£%h
O meu caminho é o caminho de parar, o caminho de aproveitar o momento presente. Eum caminho em que cada passo me leva de volta
ao meu verdadeiro lar. E um caminho que leva a lugar nenhum.
Estou a caminho de casa. Chego a cada passo.
- Thich Nhat Hanh, "I Have Arrived, I Am Home"
Agarrar-se à raiva é como segurar um carvão em brasa com a intenção de jogá-lo em alguém; é você que se queima.
- O BUDA
A grandeza consiste em usar uma compreensão poderosa para se iluminar e iluminar os outros.
- Volta ire
De Boulder fui dirigindo sem parar até a Costa Leste. Eu me sentia como um cavalo com o cheiro do estábulo nas narinas. Mal podia esperar para chegar em casa. Só que ainda oficialmente sem-teto, "casa" era apenas um conceito, aliás, um conceito bem vago. Ariana e Ryan iam se casar em Marthas Vineyard. Depois eu planejava me instalar na ilha e ficar sentado em posição de meditação, mas na frente de um laptop.
276
Sentado em "meditação ao volante", a 120 quilômetros por hora pelo cinturão das auto-estradas norte-americanas, tive bastante tempo para pensar. Mas o que mais fiz foi saborear a emoção kerouacquiana de estar na estrada, num elemento familiar, atrás do volante e zunindo por uma paisagem de verde exuberante que nos embala e leva ao transe.
Viajar é uma doença contagiante. Tem a própria síndrome de causa e efeito. O movimento gera movimento, a velocidade gera velocidade, a inquietação gera inquietação. Eu já estava em movimento há tanto tempo que parecia estar sendo levado pelo impulso, sem fazer nada. Estava nervoso com o início dessa jornada e ficando igualmente nervoso com a perspectiva de ela acabar. Não significava apenas que eu teria de escrever o artigo, significava também que o pó mágico ia acabar, que eu ficaria soterrado em contas e problemas financeiros, problemas nas costas e problemas de relacionamento. Assim que a viagem terminasse eu me preocuparia em cair na mesma trilha antiga em que me encontrava antes de partir.
Daniel Goleman chama a atenção em Inteligência emocional para o fato de a palavra "emoção" derivar de movere, o verbo mover. É uma observação brilhante que interpreto de várias formas. Movimento implica mudança. Mudança, como os que estudam a síndrome hormonal da luta-ou-fuga podem dizer, provoca estresse. Movimento, portanto, provoca emoções. Emoções também "movem" você de um sentimento para outro. A sua reação a um acontecimento, a uma conversa, a alguma lembrança ou até a um perfume pode fazê-lo mudar - mover-se - de feliz para triste, de esperançoso para pessimista, de raiva para o riso, de alienação para amor. Como sabemos agora, as mudanças emocionais também acionam mudanças biológicas e químicas no nosso organismo. E então expressar a emoção causada pelo movimento - emocionar - é também mover esses sentimentos de dentro de nós para fora de nós.
O monge vietnamita Thich Nhat Hanh observou que quando ele vê uma pessoa que está sempre em movimento, alguém que tem dificuldade para assentar e criar raízes, sabe que essa pessoa
277
está sofrendo de síndrome do fantasma faminto. Não importa as desculpas que dei - as coisas iam melhorar se eu morasse em outro lugar, se eu tivesse um outro emprego, se eu tivesse uma namorada diferente, se eu tivesse uma vida diferente -, eu sabia que ele tinha razão. Sabia que a minha motivação para me mover era a insatisfação. Também sabia que parar ia significar encarar as minhas coisas, ficar de molho nas minhas mishigas. Eu só queria adiar o inevitável.
Meu alívio temporário do espelho da realidade chegou na forma do e-mail que eu esperava desde janeiro. Com ele eu soube que havia mais uma etapa da minha expedição que tinha de completar antes de poder dar descanso aos meus cansados corpo/ mente/espírito.
Esta não seria apenas mais uma entrevista. Seria a entrevista mais importante da vida de um jornalista, a jóia da coroa das entrevistas na minha inquisição mundial. Depois de muitos meses de espera, o Gabinete de Sua Santidade o 14? Dalai Lama tinha finalmente marcado uma data para uma entrevista de 45 minutos. A National Geographic havia prometido me mandar de avião para a índia para essa entrevista se eu a conseguisse. Depois de obter a confirmação, eu planejava acrescentar uma parada na França para entrevistar o reverendo Hanh em seu centro de retiro Plum Village no sul da França. Bem entendido de manipulação da mídia, o reverendo Hanh - ou Thây, que em vietnamita quer dizer "professor" — estabeleceu uma exigência para dar entrevistas: que o entrevistador faça pelo menos cinco dias de retiro. Jogada muito inteligente. Ele entendia que, ao participar, o jornalista teria uma experiência pessoal de meditação e poderia escrever melhor sobre o assunto. A meditação também deixaria o jornalista mais calmo e tranqüilo, e assim diminuiria aquela qualidade tão própria e antagônica que faz com que façamos as perguntas mais duras.
Para mim era uma moita de espinhos. Eu estava querendo — quase precisando, se é que pode existir uma carência boa - fazer um retiro para organizar minhas idéias, contrabalançar esse "enjôo de movimento" que eu tinha e para me preparar para a
278
longa meditação de escrever que eu ia começar. Também achei que podia me ajudar a ficar mais centrado para a Grande Entrevista com Sua Santidade.
O pessoal de Thây ficou entusiasmado quando soube que eu ia fazer o retiro e depois entrevistá-lo. Havia apenas um problema. Para cumprir o meu horário, eu teria de perder um retiro para israelenses e palestinos, que prometia ser bastante tenso e especialmente interessante para mim. Judeus israelenses e muçulmanos palestinos iam participar de grupos de debates, oficinas e, é claro, de conversas dharma e meditações sentadas e andando - todos lado a lado. Thây e sua sócia irmã Chân Không seriam os mediadores na meditação. Esses antigos antagonistas iam aprender a aplicar a consciência plena na situação mais difícil. Como fazer as pazes com o inimigo? A receita simples e elegante de Thây: primeiro faça as pazes consigo mesmo.
Em vez disso, eu ia me juntar ao retiro logo depois, com cerca de duzentos vietnamitas de todo canto do mundo, a maioria da Europa e alguns dos Estados Unidos. Por mais que seja um retiro de meditação, esse retiro de verão é uma comunhão cultural e reunião familiar para os emigrantes e expatriados vietnamitas. Muitos tinham deixado o Vietnã em meados dos anos 1970, depois que os comunistas tomaram o poder. Como os chineses e outros antes deles, essa próxima grande onda de emigrantes asiáticos para o Ocidente, levou junto a prática budista, as tradições e os templos. Agora seus filhos e netos, criados no Ocidente, eram híbridos culturais que falavam com os colegas em alemão ou francês, mas com as famílias em sua língua materna melodiosa e alegre. Apesar de morarem e trabalharem em Paris ou em Frankfurt, ou em qualquer outro lugar, e de terem amizade ou até se casarem com pessoas nascidas na Europa, em seus lares, as famílias vietnamitas muito unidas mantêm seu estilo de alimentação, sua língua e sua cultura. E enchem suas estantes de estátuas do Buda.
Sainte-Foy-la-Grande, que fica a 85 quilômetros a leste de Bor-deaux em uma das regiões mais férteis para plantação de uvas, é a
279
estação de trem onde saltamos para ir para Plum Village. Fica no sul da França, deslumbrante de tirar o fôlego, do jeito que mostram no Travei Channel. Campos de girassóis em floração máxima que formam paredões amarelos em torno de vinhedos quase maduros em vales após vales verdes. Eu esperava o tempo todo ver o fantasma de Van Gogh pintando num cavalete no meio de um canteiro. A caminho do centro de retiro, com o nariz grudado na janela da van, eu ria sozinho. Que desperdício aquele cenário maravilhoso, pensei, sabendo a maior parte do tempo que eu ia ficar sentado meditando numa sala, de olhos fechados.
Plum Village é um complexo de antigas casas de fazenda de madeira e pedra reformadas, com alguns salões novos para meditação. Os conjuntos, que eles chamam de povoados, se espalham em uma região de 5 a 10 quilômetros. As duas originais são Upper Hamlet, que fica em cerca de nove hectares na aldeia de Thénac; e Lower Hamlet, em 20 hectares, na cidadezinha de Loubes-Bernac. Agora, como a popularidade de Thây tem crescido muito, ha novos povoados em formação.
Quando mais tarde perguntei para Thây de que modo ele havia escolhido aquele lugar, ele disse misteriosamente:
— Nós não escolhemos, foi ele que nos escolheu.
Thich Nhat Hanh (o nome dele, que se pronuncia "Tic Not Ran", significa "um ato") fala assim. Poeta há muito tempo, ele gosta de brincar com as palavras. Havia pouca brincadeira no Vietnã da juventude dele. Nascido em 1926 na parte central do país, foi ordenado monge aos 16 anos de idade. Na época o Vietnã, que já havia suportado o jogo impiedoso da China por mil anos, era um peão na partida de xadrez de três jogadores entre os franceses, que colonizaram o Vietnã em meados dos anos 1800; os japoneses, que ocuparam o país desde 1940; e os comunistas, que esperavam ter o poder em meio àquele caos. Enquanto isso os Estados Unidos estavam comprometidos até o pescoço na guerra do Vietnã.
Naquele mesmo ano Thây estava trabalhando muito para fazer com que a Igreja Unificada- Budista do Vietnã (UBCV) exigisse o fim da guerra. Já tinha estudado em Princeton e ensinado
280
na universidade de Colúmbia de 1961 até 1963. Em junho de 1963, Thây retornou ao Vietnã depois que um monge budista derramou gasolina sobre o próprio corpo, sentou na posição de lótus e se incendiou numa praça em Saigon para protestar contra a guerra. Os jornais de todo o mundo publicaram a imagem e a gravaram a fogo em nossas mentes.
Em 1965, Thây criou a Escola da Juventude para Serviços Sociais, uma espécie de Peace Corps para os pacifistas budistas, uma organização assistencial popular que reconstruía aldeias bombardeadas, montava escolas e centros médicos, realocava famílias desabrigadas e organizava cooperativas agrícolas. Ele também fundou a Ordem do Interser, a Ordem Tiep Hien. Tiep significa "ter contato com" e "continuamente". Hien significa "entender" e "fazer aqui e agora". É o jeito dele de expressar o conceito budista da interdependência. Ele sugere que aprendamos não só como "ser", mas também como "estar" com os outros.
Essas são as origens do movimento moderno do budismo socialmente engajado. Como escrevem Patricia Hunt-Perry e Lyn Fine num capítulo de Engaged Buddhism in the West (Budismo engajado no Ocidente): "Apesar da presença na história vietnamita de raízes mais antigas das práticas do budismo engajado, a abordagem de Thich Nhat Hanh e da UBC foi um desvio do budismo vietnamita tradicional monástico do século XX. Emergiu uma ação coletiva budista que tinha como alvo influenciar diretamente a política pública e estabelecer novas formas institucionais. Uma forma de ação coletiva era não cooperar com o governo, com greves, paralisação em massa, devolução de licenças do governo e boicotes de aulas por parte dos estudantes. Outra forma era o uso de veículos culturais como textos de ficção e de não ficção, e canções de protesto contra a guerra."
O ativismo não violento dele fazia lembrar Gandhi e Martin Luther King, Jr. Em 1966, aos 40 anos, Thây aceitou um convite para participar de um debate em Nova York, patrocinado pela Universidade de Cornell, que tratava da política norte-americana no Vietnã. Ele planejava ficar longe do Vietnã três semanas. Mas fichado pelo governo comunista como subversivo, foi exilado e
281
até o retorno ao Vietnã por três meses no inverno de 2004, ficou sem botar os pés em seu país por trinta anos. Planejar essa viagem e ir para lá foi um ato de engajamento, na minha opinião. Pois forçou as pessoas no poder a sentarem à mesa com ele e discutir o budismo. Em 1967, Martin Luther King, Jr. indicou Thây para o Prêmio Nobel da Paz.
Ele foi morar na França, já que tinha amigos lá e falava a língua. Em Paris continuou a trabalhar contra a guerra com a Delegação Budista pela Paz até o fim do conflito, em 1975. As terras de Plum Village foram compradas em 1982, e os retiros anuais começaram imediatamente. O programa de verão atrai milhares de pessoas agora. Ele já escreveu mais de 75 livros de prosa, poesia e orações; tem centros monásticos em Vermont e na periferia de San Diego, na Califórnia, e promove retiros por toda a América do Norte e Europa.
Apesar de ter feito quase vinte retiros nesses anos todos, não tinha participado de nenhum de Thich Nhat Hanh. Não era por isso que me sentia como um peixe fora d'água. Era por sentir que tinha pouca coisa em comum com o povo vietnamita. Nunca estive no Vietnã. Conhecia pouco, quase nada, da cultura deles, só gostava demais dos seus rolinhos primavera. E obviamente não falava a língua vietnamita. Apesar de ter protestado contra a guerra no Vietnã, de ter sido vítima do gás lacrimogêneo no Dupont Circle em Washington em 1969, de tê-los visto na televisão em toda a década de 1960 e início dos anos 70, com a expressão da língua internacional do sofrimento e do terror estampada nos rostos, nunca conheci de fato um vietnamita.
Mas bastaram alguns dias para esse povo conquistar meu coração com seu carinho e compaixão, com seu bom humor, curiosidade e inteligência, com sua amabilidade (depois de certa timidez inicial) e com seus deliciosos rolinhos primavera. E também em pouco tempo descobri que compartilhávamos de mais uma coisa.
Conhecendo o papel influente de Thây como ponta-de-lança do budismo social e politicamente relevante, fiquei surpreso de
282
ver que todos os discursos dele eram sobre relacionamentos. Sobre a comunicação aberta entre pais e filhos, sobre manter sempre o amor renovado entre marido e mulher, sobre a importância da não discriminação e da compreensão mútua no número crescente de relacionamentos de casais com histórias diferentes no campo religioso e cultural.
-Já não existem gurus de relacionamentos que bastem? - perguntei quando nos encontramos.
Eu pensava em todos os especialistas de programas da televisão norte-americana e em todos os escritores de best-sellers sobre relacionamentos.
- Não há questões mais importantes para serem discutidas?
- Como guerra, violência, morte, problemas econômicos, terrorismo? - perguntou ele retoricamente.
Thây falava com tanta suavidade e tão baixo que tive certeza que o meu gravador não ia captar direito a voz dele. Alto e magro, ele caminha delicadamente. Dá realmente para sentir a "paz em cada passo", como diz o título de um dos livros dele. Eu tinha visto crianças que o seguiam por lá como se ele fosse O Flautista de Hamelin. Imaginar aquele homem gentil como um ativista radical foi difícil para mim, mas o poder que ele emanava indicava que não arredaria pé em negociações duras.
- O conflito no Oriente Médio, a tensão entre grupos religiosos, isso tudo diz respeito aos relacionamentos. O Buda identificou a ignorância como a segunda verdade nobre. Criamos ignorância através da comunicação deficiente. A incompreensão começa no microcosmo, entre duas pessoas. Ela gera medo, e o medo gera a violência. Quando agimos com violência e raiva, criamos mais violência, e mais raiva. A maioria das pessoas que vem para cá sofre de problemas no relacionamento, na saúde e no trabalho. Mas se o seu relacionamento é bom, então você é feliz, sua saúde melhora e você terá mais sucesso em seus empreendimentos.
O segredo é se comunicar antes que a incompreensão ocorra, ele disse. Mas para os vietnamitas isso representa um problema.
- Eles não são como os ocidentais - explicou ele. - Não têm o hábito de partilhar o que sentem com muita facilidade. Só
283
quando a atmosfera é muito íntima e há muita confiança é que ousam se abrir, lentamente.
Eu mesmo tinha percebido isso dias antes da minha entrevista com ele. Depois de uma manhã de meditação, conversas sobre o dharma, de caminhadas meditando e algumas refeições, os grupos se reuniram à tarde embaixo das árvores que cercavam os refeitórios. Um monge apresentou uma idéia e pediu para as pessoas reagirem individualmente a ela. Observei que muitos apresentavam clichês previsíveis que não revelavam nada de pessoal sobre eles, sobre suas próprias experiências. Houve gente que se abriu mais, mas pude perceber que essa franqueza constrangia os outros presentes. Depois de alguns dias com a mesma Sangha, as pessoas começaram a lentamente revelar mais sobre si mesmas, ou também pode ser que eu já estivesse mais apto a ler a linguagem corporal delas e a interpretar o intérprete que sussurrava as traduções no meu ouvido. No meu grupo havia um casal com mais ou menos 65 anos de idade, Quang Trung Tran e a mulher dele, Thi Tram Nguyen, cuja filha e genro, logo descobri, também estavam no nosso círculo. O jovem casal, Kim Le Viet e Chau Nguyen, deviam ter 32 e 28 anos. Nascidos no Vietnã, eles tinham sido criados na Alemanha e pareciam mais europeus do que vietnamitas. Eu tinha conversado com Kim Le Viet, com o pai e o tio dele, homens bem-educados e simpáticos que também estavam no retiro.
No quarto dia a chuva forçou nosso grupo a se reunir no salão de reuniões. Era o mês de agosto e o ar estava abafado e úmido. A meditação diária costuma nos levar a uma consciência momento a momento, que em geral é uma coisa boa, mas às vezes essa consciência focaliza experiências dolorosas e coisas sobre nós mesmos que gostaríamos que continuassem imprecisas. Às vezes as pessoas ficam meio irritadas, para só depois ficarem alegres nos retiros.
Thi Tram dizia que os ensinamentos de Thây tinham ajudado seu marido a lidar com suas crises intermitentes de raiva, nos quais ele descontava nos entes queridos. Enquanto ela falava eu vi que secava lágrimas dos olhos, com o rosto e o torso bem rígidos. Nesse meio tempo o marido dela, Quang Trung, a duas cadeiras de distância, olhava fixo para os próprios sapatos, piscando muito e quase
284
tendo uma convulsão. Então ele explodiu e rosnou alguma coisa, repetindo as mesmas palavras várias vezes. Nesse ponto o tradutor teve muita dificuldade de acompanhar o que eles estavam dizendo.
- Conte-me mais tarde - disse eu.
Fiquei observando o drama da família se desenrolar como um filme mudo. Então ele abaixou a voz e contou uma longa história. A essa altura a mulher já estava com um lenço na mão, a filha também enxugava os olhos e Kim Le Viet olhava para os sapatos, com uma expressão pétrea e pálida. Logo depois da sessão fui falar com Kim Le Viet e perguntei se podia ter uma conversa com ele e com o sogro dele.
Encontramos um lugar para sentar. Quang Trung sentou na minha frente, um homem magro e discreto, com 60 e poucos anos. Kim Le Viet sentou entre nós dois.
Ele recontou a cena que eu acabara de ver. Quando a mulher dele contou para as pessoas que ele costumava ter ataques de raiva, ele disse para o grupo:
- Vocês querem saber por quê? Querem? Vocês querem saber por que eu fiquei com raiva?
E ele contou para eles, e agora para mim, que quando os comunistas tomaram o poder em 1975, "nós perdemos tudo".
Ele foi levado prisioneiro e torturado pelos norte-vietnamitas. Antes de tornar-se contador, havia servido como soldado no exército sul-vietnamita. Um major norte-americano, para quem Quang Trung tinha trabalhado, foi uma noite até a casa dele. Os vizinhos viram o major chegar e sair e devem ter relatado às autoridades que Quang Trung estava envolvido com a CIA dos Estados Unidos. Pelo menos é isso que ele pensa que aconteceu. Jogaram-no na prisão e fizeram coisas terríveis com ele um mês inteiro. Ele descreveu que foi pendurado de cabeça para baixo, com fios de cobre enrolados nos dedões dos pés.
- Não! - gritei, incrédulo.
Quang Trung disse que os dedos dele ficaram completamente pretos. Fiquei surpreso de não terem caído.
Perguntavam para ele sem parar, inúmeras vezes, sobre seu envolvimento com a CIA, que ele continuamente negava, e por
285
isso eles batiam e o castigavam mais ainda. Ele se ofereceu para me mostrar as cicatrizes e descalçou a sandália. Eu não queria ver, mas olhei. Lá estava a marca onde uma bala atravessou a perna dele. E outra tinha ficado alojada nele. O dedo ainda doía, ele disse. Quando faz frio, suas costelas ainda doem do espancamento. Ele passou outros 44 meses em campos de prisioneiros, maltratado e sendo espancado de tempos em tempos.
- Desde essa época que eu fiquei com raiva - disse ele.
E nem precisava explicar mais nada. Isso me transportou direto para Auschwitz. O que eu não conseguia entender era por que não estava mais furioso. Sabia que eu estaria.
- Como fez para superar? - perguntei.
Queria que ele dissesse que guardava uma pequena estátua de Buda trancada em algum lugar e que meditava discretamente de madrugada.
Não, era a família.
- Às vezes tinha vontade de me matar - disse ele. - Depois pensava na minha mulher e nos meus filhos. Eles precisavam de mim.
Anos depois, morando na Alemanha, ele foi apresentado aos escritos de Thây por Kim Le Viet. Kim Le Viet deu um sorriso modesto quando traduziu isso. E sim, a prática budista ajudou-o a lidar com a raiva.
- Eu odiava os comunistas — disse ele.
Compreendi que ele estava repetindo a palavra vietnamita que queria dizer ódio.
- Odiava os meus torturadores. E agora posso perdoá-los pelo que fizeram comigo.
- Sério? - perguntei e fiz questão de garantir que a tradução fosse correta, talvez lembrando os meus encontros em Auschwitz. - Você é capaz de perdoar-lhes?
- Bem, não é que eu lhes perdôo - esclareceu ele. - Mas espero perdoar, quero perdoar.
- Mas isso é possível?
- Eu simplesmente vou me esforçar muito.
Mesmo isso parecia uma perspectiva iluminada, levando em consideração o que ele havia sofrido. Conheço norte-americanos
286
que escrupulosamente evitaram o recrutamento e marcharam em Washington, e apesar de nunca terem sido torturados, ainda assim alimentavam séria hostilidade pelos vietcongues. Pedir para Quang Trung perdoar e esquecer estava além do que se podia esperar de qualquer pessoa. Ele confessou que era uma batalha, que ele chegava a chorar só de pensar pelo que tinha passado. Mas, acrescentou rindo, seus sonhos eram povoados com o rosto do Buda, não com os rostos dos seus torturadores. Ele considerava que isso já era um tipo de triunfo budista sobre a própria psique.
Antes ele havia feito uma pergunta para Thây que o rabino norte-americano Harold Kushner tinha tentado responder muitos anos antes em um livro: "Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?" Esse era o koan judeu, o dilema eterno de um povo que procura viver eticamente mas que tem sido sempre perseguido. "Por que nós?" "Por que eu?"
- Coisas ruins acontecem para todos nós — afirmou ele. — Isso é carma.
Por mais insatisfatória que fosse essa resposta, era menos frustrante do que a resposta que obtive quando fiz a mesma pergunta para o sacerdote zen norte-americano Eido Shimano. Ele respondeu com outra pergunta.
- O que é bom? O que é ruim?
Quando as mentes mais brilhantes do mundo não conseguem responder a uma pergunta, ou executam uma dança de sapateado em torno dela, concluí que a culpa não está na resposta, e sim na pergunta. Com relação a isso, fiquei mais feliz com a abordagem zen que foi "não sei". Há algumas coisas que não foram feitas para serem compreendidas. Algumas perguntas não têm respostas. Esse era um remédio muito amargo para um jornalista engolir. Procurei digerir com toda a força que tinha.
Essas idéias me levaram a uma conclusão. Entendi o que os vietnamitas e os judeus têm em comum. Nós sofremos. E temos esperança. Nós temos tristeza e temos amor duradouro.
Essas entrevistas desgastantes emocionalmente me deixaram especialmente aberto e receptivo. Depois, quando Thây terminou de
287
falar, aconteceu algo inesperado - uma coisa que atingiu em cheio o departamento de relacionamento pessoal. Antes de me levantar da minha almofada no chão, quando me torci para esticar as costas, pensando que eu estava muito orgulhoso porque a minha coluna não tinha ruído nem uma vez, examinei um mar de rostos: olhos escuros e misteriosos, cabelo grosso e preto, e peles lindas cor de caramelo. Meus olhos aterrissaram em uma mulher que irradiava serenidade, graça e beleza. Quase me entortei para olhar para ela de novo. Fui atraído imediatamente.
- Esquece - disse para mim mesmo. - Ela deve ser casada. Deve ter um namorado. Deve estar com os pais ou prestes a se tornar monja. Não deve falar inglês. De qualquer modo, isto é um retiro espiritual, não é lugar para romance.
No Ocidente chamamos isso de "romances vipassana'. Em retiros conduzidos em silêncio, em que as pessoas nem mesmo podem fazer contato visual com os outros, é bem fácil se apaixonar pela imagem que projetamos da pessoa, baseados simplesmente no jeito que essa pessoa anda, sorri ou lava seu prato na sua frente na fila. Atribuímos a essas pessoas que nunca vimos os ideais mais elevados. Romances vipassana nunca - e provavelmente não devem nunca mesmo - se concretizam em romances de verdade.
Tirei aquela mulher da cabeça, peguei meu gravador e fones de ouvido e me levantei. Quando me virei, lá estava ela, a um metro e pouco de mim, sem me notar. Procurei alguma coisa para dizer e fiz algum comentário idiota sobre o tempo. Ela respondeu com um sorriso incandescente e, com um inglês meio titubeante, ficou conversando comigo uns dez minutos. O nome dela era Anh Thuy Nguyen. Tinha nascido em Saigon, mas aos 12 anos foi morar em Paris com a família e ficou lá os 25 anos seguintes. A família dela conheceu o reverendo Hanh no Vietnã. A primeira vez que ela foi para Plum Village, era adolescente. Uma prima tinha sido ordenada na comunidade monástica de Thây e sua melhor amiga abandonou a prática da cardiologia para também vestir o manto de monja lá. Uns três anos atrás, por motivos que ela prometeu explicar outra hora, começou a visitar novamente a Plum Village. E de repente ela escreveu seus endereços de e-mail e de casa no meu bloco de anotações. Fiquei pasmo com essa obje-
288
tividade toda. Hipnotizado, inventei alguma desculpa para entrevistá-la para a minha história e perguntei se podíamos nos encontrar no dia seguinte para essa conversa.
Naquele mesmo dia nos encontramos mais duas vezes — levando nossos pratos ao mesmo tempo e entrando lado a lado na sala de meditação. No terceiro encontro, ela disse:
- Essa é a terceira vez.
A expressão não era de prazer nem de decepção, era mais de uma simples observação dos fenômenos crescentes. Ela estava apenas observando, como os radicais vipassana diriam. "Hum, isso é interessante", ela parecia estar pensando — ou pelo menos foi o que imaginei. Seria destino? Sim, destino, carma, coincidência, ou seja lá o nome que se queira dar aos encontros coincidentes e cuidadosamente orquestrados que nós tivemos.
Subitamente o ponto focai do meu retiro mudou. A minha "consciência" passou a girar em torno dela. Sem falar ou manter contato visual com ela, mesmo assim eu a seguia. Procurava saber onde ela estava o tempo todo, e quando não sabia, ficava meio tonto. Quando a vi manejando sua câmera digital, virei um adolescente feliz num acampamento, imaginando se por acaso ela estaria me filmando discretamente. Uma vez Thây promoveu uma meditação caminhando em torno de um lago de lótus e por pomares de ameixeiras. Fiquei olhando para trás e em volta à procura dela. Então a vi logo atrás de mim, de mãos dadas com uma amiga, e fiquei muito alvoroçado.
Eu estava entregue. Mas não era nada, só ilusão, apenas um desejo projetado. Não tinha idéia do que ela sentia ou pensava a meu respeito, se é que sentia ou pensava qualquer coisa a meu respeito. E pensei: "Você não chegou a lugar nenhum, Perry. Depois de dez semanas seguindo os passos do Buda, bastou ver um rosti-nho bonito para endoidecer pelo caminho do desejo e da paixão." Eu tinha vagado pelo mundo à procura da verdade, do significado das coisas e da felicidade, mas assim que uma mulher bonita atravessou o meu caminho, desprezei a iluminação.
Consegui conversar com ela mais duas vezes. Eu me sentia muito bem com ela. Nós "fluíamos" bem, foi o que ela disse. Um dia antes de eu partir, sabendo que poderia ser a minha última
289
chance de demonstrar o interesse que tinha por ela, escrevi um bilhete piegas mas sincero, sugerindo que se ela também tivesse algum interesse, se não fosse casada, se não tivesse um namorado, se não estivesse planejando assumir os votos de monja em algum momento no futuro próximo, que talvez pudéssemos combinar de nos encontrar de novo. Deixei um número de telefone em Paris onde ela poderia me encontrar antes de eu viajar para a índia e para a minha entrevista com o Dalaí Lama. E o tempo todo eu pensava: "Isso é mau, Perry, mau. E isso que você planeja fazer com o seu pó mágico de Buda, paquerar mulheres bonitas?"
Mas se... se... se... A possibilidade de um amor construído sobre bases budistas e os ensinamentos de Thây, que começou auspiciosamente num retiro em Plum Village, parecia mais do que um pó mágico de Buda. Parecia uma idéia muito boa. E mesmo que não fosse mais nada, era algo por que lutar.
Levei o bilhete para o nosso último encontro, junto com um presentinho, uma tartaruga de jade, que representa longevidade nas culturas asiáticas. Planejava oferecer as duas coisas para ela só se ela desse algum sinal. ("Dê-me um sinal, querido Buda, dê-me um sinal." Esse foi o meu mantra na noite anterior.) Então fiquei agradavelmente surpreso quando antes de poder dizer qualquer coisa, ela disse:
- Perry - rolando o R duplo com um sotaque francês que provocou arrepios atrás das minhas orelhas. - Tenho uma coisa para você.
Ela pegou um frasco minúsculo de óleo vietnamita com perfume de Vic Vaporub, só que mais forte.
- Isso é bom para viagens e dores de cabeça e qualquer outro mal-estar. É só esfregar na testa e embaixo do nariz.
Esse era o meu sinal. Entreguei meu bilhete e o presente. Ela deu um sorriso tão largo que eu soube que alguma coisa era possível.
Quando cheguei ao Four Seasons George V em Paris dois dias depois, tinha um recado dela à minha espera. Ela estava interessada sim. Nos falamos duas vezes antes de eu viajar. Eu ia encontrá-la em Paris na volta para os Estados Unidos. Quase não precisei embarcar num avião para a índia, de tão alto que flutuava.
290
Dostları ilə paylaş: |