Por que uma idéia de dois mil e quinhentos anos atrás pareceria hoje mais relevante do que nunca? Como os ensinamentos do Buda podem nos ajudar a resolver muitos problemas do mundo



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A VOLTA PARA O OM DOS LIVRES E BRAVOS

O budismo norte-americano é a ruga mais recente no rosto eternamente sorridente

Não acredite em nada, onde quer que leia, não importa quem fale, não importa se fui eu que disse, a não ser que concorde com o seu próprio raciocínio e o seu próprio bom senso.

- O BUDA

Um dia um repórter perguntou para Mahatma Gandhi: "O que o senhor pensa da civilização ocidental"? "Penso que seria uma boa idéia", ele respondeu.

Gosto de muitas coisas e fico confuso e indeciso correndo de uma estrela cadente para outra, até cair. Esta é a noite, o que ela faz conosco. Não tinha nada para oferecer para ninguém, exceto a minha confusão.

- JACK KEROUAC, On theRoad(Péna estrada)

Aterrissei em San Francisco, onde tinha deixado meu carro em uma garagem antes de embarcar. O plano era passar uma semana na Bay Área, depois voltar de carro para a Costa Leste, parando em Boulder. No Colorado eu ia de novo à Universidade Naropa que tem a única faculdade oficial de quatro anos, cujo currículo é totalmente baseado nos princípios budistas.

Eu tinha saído dos Estados Unidos meses antes (ou foram anos?) com certa percepção (ou seria ponto de vista?) do budismo

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norte-americano. Depois de observar, fazer cobertura jornalística e participar do fascínio norte-americano com a sabedoria do Oriente por cerca de trinta anos, a minha opinião era que a nossa interpretação e prática do budismo era uma diluição do original asiático. E afinal de contas acho que sou um purista.



Muitas vezes me pareceu que o budismo norte-americano era uma misturada: um pouco de meditação com mandala tibetana aqui, um toque de cerimônia do chá zen ali, uma pitada de consciência da respiração do budismo theravada acolá, com talvez um pouco da ritualística nativa norte-americana caseira e do misticismo cabalístico judeu salpicados por cima para completar. Além de querer que a nossa espiritualidade fosse servida no estilo de uma tábua de frios, queríamos também que fosse no nosso estilo de lanchonetes fast-food e administrada em um minuto, queríamos a iluminação instantânea, de preferência no intervalo para o cafezinho. Adejando de uma prática esotérica para outra... para ir mais fundo? Parecia um exercício intrinsecamente derrotista. E, no entanto, não é esse o modo de vida norte-americano? Somos vira-latas étnicos pastando na tábua de frios cultural.

Essa abordagem amadora do budismo foi demonstrada grafi-camente no Tao, um restaurante da moda em Manhattan que eu tinha conhecido antes de sair dos Estados Unidos. Um dos sócios, Rich Wolf, sentou comigo na sacada particular no jirau do salão do restaurante, a uma mesa longa e rústica de madeira onde Leo e Uma e outras celebridades costumavam se reunir. Ficamos olho no olho com uma estátua de quase cinco metros de altura, que ocupava os dois andares, encostada na parede oposta, cujo apelido é "Sr. Buda Cabeça de Batata". Ele inventou o conceito desse Buda para complementar a cozinha pan-asiática que misturava culinária tailandesa, japonesa e chinesa. Rich, que sabia quase nada de budismo, ficava mesmo assim hipnotizado com a imagem visual de O Iluminado, mas não sabia explicar exatamente por quê. Essa obsessão fez com que ele viajasse por toda a Ásia colecionando mil imagens do Buda pelo caminho. Não satisfeito com um estilo particularmente, ele escolheu os elementos que mais o atraíam -o cabelo trançado dos budas tailandeses, as

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maçãs do rosto salientes dos chineses - e criou um Buda próprio. Para ele não parecia haver nada de errado. Na verdade, Rich se vangloriava de sua criatividade. Achei aquilo repugnante, desrespeitoso da individualidade de cada cultura.

Jantei uma noite lá com a minha filha Ariana e meu futuro genro Ryan e chupamos fatias finas como papel de bife Kobe -100 gramas a 42 dólares, sim senhor — que nós mesmos grelhamos em pedras quentes sobre a mesa, enquanto o sr. Cabeça de Batata de mau gosto pairava sobre nós. E muito desconcertante, quando satisfazemos prazeres degustativos, ter essa figura olhando fixo para nós, como se dissesse: "Sabe quantas vacas foram mortas para você poder se empanturrar desse jeito?"

Essa abordagem superficial e confusa do budismo, da qual há muitos outros exemplos nos Estados Unidos, fez com que eu me frustrasse na época. Mas agora eu via isso com novos olhos e era capaz de fazer uma nova avaliação. A tendência norte-americana exibia o mesmo comportamento cultural de adaptação que eu acabava de ver que o budismo tinha sofrido desde cerca de 250 a.C. quando saiu da índia. A nossa cultura poliglota estava apenas dando uma distorcida da América moderna, do mesmo modo que os tailandeses tinham acrescentado as tatuagens, os chineses idéias de Confúcio e os japoneses do xintoísmo. Por que não budismo do sr. Cabeça de Batata? Ou "enchilada nirvana"? Ou Buddhismfor Dummies {Budismo para idiotas — nome do livro de Jonathan Landlaw e Stephan Bodian)?

Não havia lugar melhor para observar essa nova espécie de budismo do que em San Francisco, onde o pai de Hoitsu Suzuki, Shunryu Suzuki, havia fundado um centro zen e, mais tarde, o primeiro mosteiro zen nos Estados Unidos, o Tassajara, na montanhosa Floresta Nacional Los Padres, perto de Carmel, Califórnia.

Historicamente San Francisco era o lugar para onde as pessoas iam para se reinventar. Tornou-se um ambiente criativo em que as culturas colidiam e se alimentavam umas das outras, um terreno perfeito para gerar o budismo, como eu havia visto em outros cantos.

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Já tinha um precedente vantajoso durante a corrida do ouro na década de 1840, com a chegada de imigrantes chineses, que ali estabeleceram uma das maiores comunidades chinesas nos Estados Unidos. Eles abriram um templo budista em San Francisco em 1853, considerado o primeiro templo desse tipo nos Estados Unidos. Na cidade pequena e movimentada, imigrantes de todo o mundo, à procura do ouro nas colinas, deviam ter pelo menos uma introdução tangencial ao budismo por meio dos comerciantes chineses com quem faziam negócios. Ainda nesse século chegaram os japoneses também. Budistas da Terra Pura do Japão fundaram a Missão Budista da América do Norte em San Francisco por volta de 1898. Hoje chamada de Igrejas Budistas da América, continua uma organização em plena atividade. Eles também deviam ter apresentado aos nativos do lugar suas práticas.

Em meados do século XX, San Francisco sediou outra onda, dessa vez dos próprios norte-americanos. No fim da década de 1950, a geração beat estabeleceu seu quartel-general não oficial na City Lights Books de Lawrence Ferlinghetti na North Beach. Em torno daquele cenário literário gravitavam músicos de jazz progressivo, cantores do folclore americano, comediantes polêmicos. Os beatniks recebiam seu sustento espiritual do zen-budismo, e foi por isso que Shunryu Suzuki viu esse jardim perto da Golden Gate como um solo fértil no qual o budismo que estava sempre pronto para se adaptar poderia facilmente criar raízes e gerar um ramo distintamente norte-americano.

Eu tinha me mudado para San Francisco no dia 8 de dezembro de 1980. A data ficou marcada na minha cabeça porque acontece que foi a noite em que John Lennon foi assassinado. Eu mesmo estava fugindo da Costa Leste, pronto para me reinventar, no rastro do casamento que tinha deixado morrer. Quando cheguei lá, a Bay Área era mais ainda um viveiro de exploração espiritual. Havia muitos outros nomes e disfarces pelos quais era reconhecida: o movimento do potencial humano, o movimento de auto-ajuda, o movimento da Nova Era, a Era de Aquário. Os beatniks tinham se transformado em hippies, os hippies em yip-pies, e yippies viraram yuppies. A Década do Eu passou a ser a

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Década do e Eu? A piada que corria a Bay Área era de que a metade da população fazia análise e a outra metade era de analistas. No país que havia adotado o slogan da General Electric — "Progresso é nosso produto mais importante" - como hino nacional, agora "processo" era nosso produto mais importante. Foram essa procura e essa dispersão - provocadas pela desilusão do meu país depois de sofrer com os assassinatos de dois Kennedy e um King, depois da autodestruição dos ícones do rock como Janis e Jimmy e Jim, depois da farsa do Vietnã, da vergonha de Watergate, da desgraça coletiva que foi a renúncia de Nixon — que me fizeram lembrar da Era Axial de milhares de anos atrás. Como forma de compensação, tudo isso fez com que norte-americanos conscientes procurassem conhecer as próprias almas, ou apenas as procurassem.

Eu estava nesse grupo espiritual amador, que na época já havia experimentado um pouco de hinduísmo, sufismo, budismo e linhas alternativas como Arica e EST. Alguns anos depois de chegar a San Francisco também fui buscar minhas raízes judaicas, trabalhando como contato de mídia para a Federação da Comunidade Judaica, que angaria fundos para diversas agências e instituições de bem-estar social, e que promove também a identidade judaica. Ambivalente sobre a minha própria identidade judaica, lembro-me de dizer para as pessoas que era a parte "Comunidade" do nome do grupo que me atraía mais do que a parte "Judaica". Mas como você sabe, havia uma dúvida na minha cabeça quanto ao meu interesse por fazer parte de qualquer comunidade (leia Sangha). Só que apesar da minha resistência inicial, pelo fato de sair sempre com judeus da Costa Oeste muito bem assimilados - que possuem um DNA completamente diferente dos judeus gesticulantes, que falam alto, que são intelectuais e emocionalmente intensos da Costa Leste com os quais fui criado -, acabei reforçando a minha identidade judaica. Depois de um tempo, e isso já era previsível em mim, larguei aquele trabalho e a comunidade judaica local também - mas, como costumam dizer por aí, alguns dos meus melhores amigos eram judeus.

Havia então uma simetria bem a propósito com o fato de estar agora retornando a San Francisco na véspera do Yom

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HaShoah, o Dia da Lembrança dos Judeus, um dia destacado anualmente para lembrar o Holocausto e para avisar que isso não pode se repetir. A primeira parada na minha viagem global tinha sido para testemunhar o Holocausto no complexo Auschwitz-Birkenau na Polônia com pacifistas zen. Agora, para honrar o Yom HaShoah, observância que antes eu teria ignorado, compareci a um retiro de um dia inteiro que combinava budismo com judaísmo. Um programa da Congregação Beth Sholom, no distrito de Richmond em San Francisco (onde hoje moram muitos chineses de classe média), foi conduzido por um rabino judeu com um longo histórico de experiência em zen-budismo, e por um sacerdote zen que tinha sido abade do Centro Zen de San Francisco e que também é judeu. O rabino Alan Lew e o reverendo Norman Fischer entremearam cânticos budistas e meditação com leituras do Tora, orações judaicas e contemplação, além de respiração de ioga e exercícios de alongamento. Os participantes eram todos judeus, embora muitos parecessem versados em filosofia e prática budistas.

A coisa toda teria recendido a charlatanismo antes da minha viagem. Mas agora...! Os participantes tiraram de letra, naturalmente como pedir comida chinesa em domicílio e sopa de matzo... tudo junto. Eu, no entanto, ainda lutava para integrar esses dois sistemas de crenças em uma cabeça pequena: a religião que inventou a Teoria do Deus Único contra a religião que inventou a Teoria do Não Deus. Quando minha boca cantava a oração kaddish em hebraico para os mortos, meus ouvidos escutavam os cânticos budistas...

... Yeet'barakh, v'yeesh'tabach, v'yeetpa'ar, v'yeetrohmam, v'yeet'nasei, v'yeet'hadar, v'yeet'aleh, v'yeet'halal sh'mey d'kudshah b 'reekh hoo. (Congregação: b'reekh hoo.)

L 'eylah meen kohl beerkhatah v 'sheeratah, toosh 'b 'chatah v'nechematah, da'ameeran b'al'mah, v'eemru: Amein. (Congregação: Amein.)

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Aleynu v 'ai kohlyisrael, v 'eemru: Amein.

Y'hei shlamah rabbah meen sh 'mahyah, v 'chahyeem.

(Congregação: Amein.)

Oseh shalom beem 'roh 'mahv, hoo ya 'aseh shalom, aleynu v 'ai kohl yisrael v 'eemru: Amein. (Congregação: Amein.)

Abençoado, louvado, glorificado, exaltado, elogiado, poderoso, elevado e prestigiado seja o Nome do Sagrado, Abençoado seja Ele. (CONGREGAÇÃO: ABENÇOADO SEJA ELE.)

Além de qualquer bênção e canção, louvor e consolo qüe são proferidos no mundo. Agora respondam: Amém. (CONGREGAÇÃO: AMÉM.)

Que haja paz abundante do céu, e vida para nós e para toda Israel. Agora respondam: Amém.

(CONGREGAÇÃO: AMÉM.)

Ele que cria a paz nas altuias, que Ele faça a paz, sobre nós e sobre toda Israel. Agora respondam: Amém.

(CONGREGAÇÃO: AMÉM.)

Gate, gate, paragate, parasamgate, Bodbi Svaha!

Foi, foi, foi além, foi completamente além. Despertai, assim seja!

Eu tinha ouvido Buda ser chamado de O Abençoado, Senhor Buda, ou simplesmente Senhor. Podia imaginar monges devotos supondo que aquelas frases do kaddish - "Sagrado, Abençoado seja Ele/Além de qualquer bênção e canção, louvor e consolo que são proferidos no mundo" - pertenciam ao Abençoado deles. Na mesma medida, "foi além" poderia ter tons de cabala, o extremo mais místico do judaísmo, no qual "o inatingível não pode ter um nome", como dizem os cabalistas.

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Outra frase em hebraico, tikkun olam, cuja tradução é "consertando o mundo", ressoa com o budismo socialmente engajado que eu havia investigado.

- Os judeus acham que têm de buscar a verdade e salvar o mundo - disse o reverendo Fischer para mim num intervalo. - O Tora diz: consertem o mundo. Tikkun olam. E: "Vocês serão uma nação de sacerdotes."

Agora ele mantém sua prática de meditação e dá aulas na Fundação Zen Todos os Dias em Mill Valley, Califórnia, cuja missão é "dedicada a ouvir o mundo, a modificá-lo e ser modificado por ele". Em seu livro Jerusalém Moonlight {Luar deJerusalém), ele dedica seu trabalho ao diálogo judaico-budista.

- O budismo e o judaísmo são ambos práticas de consciência plena - acrescentou o rabino Lew, autor de One God Clapping: The Spiritual Path ofa Zen Rabbi {Um Deus aplaude: o caminho espiritual de um rabino zen). Antes de se engajar no judaísmo ele passou dez anos estudando seriamente o zen-budismo e foi diretor do Centro Zen de Berkeley. Depois disso fundou um centro de meditação judaico, chamado de Makor Or ("fonte de luz").

- Ambos se baseiam na experiência direta deste mundo. E eu penso que isso os torna diferentes das outras religiões. O judaísmo é um caminho espiritual profundo e rico. Mas não dá quase para perceber isso na sinagoga norte-americana.

- O impulso religioso da minha geração de judeus se atrofiou - concordou o reverendo Fischer.

Concordei inteiramente. Lembro-me de ter assistido aos serviços nos Dias Mais Sagrados - Rosh Hashanah, que comemora o Ano-Novo judeu, e o Yom Kippur, o Dia do Perdão - na minha sinagoga suburbana de Nova Jersey no fim da década de 1950, pensando que parecia mais um desfile de casacos de mink do que um serviço religioso. Minha desilusão só aumentou à medida que eu ficava mais velho. A última gota foi no meu bar mitzvah, em 1961. Quando o rabino inclinou o corpo para a frente para fazer o sermão para mim, o que ia indicar a minha chegada à idade adulta, o cheiro de álcool do bafo dele me deixou enojado e me afastou da minha fé.

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Esses dois homens de San Francisco, a maioria dos meus amigos budistas e eu pertencemos a uma seita exclusivamente norte-americana. Somos chamados de bu-judeus. Essa observação foi feita com bastante freqüência, de que uma percentagem significativa dos budistas norte-americanos — já li que são até 30 por cento

- são originalmente judeus (os judeus representam cerca de 2,5 por cento da população dos Estados Unidos). Os fundadores do primeiro centro de retiro vipassana, Insight Meditation Society, em Barre, Massachusetts, parece mais uma firma de advogados judeus do que de budistas radicais: Goldstein, Schwartz, Salzberg & Kornfield. A questão que é irrespondível ou que tem respostas demais é: por quê? Tanto os judeus como os budistas, que compartilham a tendência de responder às perguntas com outra pergunta, perguntariam: por que não?

Os judeus são intelectuais. Budismo é a filosofia da mente. Os judeus têm sido vítimas de perseguição desde a fundação da religião. O budismo reconhece que sofrer faz parte da vida e oferece um sistema que alivia as dores que vêm com esse sofrimento. Os budistas cantam "Om". Os judeus cantam "Oy". Os judeus são analíticos. O estudo talmúdico exige um escrutínio extremamente detalhado das escrituras judaicas, chegando à interpretação numerológica de cada letra, de cada palavra. Freud, que era judeu, desenvolveu um sistema para estudar a mente chamado de psicanálise. O budismo é analítico também. Como já escrevi antes, o estudo minucioso do Buda de como a própria mente nos leva à infelicidade foi um divisor de águas na compreensão de nós mesmos que antecedeu Descartes e Freud. Além disso, os judeus de meados ao fim do século XX passaram para a dianteira da classe média, o que significa que realmente atingiram um nível de conforto no plano material. Isso, por sua vez, significa que eles também podem estar na vanguarda da brigada do "fantasma faminto"

- quando ter tudo pelo que batalharam ainda não é o bastante. Na minha visão, aqueles que têm demais ou os que têm de menos buscam refúgio no Caminho do Meio.

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A vida é cheia de sofrimento, solidão e dor — e tudo isso termina rápido demais.

- WOODY ALLEN

O humor judeu nasceu da necessidade: rir ante milhares de anos de perseguição foi um mecanismo muito eficiente para encarar isso. E também provou ser um ótimo remédio quando Norman Cou-sins, um judeu, literalmente rindo se curou de espondilite anquilo-sante, uma doença muito dolorosa que provoca a desintegração do tecido conectivo da coluna vertebral. Ele publicou suas descobertas no New EnglandJournal of Medicine em 1976 e três anos depois em seu livro Anatomy ofan Illness (Anatomia de urna doença).

Os judeus não são os únicos a terem bom humor e a dar importância ao riso e a conhecer a aplicabilidade do riso contra o sofrimento humano. Mas quando lemos os créditos no final dos filmes e dos seriados na TV, e os nomes dos comediantes nas casas de espetáculo, temos de admitir que eles talvez sejam os acionistas majoritários mesmo.

Por isso fazia sentido - considerando que estamos em San Francisco — que o homem que se considerava o primeiro budista comediante e humorista fosse de origem judaica. E também fazia sentido esse cara ser um dos meus melhores amigos.

Num palco vazio no Marsh, um teatro ofF-off-off-Broadway no bairro predominantemente latino de Mission, fui assistir à apresentação de Wes Nisker.

- Antes de me tornar budista, eu me preocupava com a minha vida. - Pausa. - Agora eu me preocupo com a minha próxima vida.

Nisker é um homem muito magro, de 60 anos, cujo rosto parece de borracha, com orelhas proeminentes e sorriso largo onisciente que evoca a expressão irônica do seu primeiro professor de sabedoria, Alfred E. Neuman, o mascote " What me worry" (cuca fresca) da revista Mad.

Ele solta suas piadas zen com a precisão do timing dos hotéis das montanhas Catskill onde os judeus costumam passar as férias de verão, que chamam de cinturão borscht.

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- O discípulo se aproxima do mestre e faz a pergunta anti-qüíssima: "Toe, toe?" O mestre responde com a pergunta espiritual número um: "Quem está aí?" - Outra pausa. - Se vocês não entenderam a piada, vão reencarnar sem parar até entender.



O público, uma mistura de antigos hippies, yippies e yuppies, salpicados com uma geração mais nova atraída pelas coisas orientais, deu risada, se autodepreciando. Entenderam o humor dele como se fosse um código do grupo. Ouvi o som de muitos aplausos.

Eu devia incluir aqui as credenciais de Nisker, além de ser meu amigo. Acontece que ele também é co-editor de Inquiring Mind, uma revista internacional semestral para praticantes de vipassana; escreveu alguns livros sobre budismo, inclusive Essen-tial Crazy Wisdom (Sabedoria maluca essencial) e The Big Bang, the Buddha, and the Baby Boom (O big-bang, o Buda e o baby boom); e há muito tempo ele é professor de meditação e orador de um retiro. No entanto, é mais conhecido na Bay Área como "Scoop" Nisker, locutor e comentarista de uma rádio FM, que desde o fim da década de 1960 tem mirado com extremo rigor contra os fanáticos direitistas, defensores da guerra, a Amerika corporativa e poluidores ambientais.

Ele é também a prova número um quando se responde à pergunta: "O que é que um garoto judeu honesto está fazendo num mosteiro budista como esse?" A história dele começou na alienação, cercado por trigais, nos anos 40, uma das únicas famílias judias em Norfolk, Nebraska. Ele se identificava com os anti-heróis de celulóide e alienados dos anos 50 como Brando e James Dean. Seguiu esse tema na faculdade enquanto absorvia os existencialistas Sartre, Camus. Depois de ler os transcendentalistas, "Self Reliance " (Autoconfiança) de Emerson ("Enfim nada é sagrado, apenas a integridade da nossa própria mente") e Leaves of Grass [Folhas da relvd) de Whitman ("Eu comemoro a mim mesmo..."), Nisker aceitou a sugestão de Buda de "ser uma luz para si mesmo". Quando chegou a Kerouac, Ginsberg, Gary Snyder e os outros beats, já estava preparado para uma filosofia que refutava Deus e qualquer outra autoridade, que admitia o sofrimento, mas que também oferecia uma saída não dogmática.

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Em 1970 ele foi parar em Bodh Gaya, na índia, fez o retiro de Goenka, conheceu John Bush, Ram Dass, Daniel Goleman e outros da vanguarda da síntese leste-oeste.

Recentemente criou um monólogo cômico, baseado no The Big Bang, the Buddha, and the Baby Boom, misturando frases de efeito com sua odisséia pessoal e idéias sobre a cosmologia budista, a teoria do big bang, a física quântica e a geração dos baby boo-mers, sempre difamada, junto com a sabedoria de diversos sábios das leituras dele. Se tivesse crescido em outro bairro talvez se tornasse freqüentador do cinturão borscht nas montanhas Catskill de Nova York. Em vez disso ele viaja pelo cinturão norte-americano do Buda, com seu show solo no Esalen Institute em Big Sur, Califórnia, no Spirit Rock em Sonomia Country, Califórnia, na Insight Meditation Society em Barre, Massachusetts, no Omega Institute em Rhinebeck, Nova York, na Ásia Society em Manhattan e em centros de retiro por toda parte.

O desempenho dele, enfeitado com canções que ele mesmo escreve, consegue fazer do sofrimento um motivo de riso. Ele é Woody Allen que encontra o Dalai Lama. Apesar de confessar ter um relacionamento ambivalente com suas raízes judaicas, no palco o schtick rola naturalmente:

- Vocês já notaram quantos judeus se tornam budistas? Num tributo a essa polinização cruzada espiritual, estou começando uma seita completamente nova. Vamos nos chamar de povo bu-deu. Nosso mantra será "Om, shalom".

"Eu já estou começando a entrar em sintonia com o guru bu-deu, o Swami de Miami, que lê gráficos astrológicos de dia e à noite faz malabarismos com corda no saguão do Fontainebleau."

Sou um cínico em processo de recuperação, ele me disse mais tarde, mantendo as respostas espirituosas com seus amigos. Estávamos sentados numa banheira de madeira com água quente nos fundos da cabana que ele alugou em Oakland, Califórnia, com a mulher dele, Terry Vandiver, professora de paisagismo e de ioga. O andar leve e o cabelo cheio e preto escondem a idade dele, assim como os olhos atentos que dão a impressão que estão sempre bolando uma piada. Nós nos conhecemos vinte anos atrás,

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através do largo círculo dharma que formava uma ponte entre as duas costas dos Estados Unidos. Além do humor judeu cínico e voltado contra nós mesmos e apesar disso uma visão otimista da vida, nós dois éramos pais solteiros com filhas da mesma idade. Nós nos reuníamos em fins de semana de pais e filhas. Eu e ele, e nossas filhas, ríamos 48 horas seguidas, sem parar. Com a minha nova lente budista, eu agora o considerava o meu Sangha.



Quando ele fica sério, é bem versado em filosofia budista e isso passa o recado que ele quer dar.

- Eu espero — diz ele — que o meu show nos lembre que devemos ficar tranqüilos com a vida e suas condições, que devemos continuar deslumbrados com seu mistério essencial e aprender como cuidar melhor dela.

Ele atribui seu senso de humor zen à sua criação judaica. Único garoto judeu na pequena cidade de Nebraska, quando chegou o momento do seu bar mitzvah e ele teve de fazer um curso com um rabino itinerante que chegava num ônibus Greyhound, ele disse: "Ia me preparar para fazer parte de uma comunidade que não existia na minha cidade natal. Isso é zen ou não é?"

Ainda ativista político, ele propõe um novo movimento que acredita poderá resolver muitos problemas dos Estados Unidos. Chama de socialismo zen.

- Zen, de nos libertar - explicou ele -, socialismo, de juntos, libertar-nos juntos.

E então ele voltava para seu discurso pessoal como se fosse um convidado no programa de Jay Leno.

- O primeiro passo seria os Estados Unidos renunciarem ao papel de superpotência. Como um país comum, poderíamos redirecionar nosso orçamento de 500 bilhões de dólares por ano da defesa para construir os maiores sistemas de educação e de saúde do mundo. Para facilitar a transição, eu apresentaria um plano, parecido com o New Deal, chamado de New Age Deal, ou O Grande Salto para Trás.

"Criaria um Ministério de Meditação e Terapia, com centros para desprogramar e ensinar as pessoas hiperativas a serem membros menos produtivos de uma sociedade menos produtiva.

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Então elas seriam postas para trabalhar em linhas de desmonta-gem, enterrariam metais de volta no solo e desconstruiriam rodovias. Convidaríamos os países do Terceiro Mundo a enviar voluntários para nos ensinar a viver com menos e a fazer a sesta.



"Depois faríamos o que fazemos melhor: entreter. Convidaríamos a todos para testemunhar o primeiro declínio e queda intencionais num parque temático chamado Ex-grande América. As descidas da montanha-russa seriam espetaculares", ele disse, com um sorriso onisciente ocupando o rosto todo.

Diante dos meus olhos, talvez devido ao calor da banheira de água quente, talvez pela diferença dos fusos horários que estava me afetando, talvez por ter visto imagens demais do Buda naqueles dois meses, eu vi o rosto expressivo dele sumindo e voltando, entre Alfred E. Neuman e Sakyamuni.

A leveza de Wes é uma soma bem-vinda ao cenário budista que em geral é sóbrio, e representa uma distorção exclusivamente norte-americana. Talvez porque somos uma sociedade tão estressada que precisamos mais desse lenitivo do humor do que outros países. Mas não é que os norte-americanos levem o budismo menos a sério. Na verdade, comparado com outros países, eu agora compreendia que os praticantes leigos norte-americanos do budismo muitas vezes davam mais ênfase à prática da meditação, à leitura de livros sobre o budismo, a assistir a palestras e a participar de debates intelectuais sobre a filosofia budista do que os asiáticos. Onde provavelmente falhamos é que depois que levantamos da almofada, que guardamos os livros e saímos do salão da palestra, berramos revoltados com alguém que reboca um trailer na rua. E na prática do dia-a-dia que o humor de Wes se torna uma nova ferramenta excelente feita na América para o Dhamma. Por exemplo, eu costumava não gostar nada daquelas carinhas amarelas e sorridentes, onipresentes, que aparecem na minha caixa de mensagens. Agora elas me fazem lembrar de Scoop e também se transformam no rosto sorridente do Buda.

Wes Nisker é o mais novo numa linhagem de inovadores norte-americanos budistas que podem rastrear suas origens formais

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neste continente até 1893. Naquele ano, da Feira Mundial de Chicago, o Parlamento Mundial das Religiões recebeu representantes da índia, do Japão, da China, do Sião e do Ceilão, que falavam respectivamente em prol dos hinduístas, dos parsis, dos sikhs, dos jainístas, dos confucionistas e dos que praticam o zen-budismo e outras seitas budistas, exibindo um novo campo chamado de religião comparada. Mas a maioria dos delegados e da audiência eram cristãos "que ainda argumentavam que o desenvolvimento mais elevado do impulso religioso só podia ser encontrado na cristandade", como Rick Fields registra em How the Swans Carne to the Lake. (Fields, também judeu, descobriu este fato engraçado: O Journal ofthe Mahabodhi Society revelou que no fim desse parlamento um cavalheiro chamado Charles T. Strauss, empresário de 30 anos de idade da cidade de Nova York, fez os votos dos Três Refúgios e tornou-se a primeira pessoa admitida no budismo em solo norte-americano. Acontece que Strauss, observa Fields, é judeu.)



Entre os palestrantes estava Anagarika Dharmapala, do Ceilão e que, você deve lembrar, tinha sido iniciado pelos ocidentais Olcott e Blavatsky. Orador inflamado, Dharmapala em certo ponto perguntou quantos entre os presentes tinham lido a vida do Buda. Cinco mãos foram erguidas e ele deu uma bronca em todos.

— Só cinco! Quatrocentos e setenta e cinco milhões de pessoas aceitam nossa religião de amor e esperança. Vocês se chamam uma nação, uma grande nação, e no entanto não conhecem a história desse grande mestre. Como ousam nos julgar!?

Apesar do potencial para criar mais cismas entre os ismos, o evento foi realizado de forma bastante ecumênica e realmente disseminou as sementes das idéias asiáticas religiosas na paisagem fértil dos Estados Unidos. Outro que discursou foi um roshi japonês chamado Soyen Shaku, representando a seita Rinzai do zen e o primeiro mestre zen a visitar aquelas paragens. Ele retornou em 1905 e deu palestras por todos os Estados Unidos; aliás, encontrei um discurso chamado "O que é o budismo?", que ele fez em Washington D.O, para a National Geographic Society em abril de 1906. Foi o aluno de Soyen Shaku, Daisetz Teitaro Suzuki, que

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cultivou ainda mais a tradição zen nos Estados Unidos quando Soyen o incumbiu de traduzir os escritos asiáticos para o dr. Paul Carus, editor de uma pequena editora em Illinois, a Open Court Press. Carus, escreve Fields, "acreditava que o budismo era muito melhor equipado do que o cristianismo para cobrir aquela brecha que tinha se alargado entre a ciência e a religião, já que não dependia de milagres ou de fé". A pletora das revistas atuais norte-americanas — Turning Wheel, Shambhala Sun, Inquiring Mind, Tricycle - tem um débito com esse pioneiro na fronteira das editoras budistas nos Estados Unidos.

D. T. Suzuki passou a escrever ele mesmo em inglês, inclusive o que se tornou uma leitura obrigatória para muitos aspirantes a beatniks budistas. An Introduction to Zen Buddhism {Introdução ao zen-budismo), publicado em 1934, que incluía um prefácio do estimado psiquiatra C. G. Jung, que achei iluminado e ao mesmo tempo confuso. Iluminado porque mesmo esse homem brilhante se atrapalha quando tem de pôr em palavras a essência do zen. Confuso ao tentar interpretar essa tentativa, mesmo diluída, para as cabeças ocidentais. Ao dar uma definição para satori, um estado que não é nem de iluminação nem de transcendência, primeiro ele procura usar a tradição muito antiga das parábolas. Escreve sobre o monge que se aproximou do mestre e quis saber onde era a entrada para o caminho da verdade. O mestre perguntou para ele: "Você ouve o murmúrio do riacho?" "Sim, ouço", respondeu o monge. "Essa é a entrada", instruiu o mestre.

Herr Jung devia ter parado por aí, mas ele se esforçou para ir mais longe. "É muito melhor nos deixar ficar profundamente imbuídos de antemão com a obscuridade exótica, o mistério das histórias zen, e tendo em mente o tempo todo que satori é o mysterium ineffabile, como de fato os mestres zen desejam que seja. Entre as histórias e a iluminação mística existe, para a nossa compreensão, um golfo, a possibilidade de criar uma ponte, que pode, na melhor das hipóteses, ser indicada, mas jamais realizada na prática." Ele está tão frustrado com o próprio fracasso de oferecer clareza que faz o que o intelectual ocidental sempre faz: acrescenta mais palavras. Numa nota de rodapé sobre esse comen-

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tário, ele diz: "Se apesar disso eu buscar 'explicações' do que virá a seguir, mesmo assim estarei perfeitamente consciente de que no sentido do satori o que eu digo só pode ser inútil. Mas não pude resistir e resolvi tentar manobrar nossa compreensão ocidental pelo menos até se aproximar de um entendimento — tarefa tão difícil que ao fazer isso devemos assumir nós mesmos certos crimes contra o espírito zen."

No final ele levanta os braços e se rende: "Por esses e muitos outros motivos não é recomendável, nem possível uma transmissão direta do zen para o Ocidente." No entanto ele abre uma porta para o diálogo que muitos nesse campo de pesquisas do corpo e da mente, a psicologia Oriente-Ocidente e a medicina holística se uniram nos anos recentes. Ele escreve: "Mas o psicote-rapeuta que está seriamente preocupado com a questão dos objetivos da sua terapia não pode ficar insensível ao observar qual é o resultado principal que um método oriental de 'cura espiritual -isto é, 'tornar inteiro' - se empenha em obter." Esses comentários levaram a novas explorações para superar a distância entre o pensamento ocidental e a psicologia oriental. Hoje em dia essa conversa continua, liderada pelo psiquiatra Mark Epstein {Thoughts Without a Thinker - Pensamentos sem um pensador), o psicólogo e jornalista Daniel Goleman {EmotionalInteligence — Inteligência emocional), o psicólogo Paul Ekman {Emotions Revealed— Emoções reveladas) e os diálogos entre Sua Santidade o Dalai Lama e pensadores ocidentais de vanguarda, patrocinados pelo Mind & Life Institute.

Se o budismo tivesse aterrissado nos Estados Unidos antes dos nativos norte-americanos terem sido relegados às reservas e reduzidos a clichês de índio e mascotes de equipes esportivas, teria se misturado com uma religião indígena mais parecida com a que encontrou, por exemplo, na Tailândia e na China. Apesar de cada tribo ter suas práticas específicas, a maioria dos nativos norte-americanos segue uma crença baseada na natureza, no sistema animista. Suas figuras míticas eram inspiradas em coiotes, águias, tartarugas, cavalos e outros animais que viviam perto deles. Eles

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Em 1970 ele foi parar em Bodh Gaya, na Índia, fez o retiro de Goenka, conheceu John Bush, Ram Dass, Daniel Goleman e outros da vanguarda da síntese leste-oeste.

Recentemente criou um monólogo cômico, baseado no The Big Bang, the Buddha, and the Baby Boom, misturando frases de efeito com sua odisséia pessoal e idéias sobre a cosmologia budista, a teoria do big bang, a física quântica e a geração dos baby boo-mers, sempre difamada, junto com a sabedoria de diversos sábios das leituras dele. Se tivesse crescido em outro bairro talvez se tornasse freqüentador do cinturão borscht nas montanhas Catskill de Nova York. Em vez disso ele viaja pelo cinturão norte-americano do Buda, com seu show solo no Esalen Institute em Big Sur, Califórnia, no Spirit Rock em Sonomia Country, Califórnia, na Insight Meditation Society em Barre, Massachusetts, no Omega Institute em Rhinebeck, Nova York, na Ásia Society em Manhattan e em centros de retiro por toda parte.

O desempenho dele, enfeitado com canções que ele mesmo escreve, consegue fazer do sofrimento um motivo de riso. Ele é Woody Allen que encontra o Dalai Lama. Apesar de confessar ter um relacionamento ambivalente com suas raízes judaicas, no palco o schtick rola naturalmente:

- Vocês já notaram quantos judeus se tornam budistas? Num tributo a essa polinização cruzada espiritual, estou começando uma seita completamente nova. Vamos nos chamar de povo bu-deu. Nosso mantra será "Om, shalom".

"Eu já estou começando a entrar em sintonia com o guru bu-deu, o Swami de Miami, que lê gráficos astrológicos de dia e à noite faz malabarismos com corda no saguão do Fontainebleau."

Sou um cínico em processo de recuperação, ele me disse mais tarde, mantendo as respostas espirituosas com seus amigos. Estávamos sentados numa banheira de madeira com água quente nos fundos da cabana que ele alugou em Oakland, Califórnia, com a mulher dele, Terry Vandiver, professora de paisagismo e de ioga. O andar leve e o cabelo cheio e preto escondem a idade dele, assim como os olhos atentos que dão a impressão que estão sempre bolando uma piada. Nós nos conhecemos vinte anos atrás,

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através do largo círculo dharma que formava uma ponte entre as duas costas dos Estados Unidos. Além do humor judeu cínico e voltado contra nós mesmos e apesar disso uma visão otimista da vida, nós dois éramos pais solteiros com filhas da mesma idade. Nós nos reuníamos em fins de semana de pais e filhas. Eu e ele, e nossas filhas, ríamos 48 horas seguidas, sem parar. Com a minha nova lente budista, eu agora o considerava o meu Sangha.



Quando ele fica sério, é bem versado em filosofia budista e isso passa o recado que ele quer dar.

- Eu espero - diz ele - que o meu show nos lembre que devemos ficar tranqüilos com a vida e suas condições, que devemos continuar deslumbrados com seu mistério essencial e aprender como cuidar melhor dela.

Ele atribui seu senso de humor zen à sua criação judaica. Único garoto judeu na pequena cidade de Nebraska, quando chegou o momento do seu bar mitzvah e ele teve de fazer um curso com um rabino itinerante que chegava num ônibus Greyhound, ele disse: "Ia me preparar para fazer parte de uma comunidade que não existia na minha cidade natal. Isso é zen ou não é?"

Ainda ativista político, ele propõe um novo movimento que acredita poderá resolver muitos problemas dos Estados Unidos. Chama de socialismo zen.

- Zen, de nos libertar - explicou ele -, socialismo, de juntos, libertar-nos juntos.

E então ele voltava para seu discurso pessoal como se fosse um convidado no programa de Jay Leno.

- O primeiro passo seria os Estados Unidos renunciarem ao papel de superpotência. Como um país comum, poderíamos redirecionar nosso orçamento de 500 bilhões de dólares por ano da defesa para construir os maiores sistemas de educação e de saúde do mundo. Para facilitar a transição, eu apresentaria um plano, parecido com o New Deal, chamado de New Age Deal, ou O Grande Salto para Trás.

"Criaria um Ministério de Meditação e Terapia, com centros para desprogramar e ensinar as pessoas hiperativas a serem membros menos produtivos de uma sociedade menos produtiva.

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Então elas seriam postas para trabalhar em linhas de desmonta-gem, enterrariam metais de volta no solo e desconstruiriam rodovias. Convidaríamos os países do Terceiro Mundo a enviar voluntários para nos ensinar a viver com menos e a fazer a sesta.



"Depois faríamos o que fazemos melhor: entreter. Convidaríamos a todos para testemunhar o primeiro declínio e queda intencionais num parque temático chamado Ex-grande América. As descidas da montanha-russa seriam espetaculares", ele disse, com um sorriso onisciente ocupando o rosto todo.

Diante dos meus olhos, talvez devido ao calor da banheira de água quente, talvez pela diferença dos fusos horários que estava me afetando, talvez por ter visto imagens demais do Buda naqueles dois meses, eu vi o rosto expressivo dele sumindo e voltando, entre Alfred E. Neuman e Sakyamuni.

A leveza de Wes é uma soma bem-vinda ao cenário budista que em geral é sóbrio, e representa uma distorção exclusivamente norte-americana. Talvez porque somos uma sociedade tão estressada que precisamos mais desse lenitivo do humor do que outros países. Mas não é que os norte-americanos levem o budismo menos a sério. Na verdade, comparado com outros países, eu agora compreendia que os praticantes leigos norte-americanos do budismo muitas vezes davam mais ênfase à prática da meditação, à leitura de livros sobre o budismo, a assistir a palestras e a participar de debates intelectuais sobre a filosofia budista do que os asiáticos. Onde provavelmente falhamos é que depois que levantamos da almofada, que guardamos os livros e saímos do salão da palestra, berramos revoltados com alguém que reboca um trailer na rua. E na prática do dia-a-dia que o humor de Wes se torna uma nova ferramenta excelente feita na América para o Dhamma. Por exemplo, eu costumava não gostar nada daquelas carinhas amarelas e sorridentes, onipresentes, que aparecem na minha caixa de mensagens. Agora elas me fazem lembrar de Scoop e também se transformam no rosto sorridente do Buda.

Wes Nisker é o mais novo numa linhagem de inovadores norte-americanos budistas que podem rastrear suas origens formais

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neste continente até 1893. Naquele ano, da Feira Mundial de Chicago, o Parlamento Mundial das Religiões recebeu representantes da índia, do Japão, da China, do Sião e do Ceilão, que falavam respectivamente em prol dos hinduístas, dos parsis, dos sikhs, dos jainístas, dos confucionistas e dos que praticam o zen-budismo e outras seitas budistas, exibindo um novo campo chamado de religião comparada. Mas a maioria dos delegados e da audiência eram cristãos "que ainda argumentavam que o desenvolvimento mais elevado do impulso religioso só podia ser encontrado na cristandade", como Rick Fields registra em How the Swans Carne to the Lake. (Fields, também judeu, descobriu este fato engraçado: O Journal ofthe Mahabodhi Society revelou que no fim desse parlamento um cavalheiro chamado Charles T. Strauss, empresário de 30 anos de idade da cidade de Nova York, fez os votos dos Três Refúgios e tornou-se a primeira pessoa admitida no budismo em solo norte-americano. Acontece que Strauss, observa Fields, é judeu.)



Entre os palestrantes estava Anagarika Dharmapala, do Ceilão e que, você deve lembrar, tinha sido iniciado pelos ocidentais Olcott e Blavatsky. Orador inflamado, Dharmapala em certo ponto perguntou quantos entre os presentes tinham lido a vida do Buda. Cinco mãos foram erguidas e ele deu uma bronca em todos.

— Só cinco! Quatrocentos e setenta e cinco milhões de pessoas aceitam nossa religião de amor e esperança. Vocês se chamam uma nação, uma grande nação, e no entanto não conhecem a história desse grande mestre. Como ousam nos julgar!?

Apesar do potencial para criar mais cismas entre os ismos, o evento foi realizado de forma bastante ecumênica e realmente disseminou as sementes das idéias asiáticas religiosas na paisagem fértil dos Estados Unidos. Outro que discursou foi um roshi japonês chamado Soyen Shaku, representando a seita Rinzai do zen e o primeiro mestre zen a visitar aquelas paragens. Ele retornou em 1905 e deu palestras por todos os Estados Unidos; aliás, encontrei um discurso chamado "O que é o budismo?", que ele fez em Washington D.C., para a National Geographic Society em abril de 1906. Foi o aluno de Soyen Shaku, Daisetz Teitaro Suzuki, que

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cultivou ainda mais a tradição zen nos Estados Unidos quando Soyen o incumbiu de traduzir os escritos asiáticos para o dr. Paul Carus, editor de uma pequena editora em Illinois, a Open Court Press. Carus, escreve Fields, "acreditava que o budismo era muito melhor equipado do que o cristianismo para cobrir aquela brecha que tinha se alargado entre a ciência e a religião, já que não dependia de milagres ou de fé". A pletora das revistas atuais norte-americanas — Turning Wheel, Shambhala Sun, Inquiring Mind, Tricycle - tem um débito com esse pioneiro na fronteira das editoras budistas nos Estados Unidos.

D. T. Suzuki passou a escrever ele mesmo em inglês, inclusive o que se tornou uma leitura obrigatória para muitos aspirantes a beatniks budistas. An Introduction to Zen Buddhism {Introdução ao zen-budismo), publicado em 1934, que incluía um prefácio do estimado psiquiatra C. G. Jung, que achei iluminado e ao mesmo tempo confuso. Iluminado porque mesmo esse homem brilhante se atrapalha quando tem de pôr em palavras a essência do zen. Confuso ao tentar interpretar essa tentativa, mesmo diluída, para as cabeças ocidentais. Ao dar uma definição para satori, um estado que não é nem de iluminação nem de transcendência, primeiro ele procura usar a tradição muito antiga das parábolas. Escreve sobre o monge que se aproximou do mestre e quis saber onde era a entrada para o caminho da verdade. O mestre perguntou para ele: "Você ouve o murmúrio do riacho?" "Sim, ouço", respondeu o monge. "Essa é a entrada", instruiu o mestre.

Herr Jung devia ter parado por aí, mas ele se esforçou para ir mais longe. "E muito melhor nos deixar ficar profundamente imbuídos de antemão com a obscuridade exótica, o mistério das histórias zen, e tendo em mente o tempo todo que satori é o mysterium ineffabile, como de fato os mestres zen desejam que seja. Entre as histórias e a iluminação mística existe, para a nossa compreensão, um golfo, a possibilidade de criar uma ponte, que pode, na melhor das hipóteses, ser indicada, mas jamais realizada na prática." Ele está tão frustrado com o próprio fracasso de oferecer clareza que faz o que o intelectual ocidental sempre faz: acrescenta mais palavras. Numa nota de rodapé sobre esse comen-

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tário, ele diz: "Se apesar disso eu buscar 'explicações' do que virá a seguir, mesmo assim estarei perfeitamente consciente de que no sentido do satori o que eu digo só pode ser inútil. Mas não pude resistir e resolvi tentar manobrar nossa compreensão ocidental pelo menos até se aproximar de um entendimento - tarefa tão difícil que ao fazer isso devemos assumir nós mesmos certos crimes contra o espírito zen."

No final ele levanta os braços e se rende: "Por esses e muitos outros motivos não é recomendável, nem possível uma transmissão direta do zen para o Ocidente." No entanto ele abre uma porta para o diálogo que muitos nesse campo de pesquisas do corpo e da mente, a psicologia Oriente-Ocidente e a medicina holística se uniram nos anos recentes. Ele escreve: "Mas o psicote-rapeuta que está seriamente preocupado com a questão dos objetivos da sua terapia não pode ficar insensível ao observar qual é o resultado principal que um método oriental de 'cura' espiritual -isto é, 'tornar inteiro' - se empenha em obter." Esses comentários levaram a novas explorações para superar a distância entre o pensamento ocidental e a psicologia oriental. Hoje em dia essa conversa continua, liderada pelo psiquiatra Mark Epstein (Thoughts Without a Thinker - Pensamentos sem um pensador), o psicólogo e jornalista Daniel Goleman (EmotionalInteligence — Inteligência emocional), o psicólogo Paul Ekman {Emotions Revealed— Emoções reveladas) e os diálogos entre Sua Santidade o Dalai Lama e pensadores ocidentais de vanguarda, patrocinados pelo Mind & Life Institute.

Se o budismo tivesse aterrissado nos Estados Unidos antes dos nativos norte-americanos terem sido relegados às reservas e reduzidos a clichês de índio e mascotes de equipes esportivas, teria se misturado com uma religião indígena mais parecida com a que encontrou, por exemplo, na Tailândia e na China. Apesar de cada tribo ter suas práticas específicas, a maioria dos nativos norte-americanos segue uma crença baseada na natureza, no sistema animista. Suas figuras míticas eram inspiradas em coiotes, águias, tartarugas, cavalos e outros animais que viviam perto deles. Eles

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rezam para os espíritos dessas entidades pedindo saúde, fortuna, fertilidade e bom tempo. A própria terra e todos os seres vivos nela fazem parte de uma totalidade que eles veneram como o Grande Espírito. Os anciãos e sua linhagem ancestral são muito valorizados. Xamãs, guias espirituais, curandeiros, lugares e rituais sagrados todos desempenham um papel na espiritualidade dos nativos norte-americanos.

Só que em vez disso existe uma cristandade que já havia se desmembrado em muitas facções. Os puritanos separatistas e os puritanos da linha principal tinham se unido e formado os con-gregacionalistas. Membros da Igreja Anglicana mais tarde viraram episcopais. Presbiterianos, batistas, metodistas, quakers, shakers, luteranos - eram tantos que faziam as seitas japonesas budistas parecerem coesas. Assim, o cenário religioso aqui era similar ao passado de países que eu tinha visitado nos últimos dois meses, nos quais o caos espiritual e a insatisfação com as instituições existentes faziam as pessoas buscarem as respostas fora dos seus paradigmas teológicos comuns.

No fim da era vitoriana nos Estados Unidos "havia uma insatisfação crescente com as respostas dadas pelas religiões tradicionais da época", escreve Charles Prebish, professor assistente de religião na Universidade Estadual de Penn, na introdução de The Faces of Buddhism in America (As faces do budismo na América). Mas enquanto "os simpatizantes do budismo são favoráveis à ênfase de meados do período vitoriano no otimismo e no ativis-mo como valores culturais importantes, no todo a caracterização do budismo como pessimista e passivo foi um argumento muito mais forte para seus detratores".

Nos calcanhares de uma Guerra Civil que deixou o país manchado de sangue e dividido, a Revolução pós-industrial da era vitoriana marcou a rápida ascensão da opulência norte-americana. Os Rockefeller e Carnegie estabeleceram o ritmo para um consumismo sem paralelo aqui e no exterior. Será que a decadência e a queda estariam muito longe? Pelo que eu tinha visto, era em tempos como esse, quando os indivíduos e/ou os países já tinham alimentado seu fantasma faminto, mas continuavam insa-

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tisfeitos, que se voltavam para o budismo. Os Estados Unidos estavam chegando a esse ponto.



Depois, conforme sugeri anteriormente, aconteceu a oportuna chegada de algumas ondas de asiáticos. A forma mais recente -e uma das mais populares — que se juntou ao caldeirão budista norte-americano veio do Tibete. O carisma simples e as incansáveis viagens de Sua Santidade o Dalai Lama têm algo a ver com esse apelo, assim como a atração inerentemente mágica da terra de sua origem, "o teto do mundo". A urgência política de um povo oprimido e o resultante movimento pelo Tibete Livre se somam na transformação do budismo tibetano em mais do que apenas uma religião - passou a ser uma causa célebre. Celebridade e uma causa - ora, isso é bem norte-americano!

O budismo tibetano é tão confuso para mim quanto o cristianismo, com suas quatro escolas — Nyingma, também chamada de Chapéus Vermelhos; Kagyü, também chamada de Chapéus Vermelhos, mas às vezes de Chapéus Pretos; Geluk, chamada de Chapéus Amarelos (a seita do Dalai Lama); e Sakya, cujos chapéus, os turbantes cerimoniais, apesar de vermelhos, não são chamados de Chapéus Vermelhos - e seus tülkus e karmapas e rinpo-ches e lamas.

Essa complexidade foi reconhecida por um tibetano que teve grande importância ao reapresentar o budismo tibetano com nova roupagem, e o budismo em geral, para o público ocidental. ChõgyamTrungpa (1939-1987), nascido noTibete, foi o décimo primeiro descendente na linhagem dos tülkus Trungpa, importantes mestres da linhagem Kagyü, a escola tibetana famosa pela forte ênfase dada à prática da meditação. Já líder de alguns mosteiros no Tibete oriental, Chõgyam Trungpa foi forçado a fugir do país para a índia em 1959, aos 20 anos de idade. Na índia, o Dalai Lama indicou-o como conselheiro espiritual dos jovens lamas. Em 1963, Chõgyam Trungpa mudou-se para a Inglaterra para estudar religião comparativa, filosofia e belas-artes na Universidade Oxford. Em 1967 mudou-se para a Escócia, onde fundou o Centro de Meditação Samye Ling, o primeiro centro de prática do budismo tibetano no Ocidente. Logo depois de um acidente

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de automóvel deixá-lo parcialmente paralisado, abandonou os votos monásticos para trabalhar como professor laico. Em 1969 publicou o primeiro dos 14 livros que escreveria na vida. No ano seguinte casou-se com uma jovem inglesa e mudou-se para os Estados Unidos, onde abriu seu primeiro centro de meditação norte-americano, o Tail of the Tiger (Cauda do tigre - agora conhecido como Karmê Chõling), em Barnet, Vermont.

Sua abordagem era inovadora e polêmica. Pessoalmente ele não era exatamente o mais puro dos monges. Espalharam boatos de que bebia e andava com mulheres. Ele saía com o poeta Allen Ginsberg e com o psicólogo de Harvard que se transformou em defensor do LSD e depois no hinduísta Ram Dass. Sabia que seria preciso alguém que falasse a língua deles para tirar os jovens norte-americanos do estado sonâmbulo psicodélico. Em seu livro de 1973, Cutting Through Spiritual Materialism, ele demonstra compreensão do dilema específico enfrentado pelos norte-americanos em busca da espiritualidade diante do princípio que diz que mais é melhor:

Nós podemos ter estudado filosofia ocidental ou filosofia oriental, praticado ioga ou talvez aprendido com dúzias dos maiores mestres. Acreditamos que acumulamos uma enormidade de conhecimento. No entanto, mesmo tendo passado por tudo isso, ainda existe algo para ser abandonado. É extremamente misterioso! Como pode ser? Impossível! Mas infelizmente, é isso mesmo. Nossas vastas coleções de conhecimentos e de experiência são apenas parte do exibicionismo do ego, parte da grandiosa qualidade do ego... Mas o que fizemos foi simplesmente criar uma loja, uma loja de antigüidades... Vasculhamos o mundo inteiro à procura de objetos lindos - índia, Japão, muitos países diferentes. E toda vez que encontrávamos uma antigüidade... achávamos linda e pensávamos que ficaria linda na nossa loja... Mas, quando levamos o objeto para casa e o pusemos lá, tornou-se apenas mais um item da nossa coleção de quinquilharias... A boa compra não se reduz a colecionar um monte de informação ou de beleza, o que envolve é apreciar cada objeto individualmente.

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Em 1974 ele reuniu um grupo dos seus amigos escandalosos em Boulder e criaram uma sessão de diálogos espirituais, oficinas e painéis que ele chamou de Instituto Naropa. Havia lá a Escola Jack Kerouac de Poética Desencarnada, sob a direção de Ginsberg e da poetisa Anne Waldman. Aquelas sessões continuaram acon-

Com Carrie Mattison, sobrinha do autor, diante da Grande Stupa de Dharmakaya, no Centro Shambala das Montanhas Rochosas na periferia de Boulder. Construída para durar mil anos, é em memória de Chógyam Trungpa Rinpoche, o tibetano que fundou a Universidade Naropa.

tecendo vários verões e acabaram levando a horários de aulas que cobriam o ano inteiro. Em 1986 Naropa foi considerada uma faculdade de quatro anos e em 2000 mudou o nome para Universidade Naropa. Hoje tem cerca de 1.100 alunos, dos quais dois terços são universitários e um terço secundarista. A universidade em si consiste em um amontoado de trailers e diversos prédios pequenos atrás de um estacionamento à sombra do extenso cam-pus da Universidade do Colorado.

O currículo é "inspirado no budismo", conforme explica o catálogo da universidade, e oferece uma "educação artística liberal contemplativa... que integra o que há de melhor nas tradições educativas do Oriente e do Ocidente, criando e implementando um novo paradigma no curso superior. Esse modelo procura ajudar os alunos a se conhecerem profundamente para poderem se engajar construtiva e eficazmente num mundo de indivíduos que não são como eles."

A maioria das aulas começa com uma breve meditação. Os cursos de meditação e de filosofia budista são oferecidos como parte do currículo principal. O corpo docente muitas vezes medita em grupo; muitos meditam sozinhos. Quase todos têm um longo histórico de prática budista, mas isso não é exigido.

É a única universidade totalmente oficial com cursos de quatro anos na América do Norte e na Europa cuja missão essencial tem como base o budismo. Como tal, é o melhor exemplo do budismo educativo engajado, tanto no Ocidente como no Oriente. Como você já sabe, inspirou alguns acadêmicos tailandeses.

As verdadeiras raízes de Naropa chegam ao próprio Buda, que enfatizava a educação como pedra fundamental da prática budista. "Conheça bem o que o leva para frente e o que o impede de prosseguir, e escolha o caminho que o levará à sabedoria", ele disse. O Buda dedicou a vida a ensinar, em vez de ficar simplesmente aproveitando o nirvana. Suas primeiras aulas foram em Sarnath, onde o que chamaram de Pôr a Roda do Dharma em Movimento aconteceu, não muito longe de Bodh Gaya. Ele con-

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tinuou ensinando até morrer e, dizem seus seguidores, depois também. As sutras descrevem como seus ensinamentos se desdobraram enquanto o Buda ia passando de aldeia para aldeia com sua Sangha pequena, mas sempre aumentando. Uma vez ele parou num lugar especialmente tranqüilo, perto de umas mangueiras e ficou ali três meses. Depois de um tempo quinhentos



Joshua Mulder, que supervisionou a construção da Dharmakaya, retoca o Buda dentro da stupa.

mercadores compraram as mangueiras e doaram para o Buda. Algumas centenas de anos mais tarde o grande rei indiano Ashoka visitou esse lugar em peregrinação budista e erigiu ali um pilar, como era seu costume.

Naquele lugar que ficava a cerca de duas horas de carro de Sarnath, ao norte da antiga cidade de Rajagriha, uns mil anos depois da morte do Buda, foi fundada a primeira universidade residencial internacional pública do mundo. Dois mil professores e 10 mil alunos de todo o mundo budista moravam e estudavam nessa Universidade de Nalanda. Aqui estudaram os melhores e mais brilhantes do mundo, debatendo as escolas Mahayana e Hinayana do budismo, os textos bramânicos e védicos, filosofia, lógica, teologia, gramática, astronomia, matemática e medicina. Vendo hoje aquelas ruínas de tijolos vermelhos, restos de stupas, templos, mosteiros e celas de monges com paredes grossas intactas, mal se tem noção da intensa comunidade acadêmica que um dia floresceu ali.

Um dos alunos mais famosos que estudou em Nalanda foi um jovem príncipe chamado Naropa, que viveu de 1016 até 1100. Um retrato gigantesco de Naropa está pendurado no saguão com pé-direito de dois andares da sede da Universidade de Naropa, uma casa de escola centenária que foi reformada no cam-pus de Boulder que é como um bonsai.

Parei nesse saguão e olhei para cima, para o principesco Naropa. Tinha visitado as ruínas da Universidade Nalanda na índia. Tinha conhecido os tailandeses que viajavam para cá para aprender com esses professores. Eu agora estava em Boulder. Os pontos da minha viagem estavam se ligando entre eles - do oeste para o leste, para o oeste e tudo de novo. Eu imaginava que dali a algumas centenas de anos alguns jornalistas, parados ali onde eu estava, diante do que seriam ruínas, também ficassem espantados com o fato de a Roda ter girado até tão longe e por tanto tempo.

Estou de joelhos numa posição de cachorro, com a bunda empi-nada para o alto, o queixo apoiado entre as palmas das mãos, no

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meio de uma sala dois por dois sem janelas com as paredes pintadas de verde-vômito e iluminação fluorescente combinando, com um tom igualmente nauseante. Talvez seja a posição mais esquisita que já permiti que meu corpo adotasse.

Instruíram-me para ficar nessa posição por 45 minutos, contemplando os estados de inveja e de sabedoria, os dois lados da moeda emocional que essa cor deve evocar, segundo a teoria budista tibetana.

- Eu queria era ver o Buda atingir a iluminação nesta posição - resmungo para mim mesmo.

Então me lembrei daqueles monges maratonistas Tendai e não me senti tão mal. Pelo menos esse tapete é macio.

Há mais quatro salas em torno desta, cada uma pintada e iluminada de cor diferente, cada cor evoca outro conjunto de emoções, e a coisa toda foi criada para replicar uma mandala tradicional tibetana.

Esses cubículos coloridos, chamados de salas Maitri, ficam no porão do prédio administrativo de Naropa, no fim do corredor do centro de computação. Fazem parte do programa de treinamento de graduação em psicologia transpessoal, e integram a sabedoria milenar budista com a psicologia moderna e a magia da iluminação fluorescente. A idéia se baseia na filosofia, ou mais especificamente, psicologia, das Cinco Famílias de Buda. Cada sala corresponde a um dos cinco traços psicológicos humanos (raiva, soberba, paixão, inveja e ignorância) e seus opostos (sabedoria, equani-midade, discernimento, realização e consciência plena). Cada traço tem seu elemento correspondente próprio, sua cor e orientação geográfica. Os tibetanos contemplam mandalas quando meditam - pinturas imensas e circulares, muito coloridas, detalhando as histórias da vida do Buda -, e essas cores e histórias evocam associações que os ligam à sua cultura e à sua história, aos representantes de sua linhagem até o próprio Buda. E finalmente, à essência deles. Isso não acontece com o resto de nós, por mais tempo que fiquemos olhando fixo para elas, por maior que seja o número de canecas de chá de manteiga de iaque que bebamos. Em geral nos encantamos com elas nos museus ou as vemos nas salas de estar dos amigos e perguntamos:

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- Onde conseguiu? Quanto pagou por ela?



Trungpa sabia disso. Mas ele também sabia que se conseguisse fazer com que os ocidentais passassem de alguma forma por aquela experiência que os tibetanos já conheciam num nível intuitivo, ele poderia nos ensinar duas lições pelo preço de uma. Primeira: nós acertaríamos as contas pessoalmente com os nossos demônios e santos - reconhecer, possuir e abraçá-los. A outra: caso estivéssemos entre os pouquíssimos da nossa espécie que não têm nenhuma percepção das emoções aqui mencionadas, poderíamos desenvolver empatia por aqueles que as sentem. Isso, por sua vez, seria benéfico para toda a humanidade. Seria um bem especialmente valioso para aqueles cujas profissões são ajudar os outros.

Por isso Trungpa e, segundo a história, um amigo sacerdote japonês meio louco bolaram esse sistema, projetaram as salas, inventaram as posições originais vagamente parecidas com as asa-nas da ioga, e uma metodologia de imersão. Como era explicado no resumo do curso, a prática no Espaço Maitri de Consciência exige que os alunos fiquem nas salas cinco horas por semana, 45 minutos em cada sala, seguidos imediatamente por 15 minutos de "caminhada sem rumo". Os alunos que conheci em Naropa disseram-me que a experiência pode ser mais do que irritante, pois libera sentimentos sufocados e acumulados que provocam pensamentos neuróticos que eles preferiam não ter de encarar dentro de si mesmos. O segredo é dar tempo para curtir. Perguntei se eu podia fazer o processo Maitri completo, que em geral se diluía no curso de um semestre, em três dias. E isso talvez não tivesse sido uma boa idéia. Era como ficar embaixo de uma lente de aumento no deserto do Saara. Eu ficava com dor de cabeça e de estômago depois de cada sessão, como se tivesse engolido leite estragado. E as costas que estavam se comportando tão bem de repente começaram a doer. Seria a viagem de 12 horas de carro de San Francisco até Boulder? Ou será que era pelo fato de estar carregando a minha bagagem emocional tempo demais? Ou seria apenas a posição estranha que Trungpa havia selecionado ao acaso?

Longa ou curta, foi uma experiência poderosa. Mas havia uma coisa nela que me incomodava. Mais uma vez a palavra

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"fraude" me veio à cabeça. Parecia obra de uma mente hiperativa e complexa. Será que Trungpa tinha ido longe demais? Será que havia exagerado uma tradição para torná-la atraente para outra tradição? Ao modificar a embalagem de uma experiência interna oriental para uma experiência externa ocidentalizada, será que ele estava sabotando as suas próprias melhores intenções? Seria o instrumento falando mais alto do que a mensagem? Saí das salas Maitri fascinado com o efeito que as luzes fluorescentes e o verdadeiramente inspirado gênio de marketing eram capazes de provocar na compreensão de nós mesmos. Sabia que não tinha dado tempo suficiente para a experiência. Tenho certeza de que com o tempo eu ia acabar rompendo aquela estranha sensação de estar no cenário de algum filme de ficção científica pós-moderno de terceira categoria. Mas descobri que os sinos e assobios ambientais me distraíam da exploração mais profunda de mim mesmo.

Nesse meio tempo me disseram que agora eles desenvolveram óculos de plástico de 3-D com lentes coloridas que combinavam com as cores das cinco Famílias de Buda, de modo que a pessoa pudesse ter a mesma experiência visual das salas Maitri em qualquer lugar. Ouvi dizer que os tibetanos que moravam em Boulder estavam levando esses óculos para os tibetanos que moravam na índia. Agora a interpretação ocidental do budismo seria apresentada aos tibetanos, que por sua vez interpretariam isso de outro jeito. As permutações dessa polinização cruzada podiam deixar qualquer um tonto.

Fiquei imaginando se os tibetanos que praticavam com os óculos Maitri perderiam exatamente aquilo que os ocidentais mais queriam: a capacidade de interiorizar a sabedoria. Será? Essa linha de raciocínio lembrou a descoberta de Peta McAuley, a psicóloga australiana que conheci em Hong Kong e que liderava grupos com base na metodologia da Redução do Estresse pela Consciência Plena de Jon Kabat-Zinn. Ela observou que os asiáticos são introvertidos e que os norte-americanos são extrovertidos. Portanto, seguindo o pensamento junguiano, os primeiros são mais atraídos pelas práticas externas do budismo e os últimos pelas práticas mais internas. Então, de acordo com a teoria dela,

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os tibetanos teriam naturalmente mais inclinação para essa prática externa. A meditação mandala em si mesma é exatamente essa prática externa.



Deixando de lado as inconsistências da análise dela, as minhas experiências pessoais nas salas Maitri na Universidade Naropa, combinadas com a teoria de McAuley, sugerem uma resposta possível para uma pergunta que ainda me deixava perplexo: Por que o movimento budista socialmente engajado tornou-se mais popular nos Estados Unidos do que na Ásia?

Uma resposta pode ser encontrada na diferença que há entre o que as culturas do Oriente e do Ocidente mais valorizam. No Oriente a ênfase é dada ao "ser". No Ocidente, é ao "fazer". No Oriente interiorizamos: nós somos. No Ocidente, externaliza-mos: nós fazemos. Nos países budistas do Oriente, ser uma boa pessoa é considerado uma realização notável e invejável. Nos países judaico-cristãos do Ocidente, não basta ser bom - você tem de fazer o bem. Profundamente entranhado nos valores dos judeus e dos cristãos está a idéia de que as "boas ações" ou "atos de bondade" conquistam os pontos meritórios que os budistas conquistam caminhando sobre as pegadas do Buda. Alguns podem argumentar que no Ocidente o fazer tornou-se um modo conveniente de evitar o ser. No entanto, sem esse ethos de fazer o bem, muitos dos programas e iniciativas que encontrei - não só nos Estados Unidos e na Europa, mas também por toda a Ásia - talvez nem existissem. E sem eles, posso garantir que haveria mais sofrimento no mundo.

Dessa forma, o budismo socialmente engajado mescla o melhor do Oriente e do Ocidente, do desejo budista de acabar com o sofrimento e do impulso judaico-cristão de fazer algo de concreto sobre isso. Como tal, o movimento é a continuação lógica do padrão histórico do budismo de adotar e adaptar-se aos comportamentos das culturas locais. A minha esperança é que, enquanto o Oriente puder seguir as deixas do Ocidente sobre como revigorar as grandes tradições do budismo em seus próprios países, essa aplicação das práticas budistas em áreas socialmente relevantes da vida contemporânea encontre maior expressão na Ásia.

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GAUTAMA VAI PARA A GÁLIA



Budismo com um toque francês


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