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catalisador do budismo socialmente engajado... para ajudar os seres humanos a se libertarem do sofrimento que se manifesta nos indivíduos, nos relacionamentos, nas instituições e nos sistemas sociais", conforme explica a literatura do movimento. Os programas, publicações e os grupos praticantes do BPF se conectam a uma rede mundial de quatro mil membros e 45 capítulos.
Comparado ao BPF, ou à organização Sarvodaya, o INEB é extremamente descentralizado. Sivaraksa disse que manteve conscientemente reduzido o lado administrativo.
- Como sabe, eu critico tudo - ele começou a explicar. -Tenho grande respeito por Goenka. Vipassana é maravilhosa. Mas para mim o uso de gravadores para fazer discursos do Dhamma... bem, preciso de um professor em pessoa. Ele tem de sentir que precisa mudar com o tempo, ou então devia ter mais professores.
"O mesmo acontece com Ariyaratne. Ele faz sucesso numa base quantitativa, não qualitativa. Atinge muitas aldeias, mas também tem de assumir compromissos com o governo às vezes. Ele não desafia os monges que dizem que deviam atacar os tâmeis, por exemplo. Silencia quanto a isso. E claro que organiza marchas pela paz e todos os bons serviços sociais. Mas para mim, para ser realmente engajado, devemos sempre dizer a verdade.
"E Thich Nhat Hanh, que é meu amigo há trinta anos, agora quer uma Sangha maior. Ele tem sua Plum Village na França e seus centros em Vermont e na Califórnia agora. Mas possuindo tudo isso ele não pode mais criticar governo nenhum se quiser manter o funcionamento do seu movimento."
Ele estava embalado na crítica, apesar de poder considerá-la crítica construtiva ou desafiadora, mas eu queria desviar o assunto.
- E a que atribui esse crescimento do movimento budista no Ocidente? - perguntei.
- O Ocidente leva uma vida materialista... mas descobriu que o materialismo não é a resposta - disse ele. - E o conhecimento científico não é a resposta. Remete à filosofia cartesíana.
Ele estava se referindo ao "Cogito ergo sum" de Descartes... eu penso, logo existo. Mas de certa forma, não era isso que Buda também tinha dito? Em O Dhammapada, ele diz: "Nós somos o
que pensamos. Tudo que somos advém dos nossos pensamentos. Com os nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo."
Mas deixei Sivaraksa continuar sem fazer qualquer comentário.
— As pessoas pensam demais; o individualismo virou um exagero. Esquecemos de procurar algo espiritual.
Esse exagero respondeu à pergunta que eu não tinha feito. Como o Buda também poderia ter dito, ao escolher o caminho do meio a pessoa não chegaria ao extremo que acabou resultando na proliferação de tanto envolvimento pessoal no Ocidente.
— Mas por que budismo? Por que não outras religiões? - perguntei.
— Para mim - disse Sivaraksa, enfatizando o "mim" - o taoís-mo não se preocupa o bastante com a sociedade. O hinduísmo... bem, não estou em posição para citar já que é uma firma rival. -Ele deu uma risadinha. - Mas no hinduísmo é preciso ter fé. No budismo podemos ficar muito bem sem fé. E isso que mais atrai as pessoas que apesar de terem sido criadas para a fé, continuam não vendo nenhum benefício nisso.
— E quanto ao budismo tai? — perguntei.
— E triste - disse ele. - Fomos afastados das nossas tradições budistas. O meu mestre, Buddhadasa Bhikkhu, disse: "Nós seguimos demais o Ocidente; Sulak, se você quer fazer alguma coisa, plante o budismo corretamente no Ocidente e depois os tailande-ses irão atrás."
No dia seguinte vi um exemplo que provava que ele e seu mestre tinham razão. Eu já tinha estado em Boulder, Colorado, onde fica a Universidade Naropa, única faculdade budista de quatro anos reconhecida nos Estados Unidos, onde um dos membros do corpo docente tinha me dito que um grupo de acadêmicos tai-landeses havia ido para observar de que modo aquela instituição de ensino superior norte-americana integrava a meditação ao seu currículo. Lembro que achei estranho. Nós viajamos até o outro lado do mundo para trazer um pouco de sabedoria do Oriente e eles vêm para cá pela mesma sabedoria que poderiam obter com muito mais facilidade em casa, e menos diluída. Agora que eu já tinha aprendido alguma coisa sobre o budismo na Tailândia, pare-
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cia ainda mais estranho que o budismo não fizesse parte naturalmente do sistema educacional deles. É praticamente a religião nacional, mas ao mesmo tempo a separam. Eu vi as áreas delimitadas por cordas para monges nos aeroportos. As 227 restrições que precisam observar por definição faz com que eles e, portanto, qualquer "praticante sério" sejam segregados do resto da sociedade.
Estou agora sentado num salão recém-reformado na Universidade Suan Sunandha Rajabhat com cerca de oito acadêmicos dessa instituição, da Universidade Budista Mahachula e da Universidade Budista Mahamongkut, todas em Bangcoc. Representantes de cada uma delas tinham visitado Naropa por três semanas para estudar sua "educação contemplativa", como chamam.
Entrevistas coletivas costumam não dar certo, já que algumas pessoas sempre acabam dominando a conversa. Muitas vezes essas pessoas são apenas as mais barulhentas ou as que têm mais autoridade no local. Também é difícil conseguir que alguém reflita num nível bem mais pessoal diante dos colegas. Na Ásia há também o problema do gênero, que significa que as mulheres tendem a se submeter aos homens, mesmo quando ocupam postos mais importantes, e muitas são mais sábias do que seus companheiros do sexo masculino. Eu havia dito veementemente para Prasong que queria um encontro com apenas duas ou três pessoas de uma vez, mas isso não é fácil na Ásia. Os asiáticos estão acostumados a andar em grupos maiores. Além disso existe a questão da honra e do respeito. Os que não fossem convidados iam ficar ofendidos.
Por isso procurei me adaptar. Os tailandeses falam bem baixinho, estilo que eu pensava ser característico apenas de Prasong. Todos estavam bastante dispostos a explicar o budismo para mim, a começar pelo dia em que o Buda nasceu. Mas era muito difícil ouvir o que diziam. Por isso dei meu gravador para eles quando cada um falava - só que quando seguravam o aparelho, ficavam intimidados. O fato de compreender as diferenças culturais e de gênero não tinham me deixado mais compassivo. Prasong e eu trocamos nossos "olhares". Então, depois do almoço suntuoso e extravagante que tinham preparado em minha homenagem - disseram algumas vezes que era a primeira refeição servida naquele
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novo salão, e cada vez que repetiam isso eu me sentia mais culpado com a impaciência que tinha certeza haver telegrafado para todos eles -, agarrei um membro da faculdade que pensei ser o melhor para uma entrevista solo. Ele concordou, mas só se o patrão dele, o presidente da universidade, pudesse participar também.
Fiz a entrevista com Chaiwat Tantarangsee, professor assistente e diretor do departamento de treinamento e de serviços sociais da Suan Sunandha Rajabhat e com o presidente da universidade, o dr. Dilok Boonruengrod.
Perguntei por que tinham ido a Naropa.
- Sabemos que os norte-americanos são muito poderosos em termos de tecnologia e tudo o mais - disse o dr. Tantarangsee -, mas por que eles passaram a se interessar por algo tão simples e fácil?
Ele disse mesmo que meditação era "simples e fácil"?
- Na Tailândia ensinamos religião como matéria separada -continuou ele -, mas quando soubemos que Naropa integra esse ensino em tudo, achamos estranho. Eles convidam os monges tibetanos rinpoches para dar aulas. Os alunos entoam cânticos. E fazem meditação antes das aulas. Além disso, em Boulder eles têm educação budista como lojas de conveniência, em shoppings e centros comerciais. Na América do Norte o acesso é mais fácil.
Eu queria explicar para ele que Boulder é uma exceção, uma pequena Lhasa nas Rochosas do Colorado. Mas também é verdade que quase em qualquer lugar dos Estados Unidos hoje se pode ter aulas de meditação budista em cima de uma lanchonete 7-Eleven, ou participar de uma oficina de mandala ao lado de uma loja Best Guy.
Depois de observar a abordagem em Naropa, o dr. Tantarangsee voltou para casa muito entusiasmado com as possibilidades. Por isso ele fez uma experiência como parte de um exercício de aquecimento com uma das turmas para as quais dava aulas.
- Eu expliquei: "Hoje nós vamos fazer uma coisa que vocês nunca fizeram numa universidade antes..." "O que é?", todos quiseram saber. E eu continuei, levando-os a pensar comigo, como bom professor: "Nós podemos fazer qualquer coisa que realmente
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queremos, mas temos muita dificuldade de prestar atenção na nossa respiração. Vamos tentar respirar..."
A primeira vez que ele sugeriu isso numa turma de redação, os alunos olharam para ele como se estivesse brincando. Ele teve o cuidado de não dar o nome budista do exercício, que é anapana sati, "mas as pessoas já adivinhavam o que eu ia fazer", ele lembrou.
- Eu disse para os alunos que aquilo não era só para os monges. Eles tentaram, talvez só para me agradar. O resultado é que vejo mais paz mental e a capacidade de concentração deles melhora, aprendem mais. Até eu! Penso nos alunos mais como indivíduos, como seres humanos, e não me zango com eles. Isso me ajuda a ter paciência.
Ele quase repetiu o que o guarda da prisão de Tihar em Nova Deli tinha dito.
O presidente Boonruengrod, por sua vez, ecoou os comentários de Sivaraksa.
- Consideramos a América do Norte como modelo. Então por que não considerá-la quanto ao budismo? Nossos estudantes seguem as modas norte-americanas bem de perto, por isso essa era a nossa estratégia, dizer para eles: "Esse é o jeito norte-americano."
O chamado jeito norte-americano em Naropa eles tinham pegado emprestado do Oriente. Agora os tailandeses o estavam pegando de volta. O presidente Boonruengrod disse que tinha iniciado sessões de tempestades cerebrais na faculdade com meditações breves, e com uma recepção favorável, acrescentou, com um tom de voz espantado. E o dr. Tantarangsee agora determina que seus alunos escrevam ensaios seguindo quatro perguntas que ele achou que eram coerentes com um ponto de vista budista. Eu tive de rir por dentro quando ele recitou as perguntas.
Quem é você?
De onde você veio?
O que você está fazendo?
Para onde você vai?
Para mim mesmo lancei uma quinta pergunta: será que há um eco aqui?
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Eu tinha mais uma parada antes de seguir para o norte da Tailândia. Era Wat Bang Phra, mais conhecido como o templo da Tatuagem, na cidade de Nakorn Chaisrí, a cerca de uma hora de carro para oeste de Bangcoc.
No local havia um conjunto de templos. Em um deles cerca de 15 homens jovens, que pareciam ter entre 17 e 30 anos, se amontoavam numa varanda, de cócoras e sentados nos degraus. Aquele grupo de caras durões, Prasong explicou, vive à margem da sociedade tailandesa - são traficantes de drogas, pequenos criminosos, cafetões. Eles esperavam sua vez, os olhos vazios de tanto medo, observando um monge encarapitado numa plataforma de metro e meio de altura trabalhando em um homem na ponta da varanda. Com um cigarro pendurado no canto da boca, o monge mergulhava o que parecia uma agulha rombuda de uns trinta centímetros num pote com tinta muito escura e recomeçava a espetar sua tela: a pele das costas do cliente. Dei a volta para ver melhor e fiquei atrás do monge. Um fiozinho de sangue escorria da região furada e avermelhada.
O desenho que o monge estava gravando parecia ter letras de algum tipo. Depois me disseram que eram palavras das escrituras budistas. Outras imagens naquele homem e nos outros - soube que eram todos homens porque monges não encostam em mulheres - incluíam tigres, cabeças de dragão, vários deuses hindus como Hanuman, o deus macaco, Ganesh, o deus elefante, o fáli-co linga do deus destruidor Shiva, assim como hieróglifos, números especiais, letras e outros desenhos indecifráveis. Alguns daqueles homens eram cobertos de tinta preta do pescoço até a cintura.
Essa prática remonta às raízes históricas da região de animis-mo, quando imbuíam os animais com aspectos da natureza humana e com capacidades psíquicas sobre-humanas, e o contrário também: imbuíam os seres humanos com algo da ferocidade dos animais e outros traços. Dizem que os khmers que colonizaram aquela região usavam as tatuagens desde o século I d.C. Documentos históricos mostram que Rama I, rei da Tailândia, usava tatuagens como marcas de identificação para os homens
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Eu tinha mais uma parada antes de seguir para o norte da Tailândia. Era Wat Bang Phra, mais conhecido como o templo da Tatuagem, na cidade de Nakorn Chaisri, a cerca de uma hora de carro para oeste de Bangcoc.
No local havia um conjunto de templos. Em um deles cerca de 15 homens jovens, que pareciam ter entre 17 e 30 anos, se amontoavam numa varanda, de cócoras e sentados nos degraus. Aquele grupo de caras durões, Prasong explicou, vive à margem da sociedade tailandesa - são traficantes de drogas, pequenos criminosos, cafetões. Eles esperavam sua vez, os olhos vazios de tanto medo, observando um monge encarapitado numa plataforma de metro e meio de altura trabalhando em um homem na ponta da varanda. Com um cigarro pendurado no canto da boca, o monge mergulhava o que parecia uma agulha rombuda de uns trinta centímetros num pote com tinta muito escura e recomeçava a espetar sua tela: a pele das costas do cliente. Dei a volta para ver melhor e fiquei atrás do monge. Um fiozinho de sangue escorria da região furada e avermelhada.
O desenho que o monge estava gravando parecia ter letras de algum tipo. Depois me disseram que eram palavras das escrituras budistas. Outras imagens naquele homem e nos outros - soube que eram todos homens porque monges não encostam em mulheres - incluíam tigres, cabeças de dragão, vários deuses hindus como Hanuman, o deus macaco, Ganesh, o deus elefante, o fáli-co linga do deus destruidor Shiva, assim como hieróglifos, números especiais, letras e outros desenhos indecifráveis. Alguns daqueles homens eram cobertos de tinta preta do pescoço até a cintura.
Essa prática remonta às raízes históricas da região de animis-mo, quando imbuíam os animais com aspectos da natureza humana e com capacidades psíquicas sobre-humanas, e o contrário também: imbuíam os seres humanos com algo da ferocidade dos animais e outros traços. Dizem que os khmers que colonizaram aquela região usavam as tatuagens desde o século I d.C. Documentos históricos mostram que Rama I, rei da Tailândia, usava tatuagens como marcas de identificação para os homens
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livres. O poema épico tailandês Khun Chang Khun Paen refere-se a soldados que usavam tatuagens como proteção para enfrentar as batalhas. No festival anual de Nakorn Pathom, os tatuados entram em transe, se contorcem e tremem, seus corpos e espíritos são tomados pelo animal ou pelos outros poderes que as tatuagens representam. Agora esse evento anual se transformou num grande atrativo turístico, coisa que não agrada a Sulak Sivaraksa. Ele foi citado exigindo reformas ao Conselho Sangha, o corpo governamental nacional dos monges, que ele disse que jamais devia ter permitido que a situação chegasse a esse ponto.
- O budismo transformou-se em uma forma apenas — declarou ele. - O budismo para os tailandeses hoje em dia tornou-se uma espécie de superstição.
Mas será que ele estava analisando de modo realista a história do budismo no próprio país?
Depois de passar a vez de um jovem, pedi para falar com ele. Meio desconfiado, ele concordou. Disse que vai lá todos os dias, na hora do almoço. Como pagamento para o monge ofereceu dois maços de cigarros, algumas flores e uma pequena doação para o templo - equivalente a mais ou menos dois dólares.
- Isso me dá poder, tenho certeza - disse ele, movendo os olhos muito rápido de um lado para outro, como se estivesse procurando alguém, ou procurando alguém que o estivesse procurando. - Eu sei que estarei protegido contra o perigo. Nenhum mal me atingirá. Sofrerei menos.
Dado o sofrimento que acabava de ver o rapaz suportar, achei que ele já tinha feito valer o seu dinheiro.
A criatividade com que o povo tailandês interpretou o budismo tem paralelo no mundo artístico tailandês. Uma comunidade artística contemporânea vibrante está inventando novas formas para expressar sua sensibilidade budista em uma variedade de veículos misturados. Os exemplos são infinitos. Um deles ocorre no teatro ao ar livre em Bangcoc da mundialmente conhecida diretora e coreógrafa Patravadi Mejudhon em que ela produzia uma peça de noventa minutos com nove atos, dança, música, drama, mora-
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lidade, entrelaçando as tradições de dança tailandesas com as japonesas, intensa percussão e música neoclássica com a filosofia budista. É um teatro altamente simbólico. O palco escuro, por exemplo, que reflete a batalha da humanidade para superar o desejo e o medo.
- O budismo não é apenas uma cerimônia - ela me disse quando nos encontramos para beber e conversar. - O budismo é liberdade... liberdade de pensamento. Mas usamos essa liberdade com disciplina.
Em Chiang Mai essa liberdade de expressão ficou descontrolada, como fui descobrir ao chegar a esse eixo do norte da Tailândia, lugar muito procurado. Prasong tinha escolhido três artistas que ele achou que podiam representar o espectro. O primeiro era um artista famoso chamado Kamin Lertchaiprasert, que fazia sucesso comercialmente e junto à crítica. Tinha 40 anos de idade e já trabalhou por todo o mundo. Seu estúdio num bairro residencial da cidade era a Grande Estação Central dos artistas modernos da Tailândia; uma espécie de mentor para a próxima geração, ele cede seu espaço para o trabalho deles. Estudioso de meditação vipassana — cujo mestre era Goenka -, tirou um ano de férias em 1990 para praticar meditação seriamente.
- Creio que o processo de criar arte nos dá capacidade para entender nossa natureza, assim como o processo de praticar o Dhamma budista - disse ele em meio ao caos de um pequeno quarto que reserva só para si.
Estávamos cercados por pequenos budas de papel mâché que eram a continuação de uma série que ele chamava de Sabedoria-Problema, que havia apresentado de 1993 a 1995. Mas aparentemente ele não conseguia parar. A Sabedoria-Problema em excursão era uma grande instalação que consistia em 366 esculturas feitas com papel mâché. Lertchaiprasert esculpia cada objeto como reação a um problema que afetava a sociedade tailandesa contemporânea. Todos os dias, durante um ano, ele selecionou um artigo em um jornal tailandês, formou uma polpa com o papel e esculpiu um pequeno objeto que respondia ao problema mencionado. No ano seguinte analisou de novo sistematicamente cada objeto e meditou sobre uma solução. A solução (ou sabedoria) era escrita
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então no objeto. Parecia uma utilização melhor do jornal de ontem do que servir de forro de gaiola de passarinho.
- Inerente a isso está a crença budista de que tudo na vida, bom e mau, certo e errado, existe em equilíbrio - disse ele.
Ativista altamente politizado que acredita que a tela é mais poderosa do que a espada, ele me deu um livreto intitulado Além da guerra e da paz, onde mistura fontes e tipos de letras e recursos gráficos com o espírito de um projeto de arte do ensino médio. Metade em inglês e metade em tailandês, promovia um projeto chamado Arte contra a guerra, que ele ajudou a fundar. E deu-me outro livreto que ele mesmo fez, com papel bonito e finíssimo. Uma imagem chamou a minha atenção; fez lembrar os desenhos que eu tinha visto nas telas de pele em Wat Bang Phra. Era um círculo que continha o que poderiam ser letras da escrita tailande-sa e uma imagem que para mim parecia ser o polegar e o indicador do Buda formando um círculo - a mudra que significa ensi-nando-o-Dhamma. Ao lado havia este texto:
Sentidos em alerta, receptores abertos, Umong Sippadhamma é um túnel no coração do Dhamma. Penetra no cerne da arte segundo os preceitos do Buda. Dê uma olhada no logotipo. A primeira vista parece uma tatuagem tribal. As linhas se entrelaçam como um mantra visual. Isso é "Kamin"? A tinta rodopia, forma espirais e gira seguindo leis próprias. E o caos encarnado. Dê outra olhada no logotipo de cabeça para baixo. Observe através de óculos com lentes cor-de-rosa. Uma mudança de três graus do ponto de vista revela ordem no centro do caos. O terceiro olho é o túnel. Os contornos curvilíneos são uma abstração das palavras Umong Sippadhamma.
Umong quer dizer túnel, Sippadhamma significa artes e dhamma. Portanto: túnel de arte que reflete o dhamma. Ou então, como explicou Kamin:
- Figurativamente dá a idéia de cavar em busca da verdade. Arte e dhamma são a mesma coisa. Em geral as artes são mal interpretadas como apenas coisas belas. Uma verdadeira obra de arte é dhamma porque trata de bondade, beleza e verdade.
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Isso era a arte psicodélica dos anos 60 encontrando a arte "budadélica" tailandesa.
Do sublime ao ridículo, Prasong então me levou para a Dhamma Park Gallery no Heritage Gardens, a invenção de uma rica escultora inglesa chamada Venetia Walkey e de um artesão da madeira chamado Inson Wongsam. "Parque de esculturas e centro contemporâneo de desenvolvimento espiritual e das artes", explicava a brochura, mas não englobava toda a visão da sra. Walkey, apesar de eu continuar sem ar com a visão dela depois de uma visita pessoal com ela... e sem ar de exaustão com a palestra dela. A "obra" da sra. Walkey - expressão bastante literal de suas interpretações dos ensinamentos budistas - era menos sofisticada do que outros trabalhos que eu havia visto. Por mais paciente que eu procurasse ser, acabei me aventurando a apressar o discurso dela, sugerindo que não precisava explicar tudo do budismo, nem mostrar todo o trabalho dela, nem explicar com tanta especificidade a associação entre a arte e os ensinamentos do dhamma. Mas a cada interrupção ela ficava mais obstinada. E eu tive de ficar até o fim. Dei "aquele olhar" para Prasong e dessa vez ele só deu de ombros atrás da sra. Walkey quando ela me pedia desculpas. Mas o que foi inspirador foi que de algum modo aquele lugar transmitia muita liberdade de auto-expressão e ela se emocionava tanto com o budismo que tinha abandonado o que devia ter sido uma vida bastante civilizada na Europa para ir viver naquele fim de mundo dos confins do mundo.
Mas foi no meio de um campo de arroz na periferia de Chiang Mai que minha imaginação bateu asas. Roongroj Piamyossak, que poderia ser descrito como o Cristo da Tailândia, tinha me levado para ver a instalação ambiental ao ar livre que ele chama de templo da Humanidade, um triângulo de paredes pretas de ferro. Por dentro ele tinha pintado cabeças de um metro e oitenta centímetros do Buda em tinta acrílica e outros materiais. Intercalados entre os rostos havia espelhos.
— O que isso quer dizer? — eu ficava perguntando enquanto os veículos zuniam na estrada ali perto. - Por que aqui? Por que um triângulo? Por que Buda? - Eu o irritei com as minhas perguntas.
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Roongroj é um homem de fala mansa que deve ter uns 40 anos, usa rabo-de-cavalo e um bigode fininho. Gostei dele imediatamente. Sua simplicidade era estimulante, uma novidade, se comparada aos últimos dois artistas que tinha conhecido. Ele disse que preferia que sua arte falasse por ele. Mas expliquei que desse modo aquela seria uma péssima entrevista, por isso ele se esforçou para responder.
- Só um homem rico pode construir um templo, mas todos deviam poder - disse ele enquanto entrávamos e dávamos voltas no triângulo. - O povo dessa região está muito ligado à terra.
"Esse campo é sagrado porque fica no meio de um triângulo formado por três templos budistas importantes", continuou Roongroj, apontando para uma montanha que podíamos ver dali. No topo ficava Wat Phrathat Doi Suthep, que quer dizer "Mosteiro Real dos Anjos Benéficos, que Contém uma Relíquia Sagrada do Buda". Quando era menino, costumava subir até lá com o pai, ele disse.
A instalação também pretendia ser uma declaração social e ambiental. Aquele campo onde estávamos tinha sido comprado dos agricultores por empreiteiras. Quando você estiver lendo isso, haverá um complexo de apartamentos que poucos nesta região -especialmente os agricultores excluídos que investiram seu suor e suas almas na terra - poderão pagar.
O espelho, ele explicou depois de muita insistência, sugere que "aqui, neste ambiente natural, podemos nos ver com maior clareza". O triângulo tem muitos significados. O Buda é muitas vezes simbolizado com um triângulo, que representa sua simetria perfeita de três pontos quando está sentado em posição de meditação. Além disso, ele disse, há um tema da morte: o buraco dentro do triângulo com paredes pretas é a morte. Eu interpretei que isso também significa a morte daquela terra como produtora de arroz e qualquer outro alimento que dá sustentação à vida.
- Por que tanto negativismo? - perguntei.
- Não é isso - disse Roongroj com firmeza. - Nascimento, doença, morte... tudo isso faz parte da vida para os budistas. Tudo é unicidade.
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"Por que budismo" suscitou uma longa história pessoal, por isso sentamos à sombra de uma das faces do triângulo. Resumindo, ele sofrerá dores físicas debilitantes que o levaram a uma depressão emocional, que por sua vez gerou aquelas perguntas fundamentais quem/por quê/o quê. Teve problemas sérios intestinais que pareciam colite, depois um problema nos tendões rota-dores do pulso, depois um ano de completa deficiência e impossibilidade de trabalhar na sua arte ou em qualquer outra coisa, e por fim o alcoolismo. E ainda por cima as perguntas...
- Começou com "por que eu?" - disse ele. - Com o tempo passou a ser apenas "por quê?". Ficar deitado de costas é como fazer meditação. Fiquei sem opção... os médicos não resolviam nada, as drogas e o álcool também não.
Roongroj Piamyossak, artista moderno, na base dos 290 degraus que levam ao Wat Phrathat Doi Suthep, 915 metros acima da cidade de Chiang Mai, na Tailândia. O templo abriga relíquias do Buda.
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Então ele se lembrou de quando acompanhou o pai aos templos budistas. Mas naquela época ele se curvava em respeito ao Buda automaticamente. Agora ia porque queria, aberto para tudo que poderia aprender com a experiência.
- Era a minha única alternativa, a última esperança.
E lá ele descobriu um processo, há muito esquecido ou, ele admite, que jamais considerou com tanta profundidade quando jovem e com o qual era capaz de aceitar sua dor física.
- Até para meu espanto mesmo - disse ele -, quando me rendi a isso, eu me libertei.
E eu me lembrei da minha experiência em Auschwitz, quando senti um alívio na minha revolta ao me render à inexplicabili-dade do Holocausto.
Agora a prática budista de Roongroj é, simplesmente, a consciência plena. Ele não elaborava o raciocínio ao longo das linhas com as quais eu tinha me acostumado: um longo monólogo sobre o Dhamma de Buda e a história da Tailândia. Ele apenas sorria e olhava para mim sem piscar. Mais do que qualquer outra pessoa que conheci na Tailândia, ele simplesmente incorporava o que quer que seja que todos nós estamos procurando.
- Pode me mostrar como funciona? - perguntei. Roongroj parou e ficou imóvel. As rodas do tempo giraram
mais devagar. Foram talvez três minutos de silêncio. O que eu devo fazer? Escutar? Sentir? Devo olhar para ele? Fechar os olhos? Admirar apaisagem?
E então ele quebrou o silêncio, compassivo.
- Ouço os pássaros, sinto o cheiro da terra, vejo os pensamentos na minha mente, estou aqui, com você. - O sol lentamente desapareceu atrás da montanha Doi Suthep. - Esta é a minha prática.
- Leve-me até lá - disse eu.
Ele olhou confuso para mim. Eu me dei conta de que o pedido era ambíguo. Pensei que o que tinha dito queria dizer "leve-me ao topo daquela montanha amanhã de manhã". Mas o que realmente quis dizer foi "leve-me a esse lugar agradável e tranqüilo onde você estava agora mesmo".
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Mas aquele lugar e aquele momento eram impermanentes. Eles passaram e minha persona sr. Jornalista retornou mais depressa do que o tempo que eu levaria para dizer "prazo final".
Impermanência podia ser uma palavra operacional quando se trata do meio ambiente da Tailândia. Bangcoc, como outras grandes cidades asiáticas, tornou-se um obstáculo urbano de congestionamentos de trânsito e ar poluído. Nas áreas rurais a destruição da cobertura verde do país provoca uma série de efeitos em cascata que preocupa pois atinge todos os níveis da escala alimentar. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a percentagem do território coberto por florestas caiu de 70 para cerca de 25, segundo o professor de economia da Universidade Chulalongkorn de Bangcoc, Pasuk Phongpaichit, em Tailândia: economia e política, que ele escreveu com Chris Baker.
Essa perda se deve à extração comercial de madeira, prática que o governo determinou ilegal, mas que continua, de acordo com as autoridades locais que entrevistei e que pediram para não serem identificadas. A extração de madeira para servir de combustível e o desmatamento com fins de desenvolvimento de áreas para agricultura pela população rural também são responsáveis.
O impacto ambiental é inestimável. Desde o assoreamento que mata os peixes e seca os leitos dos rios, à perda dos ninhais de pássaros e outros animais. Mas há também um impacto metafórico. Quando os budistas pensam em árvores, não pensam apenas em um organismo vivo que merece ser alimentado, mas também no próprio Buda. Eles associam todas as árvores com aquela árvore sob a qual ele sentou em Bodh Gaya. Centenas de anos depois da morte do Buda, as únicas representações visuais do homem eram objetos inanimados como uma árvore ou uma folha. Eles também associam florestas com o local para onde os pedintes ambulantes se retiraram em busca da solidão, proteção e alimento espiritual desde tempos imemoriais, escreve a historiadora do Sudeste da Ásia, Kamala Tiyavanich em O Buda na floresta. Na Tailândia existem "monges da cidade" e "monges da floresta", conforme ela observa em seu outro livro, Lembranças da floresta:
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monges ambulantes na Tailândia do século XX. Para os monges da floresta, essas árvores são as paredes e o teto dos seus templos.
A resposta dos budistas tailandeses à destruição do que consideram seus santuários sagrados tem sido a mobilização de um grupo que foi apelidado de "monges ecológicos", que lançaram um número de atividades e iniciativas para estimular a consciência da crise ambiental do seu país e para tentar revertê-la.
Para ver um exemplo muito tocante do tipo de atividade positiva na qual estão engajados, fui de carro com o fotógrafo Steve McCurry para o município do interior a cinco horas de Chiang Mai no meio da floresta de Santisuk no extremo nordeste da Tailândia, depois para a aldeia de Pong Kam. O responsável pelo templo do lugar, o venerável Somkid Jarayadhammo tinha nos convidado para assistir a uma cerimônia exclusiva.
Desde 1991 os monges têm feito cerimônias de ordenação de árvores como monges para protegê-las do corte. A idéia é que como praticamente toda a população nessas áreas rurais é budista, ninguém, nem mesmo aqueles tentados por algum dinheiro fácil oferecido pelos interesses do setor privado, tiraria a vida de um monge, nem mesmo de um falso monge.
Por isso os monges do lugar e membros da comunidade são procurados para oficiar essas ordenações na floresta.
Na noite antes do dia da cerimônia conversamos com o venerável Somkid, um monge com cerca de 40 anos que foi criado naquela região. Ele sentou na beirada da plataforma sobre a qual conduz os serviços para aquela pequena comunidade de cerca de mil pessoas. O templo era um prédio simples de concreto, com dois lados abertos.
- Quando eu era criança esse rio era caudaloso - disse ele, apontando para o leito agora seco do rio que corria ao lado do templo. - Havia bagres, vinte tipos de crustáceos e muitas enguias. Na floresta costumávamos ver cervos, macacos, ursos, java-lis... acabou tudo.
Ele estava combinando sabedoria budista com o que tinha aprendido no programa de administração ambiental que cursava na Universidade de Chiang Mai. Mas reconheceu que era uma
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batalha, tanto o movimento como o lado pessoal. Do lado positivo, apesar de ser difícil encontrar estatísticas, ele sentia uma consciência cada vez maior e um reflorestamento lento. Mas suas atividades estavam provocando desarmonia. Havia disputas e desentendimentos com os representantes das agências do governo na comunidade local. Não davam informações. Ele suspeitava que estavam mentindo. Havia tensão. Viver a vida de acordo com os princípios budistas não era fácil. Não fazer mal a uma pessoa pode significar o mal para outra pessoa. Às vezes quando alguém vence, outro pode perder. Mas o monge acrescentou que para o bem daquele povo e dos outros seres vivos dali, fazer nada não era uma opção.
Aquela noite, depois do jantar e de uma bela apresentação de jovens dançarinos e músicos populares, Steve e eu carregamos o equipamento de fotografia dele e nossas malas por uma trilha até nossas "acomodações". Pus essa palavra entre aspas porque mais cedo tinham nos mostrado onde íamos dormir: um prédio de concreto que parecia em obras ainda. Não havia nenhuma peça de mobília nos dois andares da casa. íamos dormir num pequeno quarto ao lado de outro bem maior no segundo andar. Fiquei olhando para o chão de cimento duro e nu, para a lâmpada que pendia do teto, para o banheiro nada sanitário no primeiro andar, para as janelas que não tinham cortinas ou venezianas... nem vidro. Dei um tapa no meu pescoço e matei um mosquito, sem nem me preocupar com as 10 mil outras vidas com quem agora estava em débito por causa daquele simples movimento reflexo. Nossas camas eram... nada. Disseram que umas esteiras de palha seriam providenciadas mais tarde, mas eu não tinha tanta certeza de que iam se materializar. E enquanto eu procurava ser grato pelas pequenas coisas, e até pela coisa grande, que eu continuava lá, ainda cumprindo a missão da minha vida, ainda fazendo as boas ações do Buda, com as costas ainda suportando tudo aquilo, aqueles antigos mantras inspirados no Eminem, de automotiva-ção, tinham se deteriorado e se transformado em uma cantilena incessante que quicava de um ouvido para outro dentro do meu cérebro cansado. Meu novo mantra: "Que porra de pesadelo!"
Agora, caminhando para esse dormitório, eu me arrastava atrás de Steve, o intrépido fotógrafo que me regalara com histórias
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em todas as cinco horas da nossa viagem de carro de Chiang Mai até Pong Kam, sobre suas aventuras pelo mundo, flanando nas florestas do Laos e do Camboja, quase sendo preso no Afeganistão quando procurava a menina que tornou famosa, das muitas vezes que pôs sua vida em perigo por uma boa foto. Esse tipo de coisa era a praia dele, eu imaginava. Ele estava em seu elemento. Por isso mantive a minha boca fechada, enquanto aquele mantra martelava meus ouvidos ruidosamente.
Então ouvi Steve resmungar com um sussurro de palco, bastante alto para que só eu ouvisse.
- Que porra de pesadelo - ele disse... ele disse isso!
E eu fiquei realmente nervoso. Se o Grande Steve McCurry chamava aquilo de "porra de pesadelo", era porque devia ser uma porra de um pesadelo, ainda pior do que eu tinha imaginado na minha humilde mente. E isso não me serviu de consolo algum. Mas me deu uma visão diferente do sr. McCurry. Talvez houvesse uma alma sensível e vulnerável à espreita por baixo daquele verniz de "fotojornalista veterano".
Aquela noite teria sido um pesadelo, se eu tivesse conseguido dormir e sonhar com alguma coisa. Mas como se pode ter pesadelos ficando acordado a noite inteira, estapeando mosquitos reais ou imaginários? Eram esses mosquitos mentais que levavam a melhor em noites como essa, em que ficamos entregues aos nossos próprios fluidos neuróticos. Será que eu encontraria um mediador na China? Como é que eu ia poder condensar essa expedição global em um artigo com cinco mil palavras? Será que eu seria justo com todas as pessoas que havia entrevistado, com o próprio Buda? Ou será que ia mais uma vez ser bem-sucedido em engabelar todo mundo, cegando a todos com uma exibição de palavras vistosas para distraí-los da conclusão de que eu havia dominado sem sucesso algum esse material? E se eu tivesse de levantar para mijar? Eca... aquele banheiro! Será que um dia encontraria um amor duradouro? Esqueça a felicidade. .. será que eu um dia ia parar de me martirizar tanto? E a manhã que não chegava nunca?
Se eu não estivesse tão dominado pelo pânico, teria ficado maravilhado com a minha capacidade mental de desenrolar uma série tão estonteante de falsas ilações. Uma ilha minúscula de
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consolo que surgia naquele oceano de obsessão pessoal provou até que ponto de desespero uma mente pode chegar em situações calamitosas. Eu me vi na noite seguinte de volta a Bangcoc, mais uma vez no Four Seasons, de novo naquela cama luxuosa, enrolado nos lençóis de quatrocentos fios de linho, no quarto tão frio por causa do ar-condicionado que eu teria de me cobrir com o cobertor macio... resumindo, de volta para onde era o meu lugar. Uma hora antes da que planejávamos acordar, finalmente, me sentei e me permiti descarregar minhas farpas emocionais naquele chão duro e úmido. Quando Steve se levantou (eu nunca perguntei como tinha dormido), reunimos o grupo e nos congregamos à beira de uma floresta a algumas centenas de metros dos fundos do templo. Adolescentes que participavam de um fim de semana de educação cultural patrocinada pelo monge responsável também foram convidados. Na clareira tinham posto um longo tapete oriental. Uma dúzia de monges, jovens e velhos, chegaram em fila e sentaram em fila no tapete. Uma estátua de Buda foi posta cuidadosamente ao lado do venerável Somkid. Amarraram uma fita em volta das árvores, depois em volta do Buda, e em volta dos pulsos dos monges e depois nas pessoas que assistiam - ficamos todos conectados uns com os outros. Prejudicar um é prejudicar a todos. Essa era uma demonstração gráfica do princípio budista da natureza inter-relacionada de todas as coisas. Somos todos interligados ininterruptamente em um organismo vivo.
Amarraram panos amarelos em algumas árvores. Os monges ficaram 45 minutos entoando cânticos na tradicional língua pali. Eu só conseguia entender o que já era familiar agora, a repetição dos Três Refúgios de Buda: "Eu me refugio no Buda, eu me refugio no Dhamma, eu me refugio na Sangha."
O nevoeiro que nos cobriu se dissipou a tempo para Steve tirar suas fotografias. Enquanto esperava por ele, um monge tímido se aproximou de mim e me entregou um livreto contendo versos de um texto budista. Estranhamente estava em inglês, uma raridade naquela região remota. Eu li:
"Para começar com as palavras do próprio Buda, encontramos isto nas Palavras Graduais: Aquele que tem compreensão e grande sabedoria não pensa em se prejudicar, nem prejudicar os
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"Monges ecológicos" no nordeste da Tailândia ordenam simbolicamente as árvores com faixas amarelas para protegê-las de serem cortadas pelos interesses ilegais de madeireiras.
outros, nem a qualquer um. Em vez disso, ele pensa no próprio bem-estar, no dos outros e no bem-estar do mundo inteiro. Desse modo demonstra compreensão e grande sabedoria. — Anguttara Nikaya, Fours, n? 18."
Anguttara Nikaya é parte de uma coleção de discursos chamada de Sutta Pitaka, atribuída ao Buda e a alguns poucos dos seus discípulos mais próximos, escrita em pali, contém os ensinamentos centrais do budismo theravada.
Embora apreciasse a idéia, essa literatura budista metida a intelectual costumava tornar meus olhos vidrados. Era o tipo de baboseira budista que eu lia na cama como remédio para a insônia lá nos Estados Unidos antes de partir nessa viagem. Mas agora, enfatizada pelo doce perfume das árvores, pela névoa úmida no rosto, pelos sons dos gorjeios dos passarinhos, a urgência da necessidade daquela comunidade, aquela "grande sabedoria", começava a penetrar no meu crânio duro.
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Sem levar em conta meu verdejante romantismo, meu crânio duro não me deixava derreter quixotescamente demais diante dos fatos. O melhor registro que posso fazer sobre o sucesso das cerimônias de ordenação das árvores é anedótico, como a sensação do venerável Somkid de que as florestas estão lentamente se recuperando. Estatísticas do Departamento de Reflorestamento da Tailândia se reportam apenas até 1995, e nó mundo bizantino da burocracia tailandesa, encontrar uma autoridade à qual possamos atribuir qualquer coisa era impossível. Mas essas ações servem a vários propósitos positivos, de acordo com Susan M. Darlington, antropóloga do Hampshire College em Massachusetts, que vem acompanhando o sucesso dos monges ecológicos desde o início dos anos 90. Na edição do ano 2000 do JournalofBuddhist Ethics {Diário da Ética Budista), ela escreve: "Primeiro, a ação chama atenção para a ameaça do desmatamento. Segundo, o ritual oferece uma oportunidade para os monges ecológicos e os leigos que trabalham com eles (predominantemente ambientalistas não governamentais e agentes de desenvolvimento) de explicar o impacto da destruição ambiental, e o valor e os meios de conservar a natureza. E finalizando, os monges usam o ritual para ensinar o Dhamma e para enfatizar sua relevância num mundo que se transforma rapidamente."
No seu trabalho "Rethinking Buddhism and Development: The Emergence of Environmentalist Monks in Thailand" ("Repensar o budismo e o desenvolvimento: a emergência dos monges ambientalistas na Tailândia"), Darlington acrescenta: "O impacto... talvez seja impossível avaliar, mas ninguém pode negar o potencial do ativismo deles em desafiar os budistas tailandeses a repensar sua religião, sua sociedade e o seu lugar, tanto no mundo político como no mundo da natureza."
Chamávamos tais atos de conscientização lá atrás nos anos 60 e 70 e, graveto por graveto, conseguimos depois de um tempo fazer a diferença: reverter as leis racistas, acabar com uma guerra, impulsionar a revolução sexual. O Buda disse: "Uma caneca se enche gota a gota." Eu esperava a mesma coisa daquele movimento popular, com o passar do tempo.
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PARA ONDE QUER QUE VÁ, É LÁ QUE VOCÊ ESTÁ... MESMO EM HONG KONG
to"*)
Os esforços e atos criativos e imaginativos de cada um de nós contam, e nada menos do que a saúde do mundo está em jogo. Poderíamos dizer que o mundo está literal e metaforicamente morrendo por nós como espécie para que recuperemos a razão, e a hora é agora.
- Jon Kabat-Zinn, Corning to Our Senses: Healing Ourselves and the World Through Mindfulness
Existe um orientalismo no pioneiro mais inquieto e o ponto mais distante do oeste é o mais distante do leste.
- HENRY David THOREAU, A Week on the Concord and Merrimack Rivers
O biólogo molecular Jon Kabat-Zinn, fundador da Clínica de Redução de Estresse na Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts em Worcester, havia sugerido que eu parasse em Hong Kong para conhecer uma psicóloga clínica chinesa chamada Helen Ma. Ela tinha ido da sua casa em Hong Kong para Worcester para fazer um curso intensivo de oito semanas ministrado por ele de Redução do Estresse pela Consciência Plena (MBSR). Ela então voltou para Hong Kong para introduzir o curso lá. Ele disse que ela era um bom exemplo de uma tendência que eu havia identificado.
Ao mesmo tempo que se assume em geral e com razão que as idéias do budismo chegaram ao Ocidente vindos do Oriente,
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pareceria quase contrário ao que intuímos, quase herético e certamente desrespeitoso para os antigos sábios asiáticos, sugerir que a mesma sabedoria, apesar de ter uma nova embalagem, estava sendo passada do Ocidente de volta para o Oriente. E, além disso, que em alguns casos esses ventos contrários lançando sementes em direção ao leste estariam fazendo renascer um jardim budista na Ásia que tinha praticamente murchado e secado. No entanto as minhas experiências e conversas corroboravam a minha idéia de que essa migração Ocidente-Oriente do budismo existiu — a faculdade tailandesa, que trouxe de volta a educação contemplativa de Boulder para Bangcoc; Shantum Seth, que teve de ir para a Califórnia para encontrar o budismo que estava embaixo do nariz dele na índia; e agora Helen Ma.
Superficialmente isso soa chauvinista na mesma hora: a presunção etnocêntrica dos ocidentais (e aqui me refiro principalmente aos norte-americanos) de pensar que eles têm alguma coisa a dizer para os asiáticos sobre uma prática que está na cultura deles há dois mil anos. Absurdo e ofensivo. Isso seria igual ao momento constrangedor em que o filho supera o pai, ou quando o discípulo se torna mestre do mestre. E se o Karatê Kid virasse para o sr. Miyagi e dissesse: "Não, é passa a graxa, mão esquerda; dá brilho, mão direita"?
Na verdade, se não fosse por alguns ocidentais nos séculos XVIII e XIX, a história budista poderia estar langorosamente escondida sob montes de terra e de mato, uma idéia cujo tempo tinha chegado e acabado.
Em seu excelente livro de 2002, The Buddha and the Sahibs, o historiador inglês Charles Allen descreve "orientalistas" do século XVIII como um termo que hoje está carregado de arrogância ocidental-cêntrica que se referia a europeus versados em línguas, literatura e especialmente arqueologia oriental.
"A terra que havia gerado o Buda histórico e a origem das mais antigas civilizações budistas tinha sido tão bem varrida que os primeiros orientalistas não podiam ver qualquer traço de budismo no solo indiano", ele escreve. Esses orientalistas "deram início à recuperação do passado perdido do sul da Ásia.
descoberta do budismo pelos europeus e a subseqüente ressurgência do budismo na Ásia meridional nasceu diretamente das atividades deles". Esse livro, ele escreve logo na introdução, "conta como a pessoa de Gautama Buda, príncipe do clã Sakya, e a fé que ele inspirou, foram 'descobertos' no século XIX por um pequeno grupo de ocidentais e recuperados - não apenas para a índia, mas para o mundo todo". Entre as descobertas na índia, atribuídas a esses orientalistas, estava a escavação e o conserto do templo Maha-bodhi em Bodh Gaya em meados dos anos 1800.
Mais ou menos na mesma época houve também o caso do oficial nortista aposentado da Guerra Civil dos Estados Unidos que se chamava Henry Steel Olcott, que hoje trabalha para o governo em investigações de fraudes, corrupção e suborno no Mustering and Disbursement Office em Nova York. Ao investigar relatórios de "certos fenômenos incríveis" de natureza oculta numa fazenda em Chittenden, Vermont, ele conheceu lá uma russa excêntrica que morava em Nova York chamada madame Helena Petrovna Blavatsky, de quem também diziam ter certos poderes psíquicos e certa sabedoria esotérica, da qual deixava escapar "pistas dos ensinamentos da Doutrina Secreta da escola mais antiga de filosofia do ocultismo do mundo, uma escola reformista na qual o Senhor Gautama foi invocado e apareceu", como escreve Rick Fields em How the Swans Carne to the Lake (Como os cisnes chegaram ao lago), pesquisa exaustiva sobre o movimento budista no Ocidente. Juntos e com outros eles fundaram a Sociedade Teosófica em 1875 (que ainda possui sede internacional em Chennai, na índia; e um centro nos Estados Unidos, em Wheaton, Illinois). Resumindo um longo e fascinante capítulo sobre o encantamento da América no século XIX com o espiritualismo do tipo ocultismo, a dupla mudou-se para a índia para estabelecer sua sociedade lá em 1879. Depois, quando souberam que o budismo cingalês estava sob ataque e enfraquecendo sob a pesada influência missionária cristã das três ondas sucessivas do colonialismo português, holandês e inglês, foram para o sul em 1880. Numa cerimônia diante de um padre budista, repetiram os cinco votos budistas de abstinência (os cinco preceitos de se abster de matar, mentir, roubar, consu-
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mir drogas e praticar desvios sexuais) e recitaram os Três Refúgios, tornando-se os primeiros ocidentais conhecidos oficialmente convertidos ao budismo laico. Em seguida começaram a agitar toda a comunidade budista da ilha, ajudaram a criar escolas, comitês de defesa e muito mais. "Para os cingaleses parecia que os teosofistas norte-americanos tinham restaurado sozinhos a religião e a cultura deles para eles", escreve Fields.
Entre muitos outros, eles tomaram sob seus cuidados um adolescente de Colombo. Esse protegido, David Hewivitarne, mais tarde fez os votos completos de um bhikku, assumiu o nome de Anagarika Dharmapala, pelo qual é conhecido por milhões de budistas no Sri Lanka e em outros países também, como o primeiro santo budista moderno do sul da Ásia. Um tempo depois Dharmapala leu um artigo sobre o estado decadente de certos locais de peregrinação budista na índia, escrito por mais um ocidental que despertou interesse pelo budismo no Ocidente. Era Sir Edwin Arnold, autor de The Light ofAsia {A luz da Ásia), livro que foi publicado pela primeira vez em 1879 e que é muitas vezes considerado responsável pela apresentação da vida do Buda para as multidões do Ocidente. Inspirado nesse artigo, o monge cinga-lês fundou a Sociedade Maha Bodhi de Bodh Gaya em Colombo em 1891 com "um objetivo primordial: devolver Bodh Gaya aos budistas do mundo", escreve Fields. A Sociedade Maha Bodhi que visitei em Bodh Gaya é resultado desse esforço dele e essa obra, por sua vez, se deve ao grupo de vanguarda dos seguidores ocidentais de Buda. Dharmapala também estava presente na vanguarda do movimento do budismo engajado, expressando suas idéias em 1928 no Maha Bodhi Journal:
As distinções aristocráticas de castas que foram organizadas pelos brâmanes, Ele [o Buda] repudiou como injustas. Foi a ética da democracia espiritual que Ele enunciou. A felicidade podia ser concretizada aqui, não com sacrifícios para os deuses, orações para obtenção de bens materiais, e sim com incessante atividade fazendo o bem ajudando os doentes, tanto os animais como os homens, dando água pura para beber, distribuindo roupas, alimentos, flores,
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ervas aromáticas, perfumes, veículos, para os pobres, e construindo casas para eles morarem, e ensinando a lei da retidão.
Chauvinista ou não, o relacionamento do dr. Kabat-Zinn com Helen Ma era apenas o mais recente exemplo de como as sementes budistas sopradas do leste para o oeste e de volta para o leste faziam parte de uma polinização cruzada que vem criando híbridos há séculos, se não há milênios.
A própria Hong Kong era um território que ficava entre o leste e o oeste quando a dra. Ma nasceu lá em 1959. Hong Kong absorveu algumas ondas de imigração da China continental, desde a Idade da Pedra, de acordo com artefatos neolíticos encontrados por arqueólogos na década de 1920. O território foi colonizado pelos chineses Han no século VII d.C, o que ficou evidenciado pela descoberta de uma tumba antiga em Lei Cheung Uk em Kowloon. E outros foram para lá na dinastia Sung (960-1279). Mas nos últimos trezentos anos foi a invasão inglesa que marcou a Hong Kong de hoje. Logo depois da primeira viagem por mar bem-sucedida da Companhia Britânica das índias Orientais para a China em 1699, o comércio de Hong Kong com os mercadores ingleses desenvolveu-se rapidamente. Depois da derrota dos chineses na Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), Hong Kong foi cedida à Grã-Bretanha em 1842 sob o Tratado de Nanjing. À Inglaterra foi dada a concessão perpétua da península de Kowloon sob a Convenção de Beijing de 1860, que encerrou formalmente as hostilidades na Segunda Guerra do Ópio (1856-1858). O Reino Unido, preocupado com o fato de Hong Kong não poder ser defendida a menos que a área em torno também estivesse sob o controle britânico, executou um arrendamento por 99 anos dos Novos Territórios em 1898, expandindo consideravelmente o tamanho da colônia Hong Kong.
No fim do século XIX e início do século XX, Hong Kong se desenvolveu como armazém e centro de distribuição para o comércio do Reino Unido com a China meridional. Depois que a Segunda Guerra Mundial terminou e houve a tomada da China
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continental pelos comunistas em 1949, centenas de milhares de pessoas fugiram da China para Hong Kong. Hong Kong então tornou-se um sucesso econômico e centro industrial, comercial, financeiro e turístico. Em resumo, esse grupo de duzentas ilhas tinha se tornado o portal para o Oriente. Elevado índice de expectativa de vida, alfabetização, renda per capita e outros índices socioeconômicos atestam as conquistas de Hong Kong nas últimas cinco décadas. Mas também entre esse indicadores socioeconômicos houve um aumento de estresse, divórcios, suicídios -fatores mais característicos do estilo de vida ocidental. Portanto não foi nenhuma surpresa para mim que as ferramentas para redução do estresse pudessem agora estar entre os novos produtos importados de maior sucesso em Hong Kong.
Os pais de Helen vieram para Hong Kong durante a ocupação japonesa da China no final da década de 1930, mas o toque de inglês britânico no sotaque dela, suas credenciais acadêmicas ocidentais e suas tendências a uma vida mais secular sugeriam que ela já tinha dado uma guinada na direção do Ocidente. Em termos de educação religiosa, ela descrevia os pais como budistas seculares.
- Eles faziam fila com os outros nos templos durante o Festival Guan Yin, para queimar incenso e rezar para o Buda da Compaixão, mas fora isso era uma mistura de folclore, confucio-nismo e taoísmo - explicou ela. - Não havia prática budista, nem leitura, nem cânticos. O espírito do budismo é compreendido no nível mais popular aqui.
Estávamos sentados numa imitação de café italiano na aldeia Stanley à beira-mar na ilha de Hong Kong, perto de onde ela morava. O local de encontro, combinado por ser mais conveniente para ela, era muito apropriado e eu não esperava que fosse tanto. O café ficava na Murray House, uma das construções vitorianas mais antigas de Hong Kong, construída em 1844 pelo exército britânico. Durante a Segunda Guerra Mundial foi o quartel-general do exército japonês. Mais tarde foi transportada tijolo por tijolo para aquele lugar e reaberta em 1998 como sede de alguns restaurantes ocidentais. Será que os pais de Helen ficariam ofendidos pelo fato de a filha pôr os pés num prédio que já
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tinha sido ocupado pelos japoneses, que os forçaram a abandonar seus lares na China continental? Será que essa ironia histórica tinha passado pela cabeça de Helen? Parecia que não.
Tendo estudado em escolas católicas por 13 anos, simplesmente porque o ensino era melhor do que nas escolas budistas ou não religiosas, era natural que quando queria se afastar de tudo ela procurasse refúgio nos centros católicos. Helen recebeu seu Ph.D. em psicologia clínica na Universidade de Cambridge no Reino Unido. Mudou-se para Sidney em 1990, onde trabalhou na unidade psiquiátrica do Hospital Royal Prince Alfred em Sidney. Foi o apelo da visão pura das montanhas Azuis na periferia de Sidney que a levou ao centro de retiro, onde, para sua surpresa, a técnica que ensinavam lá era meditação vipassana.
- Psicoterapia era útil, mas ainda havia mais alguma coisa que eu queria descobrir... uma resposta definitiva - disse ela. - Com a vipassana consegui isso. Foi maravilhoso para o meu estresse e pensamentos depressivos. Mas como podia integrar esse aspecto espiritual com os meus clientes?
Intuitivamente ela percebeu que havia uma sobreposição, mas agora, educada com a mentalidade ocidental, não estava disposta a enveredar por outra possibilidade sem alguma prova empírica. Não sei de que célula dormente do meu cérebro saiu essa frase, mas eu disse:
- Fé é uma ótima invenção para os cavalheiros, sabe, mas microscópios são recursos prudentes em uma emergência.
Era minha compatriota de Massachusetts Emily Dickinson, poesia do tempo de colégio, decorada e agora regurgitada como um Dhamma budista. A dra. Ma não conhecia a minha adorada Emily, mas meneou a cabeça concordando.
Ela voltou para Hong Kong em 1996 e agora o trabalho em asilos fez com que "sentisse mais ainda que o psicológico e o espiritual são entrelaçados", ela disse.
- Vendo as pessoas nos leitos sofrendo, lutando mental e fisicamente, era difícil determinar onde um termina e o outro começa. "Para onde eu vou?", eles perguntavam. Como é que se responde a isso?
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Ela encontrou uma resposta clínica possível numa fita com a gravação do show de Bill Moyers Healing and the Mind (A cura e a mente) que tinha o dr. Kabat-Zinn e o programa MBSR da Universidade de Massachusetts em Worcester. Lembrava-se de uma frase daquela fita que era especialmente emocionante para ela. O dr. Kabat-Zinn perguntou para uma mulher que sofria de dores crônicas: "Quer passar de existir para viver?" Ela percebeu que ele tinha aquela chave que ela ainda não tinha encontrado. E importante também era o fato de ele ter a pesquisa publicada para provar que aquela chave abria algumas portas que ela não conseguia abrir. Pareceu coerente para mim que já que as portas para a sabedoria budista na Ásia tinham sido fechadas pelas atitudes empíricas ocidentais, que agora fosse uma ocidental, com embasamento empírico, que encontrasse uma chave para abri-las de novo.
- Toe, toe.
- Quem é?
- O Buda.
- Buda quem?
- O quê? Você não me reconheceu com meu jaleco branco?
O Conselho de Turismo de Hong Kong me deu uma brochura com propaganda do que a cidade tinha de melhor: o maior receptor de investimento estrangeiro direto da Ásia, o décimo centro bancário e financeiro do mundo, principal eixo da região das empresas multinacionais estrangeiras, décimo quarto destino de viagem mais procurado da Ásia, onde ficavam três dos prédios mais altos do mundo, a mais alta fábrica de refrigerantes do mundo (a Coca-Cola, é claro), a escada rolante interna mais longa do mundo (segundo o Guiness World Records). E de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas de 2001, tinha o maior número de telefones celulares do mundo (64 de cada cem pessoas).
Obscurecido por tudo isso mencionado no parágrafo anterior, havia esse factóide: Hong Kong se vangloriava de ter a maior estátua de bronze do Buda sentado ao ar livre, com 26 metros, na
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ilha Lantau, um projeto de dez anos terminado em 1993. Isso me deu uma idéia. Se eu pudesse construir um Buda inédito, definir um nicho muito esotérico como "o único Buda de silly putty [massa de vidraceiro maluca] plantando bananeira no retorno 145 do Garden State Parkway"... meu Buda e eu poderíamos entrar para o Guinness Book of World Records.
O hotel que o conselho de turismo tinha me ajudado a encontrar, o Miramar, no coração do centro apinhado de Hong Kong, era imenso e como prova da pujança comercial da cidade, a ocupação era de cem por cento. E parecia que todos os hóspedes fumavam... e fumavam por toda parte. Isso era um fato. Só no meu andar, todas as portas dos quartos estavam entreabertas. Dentro deles havia grupos de duas, três, quatro pessoas, sentadas nas camas, de pé com copos de bebida na mão, rindo e, é claro, fumando. Eu tinha pedido com antecedência um quarto de não fumante. O e-mail que me enviaram como resposta praticamente riu na minha cara; eu poderia ter pedido vodca corrente quente e fria nas torneiras. Até meu travesseiro fedia a fumaça de cigarro. Dias depois de sair de Hong Kong o fedor continuou grudado nos pelinhos do meu nariz. Para escapar, bati em retirada para um restaurante e bar no térreo do Miramar que me fez lembrar de um restaurante da cadeia Ruby Tuesday. Claro que não houve como fugir da fumaceira. Mas o restaurante tinha muitas ofertas. Se pedisse dois drinques, podia usar a Internet para verificar meu e-mail. Por isso deixei a fumaça entrar nos meus olhos... assim como no meu nariz, nos ouvidos e na garganta... enquanto tomava um porre de boilermakers [cerveja com uísque] e ainda tentava entrar em contato virtual com um bom intermediário na China. Estava ficando desesperado. Seria previsão de coisas ruins que iam acontecer na Terra do Gigante Adormecido? A minha abordagem jornalística zen corria o risco de sair pela culatra e me atingir. Onde estava o falecido Hunter Thompson quando eu mais precisava dele?
— As pessoas estão ficando mais ricas, mas não mais felizes aqui - tinha dito a dra. Ma. - Hong Kong está ficando faminta de algo espiritual.
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Isso, disse ela, explicava a sua impressão de que nas duas últimas décadas surgiram mais centros de meditação. E também o fato de que agora há uma "prova". Ela usava a palavra "prova" com bastante freqüência.
- Intelectuais e jovens que se expuseram ao Ocidente consideram atraente esse budismo com embalagem nova, que não se trata mais de superstição, ou apenas de ser uma pessoa boa - disse ela. — Há provas acadêmicas de que funciona e que tem aplicações práticas.
Paralelo ao aumento da pesquisa que o dr. Kabat-Zinn e sua equipe norte-americana publicaram em boletins e edições profissionais, a dra. Ma e seus colegas acrescentaram provas empíricas. Num estudo registrado em 2004 no Journal of Consulting and Clinicai Psychology, ela e o psicólogo John Teasdale, de Cam-bridge, Inglaterra, testaram a capacidade da Terapia Cognitiva Baseada na Consciência Plena (MBCT) de reduzir o risco da recorrência da depressão grave nos pacientes. A MBCT, uma variação da MBSR, reduziu o índice de 78 por cento para 36 por cento nas pessoas que tiveram três ou mais episódios de relapso.
O Centro de Saúde Comportamental da Universidade de Hong Kong, onde a dra. Ma é uma das psicólogas que lideram sessões de dez semanas de MBSR, também conduziu suas próprias pesquisas.
— Agora há muito interesse nisso — disse ela. — Acho que parte desse interesse provém do fato de não haver conotações religiosas. Digo para os participantes que vem da tradição budista, mas que foi comprovado no Ocidente que é uma técnica muito eficiente para reduzir o estresse. "Redução do estresse" soa muito psicológico.
Ela me disse que na véspera havia recebido um e-mail do diretor de um comitê de medicina paliativa da Autoridade Hospitalar, agência do governo de Hong Kong, pedindo para ela dar um curso de MBSR para médicos. Outro pedido chegou de um psicólogo clínico de um centro de saúde comunitário para que ela organizasse uma sessão de dez dias para pacientes com doenças crônicas. Havia "prova" de que aquela coisa estava criando raízes, ou recriando.
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