Por que uma idéia de dois mil e quinhentos anos atrás pareceria hoje mais relevante do que nunca? Como os ensinamentos do Buda podem nos ajudar a resolver muitos problemas do mundo



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improvisados atrás dos prédios. Depois iam para aulas em salas rústicas, voltavam para a prática do kung fu e finalmente iam estudar à noite nos quartos dos dormitórios lotados com seus beli-ches enfileirados.

As famílias pagam bem para enviar os filhos para essas escolas. Recebem educação acadêmica medíocre, mas são bem treinados. O chamariz é o estrelato no cinema (sonhos com o espadachim Jackie Chan ou com a dança de Bruce Lee povoam suas cabeças) ou trabalhos com os inúmeros grupos de excursão Shaolin, poucos dos quais podem contar com monges Shaolin autênticos como membros. Na verdade, a guerra pelo direito de propriedade do nome é dura, assim como a guerra por um troféu no campeonato de kung fu. De acordo com os números fornecidos pelo templo, oitenta escolas de kung fu usam o nome Shaolin e mais de cem empresas, inclusive algumas que vendem carros, cerveja, pneus e móveis, usam Shaolin como marca registrada, todos sem consultar o templo. Recentemente o templo venceu um processo contra



Alunos de kungfu em Dengfeng, na China, esperam um dia ter uma escola de artes marciais ou estrelar em um filme.

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uma empresa numa cidade próxima que usava o nome Shaolin para vender salsichas. O templo estabeleceu a Desenvolvimento Industrial Cia. Ltda. do templo Shaolin de Henan para proteger e administrar o patrimônio intangível do templo Shaolin e para investigar os casos de uso do nome do templo sem autorização.

A tradição do monge kung fu do mosteiro Shaolin é cercada de mistério. Primeiro pensei que era porque os treinos são tão esotéricos que só um grupo muito reduzido seria considerado merecedor de receber os ensinamentos. Agora eu pensava que era porque eles estavam protegendo os direitos autorais. Fazer contato com qualquer um do mosteiro foi impossível meses antes. Finalmente, num e-mail que recebi na Tailândia, a pesquisadora muito eficiente do fotógrafo Steve McCurry, Jennifer Warren, encontrou um homem chamado Richard Russell, médico que virou professor de kung fu em Las Vegas, que por sua vez nos pôs em contato com um monge que prometeu ser "de verdade", como escreveu o dr. Russell.

Mas as perguntas permaneciam sem resposta. Esse homem, Shi De Cheng, vivia no mosteiro? Recebeu treinamento lá? E a maior pergunta de todas: ainda existe uma tradição de monges budistas que vivem e treinam atrás dos grandes muros vermelhos do mosteiro Shaolin? Por trás de todas essas perguntas eu esperava provar que aquela mania aparentemente agressiva e violenta de kung fu, por mais louca que parecesse, era mais um fator que incrementava o crescimento da popularidade do budismo, tanto na China como no Ocidente.

Algumas dessas perguntas foram respondidas quando chegamos ao Centro Shi De Cheng Wushu de Song Shan Shaolin. Já apertei a mão de homens muito fortes na vida, mas havia algo diferente no aperto de mão de Shi De Cheng. Não era só como um torno; era ao mesmo tempo sólido e gentil. E a pose dele, com as pernas curtas um pouco afastadas, fazia com que parecesse uma árvore profundamente enraizada na terra sobre a qual estava. Ele olhou nos meus olhos sem piscar nenhuma vez. Minhas antenas muito bem treinadas para detectar fraudes me disseram que podia confiar nele. Também disseram que ele provavelmente me -

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derrotaria numa briga, de modo que eu não ia discordar de nada que ele dissesse. E ele contou sua história.



Quando entrou para o mosteiro Shaolin em 1980 aos 15 anos, seu único objetivo era ser um extraordinário mestre de kung fu. Tinha pouco ou nenhum interesse pelo budismo, mas acabou descobrindo que o coração e a alma da prática do kung fu são a filosofia budista. Como a maioria dos jovens, rapazes e moças, descobrem, não se pode fazer kung fu sem "fazer" budismo. Exige concentração, dedicação a uma prática rigorosa e repetitiva, e controle das próprias emoções, ele explicou.

- Esta não é uma arte marcial de ataque - assegurou ele. - A capacidade de dominar a própria raiva ou de ir buscar a vingança estão entre as primeiras aulas que temos. Como diz o antigo ditado Shaolin: "Aquele que entra num combate já perdeu a batalha."

A profunda compreensão e prática dessa filosofia deve excluir a maioria dos filmes de kung fu como superficiais em budismo. Para os que levam a sério, kung fu, surpreendi-me quando concluí isso, é um caminho tão válido para a Verdade do Buda, como é a vipassana.

Ele me disse que estava sinceramente grato às reformas de "abertura" na China.

- Se não fosse por elas, eu seria um lavrador trabalhando no campo todos os dias - disse ele, sem um resquício de ressentimento que eu teria na voz se dissesse isso.

Hoje o devoto monge budista de 40 anos tem uns duzentos alunos, de todas as partes da China. Ele também treinou alunos de todo o mundo e alguns deles abriram escolas na Europa e nos Estados Unidos, para onde ele viaja como o mestre. Um jovem francês que entrevistei estava vivendo e treinando aqui havia seis meses.

- Eu não me interessava pelo budismo - disse ele. - Mas agora quero aprender mais. Quando vejo como o meu mestre é tranqüilo, eu penso, como ficou assim? Não pode ser só o kung fu.

Depois que observei um pouco as sessões práticas matinais, Shi De Cheng organizou uma breve exibição para mim. Eu me senti como um dignitário sentado numa fila de cadeiras dobráveis

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no pátio atrás da escola. Estenderam um pano colorido de 30 metros no chão e alguns dos melhores alunos de Shi De Cheng, com longos mantos vermelhos ou calças brancas bem largas e jaquetas de kung fu deram um espetáculo de saltos, saltos-mortais, e corridas e mergulhos. Depois de cada formação olhavam para mim, querendo a minha aprovação. Eu batia palmas realmente impressionado com a precisão e a dedicação daqueles jovens.



Ansioso para ver o famoso templo Shaolin, partimos em uma van, Fu Ching, o rapaz francês, Shi De Cheng, eu e alguns outros mais chegados ao mestre, para uma viagem de 10 quilômetros ao longo da base do monte Song. Quando chegamos perto pude ver uma longa fila de carros diante do portão da frente. Shi De Cheng orientou o motorista para sair da fila e avançar até o portão. Quando os guardas viram seu rosto sorridente, acenaram para ele passar. Foi então que eu soube que tínhamos encontrado o verdadeiro monge Shaolin.

O estacionamento era uma cena de multidão. Na verdade eram mais ônibus de excursão do que todos que eu tinha visto em qualquer outro mosteiro na República Popular. Por dentro parecia qualquer outro mosteiro budista chinês. Várias construções do templo cercavam o pátio central. Havia a Torre do Sino e a Torre do Tambor. Tinha as salas escuras que continham diversas escrituras sagradas, as estátuas dos Budas sobre pedestais. Mas a diferença aqui era que este templo estava apinhado de gente. Havia bandos de estudantes guiados por professores com cometas e bandeiras. Havia os ocidentais em seus grupos de excursão. Havia os meninos adolescentes que pareciam ter acabado de participar da filmagem de Mosteiro Shaolin pela décima oitava vez. Caminhando de um templo para outro, eles faziam de repente uns movimentos de kung fu, um borrão de braços se cruzando, punhos cerrados e caras de mau como seus heróis dos filmes de kung fu. Fizeram-me lembrar de quando eu era um adolescente obcecado com basquete que de repente encarnava um salto de Bill Bradley de um canto e deixava impressões digitais por todo o teto da sala de estar.

O garoto francês me mostrou a casca de uma árvore no meio do pátio. Parecia que alguém tinha feito um buraco com uns dois

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centímetros de profundidade no tronco com um instrumento rombudo. Ele me disse que ali era onde os antigos monges praticavam. Os buracos tinham sido feitos pelos dedos deles batendo repetidamente nas árvores. Ele deixou de dizer "segundo a lenda", mas para mim, nem precisava. Eu me preocupava de ele voltar para a França e querer impressionar os amigos tentando fazer a mesma coisa... e quebrar os dedos nessa empreitada.

Shi De Cheng então nos levou para um canto do pátio principal e passamos por um portão, chegando a aposentos privados onde ele nos apresentou ao seu mestre de 80 anos, Shi Su Yuan. Esse era um gesto muito importante para Shi De Cheng, ele queria demonstrar sua reverência ao mestre. O francês ficou tão emocionado com esse encontro que mal tirou os olhos do chão. Shi Su Yuan estava fraco e não muito lúcido. Mas isso não importava: eu tinha conhecido o verdadeiro mestre de kung fu dentro dos muros do Shaolin.

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Shi De Cheng, à direita, com seu mestre, Shi Su Yuan, nos aposentos privados do mosteiro Shaolin, na periferia de Dengfeng, na China, onde dizem que o budismo ch'an e o kungfu se originaram. Shi De Cheng agora administra uma das dezenas de escolas de kungfu em Dengfeng.

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Pedi para conhecer outros monges kung fu que imaginei que deviam morar ali. Entramos em outra área privada onde moravam alguns monges em quartos muito pequenos, escuros e api-nhados de coisas. Os homens pareciam fora de forma, cansados, meio sem ânimo... o oposto de Shi De Cheng. Fu Ching e eu nos entreolhamos. Ele parecia estarrecido e eu sabia por quê. Pelos folhetos e filmes, somos levados a acreditar que os jovens monges levam vidas monásticas no mosteiro Shaolin, praticando seu kung fu nos pátios cercados de muros altos. Este não é o caso. Pode ter sido, mas não é mais. Só que perpetuar a ilusão serve para alimentar uma visão romântica à qual os chineses se agarram desespera-damente, já que reforça sua ligação com tempos antigos. E podemos até supor que inspira um espírito de luta que ajudou os chineses, especialmente a nova geração, a enfrentar as ameaças à sua liberdade, a ficar na frente de tanques em movimento.

Entretanto o mais importante é que esse ato orquestrado de fumaça e espelhos dos monges Shaolin criou uma indústria muito lucrativa. O que existe hoje é uma marca, pela qual as pessoas do Oriente e do Ocidente brigam para ostentar.

Eu saí de lá, e da República Popular, com uma sensação muito forte que o ismo que vai "conquistar" a China não será o budismo nem o comunismo, mas sim o capitalismo.

Do mosteiro Shaolin fui de avião para Beijing, onde foi me encontrar no aeroporto a mediadora que tinha encontrado Fu Ching para mim. (Ele havia voltado de avião para Chengdu e eu esperava que não fosse abandonar a mulher e a família para se tornar um monge kung fu.) Se a central de elenco tivesse enviado Zhang Ziji, a estrela espadachim de O tigre e o dragão, eu não ficaria mais satisfeito. O nome dela era Jia Liming. Tinha covinhas do tamanho da província de Sichuan (mais ou menos cinco Texas), um dente da frente lascado que sem mais nem menos achei muito cativante e misterioso, e uma risada vigorosa, incomum nas mulheres asiáticas, que costumam cobrir a boca quando riem delicadamente. Ela era extrovertida e falante, hilariantemente cínica como as pessoas antenadas de Tribeca, e muito, muito inteligente. Nós nos demos

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bem demais, o que foi um grande alívio, se levar em conta que pensei que ia me perder antes de chegar à China.



E tinha outra coisa que me interessava em Jia Liming. Ela nasceu em 1973, seis anos antes da "abertura". Quando se formou na universidade por volta de 1994, a República Popular em que tinha nascido havia se transformado completamente - era um planeta bem diferente, eu imaginava. A geração dela era uma geração de transição. De certa forma ela era o equivalente chinês dos nossos baby boomers norte-americanos. A maioria dos seus colegas, segundo ela mesma, estavam profundamente empenhados em obter sucesso nos negócios. Mas ela era mais parecida com a minha geração, do final dos anos 60. Já saturadas com a corrida desenfreada para o consumismo, algumas pessoas com boa educação na faixa etária dela estavam abandonando aquela disputa urbana e indo morar nas montanhas, como o nosso movimento de volta à terra. Disse que tanto ela como muitos de seus amigos desapareciam indo para lugares como o extremo noroeste da província de Yunnan, para Zhongdian, que o governo chinês rebati-zou de Xangrilá em 2002, identificando-a oficialmente com o filme de James Hilton, O horizonte perdido (Lost Horizon). À sombra da montanha Meili Snow, o pico mais alto de Yunnan, numa região cuja maioria da população era de descendência tibetana, eles se reuniam em cafés rústicos, fumavam, bebiam chá de manteiga de iaque e cerveja, e embebiam a mística da cultura e dos rituais tibetanos. Esses eram os "povos nativos" em torno dos quais os jovens chineses gravitavam, como nossos nativos americanos, os guardiões dos portões para o passado deles - ou para o passado que eles gostariam de ter tido. Essas tribos eram os oprimidos com quem se identificavam.

Ela disse que tinha aceitado esse emprego de trabalhar para mim porque pelo fato de estar sempre com os tibetanos tinha se interessado pelo budismo. Conhecia a história budista e os vários Budas, mas recitava aqui como um guia turístico. Não senti uma conexão espiritual... não no início. E assumi comigo mesmo o compromisso de encorajá-la a experimentar a meditação, que nunca tinha feito. Uma noite, notando que ela às vezes ficava dispersiva e frenética, sugeri que tentássemos dez a 15 minutos de

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vipassana. Eu a convenci de ouvir a minha tosca versão de uma daquelas fitas de orientação para meditação com voz suave. Abri meus olhos depois de dez minutos e ela estava de olhos arregalados para mim, como se eu fosse Woody Allen em Um assaltante bem trapalhão {Take the Money and Run), um dos preferidos dela. Ela não conseguiu levar nada daquilo... nem a mim... a sério.

Entre as pessoas que ela listou para eu entrevistar estava Chen Xiao Xu. Ela parecia a garota da capa menos provável para o budismo socialmente engajado, mas na China as opções eram poucas. Resolvi que apesar dos decretos do governo, qualquer pessoa aqui que pratique publicamente a sua fé já está fazendo uma declaração social que força o governo a assumir sua promessa de liberdade religiosa.

Chen era uma anomalia em qualquer sociedade. Celebridade, capitalista, mulher, budista - ela era tudo isso. O fato de ser chinesa a tornava ainda mais inédita. Aos 39 anos de idade, era presidente de uma das maiores agências de publicidade de Beijing, apesar de ser mais conhecida como uma das estrelas mais famosas da televisão chinesa. Em 1983, quando tinha 18 anos, ela interpretou a heroína trágica Lin Daiyu na versão para televisão de A Dream of Red Mansions {Memórias de uma gueixa), o romance clássico do século XVIII passado em um cenário de fundo do sistema feudal repressivo e moribundo da China. Quando cheguei à China, a série estava comemorando seu vigésimo aniversário de apresentações. Tinha ido ao ar cerca de setecentas vezes na televisão desde a primeira apresentação. Tocava um nervo, pensei, porque os chineses adoram histórias trágicas de amor; para eles não existe outro tipo de história de amor. E de certa forma, aquela época tem paralelo nesta: o declínio e a queda do feudalismo, o declínio e queda da era do presidente Mao. Quando nos preparávamos para a nossa entrevista, Jia se ofereceu para exibir para mim um episódio de Memórias de uma gueixa que tinha em sua coleção de DVDs. E uma saga de muitas gerações que tem incesto, luxaria generalizada, golpe político, casamentos arranjados para reforçar o poder, decadência e indulgência, assassinato, suicídio, doenças demoradas, histórias de pobres que viram ricos e viram pobres de novo, como numa montanha-russa. Essa família fazia The

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Sopranos parecerem The Waltons (Os Waltons). Moral da história: não confie em ninguém, é cada um por si, e todas as mulheres para todos os homens.

Para Chen o papel significava sucesso financeiro, muito além do que ela poderia ter sonhado um dia. Numa época em que a maioria dos chineses lutavam para sair da privação econômica extrema, ela comprava carros e apartamentos e casas para a família. Com o perfil definido como "jovem frágil apaixonada", quando fazia testes para outros papéis não era muito chamada.

- Comecei a pensar se eu não era mesmo Lin Daiyu - ela me disse quando estávamos na sala de conferências da empresa dela, ShiPang Advertising em Beijing, num moderno arranha-céu. O pescoço comprido e as feições delicadas lembravam um pouco a atriz de cinema com muita classe mas aparência frágil Audrey Hepburn, cujo retrato pendia na parede atrás dela. Os olhos doces, simpáticos e expressivos me faziam lembrar de quadros da Madona bíblica. Ela não falava inglês; mas entre sua tradução e a minha nós nos comunicávamos muito bem.

- Passei por um período na vida em que fiquei perdida. Tive de lutar para encontrar um novo caminho.

Então, em 1992, com o namorado, um fotógrafo, ela ajudou a abrir uma pequena firma de publicidade, numa época em que a propaganda na China ainda estava engatinhando. Havia então menos de cem agências no país. Agora há mais de 20 mil. Em 1999 ela já estava ganhando muito dinheiro de novo.

- Depois de sentir o gostinho, eu sempre queria mais e mais, símbolos de status cada vez maiores - disse ela.

E então, de uma maneira quase ilógica, a ficha caiu: aquela sensação de vazio que tanta gente sente, mesmo quando tem todos os bens materiais que deseja. No budismo, esse fenômeno tem um nome: o "fantasma faminto" (preta, em pali), referindo-se ao apetite que jamais pode ser saciado.

- Eu tinha tudo... um carrão, uma linda casa, viajava para onde queria, com luxo mais que suficiente para repartir com a minha família... mas mesmo assim eu ainda era infeliz - disse ela. - Descobri que quanto mais eu tinha, menos feliz ficava.

Mais ou menos nessa época alguém emprestou um livro para ela, sobre a vida e os ensinamentos de Sakyamuni, o Buda.

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- Ele nasceu em uma família rica, mas ele também tinha cada vez menos prazer com as coisas do mundo — disse ela. — Eu pude me identificar com essa parte do que o levou à busca de algo mais substancial, algo que me traria a verdadeira felicidade.

Ela se tornou uma estudiosa sincera do budismo, com um professor chamado Chin Kung, um monge de Taiwan que morava na Austrália. E agora sua vida gira em torno do budismo.

- Inicio cada dia lendo uma escritura budista chamada Apa-rimitayur Sutra — disse ela. - A noite leio outra. Na hora do almoço, quando estou trabalhando, faço um intervalo de trinta minutos de meditação.

As pessoas que trabalham para ela já sabem que nessa hora não devem passar nenhuma ligação. Uma parede inteira do escritório clean é dedicada a estátuas e quadros budistas e fotos do seu mestre. Na mesa da recepção da empresa havia lembranças com temas budistas para dar para os visitantes. ShiPang oferece bolsas e apoio financeiro para projetos de mídia relacionados com o budismo, como assistência a um jovem de Beijing que produz desenhos animados para a TV e DVDs, baseados na vida e nos ensinamentos de Sakyamuni.

- Uma budista na publicidade, uma profissional cujo objetivo é atiçar o apetite do "fantasma faminto" dos consumidores, está me parecendo um oxímoro também, não? - perguntei para ela, apesar de saber que traduzir essa palavra ia ser um pesadelo.

Ela entendeu imediatamente. Seja qual for a tradução, é bem conhecida dos chineses. Oxímoro é bem chinês.

- Sim, algumas pessoas perguntam como faço para conciliar a propaganda, que alimenta o desejo das pessoas de adquirir bens materiais, com o budismo, que promove o desapego a exatamente essas coisas. Não concordo que o budismo ensina as pessoas a levarem uma vida de privações. O Buda estava simplesmente incentivando as pessoas a criarem um mundo feliz para elas.

"Se nós colecionamos 'coisas', ou tentamos obter fortuna pessoal para nós e para a nossa família, podemos não encontrar a realização, mas podemos usar essas mesmas coisas para criar benefícios maiores para os outros, e isso está mais próximo do que é o budismo para mim."

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Com fia Liming, a mediadora de Beijing, na praça Tiananmen, em cima da linha que separa os lados leste e oeste de Beijing.

Eu não tinha certeza se ela estava distorcendo a doutrina budista para justificar seu trabalho. Mas eu podia imaginar a avenida Madison batendo na porta dela depois de aplicar um estilo zen a essa sua teoria da diferença entre o marketing do Oriente e do Ocidente. Havia princípios budistas por trás dessa teoria.

- O povo na China ainda acha difícil compreender o conceito de individualismo e de criatividade pessoal - explicou ela. -Por isso os anúncios americanos e europeus que vendem a idéia de que você pode ter prazer pessoal ou satisfação com um produto não funciona aqui. Nós damos mais importância à generosidade e à tolerância. Até a geração mais jovem não gosta de mostrar seu egoísmo. Por isso criamos anúncios que apresentam o produto à luz de como ele pode enfatizar esses valores.

Eu não sabia ao certo como isso funcionava com os anúncios de um dos principais clientes dela, fabricante de uma marca muito famosa de bebida. E não perguntei como ela conseguia

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representar a marca com aquele raciocínio budista. Budistas não devem beber. Talvez ela achasse que devia fazer o papel de Mara, a tentação, para desafiar as pessoas a buscar a iluminação. Talvez eu estivesse lhe dando o benefício da dúvida, porque estava me apaixonando pela beleza, pelo charme e pela volubilidade das mulheres chinesas.



No meu último dia, como não tinha tempo para ver a Grande Muralha, os ursos panda, os acrobatas chineses e outros símbolos da China, pedi para Jia levar-me à praça Tiananmen. Eu não sabia que os restos do presidente Mao estão guardados num enorme mausoléu de granito no extremo sul da praça desde a sua morte em 1976. Depois da sala de entrada onde tem uma estátua de Mao feita de mármore, imitando o Memorial Lincoln, o corpo do presidente está dentro de um sarcófago de cristal, com uniforme militar e enrolado na bandeira vermelha do Partido Comunista. Salas laterais do mausoléu contêm relíquias de outros "líderes revolucionários de primeira geração, que fazem deste monumento um verdadeiro Salão Ancestral da Revolução", diz o folheto. A fila para entrar serpenteava em volta do prédio. Eles ainda vão lá? Depois de tudo que ele fez com eles e com o país deles? Mesmo sem ter de ir, sem obrigação? Jia explicou que para alguns aquele lugar poderia ser o Buda de Leshan, uma figura histórica, um símbolo muito significativo. Que significava o quê? Símbolo de quê? Eu já tinha me acostumado a ver as pessoas rodando em volta das relíquias do Buda. Estavam fazendo essa comparação com o presidente Mao?

A praça fica no centro geográfico de Beijing. Há linhas na praça que separam a cidade em quatro quadrantes: norte, sul, leste e oeste. Levei Jia pela mão e a posicionei de modo que ficássemos um de cada lado da linha.

— Está vendo, o Oriente encontra o Ocidente. - Dei risada. -E vivem em paz e harmonia...

- Felizes para sempre - ela completou com seu tom irônico típico.

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MANTER O CORAÇÃO SUTRA DO BUDISMO AINDA BATENDO NO JAPÃO



Você não pode perder sua mentalidade auto-suficiente. Isso não quer dizer uma mente fechada, e sim uma mente vazia e uma mente preparada. Se sua mente está vazia, está sempre pronta para qualquer coisa; está aberta para tudo. Na mente do iniciante existem muitas possibilidades; na mente do perito existem poucas.

- ShuNryu Suzuki, ZenMind, BeginnersMind

Como uma linda flor, cheia de cor, mas sem perfume, são as belas mas infrutíferas palavras daquele que não age de acordo com elas. Mas como uma linda flor, cheia de cor e cheia de perfume, são as belas e frutíferas palavras daquele que age de acordo com elas.

- O Buda, O Dhammapada

Quando cheguei ao Japão, a estação das flores das cerejeiras estava no auge. E um momento breve e agridoce na Terra do Sol Nascente. Doce porque as explosões de rosa e branco são surrealismo "água-com-açúcar". Os parques são cenários tão perfeitos que até ficamos esperando alguém gritar "Corta", e desligar a tela azul. Os fotógrafos amadores japoneses — isto é, a população inteira de 127 milhões — estão todos na rua. Mas o espetáculo das flores acaba rápido demais e as pétalas caídas cobrem todo o país como poças cor-de-rosa de lágrimas, e ficamos com saudade do que mal tivemos tempo de curtir. Bem, é mais uma aula sobre a impermanência.

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Eu tinha passado por várias estações... e por mil anos de história e migração budista... em oito semanas. Minha máquina do tempo teria provocado enjôo de viagem em Marty McFly, o personagem de Eric Stoltz no filme De volta para o futuro. Eu tinha acumulado um monte de idéias que realmente estavam me deixando louco. Era capaz de acompanhar a simplicidade com a qual o budismo havia começado, e até de compreender como e por que lentamente evoluiu e se transformou à medida que atravessava a Ásia, mas achava o budismo japonês complexo e confuso. Quando o Dhamma chegou ao Japão, vindo da China e da Coréia aproximadamente em 550 d.C, devia ser tão irreconhecível para o Buda como um telefone celular. Só comecei a entender como uma metáfora que se adequava à cultura japonesa de mania por câmeras, estudando as fotografias, quadros congelados de momentos significativos espalhados em cima de uma mesa. Algumas selecionadas...



• KUNIO KADOWAKI, um mediador japonês experiente que já tinha visto e feito de tudo com redatores e fotógrafos da National Geographic, apressava-me na rota dos pontos turísticos típicos no meu primeiro dia em Kyoto. Visitamos o templo Rengeo-in de madeira e com setecentos anos de idade, onde 1.001 estátuas de madeira da divindade budista Kannon (o Buda da Compaixão: conhecido como Avalokiteshvara na índia e Kuan Yin na China) estão enfileiradas por 118 metros ao longo de dois salões. Kannon significa, literalmente, "escuta atenta", e pode ser livremente traduzido como "aquele que vê e ouve tudo". Tirei meus sapatos antes de entrar no templo, como é o costume, sempre com muito cuidado para pisar na plataforma de madeira só de meia ou descalço. Mas, quando corria para alcançar Kunio, fui descuidado e deixei meus sapatos desalinhados com os outros sapatos, que não tive tempo de notar que estavam todos enfileirados juntos. Olhei para trás e vi um monge ali perto arrumando meticulosamente meus sapatos para ficarem perfeitamente paralelos com os outros. Pessoal meticuloso, pensei. Esse foi o primeiro sinal de como o povo japonês é capaz de se fixar e empedernir em seu modo de ser.

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Mas compreendi também que eu ia ter de ver e ouvir tudo com um pouco mais de atenção do que estava habituado. O Buda está nos detalhes aqui.

• O CAMINHO DO ARQUEIRO é a arte marcial dos arqueiros zen, conhecida no Japão como kyudo (que se pronuncia quiu-dô). Entrevistei Kanjuro Shibata, vigésima primeira geração de fabricantes de arcos e arqueiros, cujo pai é bem conhecido nos Estados Unidos como o presidente da Zenko International em Boulder, Colorado. Sentados à mesa na sala de jantar da casa dele em Kyoto, notei a bela placa de madeira na parede atrás dele, que ele disse que era o lema do kyudo. Tinha quatro caracteres japoneses lindamente pintados. Pedi a Kunio para traduzir, pensando que apenas quatro caracteres não seriam difíceis de dizer em inglês. Meia hora depois os dois ainda estavam discutindo como devia ser a tradução.

- Mão atinge, mente obtém - sugeriu Kunio. Shibata-sensei, que quase não falava inglês, balançou a cabeça.

- Obter mente, alcançar mão?

Mais uma vez ele balançou a cabeça, indicando que não. Resolvi experimentar.

- Que tal mente boa, mão boa?

- Não exatamente.

- Mente clara, mão firme?

- Mais ou menos - foi o máximo que Kunio me concedeu.

O problema para uma pessoa que não fala japonês é que a língua é tão rica em metáforas, símbolos e referências culturais que levaríamos séculos para compreender realmente. Fã dos haikai, a sucinta forma poética japonesa de 17 sílabas, entendi como devem ser superficiais as traduções desses poemas para o inglês, como deve faltar a profundidade, a amplitude do significado e da textura, comparadas com os originais. E naquele momento pensei: será que os ocidentais tinham a presunção de achar que nós somos capazes de entender o esotérico e mercurial zen-budismo? Com mente clara e mão firme era a única resposta.

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• UM MESTRE DE CALIGRAFIA COM 70 ANOS DE IDADE,

Hakuju Kuiseko estava explicando de onde vem sua inspiração, o que ele sente na hora que encosta o pincel no papel. Pelo menos estava tentando explicar. O problema dessa vez não foi a tradução do japonês para o inglês. Foi a tradução do não-verbal para o verbal. De certa forma aquilo me fez lembrar da dificuldade para explicar a experiência da meditação para alguém que nunca passou por tal experiência. Eu preferia que ele tivesse me mostrado em vez de falar, mas com o meu respeito por deferência recém-descoberto, especialmente pelos sábios idosos asiáticos, não quis parecer presunçoso, por isso não pedi.

Sentada ao meu lado, a mulher dele, Ryokushu, respeitada professora de caligrafia, puxou a minha manga e sussurrou:

- Peça para ele demonstrar.

- Eu não poderia, de jeito nenhum - disse eu.

Num tom que só era compreendido por marido e mulher, ela disse alguma coisa e ele deu um pulo, animado.

- Ele vai demonstrar — disse ela.

Ele pegou alguns pincéis e tinta e debruçou-se sobre uma folha de papel de 40 centímetros no chão. Fechou os olhos, respirou profundamente algumas vezes, quase hiperventilou, e praticamente mergulhou no papel, com pinceladas curtas, certeiras e decididas. Em questão de segundos tinha desenhado um círculo simples que também tinha muita personalidade.

- Quer dizer "mente clara" - explicou a sra. Kuiseko.

Eu não precisava de resposta melhor. Aquilo não era apenas o dilema de fazer uma pessoa cujo veículo de expressão é visual comunicar-se por palavras. Aquilo era mais profundo. Os japoneses não se sentem à vontade com o mundo dos sentimentos, não se sentem à vontade com as palavras "eu", "mim" ou "meu". Eu tinha descoberto isso quando perguntei sobre o relacionamento pessoal deles com o budismo e eles recitaram a biografia do fundador da seita deles, iniciando em 1173 ou uma data assim, e continuando até, mas não incluindo, a vida dos dois. Fiquei pensando no quanto isso tinha a ver com o budismo, com a idéia de que o Caminho, como é chamado, é inexprimível e indescritível.

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E em quanto tinha a ver com até que ponto os japoneses tinham levado o conceito budista de "vazio do eu".



• ELES SÃO CHAMADOS DE MONGES MARATONISTAS. Esses monges, que passam por treinos extremamente rigorosos na seita Tendai, fundada em 805 por Saicho no alto do monte Hiei na periferia de Kyoto, onde alguns outros fundadores de seitas japonesas são treinados, caminham cerca de 30 quilômetros por tri-

Fujinami Genshin é chamado de monge maratonista. Segundo essa tradição Tendai, os monges caminham centenas de quilômetros por trilhas nas montanhas à noite, carregando lampiões e usando roupas de Unho branco, parte de seu treinamento budista.

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lhas nas montanhas. Eles andam à noite, até o início da manhã carregando lampiões e com roupas brancas de linho estranhas, botas de palha e chapéus também de palha, que devem lembrar Iótus. Se eles chegassem à sua porta no Dia das Bruxas, você pensaria que eram alguma brincadeira com personagens de Lewis Carroll. Fazem orações em 255 locais sagrados ao longo do caminho e assim realizam sua tarefa em mil dias consecutivos, ou espalhados em sete anos. Kunio tinha conseguido arrumar uma entrevista com Fujinami Genshin, monge de 45 anos dessa ordem.

Ele disse que a prática devia ajudar a obter a iluminação. Para mim isso parecia aquele tipo de austeridade que o Buda tinha vivenciado — e rejeitado - como forma de chegar à iluminação. Será que o budismo estava regredindo ali no Japão, para as crenças e os rituais védicos pré-Buda? Fujinami não quis entrar nessa discussão. Disse que fazia aquilo porque significava que podia obter uma posição mais alta em algum templo depois de completar o treinamento.

• REVERENDO GENE SEKIYA, japonês norte-americano nascido em Fresno, Califórnia, é diretor do Departamento Internacional da denominação Hongwanji do budismo shin, outra seita, fundada no século XII por Shinran Shonin. O reverendo Sekiya, que hoje vive em Tóquio, é um homem bonito e muito inteligente de 40 anos. Foi um grande alívio para mim conversar sobre o budismo japonês com alguém para quem o inglês era a língua principal. Ele me perguntou o que eu sabia sobre o budismo. Dei-lhe a resposta resumida que eu praticava há uns trinta anos, com alguns intervalos.

- Praticando? - ele perguntou num tom pedante que me fez

ficar na àeÇetVSWa imediatamente, que era o que ele pretendia

mesmo. - Adoro quando ouço os americanos dizerem que "praticam" o budismo. Para uma pessoa japonesa seria como dizer "eu pratico ser japonês".

A prática da qual eu falava, a meditação, é chamada de zazen na tradição zen japonesa. Na tradição chamada de budismo da terra pura é a recitação do nome de Amida Buda - em japonês,

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Namu Amida Butsu. O nembutsu, como é chamado, significa "pensar no Buda".

Percebi uma indignação com o fato de nós, norte-americanos, pensarmos que poderíamos chegar ao Caminho "praticando", se tudo que os japoneses tinham de fazer era inspirá-lo. Tudo muito bem, tudo muito bom, mas parecia uma desistência, desobrigando os japoneses de executar qualquer tipo de ritual religioso ligado ao budismo, ou a uma prática como a meditação. Aquele era, afinal de contas, o país no qual aprendi sobre outra seita do budismo que se chamava de "budismo funeral". A primeira vez que ouvi esse nome foi do diretor da edição japonesa da National Geographic.

- Ah, você não vai ver sinais de budismo no meu país, exceto nos funerais — ele tinha dito muito tempo antes de eu chegar ao Japão.

Na época pensei: não pode ser, não no país que muitos norte-americanos associam com o budismo. Ele deve ser um ateu, um niilista ou apenas esqueceu as tradições do próprio povo. Agora, ouvindo os comentários do reverendo Sekiya, descobri que isso talvez acontecesse mesmo porque o budismo tinha se entranhado de tal maneira na cabeça dos japoneses que eles não sentiam necessidade de observar os rituais. Também pensei na possibilidade de que a forma dos rituais deles, executados com extrema precisão, tinha maquiado a substância que esses mesmos rituais defendiam.

O momento exato em que Deus, do jeito que eu o/a conhecia, deixou de existir para mim foi mais do que uma simples fotografia. Foi um cartaz ampliado ao máximo, de parede inteira, completo, com uma pequena ponte em arco de madeira, o monte Fuji com sua coroa de neve ao fundo, uma touceira de bambu de um lado e a imagem meio escondida de uma mulher de quimono discretamente atravessando a ponte.

O momento foi tão trivial, tão inócuo, tão comum, que passaria despercebido se não fosse por um pequeno monge imaginário sussurrando no meu ouvido: "Ahaaaa." Os alunos de zen cha-

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mam de "momento aha", quando idéias se alinham de tal modo que você "entende tudo", seja qual for o "tudo" do momento. Essa epifania muitas vezes ocorre quando o nosso lado racional desiste de tentar decifrar o indecifrável e tem um estalo. Aha, Verdade!



A minha verdade veio quando visitava Hoitsu Suzuki, sacerdote principal de Rinso-in, um templo zen-budista nas colinas acima da cidade pesqueira de Yaizu, com população de cerca de 115 mil habitantes, distante 160 quilômetros a sudoeste de Tóquio. Se não fosse pelo pai dele, Suzuki-roshi seria apenas mais um sacerdote zen de cidade pequena no Japão. Mas o pai dele, já falecido, Shunryu Suzuki, é figura pioneira na história do budismo norte-americano. Em 1959 o sr. Suzuki mudou-se para San Francisco e abriu um centro zen numa rua do bairro de Haight-Ashbury, que se tornaria o ponto de partida do movimento hippie norte-americano. Mais tarde fundou o primeiro mosteiro zen nos Estados Unidos, em Tassajara, nas montanhas ao sul da cidade. O livro de Shunryu, Zen Mind, Beginners Mind (Mente zen, mente de principiante) foi um marco para uma geração inteira. Agora uma pequena fila de seguidores de Shunryu faz a peregrinação até esse templo modesto para conhecer o filho dele, a quem consideram o representante da linhagem no zen-budismo norte-americano.

Eu tinha ido passar três dias com um sacerdote zen "típico" e sua família — o sacerdote, que era também um calígrafo; a mulher dele, que fazia arranjos de flores; o filho, também sacerdote e habilidoso praticante de kyudo; e a mulher do filho - todos intimamente envolvidos com a administração do templo e as outras responsabilidades na comunidade que qualquer padre de paróquia de qualquer denominação teria de cuidar. Era uma oportunidade rara de ver a vida por trás das paredes de papel de arroz. Os quartos dos hóspedes que reservaram para Kunio e para mim ficavam do outro lado do templo. Fazíamos as refeições com a família na sala de jantar dos aposentos particulares deles.

E foi lá que meu momento "aha" aconteceu. Suzuki-roshi estava sentado à cabeceira da comprida e baixa mesa de jantar.

- Por que diz que ela é baixa? - ele me perguntou. - Para nós, não é baixa, tem a altura certa. Para nós as suas mesas são altas demais.

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Foi uma aula simples sobre relatividade.



Como gesto de gratidão por ter nos acolhido, na última noite que passei com eles encomendei uma bandeja gigante de sushi, saque e cerveja (que os padres zen podem beber). Enquanto a mulher dele e a filha se ocupavam dos preparativos na cozinha,

O reverendo Hoitsu Suzuki, sacerdote principal do Rinso-in, um templo zen em Yaizu, no Japão, conduz uma cerimônia chamada de Consolo dos Peixes nas docas do porto da cidade. Esse ritual anual absolve os pescadores budistas do pecado de matar seres vivos.

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conversamos sobre teologia no Oriente e no Ocidente e Suzuki-roshi assistia com um olho à televisão diante dele ao mesmo tempo. Estavam passando um jogo do New York Yankees. Os jogos dos Yankees eram televisionados no Japão porque o ponta-esquerda do time, Hideki Matsui, nascido em Kanazawa, no Japão, é como um herói naquele país de amantes de beisebol. Sempre que ele ia rebater, sabíamos que a conversa tinha de ser interrompida. Havia folhas de jornal espalhadas pelo chão em volta de Suzuki-roshi. Era uma atmosfera tão completamente caseira, como um domingo de futebol americano, pizza e cerveja. Quem iria pensar que a iluminação poderia ser alcançada ali, naquela hora?

Nos dias que tinha passado com ele antes, eu o vira conduzindo alguns funerais, rituais automáticos com tambores, gongos e incenso. Ele e os outros padres que participavam usavam mantos dourados e chapéus altos com plumas. Ele carregava um pau com uma longa crina branca de cavalo que parecia um espanador. Fomos a um funeral que aconteceu num salão moderno, num prédio de um pequeno parque industrial em que dois outros grupos de funerais esperavam em locais separados. Logo depois da entrada havia uma tela de circuito fechado de TV no alto para os que não podiam entrar no salão principal lotado.

Na cerimônia um adolescente chorou quando ele falou sobre a morte da avó dele. Senti um estremecimento coletivo de constrangimento percorrer o grupo de luto, de tanto que essas pessoas estranham demonstrações públicas de qualquer emoção.

Eu tinha visto Suzuki-roshi executando um evento anual chamado Consolo dos Peixes. Nessa cerimônia também muito formal, executada nas docas mesmo, com a mídia local filmando e fotografando o tempo todo, ele liderou um grupo de sacerdotes de diversas denominações - todos vestidos com mantos dourados e elegantes, com chapéus emplumados. Os pescadores e outros da indústria pesqueira sentavam em cadeiras de metal com suas roupas de trabalho de frente para o porto cheio de barcos indo e vindo. Como são budistas, que pelos preceitos não têm permissão para matar qualquer ser vivo, esses trabalhadores recebem absolvi-


ção pelo seu "pecado" para que os outros possam se alimentar. Achei que deviam chamar a cerimônia de Consolo dos Pescadores.

Eu havia feito zãzen com ele às 5h30 da manhã numa reunião pública de meditação que ele promove todas as manhãs no seu templo. Fora o filho, a nora dele e eu, apenas duas pessoas da comunidade compareceram. Eu tinha visto Suzuki-roshi praticar sua caligrafia, que todos os sacerdotes japoneses têm de aprender, uma vez que assinam atestados de óbito com a grafia ornamentada.

E agora estávamos conversando sobre tudo isso, enquanto eu tentava entender o sentido das coisas ali. Entre uma série e outra de rebatidas de Matsui, eu fazia perguntas para tentar compreender por que existem tantas seitas no Japão, o que distingue uma da outra, porque tão poucos japoneses praticam zãzen... Resumindo, eu esperava que aquele homem pudesse explicar a história do budismo japonês e também interpretar a psicossocio-logia japonesa, e tudo isso entre goles e rebatidas perfeitas. Claro que era uma pretensão desmedida, e ficou óbvio que eu estava esgotando a paciência dele. Eu estava pondo à prova a minha paciência também, ouvindo as minhas perguntas, que soavam cada vez mais vazias, mas não no sentido zen, apenas em um sentido: as respostas estavam contidas nas minhas perguntas. Eu só estava tendo dificuldade de ouvi-las.

Ele disse que recentemente tinha voltado dos Estados Unidos e que vira que "apesar de serem materialmente ricos como indivíduos e como país, os americanos estão sofrendo". Isso não era novidade.

— E por que isso? - perguntei. - Por que as tradições judaico-cristãs não satisfazem essa carência espiritual?

— Porque eles procuram as respostas do lado de fora, em vez de procurar dentro deles - respondeu ele. - O Buda disse que as respostas não estão aí fora; estão dentro de nós mesmos.

— Sim, nós procuramos Deus - disse eu. - Deus está lá, mesmo na nossa linguagem casual. Dizemos: "Deus te abençoe", quando alguém espirra. Dizemos: "Graças a Deus não fui atropelado por aquele caminhão." Dizemos: "Que maldição, meu Deus", quando damos uma topada ou quando Matsui erra a rebatida.

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Suzuki-roshi no seu templo treinando caligrafia, que todos os sacerdotes budistas aprendem como parte do seu treinamento religioso, já que escrevem os atestados de óbito com essa grafia.

Ele deu um sorriso de lado e olhou para mim por cima dos óculos. Ele não queria entrar naquele jogo que considerava mas-turbação intelectual sem sentido.

- Quem é o Deus de quem vocês vivem falando?

A pergunta foi tão simples que varou toda a besteirada teológica e de repente... aha... compreendi que a crença em Deus perpetuava o sofrimento. Quando o Buda explicou que o universo não é dividido em indivíduo e não-indivíduo, eu e não-eu, que é, em vez disso, uma entidade interligada, estava essencialmente desautorizando a existência de Deus, pois Deus seria alguma coisa, ou outro alguém. Sem Deus, toda a responsabilidade pela topada e tudo o mais recaem sobre mim mesmo. Esse pode ser o motivo de termos inventado Deus, porque é mais fácil apontar o dedo acusando do que assumir a culpa. Mas se aceitamos o não-dualismo, isto é, que não há diferença entre o sujeito e o objeto,

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entre o conhecedor e aquilo que é conhecido, não existe o acusador nem o culpado, ou acusado. Deus é também um meio para explicar qualquer coisa que não podemos explicar com as nossas mentes não oniscientes, até as coisas boas. Toda essa conversa teológica, se existe Deus, ou dois deuses, ou até se nós somos Deus, passa a ser mero exercício acadêmico quando confrontada com uma das principais teses do Buda: que devemos aceitar apenas o que podemos experimentar diretamente ou observar empirica-mente com os nossos cinco sentidos. O que os não-budistas fazem, vêem, sentem ou cheiram com seu chamado sexto sentido é problema deles. Suzuki-roshi estava me dando a versão budista do "Eu sou do Missouri" que corresponde a "tenho de ver com meus próprios olhos". Ou seja, se eu não puder apontar para alguma coisa que nós dois podemos "ver" naquela sala de jantar, então o assunto Deus continuará pertencendo ao mundo das hipóteses e portanto tão relevante quanto, digamos, a possibilidade de Suzuki-roshi rebater no lugar de Hideki Matsui.



Naquele momento fui cortado por esse trunfo. Foi como se com uma soprada Suzuki-roshi tivesse derrubado o delicado castelo de cartas que eu chamava de Deus, tivesse demolido o meu paradigma de Deus. No entanto não tive nenhuma sensação de pânico, nenhuma queda desesperada e vertiginosa sem pára-quedas nem paradigma. E para variar, deixei por isso mesmo. Não tinha mais perguntas.

- Sim, do lótus do budismo brotaram muitos ramos novos quando chegou ao Japão. - Suzuki-roshi tinha dito com aquele estilo japonês maravilhosamente poético. - Mas quando o sino toca todos retornam para o mesmo lugar.

Quando lemos sobre tantas seitas que surgiram no Japão, fica claro que elas também vêm do mesmo lugar: da China.

Mas foi o príncipe coreano Kudara que fez a primeira apresentação oficial da religião para a corte japonesa em 538 d.C, quando uma delegação de sacerdotes budistas chegou pelo mar levando objetos sagrados, sutras, flâmulas e imagens do Buda de

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presente. Até então as crenças religiosas no Japão eram essencialmente voltadas para o mundo da natureza e dos espíritos. Essa religião, chamada de xintoísmo, ou o Caminho dos Deuses, como a religião tradicional chinesa, é uma mistura amorfa de adoração da natureza, cultos de fertilidade, técnicas de adivinhação, veneração de heróis e xamanismo, e continua sendo uma parte bastante forte da identidade japonesa. Na verdade quase todo templo budista que visitei cede uma área para templos xintoístas. Também vemos esses templos xintoístas — simples, com estrutura de madeira, mais ou menos do tamanho de uma banca de jornal - no centro da cidade de Tóquio, espremidos entre lojas de aparelhos eletrônicos e butiques de sapatos e roupas Salvatore Ferragamo. Diferente de quase todas as outras religiões, o xintoísmo não tem um verdadeiro fundador, não tem escrituras, não tem código moral, nenhum corpo de leis religiosas ou teologia desenvolvida, e possui um clero bem pouco organizado. Seus deuses são chamados de kami (divindades), mas não têm semelhança alguma com os deuses das religiões budista, islâmica ou judaico-cristã. Para os xintoístas, o Buda foi apenas mais um kami. No xintoísmo há "Quatro Afirmações": respeitar a tradição da família, com celebrações de nascimentos e casamentos; honrar o sagrado da natureza; praticar a higiene física (os seguidores tomam banhos, lavam suas mãos e fazem bochechos para lavar a boca com muita freqüência); e venerar e homenagear os kami e os espíritos ancestrais.



Essa prática tão simplificada não era páreo para as crenças bem desenvolvidas do budismo, já com mil anos de idade no século VI. Mas o campo em que o budismo acrescentou especialmente alguma coisa foi em auxiliar os japoneses a encarar o lado mais obscuro da vida, pois o xintoísmo oferecia pouco consolo diante do pecado, da doença e da morte. Através das Quatro Verdades Nobres, eles passaram a ver uma forma positiva de lidar com isso.

O príncipe Shotoku, que foi regente do imperador em 593, proclamou o budismo como a religião do estado. O budismo se desenvolveu livremente por alguns séculos. Entretanto, nos séculos VIII e XIX, doutrinas do que era chamada de Escola Idealista afirmavam que a iluminação só era acessível aos nobres aristocratas e aos monges mais graduados, e assim foi tirado do povo.

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Nesse meio tempo essa aliança entre a classe dominante e os prelados levou à corrupção interna da ordem monástica. Para acabar com o reinado dos líderes budistas cada vez mais sedentos de poder, no fim do século VIII o governo mudou a capital de Nara para Kyoto e assim acabou com o período Nara e iniciou o período Heiano, que durou até o ano 1200.



Mas então ocorreu outra ruptura, entre os próprios budistas. Começou em 788 quando um monge chamado Saicho (767-822) subiu o monte Hiei, um pico fora de Kyoto, e fundou um pequeno templo que acabou crescendo e se tornou o Enryakuji, um complexo de três mil templos dedicados ao ensino do que passou a ser uma seita do budismo chamada Tendai. Tendai, que ele havia aprendido com os chineses numa viagem que fez para lá em 804 {T'ien-t'ai em chinês), enfatizava a universalidade da natureza do Buda em vez da iluminação como domínio exclusivo dos ricos e poderosos. Outro monge, chamado Kukai (774-835), também foi para a China na mesma época. Ele, por sua vez, voltou para o Japão com os ensinamentos do budismo tântrico, chamado em japonês de Shingon, ou "a palavra verdadeira". O tantrismo combina aspectos de várias religiões, envolve rituais elaborados que consistem em posturas do corpo, movimentos com as mãos e frases místicas, tudo rigidamente prescrito. O cerimonial e o mistério desses rituais devem ter impressionado os japoneses, que já estavam cansados das polêmicas do Tendai. Kukai fundou um mosteiro próprio na ilha de Koyasan. Depois da morte de Saicho, Kukai passou a ser o sacerdote principal do palácio imperial. E no ápice da fama, se fez enterrar vivo enquanto imerso em profunda meditação.

Por isso o budismo japonês se dividiu em duas escolas distintas, mas Shingon superou Tendai em popularidade e aos olhos da classe dominante.

No século XII surgiram mais duas seitas. Honen (1133-1212), um monge que estudava no monte Hiei e acreditava piamente que a salvação viria através da graça salvadora do Buda, propôs uma abordagem simples e menos mística do que o Shingon. Ele fundou uma escola chamada Jodo, ou a Terra Pura. Cantando namu Amida Butsu (homenagem ao Buda Amitabha), podemos superar todos os pecados e ser redimidos incondicional-

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mente. Isso funcionou bem na sociedade japonesa que estava cheia de corrupção e a popularidade de Honen cresceu muito depressa. Mas não funcionou tão bem com aqueles que estavam no poder e foi banido pelos seus oponentes em 1207, aos 74 anos de idade.

Então outro monge, Shinran (1173-1263), também treinado no monte Hiei, fez outra interpretação dos ensinamentos de Honen. A saber, ele e seus seguidores questionavam se a fé é um dom gratuito da graça de Buda, ou se tem alguma coisa a ver com a intenção da pessoa - semelhante ao debate do livre-arbítrio contra o fatalismo. Esse grupo ficou conhecido como Jodo Shinshu, ou a Verdadeira Doutrina da Terra Pura. Depois do exílio de Honen, Shinran, que devia ter 30 anos na época, abandonou seu manto monástico, trabalhou como pregador comum no interior do país, casou-se e formou uma família. Essa secularização do monge budista, que modificou para sempre a religião no Japão, contribuiu para tornar muito conhecido o Jodo Shinshu no Japão. Ainda é a maior seita em termos de números.

Mas apareceram mais duas seitas depois. Uma foi criada por um monge chamado Nichiren (1222-1282). Ele reduziu todos os ensinamentos a uma fórmula simples, a adoração do Lótus Sutra, que ele acreditava que incorporava toda a sabedoria dos sutras. Mas ele não parou aí, passou a atacar Honen e todas as outras seitas como hipócritas e traidores. Isso não o fez popular nesse meio e acabou sendo banido para uma península remota. Quando foi solto depois de três anos, descobriu que as suas idéias tinham se espalhado e que tinha mais seguidores do que antes. Banido novamente, já iam assassiná-lo quando uma bola de fogo cruzou o céu. Isso deixou seus executores tão nervosos que em vez de matá-lo mandaram-no para o exílio. Uma vez livre, ele passou os últimos anos de sua vida com menos ímpeto, mas sempre inflexível, afirmando ser um profeta enviado pelo Buda. O chauvinismo e o militarismo que caracterizavam a política japonesa nos séculos XIX e XX podiam ser associados, até certo ponto, à agressividade e às idéias de Nichiren.

Eisai (1141-1215), um monge insatisfeito com as tendências acadêmicas do monte Hiei, foi para a China e voltou trazendo mais uma peça, Ch'an, ou zen em japonês. Só que o monge que recebeu o crédito de ter tornado zen popular no Japão foi Dogen

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(1200-1253), que também viajou para a China. Lá encontrou um professor que ensinou zãzen para ele, tradição que descendia direto da índia através de Bodhidharma, o monge que a levara para o mosteiro Shaolin. Dizem que Bodhidharma ficava sentado fazendo meditação zãzen tanto tempo parado no mesmo lugar no templo Shaolin que sua sombra na parede atrás de onde ele sentava, agora é permanentemente visível naquele lugar. Vi a mancha mais escura quando estive em Shaolin, mas não posso confirmar nem negar a afirmação dos guias turísticos de que é a sombra dele.



Ao ler a história do budismo no Japão, vi pela primeira vez duas palavras lado a lado que jamais imaginaria ser possível: "monges guerreiros". No entanto, em seus 1.500 anos no Japão, o budismo deu uma guinada para a violência, lutas de egos e outros traços humanos desagradáveis para os quais nem meus estudos na Tailândia e na China tinham me preparado. Acho que supus que se o budismo tinha de fato atingido seu ápice no Japão, sido absorvido e assimilado, e estava consciente dos erros do passado, seria o mais evoluído, o menos corrupto ou o menos corruptível.

Pensei que minhas perguntas tinham acabado, mas fiz mais uma para Suzuki-roshi.

- Como foi que isso aconteceu?

A resposta dele foi tipicamente sucinta.

- Um cão só pode ser um cão.

O homem só pode ser homem, ele quis dizer. Mesmo se tivermos naturalmente a natureza do Buda - a sabedoria interior que nos dá capacidade de amar, perdoar e encontrar tranqüilidade - também temos a natureza humana, com defeitos e tudo. Essa verdade enigmática do budismo era o osso que sobrava para eu ficar roendo.

O reverendo Yoshiharu Tomatsu é um sacerdote japonês que trafega entre os mundos do budismo antigo e o novo, o budismo do Oriente e o budismo do Ocidente. É uma posição precária, frustrante e às vezes conflitante para ele.

- Eu luto contra algumas das hipocrisias das antigas tradições e contra o abismo entre o que o Buda ensinou e no que o budis-

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mo se transformou por aqui - disse Tomatsu-san, em que "san" é o termo mais casual de amizade que ele pediu para eu usar.



Um sacerdote de terceira geração da seita budista japonesa da Terra Pura de Jodo Shu que existia há oitocentos anos, o jovial oriental com 50 anos de idade é o líder do Templo Shinko-in, que tem servido à comunidade há cinqüenta gerações. O pequeno templo de madeira do século XVII onde bebíamos chá-verde, por uma simbologia quase forte demais, fica na base da Torre Tóquio, a imagem icônica no Japão da modernidade tecnológica. Tomatsu-san foi disk-jóquei de boate quando cursava a faculdade, e chegou a sonhar em se tornar um executivo do mundo da música. Mas seguiu o caminho do pai dele, acabou passando três anos em Cambridge, Massachusetts, para completar o mestrado em divindade pela Universidade Harvard. Agora dá aulas em duas universidades de prestígio em Tóquio e é pesquisador sênior no Instituto de Pesquisa Jodo Shu de Budismo. Quando não está de terno ou de manto negro, usa calça de algodão e suéter de cor pastel sobre o ombro com as mangas enroladas na frente, bem ao estilo dos universitários de Harvard. Quando não estava me apresentando ao movimento do budismo engajado que lentamente surgia no Japão, ele bancava o bom anfitrião com seu hobby de gour-mand, trocando sabores das melhores tradições culinárias do Japão comigo. Com ele aprendi os segredos esotéricos do macarrão udon de cor pérola, grosso e aveludado perfeitamente cozido, e jamais vou me satisfazer com as imitações norte-americanas de novo... meu "aha" culinário.

Ele disse que é um "sacerdote budista de funerais", e o tom da voz dele deixou claro que achava essa denominação pejorativa. Ele é também um defensor extrovertido e agressivo de um budismo no Japão que devia ser muito mais relevante socialmente.

Seu momento espiritual da verdade - o ponto em que começou a questionar os rituais tradicionais da sua seita budista — aconteceu em meados dos anos 70, quando era um sacerdote que trabalhava como voluntário numa clínica para AIDS.

- Conversávamos com as pessoas e fazíamos massagem, segurávamos as mãos delas, apenas as mantínhamos literalmente "em

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contato com a humanidade" - disse ele, quando me levava de



luvas. Era questão de bom senso. Mas o abade superior não usava quando tocava nos pacientes. Um dia eu estava sem luvas e tentei estender a mão e tocar num homem moribundo também, mas não consegui. Fiquei paralisado. Naquele momento os rostos dos meus filhos e da minha mulher surgiram na minha cabeça. E se eu pegar AIDS? Eu simplesmente não conseguia estender a mão e chorei por mim mesmo. Compreendi as minhas limitações e pus a culpa no fato de ser um sacerdote secularizado.

Para ele "secularizado" significava algo mais do que sacerdotes que se casam, que prestam serviço militar, que comem carne, que não têm de raspar a cabeça ou usar seus mantos o tempo todo. Para ele implicava uma diluição das tradições esotéricas sagradas do budismo. Eu podia imaginar o Buda pensando a mesma coisa quando soubesse que duas usinas nucleares perto de Kyoto têm nomes de deuses budistas: Monju (de Manjushri) e Fugen (Samantabadhra).

Esse processo de secularização pode ser comprovado até o fundador da própria seita dele, o monge Honen do século XII. No entanto foi intensificada com a velocidade dos famosos trens-bala japoneses desde a Segunda Guerra Mundial - alguns dizem que até antes, desde a chegada do Comodoro Perry em meados do século XIX.

— Mas é irônico — disse Tomatsu-san quando chegamos ao nosso destino. — Por mais que o Japão tenha olhado para o Ocidente em busca de suas pistas culturais, não abraçou completamente esse estilo ocidental do budismo engajado. E se não atender às necessidades mutantes da sociedade moderna, o budismo japonês vai morrer.

Agora era a minha vez de ver a ironia: muitas pessoas no Ocidente ouviram falar do budismo pela primeira vez por meio do zen, que se originou no Japão. Popularizado no Ocidente pelos escritores da geração beat nas décadas de 1950 e 1960, o zen se tornou conhecido por meio de expressões artísticas como a caligrafia e ikebana, em rituais como a cerimônia do chá, ou uma tra-

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dição culinária chamada kaiseki que saiu dos mosteiros japoneses ou dos espadachins. Depois que a avenida Madison tomou conta, dúzias de produtos adotaram o nome de zen. Por isso foi um choque saber que o budismo japonês, considerado a fonte do budismo para muitos ocidentais, tinha se transformado numa instituição estéril, privada de significado espiritual e sem valor social.

O reverendo Yoshiharu Tomatsu, líder do templo Shinko-in, do século XVII, em Tóquio e pesquisador sênior no Instituto de Pesquisa Jodo Shu, ponta-de-lança de um incipiente movimento do budismo engajado no Japão.

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Tomatsu-san estava me levando para ver alguns sinais de que o coração do budismo ainda batia. Passei a considerá-lo o marca-passo humano do budismo japonês e o engajamento social como o desfibrilador.

A primeira parada foi numa organização não governamental (ONG) que ele tinha ajudado a criar com outros padres budistas. Chamada Ayus, que se traduz como "vida", foi fundada em 1993 para ajudar a canalizar fundos para outras ONGs que trabalhavam em áreas como pobreza urbana, programas para HIV e AIDS, carências educativas e emergenciais como no Iraque e as tribos sitiadas de Bangladesh na região de Chittagong Hill Tracts.

É um programa pequeno, que distribui cerca de 300 mil dólares entre dez ONGs todos os anos. Dos trezentos doadores japoneses que contribuem, dois terços são sacerdotes budistas. Onze dos 13 membros da diretoria são sacerdotes budistas.

- Se queremos que essas idéias cheguem pouco a pouco até o povo, nós, líderes espirituais, temos de ser os exemplos — explicou Tomatsu-san na pequena sala abarrotada, na presença do único membro da equipe que trabalha como administrador. - Mas estamos tendo dificuldades. Todos os sacerdotes dizem: "Ah, é uma grande idéia, mas não tenho tempo para me envolver porque tenho muitas outras responsabilidades com os membros do meu templo." Em outras palavras, eles não podem economizar o tempo que passam nos serviços funerais ou memoriais. Mas pelo menos estão dando algum dinheiro e agora estão conscientes dessa necessidade.

Depois fomos encontrar um administrador de hospital de quem Tomatsu-san tinha recebido a informação de que um programa para um asilo estava sendo criado por um templo budista. Pela conversa com o administrador ficou claro que esse "programa modelo" ainda era um protótipo, um pré-modelo. Tinham visitado dois ou três pacientes na cidade inteira no último ano, e nada mais.

- Pelo que eu sei, não existe nenhum asilo que funcione como tal no Japão — disse o administrador.

Quando falei do Projeto de Asilos Zen que tinha visitado em San Francisco para o administrador, ele tinha mais perguntas a fazer para mim do que eu para ele. Eu havia me tornado uma das

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sementes do pólen da polinização cruzada soprada pelos ventos leste/oeste.

Lá fora no estacionamento, Tomatsu-san não conseguia conter sua frustração.

- Pensei que isso já estava mais adiantado — confessou ele. - E triste, mas não estou surpreso. É reflexo do sistema de saúde no Japão e também do fato de o nosso povo evitar encarar a realidade da morte. Eles levam os cadáveres embora no meio da noite pelos elevadores de serviço. Você sabia que os sacerdotes não podem usar o manto budista quando vão visitar um doente? Porque isso indica que o paciente está morrendo e o hospital receia incomodar os pacientes.

Nossa próxima parada era na sede mundial da Rissho Kosei-kai, um novo budismo que as seitas mais tradicionais chamam de "nova organização religiosa". Fundada em 1938 com base nos ensinamentos do Buda e no Sutra Lótus do budismo, afirma ter preponderância sobre 1,8 milhão de lares no Japão. Uma diferença é que é uma organização leiga, num esforço para evitar a hierarquia institucional que invalidou as seitas tradicionais, de acordo com seu fundador. Outra é que trata dos problemas do mundo. Os membros se abstêm de fazer duas refeições por mês para doar esse dinheiro para o Fundo da Paz Rissho Kosei-kai que, por sua vez, sustenta novecentos programas pela paz, pelo desenvolvimento econômico, pelos refugiados, contra a fome e outros serviços sociais em todo o mundo. A organização incentiva campanhas para enviar cobertores para a África e uma campanha visando às crianças que envia sacolas com brinquedos artesa-nais e cartões com mensagens pessoais. A Rissho Kosei-kai deu cerca de 60 milhões de dólares para a UNICEF em 25 anos.

Quando chegamos fui conhecer o extenso complexo. Esse novo budismo japonês tira sua inspiração do Ocidente, isso ficou bem claro para mim. O "templo" agora é chamado de "igreja". A igreja tem um órgão gigantesco. O nome de Buda em sânscrito está escrito no alto, em coloridos vitrais. Meus anfitriões explicaram que a inspiração arquitetônica do fundador se baseava nas igrejas católicas do Brasil.

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Então falamos de um programa chamado hoza que trata diretamente de problemas sociais domésticos debilitantes que hoje recaem sobre o povo japonês — problemas como divórcio, suicídio, vício em drogas e depressão, que são tabus em conversas num país em que o caráter nacional praticamente enaltece a inexpressi-vidade emocional.

Liderado por um mediador que era funcionário do movimento Rissho Kosei-kai, um grupo de pessoas sentava-se em círculo e partilhava abertamente os dilemas pessoais, que em geral envolviam problemas familiares. Tomatsu-san e eu assistimos de fora do círculo e ouvimos mulheres com idades que variavam de 20 e poucos anos até 70 e muitos falarem sobre problemas no casamento, sobre o desrespeito dos filhos para com os mais velhos, sobre as dúvidas que tinham em relação à orientação e ao significado de suas vidas, e achei aquilo semelhante ao que os psicólogos ocidentais chamam de "terapia de grupo".

Tomatsu-san mais tarde disse que ficou atônito de ver "como eram comuns os problemas", mas também "emocionado com o alívio que as pessoas sentiam só de conversar e de serem consoladas". As pessoas por toda parte estão tão carentes de atenção e de consolo que a simples experiência de ter alguém que ouça o que elas dizem é um elixir para qualquer problema que tenham. O budismo socialmente relevante não precisa atacar os grandes problemas globais, o meio ambiente, a reforma prisional. A mesa da cozinha pode ser uma zona de guerra também.

Na nossa última parada, minha última entrevista antes de viajar para o leste, para a Califórnia, encontramos um padre budista que eu tinha visto numa passeata de protesto alguns dias antes na frente do prédio do parlamento nacional japonês. Centenas de manifestantes se reuniram para protestar contra o envolvimento das Forças da Defesa japonesas na guerra do Iraque, exigindo a libertação dos reféns japoneses lá. No saguão do prédio as pessoas se amontoavam para ouvir os discursos de políticos. Havia câme-ras por toda parte. Outros grupos com seus próprios programas lutavam para obter exposição na mídia. Em meio a esse caos, discretamente posicionado na calçada na frente do prédio, Takeda Takao liderava alguns sacerdotes empunhando cometas, tambores

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e bandeiras. A presença deles emprestava certa calma ao cenário tão carregado de energia.



Tomatsu-san também tinha ouvido falar de Takeda e queria conhecê-lo. Em sua sala de trabalho muito modesta e que também servia de quarto de dormir e sala de jantar, Takeda nos contou que fazia parte da Nipponzan Myohoji, uma organização budista internacional fundada no início do século XX. Os monges e monjas dessa seita organizam longas caminhadas, cantando e batendo seus tambores em apelo à paz por todo o mundo, uma tática inspirada em Mahatma Gandhi. Uma vez por ano Takeda lidera uma vigília memorial e pela paz por quase mil e trezentos quilômetros e três meses de Tóquio até Hiroshima homenageando as vidas perdidas lá nos bombardeios atômicos de 1945.

Perguntei como tinha se tornado um radical.

- Não sou radical - ele interrompeu. - Isto é lógico e prático. Atos de violência perdem sempre. Os canais burocráticos são um labirinto infindável. O protesto pacífico é o único modo de mudar alguma coisa. A raiva gera mais raiva no mundo. Pessoas pacíficas criam um planeta pacífico.

Os protestos de meados dos anos 1970 contra a construção do Aeroporto Internacional de Narita, a 64 quilômetros de Tóquio, fez Takeda chegar a essa conclusão. Ele tinha participado de manifestações defendendo os direitos dos horticultores de manterem as terras que o governo havia tomado. Em 1978 o aeroporto abriu mesmo assim, custando vidas humanas e terras produtivas. Num campo ao lado das cercas da pista de decolagem, a ordem Nipponzan Myohoji erigiu um pagode da paz que continua de pé, Takeda me disse.

Duas horas depois quando meu avião decolava do aeroporto Narita, espiei pela janela bem na hora e pude avistar exatamente aquele pagode minúsculo e branco da paz. Ele se destacava, contrastando vivamente com o vasto plano cinza do subúrbio e das áreas industriais, um luminoso memorial à mensagem eterna do Buda. Tomatsu-san não precisava se preocupar, pensei. Contrariando essa previsão dele, o budismo não está morrendo no Japão. Está apenas passando por dores do crescimento há muito adiadas.

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