CAPÍTULO 25
-Meu Deus, Leo...! Você já viu isso?
O bibliotecário ficou sem palavras. Estava tão impressionado com o que tinha diante dos olhos, que custava pensar com clareza. A pergunta de Cláudia ficou sem resposta e ambos continuaram enlevados, com a boca aberta, admirando os desenhos e as frases inscritas nos muros de pedra.
A sala onde estavam devia ter uns dez metros de comprimento por seis de largura, com uma altura superior a três metros. No centro, havia uma plataforma escalonada — da altura de um homem mediano —, que finalizava numa base retangular completamente lisa. Era feita de um granito mais polido que as pedras utilizadas na construção das catedrais. Os degraus, que se estreitavam à medida que subiam pelos quatro lados — talvez orientados pelos pontos cardeais —, tinham glifos e marcas astronômicas. Não havia nada sobre a base, embora parecesse destinada a comportar algum tipo de altar propiciatório.
Nas paredes, eles descobriram frases soltas escritas em vários idiomas, tais como latim, espanhol antigo e hebraico, junto a figuras geométricas e inscrições cabalísticas de alguma forma semelhantes às da alquimia. Reconheceram o tipo de escritura como gótica textual, a mesma utilizada na elaboração do criptograma, o que significava que seu autor poderia ser o próprio Iacobus de Cartago.
Leonardo aproveitou para gravar em DVD essas maravilhas, pedindo a Cláudia que focasse a lanterna nas paredes da sala. Foi então que descobriram, de um lado e de outro, corredores que conduziam a outros recintos, cópias idênticas do primeiro, embora com desenhos distintos e novas frases, que também terminavam com incógnitas. Optaram por seguir o caminho da direita, que os conduziu a uma sala que, por sua vez, os levou a outra, e esta a mais outra — todas com as mesmas dimensões. Oscilavam daqui para ali, atraídos pelo desejo de reconhecer aquele prodígio arquitetônico que se estendia sob a catedral de Múrcia, esse labirinto de galerias que, como num jogo de crianças, unia todos os ambientes, de forma que quem entrava nelas irremediavelmente voltava à sala principal. Eram sete e, sobre o umbral da entrada, eles descobriram, pendurados no teto, muitos sinos de diferentes tamanhos, dependendo do recinto em que se encontravam.
À primeira vista era difícil distinguir as palavras, devido às sombras que a lanterna projetava, mas puderam ler corretamente várias frases em latim e castelhano, inscritas nos muros. Tratava-se de uma nova mensagem de Iacobus:
"In triangulis oculus Dei est"
—O olho de Deus está dentro do triângulo — traduziu Cláudia, aproximando-se de um dos muros, em cujo centro estava pintada uma estrela de Davi.
Cárdenas abaixou a câmera, parando de gravar por um instante. Fascinado, enrugou a testa.
—É possível que se refira aos triângulos entrecruzados que constituem o símbolo de Israel? — perguntou.
Sua companheira deu de ombros, sem se preocupar com aquela charada, dirigindo-se ao outro lado do muro em busca de novas frases.
Ali descobriram vários parágrafos escritos em hebraico — talvez citações do Talmude —, e uma série de desenhos circulares, encerrando vários triângulos e linhas retas sem definição, além de números e letras colocados ao acaso. Como não conheciam o idioma, não conseguiram traduzir aquelas charadas, mas Leonardo se empenhou em gravar com a câmera de vídeo tudo o que estava escrito. Mais tarde teriam tempo para estudar a fundo as imagens, quando estivessem a salvo, na casa de Riera.
Não fazia nem dez minutos que se encontravam ali e já se sentiam parte daquele lugar. Cláudia estava tão fascinada, que não se cansava de ir de uma sala a outra, ansiosa por traduzir tudo o que estava em latim. Ele, cuja frieza era uma virtude congênita dos Cárdenas, procurava enfocar a descoberta do ponto de vista racional, sem deixar-se levar pelas emoções. A primeira coisa que deviam fazer era iniciar a procura do diário, antes que os descobrissem. Tinha ouvido dizer que o tempo voa quando se está debaixo da terra. Uma pessoa poderia ter a impressão de estar há vinte minutos ali embaixo, e logo descobrir que, na verdade, havia transcorrido mais de uma hora. Por isso, tentou chamar a atenção de Cláudia para que se concentrasse no que realmente tinham ido fazer.
—Você deveria se comunicar com seu tio — recordou-lhe com cautela —, do contrário ele pode pensar que nos aconteceu algo... Você sabe o quanto ele é apreensivo.
A jovem deixou de lado a tradução que estava fazendo e olhou, surpresa, para ele. Havia esquecido por completo.
—Espere, vou tentar ver se isto funciona... — disse, tirando o transmissor do bolso da calça. Não estou bem certa se aqui dentro, fechados...
Nem terminou a frase, franzindo a testa ao ouvir o barulho característico das interferências. Não seria fácil a comunicação.
—Aqui é Alfa. Ômega, está me ouvindo? — aguardou uns segundos antes de voltar a tentar. — Alfa daqui de baixo... titio? Está me escutando? Câmbio.
Não houve resposta, somente o zumbido persistente das ondas hertz. Depois de uns instantes, escutaram o que pareciam palavras incompletas.
—... scuto... culdade ...onde está?... estão bem? ...âmbio.
—Vou ter que me arrastar de novo, se quiser chegar até o fosso — disse Cláudia, segura de si. — É a única forma de dizer a meu tio que estamos bem e que precisamos de mais tempo para encontrar o diário.
—Se quer saber minha opinião, creio que seja melhor procurar o diário agora e deixar que Salvador tire suas próprias conclusões... — Leo não estava disposto a correr riscos desnecessários e, por isso, insistiu. — Se fosse eu que estivesse lá em cima, teria um pouco mais de paciência...
Sentiu a boca seca. Já ouvimos sua voz, mesmo que entrecortada. E, por isso, deduzo que ele também nos ouviu e sabe que estamos bem.
Cláudia refletiu uns segundos sobre a proposta de seu companheiro e não pareceu estar convencida. Depois sugeriu:
—Olhe, vamos fazer uma coisa... Você fica aqui, gravando o que acredita ser importante. — Mordeu o lábio inferior. — Sinto muito, mas vou me comunicar com meu tio. Preciso tranqüilizá-lo e adverti-lo de que vamos nos atrasar um pouco.
Apertando com firmeza a mão de Leonardo, segurou-a, para que, juntos, fizessem o caminho de volta à sala principal, onde se encontrava a passagem de saída.
Uma vez ali, deu um beijo nos lábios dele, antes de introduzir, primeiro, seus braços estendidos à frente, depois, sua cabeça, naquele vão quadrado que se ajustava a seus ombros como um traje sob medida. Seu único consolo era que, à medida que avançava, o caminho ia se alargando. Ainda assim, a impressão de estar enterrada num caixão de pedra resultava numa experiência bastante real e angustiante nos primeiros metros.
Cárdenas se sentiu o homem mais só do mundo ao vê-la desaparecer. Notou um estranho nó no estômago.
Decidiu continuar investigando, antes que a solidão e a claustrofobia começassem a ser um problema. Aproximou-se do patamar central da sala, iluminando os ângulos escurecidos dos degraus. Contou sete, em cada lado, tal como o número de aposentos que se comunicavam. Para ele, tratava-se de um número bastante revelador.
Sua curiosidade, aliada com um pouco de imaginação, levou-o a procurar se havia algum tipo de mola oculta entre as pedras, capaz de abrir uma pequena porta para o esconderijo secreto. Apalpou a superfície sem encontrar nada, mas lhe pareceu estranho que fosse tão bem polida. O tato lhe recordou o granito das escadas do edifício onde vivia. Observou com atenção os sete glifos gravados nos vários degraus. Eram os símbolos dos planetas utilizados na alquimia; por isso, acreditou ser conveniente desenhá-los em seu bloco, para um estudo posterior e detalhado, depois de gravar aqueles mesmos elementos em DVD.
Depois de um prolongado esforço para achar um esconderijo, o degrau oco, onde poderia estar escondido o diário, teve que desistir da tarefa e reconhecer seu fracasso. Aquelas pedras eram compactas e perfeitas; era como se o pedestal tivesse sido fabricado de uma só peça de granito. Foi, então, até a parede da frente com a finalidade de analisar as frases escritas e tentar traduzi-las. Mas antes de se concentrar no muro de pedra, resolveu trocar o DVD da câmera — pois estava acabando — por outro, virgem. Assim, poderia continuar com a gravação, ampliando a reportagem o máximo possível. Mais tarde, guardou-o em um dos grandes bolsos de suas calças de estilo militar. Acendeu a lanterna, aproximando-se dos textos em latim. Em um deles estava escrito:
"Musica divinitatiorum."
E, em outro:
"Sonitus silentes silentio noctis est."
— A música das divindades? Sons silenciosos na quietude da noite? — perguntou-se em voz alta. Que raios quer dizer isto?
Recordou-se, então, dos sinos de vários tamanhos que pendiam das entradas principais das salas. Talvez fazendo-os soar conseguisse abrir alguma passagem no muro que o levasse até o diário, calculou em um momento de entusiasmo. Estava tão desesperado, que foi a única coisa que lhe ocorreu.
Começou pelo maior, situado na sala onde estava naquele momento. Pegou a corda do badalo com extremo cuidado, conjecturando se devia agir por conta própria ou esperar por Cláudia. Decidido a arriscar-se, deu um puxão seco até que a peça de metal golpeou o sino. O som vibrante ecoou pelos sete aposentos, até perder intensidade.
O tom havia sido grave demais, abrupto como um solavanco. Porém, nada aconteceu. Nenhuma pedra se deslocou para dar espaço a uma câmara secreta. Levado pela intuição, foi diretamente ao corredor da direita, que se comunicava com a sala seguinte. Uma vez ali, repetiu novamente a experiência. O sino, bem menor do que o primeiro, soou de um modo diferente, uma escala abaixo.
Voltou a tentar na terceira sala, e na quarta. E assim, sucessivamente, até chegar à última, onde a sineta era de um tamanho tão reduzido, que o som produzido recordou-lhe o que produz o mais caro cristal da Bohemia. Aquilo só poderia significar uma coisa: que cada uma daquelas salas era representada pelas sete notas musicais.
Era tamanho o interesse que sentia por sua descoberta, que não percebeu a sombra ameaçadora deslizando sorrateira e cercando-o por trás. Quando seu sexto sentido se colocou em alerta, já era tarde demais. Pelo rabo do olho descobriu que não estava sozinho ali embaixo.
A última coisa que sentiu, antes de perder a consciência, foi um golpe na nuca e a impressão de que tudo dava voltas a seu redor.
Depois, o silêncio.
CAPÍTULO 26
Quando abriu os olhos, quase foi devorado pela obscuridade apocalíptica da sala. A primeira coisa que lhe veio à cabeça, quiçá devido ao interesse que sentia ultimamente por Allan Poe depois de encontrar a chave do manuscrito, foi o protagonista do conto O poço e o pêndulo, aquele que se encontrava de mãos atadas à beira de um abismo insondável, enquanto uma lâmina afiada descia do teto, indo de um lado a outro. Tratou de pensar, de recordar o que tinha acontecido imediatamente antes de perder a consciência, embora devesse, antes de tudo, iluminar o recinto para ver se ainda se encontrava nos subterrâneos da catedral. Recobrou-se, com uma ligeira dor de cabeça. Tateou a superfície do solo, procurando a lanterna, e não se sentiu a salvo senão quando roçou nela com a ponta dos dedos. Com uma sensação indescritível, empurrou para cima o interruptor e um feixe de luz o trouxe de volta à realidade. Estava na sétima sala, a um passo da primeira. Notou, entretanto, que algo havia mudado desde que perdera a consciência.
Tentou lembrar qual era esse detalhe tão importante, que guardava no subconsciente, esse sentir-se nu, depois do golpe na cabeça. Foi quando se deu conta de que haviam roubado a câmera de vídeo e o bloco de notas. Deslizou até a sala principal, para ter uma idéia do que tinha ocorrido. Pensou na instituição Os Filhos da Viúva e nessa capacidade instintiva que os conduzia ao lugar exato, no momento oportuno. Era evidente que ele tinha sido seguido, apesar de todas as precauções tomadas, e também que entraram pelo mesmo lugar que eles. Mas o pior de tudo era não saber por que continuava vivo, quando o normal seria que o tivessem degolado. Então lhe veio à memória a imagem de Cláudia subindo a estreita galeria em busca de Salvador. Irremediavelmente, deve ter encontrado com eles pelo caminho, portanto, talvez ela e seu tio também tivessem sofrido algum tipo de agressão. Preferiu pensar que estavam feridos ou inconscientes, a imaginá-los mortos. Em sua impotência, qualquer esperança de vida seria aceita como única resposta às suas perguntas.
Decidiu não esperar mais. Introduziu a cabeça na estreita passagem, apesar da claustrofobia que sentia. Durante alguns minutos, que lhe pareceram semanas, deslizou pelo maldito buraco, que o obrigava a torcer a cabeça para um lado, se quisesse avançar. Os dedos tiveram de se agarrar às juntas de separação entre as pedras para tomar impulso e seguir adiante, pois não havia outra maneira de fazê-lo. Com o passar do tempo, o corredor foi se alargando e seu corpo pôde sentir de novo a sensação de liberdade proporcionada pela amplitude de espaço. Finalmente, chegou até o rodapé do fosso, depois de cruzar a janela, cujas barras tinham sido cortadas antes. Olhou para cima. Não viu ninguém, mas as cordas ainda pendiam do alto e ali estava o restante do equipamento, incluindo o arnês e o mosquetão, mas faltavam os de Cláudia.
Atou novamente o instrumental e começou a subir, sem tomar o cuidado de colocar seu capacete de segurança, angustiado pela incógnita do que poderia encontrar lá em cima. Faltavam apenas alguns metros, quando foi surpreendido pela luz do Sol. Amanhecera. Aquele detalhe fez com que acelerasse a sua tarefa, pois só o que lhe faltava era ser descoberto por empregados da empresa de reformas e ser denunciado à polícia.
Quando finalmente colocou a cabeça para fora, respirou aliviado: o lugar estava deserto. Mas, por outro lado, também havia uma contrariedade. Cláudia e seu tio haviam desaparecido, e isso significava que estavam em poder daqueles fanáticos. Por um momento, sentiu-se impotente e logo teve um incrível desejo de gritar. Estava irritado consigo mesmo. Reprovou-se por ter deixado que ela saísse.
No relógio da catedral soaram três quartos. Leonardo imaginou, pela posição do Sol, que deviam ser sete horas e quarenta e cinco minutos, razão pela qual tinha o tempo exato para recolher sua mochila e recolocar a grade no solo, onde estava, antes que a equipe de reformas começasse a trabalhar. Sem pensar em outra coisa senão desaparecer, apressou-se a guardar na mochila o arnês e as cordas. Não se deteve a reconsiderar como era estranho o fato de que não apenas seus companheiros haviam desaparecido, mas também seus pertences e mochila.
Seu cérebro estava bloqueado. O mais importante naquele momento era abandonar aquele lugar. Primeiro, precisava fugir dali, depois buscar uma maneira de encontrar Cláudia e Salvador. Tinha certeza de que Os Filhos da Viúva tinham seqüestrado os dois, mas nem tanta de que um deles ainda estivesse vivo. A incerteza foi se apoderando de seus pensamentos enquanto abandonava seu esconderijo e corria até a Praça dos Apóstolos sem olhar para trás.
Naquele mesmo instante, muito longe dali, um furgão com o logotipo da companhia telefônica parou num edifício de seis andares situado no final da Knesebeckstrasse, em frente à universidade técnica de Berlim. Do interior dele saíram dois homens de meia idade, vestidos com roupas de trabalho. Sem perder tempo, foram até as escadas da entrada. O zelador do prédio adiantou-se para lhes abrir a porta, tão logo escutou o estridente som da campainha. Não esperava por ninguém a essa hora da manhã, e muito menos que viessem fazer um conserto em algum dos apartamentos. A primeira providência que tomou foi pedir-lhes documentos.
—E vocês dizem que foram chamados pela senhorita Weizsäcker? — quis certificar-se, antes de deixá-los entrar.
—A central nos mandou um aviso — respondeu o mais alto, em tom neutro, muito profissional, para, em seguida, dar de ombros.
Com este gesto, dava a entender que eles não falavam diretamente com os usuários, apenas com as secretárias da empresa.
Depois de dar uma olhada nos cartões de identificação deles, o empertigado zelador aconselhou-os a subir de elevador, lembrando que o andar da jovem Frida era o quinto, letra C.
Minutos depois, os empregados da companhia telefônica estavam diante do apartamento que lhes haviam indicado. Olharam para ambos os lados do corredor. Tudo estava calmo. Rapidamente, vestiram luvas de látex, antes de abrir a fechadura com uma das várias gazuas que levavam consigo. Entraram em silêncio. Ouviram correr a água do chuveiro, atrás da porta entreaberta do banheiro.
O assassino que permanecera calado, quando o zelador deteve a dupla, fez um gesto para seu companheiro, indicando que não perdesse tempo. Este assentiu, mostrando um quarto onde havia um monte de papéis acumulados junto ao computador, que estava sobre a escrivaninha. Logo sacou uma automática na parte de trás da calça, enroscando com precisão o silenciador, no momento em que em¬purrava lentamente a porta do banheiro. Frida estava de costas para o vidro, dentro do box, razão pela qual não se deu conta do que estava acontecendo, até que fechou a torneira e virou para pegar a toalha. Sua primeira reação, ao ver um desconhecido com uma arma apontada para ela, foi ficar totalmente paralisada com a surpresa. Nem sequer teve tempo de gritar. O primeiro disparo atravessou sua testa, o segundo, o coração.
Seu corpo desabou inerte dentro do box, deixando um rastro de sangue espalhado nos azulejos. Enquanto isso, o outro procurava, no monte de papéis, a tradução do manuscrito. Ao ver seu companheiro no aposento, guardando sua automática, deduziu que a jovem tinha deixado de ser um problema e que podiam atuar com calma. Nada iria interrompê-los.
—Vamos, aproxime-se! — pediu. — Preciso que você me dê uma mão. Aqui deve ter um milhão de folhas.
Ficaram olhando os papéis de Frida durante alguns minutos, até que, finalmente, encontraram várias folhas com apontamentos relacionados ao manuscrito de Toledo. Guardaram tudo dentro de um grande envelope dos correios, fechando-o, para que ficasse selado. Foram embora em total impunidade, assobiando uma canção.
Quando o zelador do edifício viu que estavam indo embora, pensou que aqueles tipos deviam ser muito bons em seu trabalho: tinham demorado apenas vinte minutos para detectar a avaria e solucionar o problema.
CAPÍTULO 27
Correu a plena capacidade, até que chegou à Praça Glorieta de Espana. Depois de descer as escadas que levavam ao estacionamento subterrâneo, foi direto até a vaga de garagem onde Salvador havia parado seu carro, mas no lugar encontrou um Peugeot de cor cinza pérola, bem mais antigo. Fez uma análise pontual dos fatos: Cláudia e seu tio haviam desaparecido, da mesma forma que suas mochilas e, agora também, seu carro. Era uma situação que deixaria uma pessoa maluca.
Estava desorientado. Não sabia para onde ir e nem o que fazer. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi tomar um ônibus que o levasse a Santomera e começar a procurá-los ali, na casa do arquiteto, entre outras coisas, porque dentro da propriedade estava o restante de seus pertences, além de ser o lugar mais seguro naquele momento. Precisava parar por um instante para refletir, sem se sentir vigiado.
Voltou às escadas do subterrâneo e subiu, para dirigir-se ao terminal de ônibus, situado no bairro de San Andrés. Cruzou a Gran Via, na altura do Hotel Reina Victoria, onde um policial que comandava o tráfego olhou-o de cima abaixo de maneira inquisitiva. Temeu pelo pior, pois parecia que o guarda estava entre duas alternativas: chamar sua atenção por atravessar fora da faixa de pedestres, quando o semáforo estava vermelho, ou pedir a ele que se identificasse; quem sabe fosse até pior, ainda: ambas as coisas. Acreditou que o melhor seria afastar-se, virando à esquerda, para atravessar a rua o mais rápido possível. Em seguida, dobrou a esquina do hotel para ir até a praça do mercado.
Na altura do Palácio Almudí, sentiu a vibração do telefone móvel no bolso da calça. Ao pegá-lo, acreditando que poderia ser Cláudia, suas mãos roçaram no DVD que havia trocado antes que lhe golpeas¬sem a cabeça. Esqueceu disso por um momento. Agora devia atender o telefone. Pelo visor, viu o número de quem chamava, também de um celular. Não reconheceu de quem era.
—Sim...? — perguntou, com cautela.
—Bom dia Leo... É o Nicolas... — escutou a voz do advogado. — Acabo de chegar de Madri. Estou em Múrcia. Suponho que tenha uma vaga idéia do motivo de minha visita.
—Colmenares? Graças a Deus! — exclamou, aliviado ao escutar uma voz amiga. — Olhe, se está em Múrcia, preciso que você me dê uma mão e venha me buscar. Tenho de falar com você o quanto antes.
—Fique tranqüilo — para isso viemos. Se estamos aqui é para ajudá-lo.
—Estamos...? — inquiriu perplexo. — Por acaso você está com a polícia?
Por uns segundos pensou que iam prendê-lo.
—Mas é claro que não — respondeu Colmenares. — Está comigo uma mulher que você não conhece, mas que pode trazer dados novos ao assunto que o trouxe até aqui.
—Se é uma tal Cristina Hiepes, já ouvi falar dela... — franziu a testa. — Mercedes estava disposta a incluí-la na investigação, sem considerar as circunstâncias.
— Creio que estamos perdendo tempo falando ao telefone. É melhor que me diga onde está para que eu possa buscá-lo. O advogado pensou que deviam conversar cara a cara.
—Sabe onde fica a Glorieta de España, em frente à prefeitura?
—Acho que sim — respondeu. — O certo é que acabamos de passar junto ao rio e já estamos vendo o outro lado.
—Vocês devem cruzar a ponte que une a Torre de Romo com o hospital da Cruz Vermelha. Em seguida, vá até a Glorieta de Espana... — aconselhou. — Eu os esperarei no semáforo que fica antes da descida para o estacionamento subterrâneo... — logo, acrescentou, alterado. — Por favor, venha o mais rápido que puder!
—Está acontecendo alguma coisa que preciso saber?
—Logo que chegar, explicarei tudo.
Desligou o telefone. Não tinha vontade de continuar falando. Estava realmente esgotado. Deu meia volta e regressou à Glorieta de Espana.
Lilith saiu do apartamento logo cedo, mas deixou um bilhete na cozinha dizendo às meninas que tinha um encontro com o vice-reitor da faculdade, por volta das nove horas. Tomou um táxi em direção à Avenida Juan Carlos I, para pegar seu carro, que havia deixado no estacionamento do centro comercial Zig-Zag porque não quis que ninguém vinculasse seu Corvette com aquelas duas pérfidas. Em seguida, dirigiu-se a Santomera, sem perda de tempo. Guardou na jaqueta o endereço correspondente ao número de telefone que a diretora da casa de leilões havia lhe dado. Foi muito fácil consegui-lo. Confrontou o segundo prefixo com o das vilas das cercanias e povoados da comunidade autônoma. Assim, conseguiu saber que pertencia a Santomera. Em seguida, a única coisa que teve que fazer foi ocultar com uma cartolina os números alinhados verticalmente nas páginas do catálogo geral, deixando visíveis somente os três últimos. Assim, foi descartando os de terminação diferente, até chegar no que procurava.
Depois de dirigir alguns minutos em direção a Alicante, deixou a rodovia para pegar a saída de Santomera. Não tardou a chegar ao centro do povoado, decidida a perguntar onde vivia o amigo de Leonardo Cardenas, entre outros motivos, porque a residência ficava em um lugar de denominação que gerava confusão, pois não se parecia com uma rua, senão com um lugar ou caminho: Senda Del Esparragal. Um jovem em uma mobilete indicou-lhe o caminho para a cova do arquiteto, pois assim a residência era conhecida no lugarejo. Lilith agradeceu a informação e foi-se embora, com uma vaga idéia de onde devia virar à direita ou à esquerda. Saiu da estrada, para pegar um caminho que rodeava um campo de hortaliças. Cem metros adiante, mais ou menos, encontrou uma propriedade em que cresciam diferentes tipos de árvores, cactos e palmeiras. Parou o carro a poucos metros da porta de entrada. Baixou os vidros e tirou os óculos de sol. De onde estava podia ver a fachada principal da singular caverna. O certo é que ficou espantada com a genialidade daquele homem, capaz de aproveitar a formação caprichosa da natureza para construir sua residência.
Não viu ninguém pelos arredores. Nem sequer um veículo. Deviam estar fora.
A pouca distância dali, viu que havia muitos pequenos furgões e carros estacionados em um campo onde se amontoavam rolos de palha para os animais de carga, junto a um casebre com um velho letreiro de uma conhecida marca de refrigerante colado na porta. Deduziu que era uma venda destinada a servir cafés e bebidas aos camponeses que trabalhavam nas vizinhanças. Não tinha a menor intenção de entrar num local onde o odor devia ser repulsivo, tanto pela grande quantidade de homens bebendo aguardente àquela hora da manhã, como também pela insalubre aparência e os muitos anos que pareciam ter as carcomidas paredes e o telhado do local. Não obstante, pensou que poderia estacionar junto aos demais veículos e esperar que entrasse ou saísse o dono da propriedade, que provavelmente estaria acompanhado do homem que procurava.
Ligou novamente o motor e dirigiu-se até a planície que havia à direita. Procurou um lugar onde tivesse boa perspectiva e, sobretudo, visibilidade. Encontrou-o no início do estacionamento, diante da estrada.
Mais uma vez, dedicou-se a esperar pacientemente sua presa.
Não se importava com isso, porque fazia parte do seu trabalho.
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