Publicado originalmente em 1902. Livro Digital nº 924 1ª Edição São Paulo, 2017. Romance Literatura Brasileira. José Pereira da Graça Aranha



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Canaa - Graca Aranha - IBA MENDES

CAPÍTULO 8 
A passagem da miséria na nova vida de Milkau deixara o seu 
vestígio perturbador. No espírito dele uma melancolia teimosa se 
espraiava infinita, vaga, entorpecedora, e agora o pensamento 
rolava vertiginoso para o desânimo... Não podia esquecer a desgraça 
de Maria. Não há sofrimento, cismava ele, tão insignificante que não 
clame aos que passam piedade e reparação com o alarido de cem mil 
bocas. Não há desgraça pequena. Toda a dor é imensa. 
E para afugentar a persistente Tristeza, que o cercava e lhe estendia 
os braços amorosos, Milkau consagrava-se ainda mais ao trabalho. 
Já por esses tempos a colônia tinha um belo e florescente aspecto. 
Todo o “prazo” estava cultivado, e os pés de café, que brotavam 
num indomável viço, cobriam como um manto a antiga hediondez 
do roçado. Desaparecera a coivara, o terreno semelhava um 
verdejante parque cercado das árvores imensas da floresta, apenas 
interrompida, e a humilde casinha dos dois emigrados estava 
coberta de trepadeiras, que se abriam em flores, dando àquele 
jardim ali nos trópicos um perpétuo ar festivo à vivenda. 


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Milkau era agricultor por instinto, e todas as suas faculdades de 
atenção, de imaginação, as empregava com desvelo e ardor no 
trabalho com as próprias mãos, que enobrecia o seu destino 
humano. Lentz era o caçador. Restringido a um círculo de limitada 
atividade, o seu espírito, sempre retrógrado, buscava expandir-se 
nessa forma inicial e selvagem da civilização. Caçava, lutava com os 
animais, devastava as matas, e aliado a outros colonos de igual 
inclinação, em poucos meses para ele já não havia segredos na 
floresta brasileira. No mesmo teto esses dois homens exprimiam 
duas culturas diferentes. Um oferecia ao mundo façanhas, matanças, 
sacrifícios de sangue, e o outro, simples lavrador, frutos da terra, 
flores do seu jardim... Mas, longe do ódio, da luta fratricida, entre 
esses dois intérpretes sucessivos da vida, formara-se uma atração, 
uma solda inquebrantável e que ainda significava a imagem dessa 
impulsiva liga entre todos no mundo, que cada dia será crescente, 
até se tornar universal e indestrutível. 
Milkau trabalhava sempre. E quando, curvado sobre a enxada, a 
fronte suada, os nervos cansados, um repouso suave, um 
esquecimento devia adormecer-lhe os pensamentos, lá vinha ainda 
nesses instantes o tormento da piedade, o contínuo testemunhar da 
desgraça alheia, com o uma mancha na sua visão radiante. 
“Não é no trabalho que está a salvação da miséria, nem o estímulo 
para o desalento. Que importa que nos fatiguemos, que ensopemos 
a terra com o nosso suor, que cubramos o mundo de flores saídas 
das nossas mãos infatigáveis, se ali adiante, ao nosso lado, vive a 
Dor; se todo esse sangue, essas flores, esses frutos não são bálsamos 
para aquela ferida estranha!... Que bem fariam a cor, o perfume e o 
sabor das coisas ao padecer de Maria? Como remediar, sarar a morte 
do sonho, a decepção, enfim? Também ela não mourejava dia e noite 
no trabalho, como um forçado? E a consolação lhe vinha? Oh! não, é 
preciso haver outra coisa no mundo. Outra coisa mais santa, mais 
poderosa, mais doce, mais divina, mais sutil, mais benfazeja, mais 
vasta e mais misteriosa... 


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O Amor!...” Assim pensava Milkau, enquanto a enxada, manejada 
pelos braços inconscientes, cavava a terra. 
Várias vezes fora à “colônia”, onde Maria se empregara, para levar-
lhe algum conforto. Ela se retraía cada dia mais e nem mesmo a ele 
confiava os passos do seu martírio. Milkau respeitava esse pejo, e 
sem insistir em desnudar-lhe o coração recomendava à gente da casa 
a maior caridade para a desgraçada, pedindo que velassem por ela e 
a não desamparassem na próxima crise. Os colonos prometiam-lhe 
tudo, mas na verdade o sentimento deles era outro: tratavam a 
miserável com desdém, mesmo com rancor, como uma intrusa que 
lhes ia roubar a tranquilidade, dar-lhes trabalho e aumentar-lhes o 
custeio da casa. Maria não se queixava. Aos antigos tormentos 
juntava o desprezo e o ódio dos novos patrões. E ainda assim se 
agarrava a essas raras migalhas de uma desdenhosa 
condescendência humana, atormentada pelo medo do doloroso 
momento, que se aproximava. 
Por aquele tempo a vida de Milkau continuava a ser minada pela 
tristeza. E também para o companheiro, fora a caça, nada havia na 
colônia capaz de encher-lhe a imaginação. Durante o dia 
trabalhavam, mudos e abismados nas suas cismas, e era com um 
passo moroso e incerto que vagavam às tardes pelas habitações 
vizinhas. Num desses passeios foram até uma colônia, que ainda 
não tinham visto. À porta estava um ancião, que os convidou a 
repousar um pouco, e, enquanto a família se entretinha nos arranjos 
domésticos e no trato dos animais, os dois amigos ficaram a 
conversar com o velho. Falaram da Alemanha, e o ancião narrou-
lhes sem demora traços da sua vida. Era um veterano do exército 
prussiano cuja memória estava cheia de lembranças da última 
grande guerra. Lentz se interessava pelos pormenores dessas 
histórias, e o velho falava satisfeito e vaidoso de entreter os jovens. 
Na sua narrativa imaginosa passavam cidades estranhas, desfilavam 
exércitos, estrondeava o tumulto das batalhas, desabavam cargas de 
cavalaria, a chuva oblíqua da metralha mudava em lama 


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sanguinolenta a miserável e inquieta poeira humana, varrida em 
turbilhões heroicos pelo tufão da Conquista. O velho soldado 
terminou por contar que uma vez, num reconhecimento, caíra do 
cavalo e por cima do peito lhe passara num galope o animal de um 
camarada, e como, abandonado, a vomitar sangue, fora por um 
acaso colhido na estrada. Desde então dera baixa e emigrara para o 
Brasil, onde o clima quente lhe mantinha a vida... A essas 
lembranças misturava outros episódios da invasão, quadros da 
cultura estrangeira apenas entrevista e que recolhera à retina com 
essa sensação de deslumbramento maravilhoso, como a que ficava 
do minuto de um Bárbaro no seio da civilização... Ainda o 
apavorava o terror da disciplina. Escapara de ser fuzilado, porque 
uma noite de dezembro, em França, fazendo parte de uma 
guarnição, exigira dos moradores da casa onde se acampara uns 
cobertores. E essa extorsão, além do que era permitido reclamar, ele 
ia pagando com a vida. Lentz aplaudiu então a Força imortal, que 
comandava e era temida... E sorria como havia muito tempo não lhe 
era dado. Entusiasmado, o veterano ergueu-se, e caminhando 
trôpego levou os vizinhos para dentro da casa para mostrar-lhes 
velhos retratos de reis, vistas da Prússia, estampas da guerra. Tudo 
era antigo, mobílias, quadros e lembranças. Tudo ali era uma volta 
ao Passado. 
Em caminho para a colônia, disse Lentz: 
– Que consolo senti indo à casa desse velho! Parecia ter penetrado 
um instante no passado intacto da Prússia. 
– Mas é preciso não amares demais esse passado – observou Milkau. 
– E por que não me retemperarei nas fontes da minha raça? – 
perguntou Lentz, com um tom enfático de superioridade. 
– Por quê? Porque – respondeu Milkau – o que estimas nesse 
passado é exatamente o que ele tem de humilhante e vergonhoso. 
Amas o seu espírito de destruição, o demônio que o agitava, a alma 


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senhoril, a servidão, a guerra, o sangue, tudo o que separa e 
destrói... Dia a dia será reduzido o campo da veneração pelas 
instituições da Antiguidade. Amemos o sacrifício feito pelo amor 
humano, a ciência, a arte... Mas aquele amor inconsiderado por tudo 
o que é passado, tudo o que foi, é um dos sopros mais poderosos 
para a desordem universal. E eu tenho que o estudo das coisas 
antigas, o prestígio das próprias letras mortas são outros tantos 
venenos que acobardam a alma do homem de hoje e dão um 
encanto crescente ao mistério da Autoridade... Os que se colocam no 
passado, aqueles cujas almas se fazem artificialmente antigas, esses 
são os verdadeiros inimigos do gênero humano, são os pregadores 
da desordem, os profetas do tédio e da morte. 
– Tu sabes bem – interrompeu Lentz –, não é tudo do passado que 
eu amo, mas regozijo-me quando testemunho nele a ostentação das 
fortes qualidades humanas da nossa Pátria. 
– E que benefício resulta dessa força, dessa grandeza da Pátria? 
– Oh! Exatamente o que nela venero é a tendência imperial, a fibra 
belicosa, a expansão universal, a tenacidade, o gênio militar, a 
disciplina... 
– Mas que é a Pátria? 
– A Pátria... ora, Milkau, tu não sabes? É a raça, uma civilização 
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