesmo tempo o mais extenso dos cerca de dois miJ campos de concentração nazistas e o maior campo no qual os judeus foram assassinados com gás venenoso. Em pouco tempo Auschwitz ficou conhecido como o mais cruel dos campos de concentração nazistas. Em março de 1941, Himmler ordenou a construção de uma segunda seção do campo, bem maior, localizada perto do campo original. Chamaram esse campo de Auschwitz II, ou Birkenau. Em Birkenau funcionavam as câmaras de gás e os fornos crematórios do centro de matança de Auschwitz. Auschwitz foi o maior cemitério na história da humanidade. O número de judeus mortos nas câmaras de gás de Birkenau
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devem chegar a uma estimativa de um milhão e meio de pessoas: homens, mulheres e crianças. Quase um quarto dos judeus mortos na Segunda Guerra Mundial foi assassinado em Auschwitz. Dos 405 mil prisioneiros registrados que receberam números de Auschwitz, apenas cerca de 65 mil sobreviveram. Dos 16 mil prisioneiros de guerra soviéticos que foram levados para lá, apenas 96 sobreviveram. De acordo com diversas estimativas, pelo menos 1.600.000 pessoas foram assassinadas no centro de matança de Birkenau.
São os pequenos detalhes que intrigam. Sim, seis milhões, esse número está marcado a ferro e fogo na consciência de todos os judeus, mas isso apenas ofusca a realidade em nível individual. Essa ilusão se desfaz por completo quando vemos a exposição em vitrines de vidro dos objetos da vida na prisão - um balcão inteiro cheio de óculos das pessoas, outro com pés de sapatos. No acampamento das crianças, eu me imaginei uma criança apavorada, encolhida no canto mais escuro da minha cama beliche, contando apenas com a minha imaginação para espantar a cruel realidade a poucos metros dali.
Como uma múmia ambulante, meu corpo parecia tão pesado que eu mal conseguia levantar as pernas nos corredores da exibição e nos alojamentos do campo. A minha testa não desfranzia mais. Fiquei balançando a cabeça o tempo todo, sem poder olhar nos olhos dos outros participantes, completamente sem palavras, naquele momento e agora também. Vi outros grupos passando, aparentemente no mesmo estado entorpecido e pensei por que alguém passaria por aquela experiência voluntariamente.
Foi mais duro ainda quando entramos em fila indiana numa câmara enorme que os nazistas chamavam de Sauna. A Sauna, explicaram, era uma instalação criada em Birkenau para desinfec-ção de todos os prisioneiros. Ali as mulheres eram levadas em bandos a cada quatro semanas para matar piolhos. Nesses dias elas eram arrancadas de suas jaulas a pancadas, depois levadas para a Sauna, onde tinham de ficar sentadas nuas o dia inteiro até terminarem a desinfecção de suas roupas. À noite elas tinham de marchar de volta, nuas, para seus blocos sob a supervisão dos guardas da SS. Só recebiam as roupas de volta tarde da noite. O número de mortos aumentava muito depois de cada dia na Sauna.
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Agora o piso de concreto está coberto com um vidro grosso, alto-reflexo e escuro. Algumas paredes foram levantadas para a exposição e cobertas de fotos resgatadas da bagagem confiscada: famílias em retratos formais em tons de sépia, ou em instantâneos casuais sobre toalhas de piquenique, ou ainda reunidos em quintais de amigos. Os narizes proeminentes, as maças do rosto salientes da Europa oriental - traços que me fazem lembrar da minha família.
O ritual que estávamos fazendo em certos pontos do campo recomeçou. Pusemos nossas almofadas em semicírculo no chão de vidro e sentamos de frente para a parede que tinha um conjunto de fotos. Acenderam velas. Mas dessa vez o ritual não seguiu a rotina. Deram-nos uma folha com uma lista de nomes, cada folha diferente da outra e todos nós lemos nossas listas ao mesmo tempo.
- Israelevitch, Abraham. Israels, Salomon. Issakowitsch, Alexandre. Issler, Ichel... - recitei, caindo naturalmente num ritmo hebraico familiar de cântico.
Um nome se juntava ao outro, uma voz se harmonizava com a outra, todas as nossas vozes reverberavam nas paredes vazias, um coro sobreposto de morte.
Tocaram um sino e ficamos em silêncio. Muito depois de o sino deixar de ressoar os nomes ainda ecoavam nos meus ouvidos. Na tradição Soto, você senta com os olhos semicerrados, mas virados para baixo, focalizando apenas um ponto. O meu olhar pousou numa foto refletida no vidro do piso, de uma mulher loura de uns vinte e poucos anos, agarrada aos dois filhos. Aos vinte e poucos anos a minha mãe era uma linda mulher loura, com queixo voluntarioso e nariz marcante, como Meryl Streep na adaptação cinematográfica do livro de William Styron A escolha de Sofia. E de repente entendi: além de carregar o testemunho daqueles que morreram ali, também éramos testemunhas dos que nunca chegaram a viver, das crianças que não nasceram e dos filhos dessas crianças que nunca nasceram - para nós mesmos refletidos no futuro. A história podia ter perdido composições musicais jamais escritas, curas na medicina nunca descobertas, romances que não foram escritos e possíveis ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, mas eu perdi tias, tios e primos não nascidos: lembranças, experiências, amor, sabedoria. Eu tinha perdido meu passado, meu presente e meu futuro. Quando isso chegou tão perto assim de mim, compreendi. Naquele
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momento microcósmico vislumbrei a magnitude da perda. Mas, em vez de ficar com mais raiva ou amortecido, dessa vez senti subitamente uma inexplicável liberação daquilo tudo. É claro que essa ufania e exaltação era passageira e logo foi seguida pela culpa e depois por uma série de emoções fabricadas pelo homem.
É verdade que nessa tradição eu não devia estar pensando em nada, muito menos em me deixar levar por emoções. Em minha defesa eu tinha atingido aquele caminho para o perdão apenas quando, em meditação, fui capaz de separar o "eu" de mim. Ou seja, concentrado naquele momento, em meio a tal tumulto interior, conseguia separar duas experiências: o que acontecia aqui e a minha reação ao que acontecia aqui. Pelo fato de carregar o testemunho simplesmente do que tinha acontecido, sem misturar com os meus sentimentos, com a minha opinião, com a minha reação, com o meu julgamento, aquilo simplesmente aconteceu.
Fez com que eu me lembrasse de uma breve conversa que tive com Grover antes.
- Isso deve ter sido um verdadeiro purgatório para essas pessoas - disse eu, pensando também que purgatório é uma visão teológica bem forte para os católicos romanos que viviam na Polônia.
Purgatório (do latim purgare, "limpar, purificar") é um lugar ou estado de tormento temporário, do qual Gregório, o Grande, escreveu "que a dor é mais intolerável do que qualquer um pode sofrer na vida", pelo qual a alma supostamente passa até ser purificada e então transferida para o céu.
- Como chamariam isso no budismo? - perguntei para Grover.
Estávamos caminhando pelo meio de filas e mais filas de alojamentos, alguns de madeira escura, outros de tijolos, mais marrons do que vermelhos. Tive a impressão de ainda poder sentir o cheiro da morte no ar. O sol da tarde criava sombras compridas. A sensação era de estar no corredor da morte.
- Será o bardo? — arrisquei.
Ele me corrigiu, disse que eu tinha confundido as minhas tradições budistas. De acordo com o budismo tibetano, o bardo é a fase entre uma vida e a seguinte e literalmente quer dizer "o que fica no meio" ou "estado intermediário".
- No zen não existe estado intermediário - explicou ele. -Entre o agora e o agora existe apenas o agora.
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