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#27565




III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES

15 a 17 de Maio de 2013

Universidade do Estado da Bahia – Campus I

Salvador - BA





OBSERVAÇÕES ETNOGRÁFICAS SOBRE A YALORIXÁ DO TERREIRO ILÊ ASÉ OGUM OMIMKAYE1
Silvia Barbosa*2

Mª Gabriela Hita*3
RESUMO
Utilizando como ponto de reflexão a teoria Standpoint, busquei falar nesta pesquisa de doutoramento, sendo desenvolvida no PPGNEIM-UFBA, sobre as relações de poder no Candomblé, desde diferentes prismas (sujeitos) e levando em conta algumas das suas variações entrecortadas pelas análises determinantes de raça, classe e gênero no terreiro Ilê Asé Ogum Omimkaye. O trabalho de campo foi essencial para tentar localizar e compreender o poder dos terreiros em sua constituição religiosa e as diversas dinâmicas formadoras do empoderamento das mães-de-santo como líderes desta religiosidade e emanadoras deste poder que buscamos compreender. Neste paper, entretanto, apenas se recuperam reflexões sobre as primeiras observações etnográficas realizadas a partir das falas de Mãe Dulce, a Yalorixá (mãe-de-santo) do Ilê Asé Ogum Omimkaye.

Palavras-Chaves: Poder. Gênero. Feminismo. Candomblé.


1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A teoria do Standpoint, proposta pela autora Sandra Harding (2004), tem se apresentado no campo das ciências sociais como um tema controverso, ela se apropria e, ao mesmo tempo, desafia a teoria política, evidenciando que algum grau de reconhecimento de nossos interesses políticos ou axiológicos são necessários na produção do conhecimento; mas que, por outro lado, uma total entrega a esses valores prejudica a produção do conhecimento científico. Esta teoria atrai tanto críticos quanto entusiastas há mais de três décadas, pois, segundo Harding, as controversias que ela vem suscitando são valiosas não somente para o público interessado no feminismo, como também tem servido para o alargamento das discussões sobre a construção e solidificação da ciência contemporânea. Em sua análise, proposta em Introduction: Standpoint Theory as a Site of Political, Philosophic and Scientific Debate, Harding explica que o Standpoint não é apenas uma teoria explicativa que crítica as ciências e as estruturas que a constrõem, mas uma que se configura também como uma importante metodologia de pesquisa de forte teor político.

A teoria Standpoint explicita as diferentes localizações e posicionamentos de onde ocorrem diferentes relações sociais, que para compreendê-las é preciso reconhecê-las primeiro. Estes são pressupostos imporantes da teoria que partiram de reformulações de feministas de importantes pressupostos marxistas e pós-estruturalistas. Pelo seu compromisso com o lugar de onde se fala e grupos marginados ela, como o marxismo de modo geral, vem oferecendo recursos valiosos para diversos movimentos sociais e de mulheres na reflexão de suas práticas, colaborando a ampliar níveis de consciência política em diversificados grupos sociais. Além disso, esta perspectiva do Standpoint permite dar maior visibilidade e significação às posições ocupadas por grupos marginados, que desde esta nova perspectiva passam a ser vistos também como sujeitos, e em muitos casos co-participantes de muitas de nossas pesquisas, na categoria de informantes qualificados e não meros ou simples objetos inertes dessas pesquisas.

Defensores do Standpoint e seus críticos têm opiniões diferentes sobre sua potencialidade e de qual seja a sua finalidade do “como” ou “para quê” ela serviria. Situando o cenário de alguns destes debates, observamos, primeiramente, que esse conhecimento foi desenvolvido para e por mulheres feministas, visando iluminar e visibilizar a especificidade das questões de gênero e buscando explicar e compreender melhor sua situação no mundo contemporâneo. Precisávamos nos autoafirmar no campo do conhecimento científico, contestando-o, assim como à presença e contribuições dos estudos de gênero para o avanço de conhecimentos novos e igualmente válidos. Por isso, um primeiro passo foi o de contestar o campo da Ciência e alguns dos pressupostos de seus modelos mais tradicionais, que passaram a ser acusados por muitas destas epistemólogas de etnocêntricos e androcêntricos.

Se todo objetivo da Ciência, mesmo que à priori, seria o de alcançar sempre algum grau de aproximação com o que se entende por “verdade (s)” livres de preconceitos e ideologias ou influências políticas; este era por sua vez um pressuposto falso e ultrapassado que estas críticas do feminismo e outros importantes pensadores da epistemologia moderna foram capazes de irem desconstruindo e promovendo grandes avanços numa epistemologia e concepções de Ciência mais modernas. O compromisso de uma visão defensora da “Ciência Tradicional” com uma suposta “objetividade” que ordenaria de modo neutro e imparcial a sua compreensão do social é uma farsa. Ela não era socialmente neutra, nem em seus discursos, nem tampouco em seus efeitos (HARAWAY, 1995). E a conclusão à que vai se chegando depois de todo esse percurso é que todo conhecimento é datado e situado sócio-históricamente, ou seja, o conhecimento é produzido com base nas práticas de cada grupo, considerando sua perspectiva, sua localidade, o contexto em que se insere, a situação e posição social de cada sujeito pesquisado etc. Isto é muito próximo àquela conhecida frase de Donna Haraway sobre “saberes localizados”, e que nada mais é do que uma instigante atualização de pressupostos marxistas sobre o que o próprio Marx falava sobre sermos seres socialmente condicionados pelo momento histórico no qual estamos inseridos. Todo sujeito cognoscente não pode se despir desses limites e parcialidade do que será capaz de conhecer por mais que seja treinado para aprender a objetivar. Sempre a subjetividade, as experiências vividas irão contribuir com o modo como iremos produzir conhecimentos. E desde estes complexos debates é que se passou a construir uma outra concepção de ciência diversa daquela que acreditava haver verdades únicas, fixas ou absolutas.

Os debates sobre os diferentes usos da perspectiva analítica do Standpoint aparecem em diversos contextos de pesquisa, usado por teóricas (os) de diferentes campos disciplinares e em contextos políticos diversos, (re) surgindo a partir de pré-supostos orgânicos diferenciados em torno de grupos sociais distintos, configurando novos debates. A partir destas perspectivas e utilizando a teoria do Standpoint como colaboradora para as análises e críticas sobre a construção do conhecimento científico, debruçarei-me a seguir sobre algumas reflexões iniciais em torno do poder dentro do Candomblé com a finalidade de melhor compreender e refletir sobre antigas questões já debatidas no campo da ciência da religião e do gênero, tão caro a discussão epistemológica da ciência.

Inspirada nesta proposta e perspectiva analítica do Standpoint, eu tenho como objetivos da minha tese tratar do meu campo de inserção social e de minha própria participação religiosa como filha de santo do Ilê Asé Ogum Omimkaye, abordando as relações de poder neste terreiro, buscando descrever e compreender sua organização religiosa e política, realizando também outro tipo de análises sobre as interseccionalidades que atravessam os sujeitos da minha pesquisa, as observando, descrevendo e refletindo sobre as diferentes dinâmicas de raça, classe e gênero que constituem os distintos membros desse terreiro, identificando como se manifestam e exercem seus diferentes micro-poderes, resistências, tipo de alianças e conflitos desenvolvidos nas diferentes relações internas, entre outros dos aspectos que irão ser descritos e analisados na minha etnografia sobre as relações de poder (es) neste terreiro no qual, desde 1995, me inseri; tendo ajudado na organização da Associação “Fonte de Vida” onde, durante três mandatos consecutivos, ocupei cargos de tesoureira, conselho fiscal e presidenta e, atualmente, possuo autorização oficial à pesquisa.

Para este tipo de análise também me vali da importante contribuição dos estudos de gênero, da qual não podemos prescindir, já que as relações de gênero permeiam absolutamente todas as relações sociais, sejam elas de classe ou étnicas e de modo muito especial as deste terreiro, liderado por uma mãe-de-santo. Este ponto é de fundamental relevância, pois se trata do meu interesse e busca melhor aprofundar minha reflexão epistemo-teórica desde uma articulação entre categorias como as de gênero, classe social, geração e raça que são tão importantes na configuração da identidade da informante que analisarei adiante e de modo especial na trama de relações de poder na que ela está inserida. Segundo Saffioti (1992) “gênero é um campo primordial dentro do qual ou por meio do qual o poder é articulado”. A construção do gênero pode ser compreendida como um processo infinito de modelagem-conquista dos seres humanos, que tem lugar na trama de relações sociais entre mulheres, entre homens e entre mulheres e homens.

Com a finalidade de refinar minha compreensão sobre as atribuições de poder e seus usos no Candomblé Ilê Asé Ogum Omimkaye determinadas leituras foram imprescindiveis. Autores que utilizaram a etnografia como elemento base de suas pesquisas como Pierre Verger (1992), Roger Bastide (1971; 1978), Edson Carneiro (1967), Ruth Landes (2002), Vivaldo Costa Lima (1977), Klaas Woortmann (1987), Leni Silverstein (1979), Renato da Silveira (2006), entre outros, constataram a forte presença e importância das mães-de-santo nos Candomblés, e alguns deles confirmam, como Landes (2002) e Carneiro (1967), que boa parte dos terreiros, no início do século XX, era dominantemente liderada por mulheres. Nas próximas linhas apresentam-se as primeiras sistematizações de um estudo etnográfico em curso, assim como uma análise preliminar da narrativa de mãe Dulce, Yalorixá do Ilê Asé Ogum Omimkaye, quando entrevistada para iniciação da construção da tese.



2 – PRIMEIROS DIÁLOGOS
No dia em que fui entrevistar, como pesquisadora, Mãe Dulce cheguei ao local aproximadamente às treze horas e quinze minutos, do dia 11 de setembro de 2012. O acesso à parte interna do imóvel se dá através de um portão lateral que chega até a cozinha da casa, onde percebi que há uma mesa grande de madeira ao centro, rodeada de bancos. A casa onde funciona o Candomblé é ampla, possui 15 cômodos, servindo de moradia para a família biológica de mãe Dulce, sendo que, nas ocasiões festivas do terreiro, esses espaços também são ocupados pelo povo-de-santo. O lugar de funcionamento dos serviços religiosos compreende 01 sala de estar, 01cozinha, 04 banheiros, 12 casas de orixás e anexos em estagio de construção, além de um amplo barração. Este terreiro possui sede própria onde, sobretudo em período de festas, circula em média 130 pessoas. Destas, cerca de mais de ¼, são associadas, se constituem nos freqüentadores (as) mais assíduos. Eles (as) se encontram envolvidos nas mais diversas atividades do terreiro, tais como reuniões administrativas, celebrações religiosas. O Ilê Asé Ogum Omimkaye é um terreiro de linhagem Ketu, localizado em Cajazeiras, na Fazenda Grande III, no subúrbio de Salvador – BA, que existe há mais de 20 anos, de predominância e de liderança feminina. Este candomblé se traduz em instituição solidamente estabelecida, apresentando características religiosas tradicionais e modernas, sob a liderança da Yalorixá Dulce Silva Lino.

Mãe Dulce tem 66 anos, de cor negra, heterossexual, aposentada, mas, atualmente, exerce a função de Yalorixá; de nação Ketu, nasceu na cidade de Cachoeira, interior da Bahia e, ainda bem jovem, migrou para Salvador. Possui o 2º grau completo, é técnica em saúde, separada do primeiro cônjuge, e atualmente em união estável com um segundo parceiro. Reside na Fazenda Grande III com seu marido e uma neta de maior idade. É mãe biológica de 04 filhas e 02 filhos, frutos do primeiro casamento, ambos residem em suas próprias casas, em outro endereço. Após o descanso do almoço em animada conversa sobre os candidatos políticos da cidade, nos dirigimos para a parte dos fundos onde se encontra um grande e arejado barração com muitas cadeiras, quadros nas paredes, representando as entidades do Candomblé, tambores e símbolos cerimoniais, onde são celebradas as festas religiosas e ocorrem alguns atendimentos. A conversa com mãe Dulce se deu neste local.

Neste primeiro contato foi privilegiada uma conversa mais leve sobre a história de vida de mãe Dulce e suas experiências familiares, assim como sobre sua inserção no Candomblé. Em principio, ela falava pouco e esperava minhas perguntas para ela responder, mas, logo em seguida, a conversa fluiu mais naturalmente e as histórias começaram a surgir sozinhas, sem eu ter que interromper ou perguntar.

Mãe Dulce contou que nasceu no interior da Bahia, na cidade de Cachoeira. Sua experiência no Candomblé já conta 27 anos, nasce da sua tradição familiar; seu pai biológico era pai de santo da nação Nagô, sua mãe da nação Angola, e ela nasceu na nação Ketú, frisando com clareza que seriam estas três nações diferentes, “terras diferentes”4.4 Após a morte de sua mãe biológica, quando tinha um ano de idade, mãe Dulce foi adotada por um de seus irmãos mais velhos e sua esposa, que também era sua madrinha, casal que a registrou como filha aos quinze anos, às vésperas de seu casamento, completou que seu pai biológico teve “ns” filhos e não registrou nenhum.

Mãe Dulce nos conta que estudava escondida do pai, com quem manteve contato, e depois escondida do pai adotivo, com quem morava regularmente, ambos eram contra que “mulher” estudasse e nos citou sorrindo que era para evitar “escrever bilhetinhos para namorado”. Sua trajetória escolar apresenta-se concatenada com as relações de poder, ou seja, relações de gênero, pois nossa entrevistada lembra-se que após seu casamento aos quinze anos seu pai adotivo disse a seu marido para não deixá-la estudar, pois “onde já se viu mulher casada estudar”, ela complementa, “eu estudava na tora”5.5Mesmo com todas as imposições e as dificuldades completou o ensino médio e se formou como auxiliar de enfermagem, nos contou que sua mãe adotiva a ajudava a estudar escondida, esperavam que o pai adotivo saísse para trabalhar para que ela pudesse ir à escola. Depois do casamento nos contou que, por várias vezes, seu marido levava as crianças pequenas para a escola e as deixava no meio da sala de aula para tentar impedir que ela estudasse; o que não aconteceu, pois pelos registros da fala dela possuía amplas redes de solidariedade feminina que estiveram presentes em sua trajetória, auxiliando-a e, quando acontecia de o marido levar seu filho pequeno “ai a professora dizia: se preocupe não, segure aqui o menino dela aí, pra poder fazer o trabalho dela”.

As relações de poder emergem de nítidas construções da história de vida de mãe Dulce, revelando que dentro das emergências simbólicas da dominação masculina, um diálogo constante é travado entre os gêneros, propiciando disjunções e estratégias mais elaboradas para se contrapor ao poder estatuído. Estudar não seria possível, para mãe Dulce, por imposições de seu pai adotivo que em contrapartida também era seu irmão mais velho e chefe da casa; porém, com o apoio de sua mãe adotiva conseguia burlar as regras desse poder masculino e estudar escondida, se apoiando no poder e solidariedade da mulher que ocupava o lugar de esposa do chefe da casa e sua mãe adotiva. Após seu casamento, aos quinze anos, seu marido também dificultava seu acesso à escola, utilizando como uma das estratégias de impedimento levar para a sala de aula o filho ainda muito pequeno. Mãe Dulce, contando com uma rede solidária, composta por professora e colegas de classe, conseguiu flexibilizar as relações de dominação agora desse marido, resistindo às imposições e desejos dos homens da sua vida, através das relações de poder e estabelecendo normas de conduta e vivência que propiciaram, de algumas maneiras, sua permanecia na escola.

A concepção do ser “pai” nas relações familiares de mãe Dulce deu a seu irmão mais velho, que lhe adotou como filha, a pretensa gerência sobre sua vida prática, social e cotidiana, determinando diretrizes a serem seguidas, assim como os campos em que poderia atuar, se relacionar e conviver, campos esses fragmentados e estendidos pela mesma a partir de sua conduta que burlava a imposição das regras. Na fala de mãe Dulce isso aparece claramente quando a mesma retifica que estudava escondida, pois seu pai adotivo não permitia; no entanto, a observação de Bourdieu (1998) fica evidente na fala de mãe Dulce, que o poder é representado pela força do campo social e das relações com o pai. Temos então o mundo simbólico articulado por mãe Dulce se opondo ao mundo simbólico articulado pelo pai – onde as duas visões de mundo passam a se confrontar a partir das instâncias de poderes e posições destes dois sujeitos que são distintos, e que se transformam e promovem uma ação sobre o mundo, nessa relação e interação.

Mãe Dulce não entrou de “imediato” no Candomblé, antes disso, conta ela que foi cristã (evangélica da Assembleia de Deus) por dois anos, “mas o negócio não funcionou não”, a partir deste momento, de acordo com mãe Dulce, “começou a aparecer os problemas de Orixá”:

“[...] comecei a me sentir mal ter vários problemas... é de saúde e os médicos não diziam... diziam que eu não tinha nada assim o medico psiquiátrico né eu dizia que não tinha nada que passasse a dor de cabeça que eu tinha... dor de cabeça terrível e ai os médicos diziam: Dulce você não tem nada... mas eu não durmo é uma dor de cabeça terrível, andava com o rosto inchado - essa situação toda que surge quando a pessoa tem problema espiritual não cuidado-, ai eu tive que ir para frequentar o Candomblé, foi quando foi dito que por questão de...da minha situação de família que todos eram do Axé eu tinha que cuidar do Orixá...ai eu fui pra uma casa em Tancredo Neves que foi uma senhora, uma vizinha minha que me levou...que o médico falou assim: olhe eu vou lhe dar essas medicações...você agora vai usar seis tipos de remédios...se você não ficar boa eu vou lhe internar...era dor de cabeça terrível, era muita dor de cabeça minha filha eu arrumava a cabeça na parede [...]”

Mãe Dulce deixa muito claro em sua fala as relações de sua história de vida com a sua religiosidade, atribuindo a cura de seu problema de saúde, até aquele momento “misterioso” para os médicos, com a sua entrada em definitivo no Candomblé. Para mãe Dulce a cura só foi possível quando passou a aceitar os Orixás e a se dedicar aos serviços religiosos, dando início a sua trajetória como “zeladora de Orixás” em uma casa de Tancredo Neves, Beirú. Durante seus problemas de saúde dizia:

“[...] meu Deus eu não sou maluca, eu não estou maluca eu sinto que eu não sou maluca eu vejo tudo, eu faço tudo, mas esse negócio não tá certo... E ai essa Yalorixá, a minha mãe de santo que eu venero muito ela já morreu né, há 14 anos, porém eu amo como se ela tivesse viva porque foi quem me deu as mãos... Então ela disse ó minha filha você tem que cuidar da sua cabeça se não você vai morrer maluca, porque eu tive uma irmã que morreu maluca porque ela não quis se cuidar lá em Cachoeira... Ai eu comecei a me cuidar no Axé, fazer os procedimentos que tinha que ser feito e depois disso eu fiquei boa [...]”

Mãe Dulce considera que o seu ingresso no Candomblé se deu aos 29 anos, quando começou a frequentar a casa de Tancredo Neves para seus primeiros cuidados de saúde e religiosos, nos relata que os remédios dos médicos nunca surtiram efeito e que tinha certeza que morreria “maluca” se não houvesse se cuidado através do Axé. Sua admiração pela Yalorixá Eunira Costa Oliveira que começou seus primeiros cuidados e que lhe iniciou no Candomblé é evidente; considera que a mesma representa sua mãe, pois é uma figura viva em sua memória a quem tem respeito e laços de afeto muito grandes.76A partir destas falas podemos perceber as dimensões que o Candomblé como comunidade religiosa pode atingir, os laços que se estabelecem entre “filhos”, “filhas” e participantes das casas; os laços se estabelecem através de afetos recíprocos e da grande teia de solidariedade que se forma para resolução de diversos problemas, dentre eles os de saúde. O apoio da Yalorixá, mãe de santo de mãe Dulce, ultrapassou os limites do auxilio de saúde, pois, de acordo com os relatos desta, os laços que se estabeleceram entre “mãe” e “filha” foram como se a mesma houvesse sido filha biológica. Dona Dulce conta que sua mãe de santo tinha alguns problemas de saúde dentre eles certas dores na coluna, para ajudar nos serviços religiosos ela, mãe Dulce, ficava várias horas no terreiro para auxiliar no preparo dos alimentos, na limpeza do espaço e para costurar as roupas cerimoniais com a finalidade de poupar sua “mãe” das dores na coluna.

É neste contexto que podemos observar princípios de famílias baseadas na “matrifocalidade”, onde a mãe de santo assume outro significado. Olhado a partir de um mais amplo sentido da organização social, alguns terreiros podem ser considerados comunidades religiosas centradas no poder da “mãe” ou em uma “matrifocalidade”. Em outras instâncias, podemos, também, considerar que esta característica marca grupos empobrecidos na Bahia, como clarificou Woortmann, as mulheres neste contexto detêm a maior parte do controle da casa, desempenham um papel fundamental sobre os recursos econômicos da família e integram a família em redes de parentesco (WOORTMANN, 1987. p. 289). Outro ponto importante a ser destacado é que as relações de parentesco nas famílias negras perpassam pela ordem estrita dos laços maternos, de acordo com Marcelin (1999, p. 44), o sangue estabelece o acesso ao parentesco, sendo o ciclo completo a partir dos laços de consideração mútua; estas instâncias, porém, sendo articuladas em torno da “mãe”. Os vínculos de parentesco essenciais para a gerência da família passam pelos dados biológicos do símbolo materno, e o “[...] que dá conta desse laço é o cordão umbilical que liga os irmãos através da mãe. É pela mãe que o parentesco entra no mundo e é pela mãe que ele sairá (se tiver de sair)”.

A história de vida de mãe Dulce demonstra que antes de receber o título de “mãe” tinha tido antes uma “mãe”, sua Yalorixá que lhe cuidou e lhe iniciou no Candomblé, pessoa através da qual e pela qual suas atribuições e responsabilidades como filha e depois como mãe se constituíram. Podemos considerar que a palavra “mãe” e a apropriação desta, simboliza dentro do Candomblé a própria investidura do poder, pois é a “mãe de santo” que carrega as determinações dadas pelos Orixás para reger sua comunidade e deliberar as ações necessárias para que a mesma permaneça; em contrapartida a investidura do poder sobre a “mãe” dá à comunidade a certeza do auxílio da sacerdotisa nos momentos de necessidade, pois a palavra “mãe” por si só carrega dentro de si as atribuições do cuidado, as ligações simbólicas existentes socialmente entre mães e filhos (as). Para a antropóloga feminista Leni Silverstein (1979):

A “força” da mãe-de-santo é demonstrada por sua habilidade de mediação entre as pessoas e os Orixás. Cabe a ela resolver todas as questões relativas aos santos. Sua força aparece, quando jovem no terreiro, como uma qualidade inata, uma herança dos deuses, e uma vez percebida (por outra mãe-de-santo) esta força é cultivada e consideravelmente ampliada por um treinamento longo, árduo e cuidadoso, em ambos os níveis espiritual e administrativo... A mãe-de-santo é então uma mulher “escolhida”, especialmente indicada pelos Orixás e que herdou e desenvolveu certas características de personalidade (tais como carisma, personalidade forte, inteligência aguda, autoridade, sensibilidade, capacidade de mando) que lhe facilitam a direção de seu terreiro e seu relacionamento com os Orixás. Através do controle do conhecimento das tradições e segredos do Candomblé e de sua profunda experiência com os mesmos, a mãe-de-santo efetivamente desenvolve seu poder e autoridade para interpretar, intervir e trabalhar com os Orixás. Conhecimento, de acordo com a teoria do culto do Candomblé, é essencial para o serviço adequado dos deuses e para a aquisição do status e prestígio que se adquire com o tempo e a experiência. A mãe-de-santo é então o repositório personificado de todos os elementos que compõem a tradição oral, assim como da conduta simbólica mais importante junto aos Orixás (SILVERSTEIN, 1979; p.48).

Com base nessa visão de poder religioso definido pela autora sobre a Yalorixá “qualquer esforço de correlacionar o que ocorre dentro de um terreiro com o mundo exterior, este é raramente feito, expresso pela posição de classe, de raça ou de política dos participantes que afetam a evolução corrente da vida dos cultos”. Dessa forma, o Candomblé tem sido estudado principalmente “de dentro”, e como um domínio isolado, dando a ideia de que “a mãe-de-santo e a família-de-santo vivem num vácuo, onde tudo que é essencial para uma existência material e espiritual satisfatórias é o favor dos deuses” (SILVERSTEIN, 1979; p. 148-149). Edison Carneiro (1948, p.144) propõe que “o Candomblé é um ofício de mulher – essencialmente doméstico, familiar, intramuros, distante das lutas em que se debatem os homens, à caça do pão de cada dia”. Neste sentido, o poder da mãe-de-santo está situado, para ele, dentro da esfera doméstica, e é tão somente no domínio da família-de-santo que a mãe-de-santo reina suprema. Neste caso, o poder religioso se transforma apenas em poder doméstico. Para Leni Silverstein (1979), Edison Carneiro enfatiza o papel central da mulher no Candomblé, mas sustenta uma atitude patriarcal generalizada de que o lugar da mulher é no lar. Ele reforça uma noção romântica e etnocêntrica de que a família-de-santo não têm vínculos com a esfera política do homem, a esfera onde a principal batalha pela sobrevivência é sustentada. Ele não vê o fato de que “dentro da própria organização social do Candomblé existem os mecanismos através dos quais a família-de-santo sobrevive, se sustenta e cresce, isto é, se reproduz socialmente” (SILVERSTEIN, 1979, p. 150).

Ruth Landes proporcionou os primeiros suportes teóricos para pensarmos o poder das mulheres nos Candomblés da Bahia, seus interesses nas questões raciais entrecortadas pelas relações de gênero e sexualidade nos propiciaram espraiar mais amplamente os cultos religiosos de matrizes africanas através de novas perspectivas. Landes foi uma das primeiras antropólogas a abordar, através de estudos etnográficos, o Candomblé e a cultura-afro como possuidores de dimensões não homogêneas; abrindo novas fronteiras na antropologia da religião afro-brasileira, e trouxe-nos a este novo contexto com uma riqueza e densidade de descrições etnográficas que partem mais da complexidade e fluidez, em um contínuo movimento da realidade social; situando a cultura afro-brasileira de um modo inovador e historicamente fundamentado. A autora apontou determinadas singularidades do Candomblé baiano, evidenciando o poder das mulheres em seus diferenciados contextos e o aumento gradual na participação de mulheres como mães de santo nos terreiros mais tradicionais (LANDES, 2002, p. 351). Para Landes:

Foi nas regiões latino-americanas que as mulheres negras encontraram maior reconhecimento do seu próprio povo e dos senhores. Uma distinta sacerdotisa da Bahia chamou a sua cidade a “Roma Negra”, devido à sua autoridade cultural; foi aí que as mulheres negras atingiram o auge de eminência e poder, tanto sob a escravidão como após a emancipação. Controlando os mercados públicos e as sociedades religiosas, também controlaram as suas famílias e manifestaram pouco interesse no casamento oficial, por causa da conseqüente sujeição ao poder do marido. As mulheres conquistaram e mantém a consideração dos seus adeptos masculinos e femininos pela sua simpatia e equilíbrio, bem como pelas suas capacidades. Não somente não há noticia de rejeição por parte dos homens das atividades das mulheres, como indícios surpreendentes da sua estima pelas matriarcas surgem nos esforços de certos homossexuais passivos em penetrar nos sacerdócios (LANDES, 2002, p. 351).

Adentrando mais nas histórias de sua vida, mãe Dulce nos contou que precisou fazer escolhas difíceis, ao nos falar sobre seu casamento revelou que casou-se “com toda a pompa e circunstância”, com noivado, casamento na igreja e festa. Mas que depois que entrou no Candomblé “meu marido me deixou por causa disso, alias eu o deixei por causa do Axé”:

“[...] isso é um fato muito interessante porque ele não gostava né a família dele é espirita e ele não aceitava eu no Axé ele dizia que era coisa de gente ruim coisa de gente de baixo nível estas coisas todas que as pessoas falam... falavam e ainda falam por ai então ele não aceitava... quando chegou um certo tempo eu tive uma revelação assim em sonho né... o Orixá dizia pra mim que eu ia morrer e meus filhos iam ficar todos ai, e eu via a minha cabeça toda cheia de água... aquela água purulenta... então eu falei é eu tenho que tomar a decisão quando eu procurei saber com os mais velhos [disseram] seus Orixás a partir de hoje não querem mais que você volte pra sua casa...onde eu morava com meu marido e mais meus seis filhos...e eu não fui...e a partir desse dia eu deixei ele em prol da minha saúde e meus filhos e se eu morresse quem ia cuidar de meus filhos? Foi uma luta pelo Axé, uma luta muito grande que eu tive, uma resistência [...].”

Podemos observar nas falas de Dona Dulce que desde seus primeiros passos no Candomblé a discriminação já estava presente em seu cotidiano dentro de sua família e em seu local de trabalho, ela elenca que a separação do marido foi decidida por compreender que o culto religioso em sua vida era de extrema importância não se sentindo constrangida em dizer que deixou seu marido por causa do “Axé”, ou seja, sua compreensão do mundo religioso redimensionou suas práticas cotidianas, dando novos significados de mundo e reelaborando seus conceitos de família, saúde, filhos e existência. É importante observar que para Geertz (1978), os indivíduos, por meio da religião, adquirem certas disposições e experienciam certos atos e sentimentos, construindo uma maneira muito própria de “estar no mundo”, de compreendê-lo e de se posicionar frente a ele. Neste sentido, podemos inferir que a religiosidade do Candomblé não se diferenciaria apenas em termos de cosmologia, mas também em termos das disposições emotivo-efetivas, e do ethos que adeptos logram interiorizar. Dentre as religiões, a do Candomblé, sem dúvida, possui um ethos e uma “visão de mundo” bastante particular, tendo por fundamento a busca da conservação e do crescimento constante da força vital; enquanto fonte inesgotável da vida e de todas as felicidades.

Os conflitos foram resolvidos a partir de reconstruções simbólicas do mundo agregadas as novas dimensões de poder. Mãe Dulce, antes, se sentindo sem nenhuma investidura social de poder, manteve-se com o marido; mas, ao deixá-lo, acabou por acessar as relações de poder que a religiosidade lhe proporcionava através do Candomblé, exercendo as possibilidades que se apresentavam a partir do novo mundo em que se inseria. Vale ressaltar que os conflitos dos cônjuges dimensionados pelas compreensões do sagrado, onde o marido era espirita e a mulher de religiosidade afro descendente demonstra relações de poder que são entrecortadas por categorias de raça/etnia/gênero. Essa análise se aporta na fala de Dona Dulce quando relatou que seu marido lhe dizia que o Candomblé era “coisa de gente ruim... coisa de gente de baixo nível”; estas falas remetem as crenças sociais embutidas em um discurso determinado pelo cristianismo, desde tempos da escravidão que colocou a religiosidade dos negros como manifestações de baixo nível, primitivas e ligadas a possessões demoníacas; estas crenças nos campos das subjetividades colocam em conflitos sujeitos a partir de sua inserção religiosa e proporcionam novos limites para o exercício e para a compreensão do poder das mulheres no Candomblé.



4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
As falas da Yalorixá Dulce são muito ricas e se apresentam dentro de contextos situados historicamente que foram por ela trazidos a partir de suas memórias e importantes experiências de vida que revelam alguns insights sobre relações de poder que a marcaram, dialogando e se posicionando frente a elas e entre si e sendo modificadas a partir da compreensão de mundo e de práticas cotidianas que ela tem do seu passado. A partir desses primeiros contatos percebe-se que as relações de gênero são uma categoria destinada a abranger um conjunto complexo de relações sociais, bem como a se referir a um conjunto mutante de processos sociais historicamente variáveis. Gênero é o instrumental analítico mais apropriado para a percepção das relações sociais de poder entre diferentes sexos e para explicar como ocorre nesta situação uma inversão de papeis sociais, isto é, um de maior protagonismo feminino em uma sociedade ainda marcada pelos princípios de dominância masculina. O gênero, tanto como categoria analítica quanto processo social, é relacional. As relações de gênero são processos complexos e instáveis (ou totalidades temporárias na linguagem dialética) constituídos por e através de partes inter-relacionadas. Essas partes são interdependentes, cada parte não tem significado ou existência sem as outras. Por isso, e desta concepção mais dinâmica e relacional de gênero nos interessa não só estudar a mulher e líder deste terreiro, mas, também, as relações de gênero que se desenvolvem no terreiro, pela identificação dos distintos papéis que homens e mulheres exercem, cargos que ocupam e sua posição nesta estrutura hierarquizada do candomblé.

Temos total entendimento de que qualquer posição feminista será necessariamente parcial. Nenhuma de nós pode falar pela “mulher” porque tal pessoa só existe dentro de um conjunto específico de relações (já em termos de gênero) - com o “homem” e com muitas mulheres concretas e diferentes (HARAWAY, 1995). Essa posição supõe que os oprimidos têm uma relação privilegiada (e não apenas diferente) e habilidade para compreender uma realidade que está “lá fora,” esperando por nossa representação. Ela também pressupõe relações sociais de gênero nas quais há uma categoria de pessoas fundamentalmente semelhantes, ela supõe a diferença que os homens atribuem às mulheres. Supõe que as mulheres, diferentemente dos homens, podem estar livres de determinação em função de sua própria participação em relações de dominação como aquelas oriundas de relações sociais de raça, classe, homofobia, lesbofobia e religião.

Portanto, não há força ou realidade fora de nossas relações sociais e atividades que nos livrará de parcialidade e diferenças. Nossas vidas e alianças dizem respeito àqueles que buscam mais profundamente descentralizar o mundo – embora devamos nos reservar o direito de suspeitar igualmente de seus motivos e visões. As teorias feministas têm a função de nos estimular a tolerar e interpretar a ambivalência, a ambiguidade e a multiplicidade, bem como de expor as origens de nossas necessidades de impor ordem e estrutura, não importa quão arbitrárias e opressivas essas necessidades possam ser (FLAX, 1991).
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1


2* Mestra em Ciências da Religião (UMESP). Doutoranda do PPG-NEIM/UFBA; bolsista da FAPESB, pesquisa relações de poder no candomblé, atuando na área de religiosidade negra com tema em gênero e poder.

3* Prof.ª do Departamento de Sociologia da UFBA. Coordenadora do Laboratório de Investigações em Desigualdades Sociais do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (LIDES-PPGCS). Orientadora de Sílvia Barbosa no PPG-NEIM/UFBA.

44 A população negra escravizada no Brasil pertencia a diversos grupos étnicos africanos, eram eles Yorubás, Ewe, Fon, Gêges, Bantus etc. Em diversas regiões do país, a religião destes grupos tornou-se semi-independente, evoluindo em diversas “divisões” ou nações de Candomblé, como Nagô, Angola, Ketu. Essas “terras diferentes” se distinguem entre si pelo conjunto de divindades veneradas, pelo toque do atabaque, pelas canções ritualísticas, e pelo idioma africano usado nos rituais. As 16 divindades mais veneradas pela nação Ketu são: Exú, Ogum, Oxóssi, xangô, Oxalá, Ossanhe, Oxumaré, Lugunedé, Iewá, Obá, Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã, Omolú e Oxumaré.

55 A palavra “tora” é uma gíria popular baiana, de especificidade soteropolitana, que no termo empregado por mãe Dulce significa “dificuldade extrema”.

67 Mãe Dulce só considera sua entrada no Candomblé a partir de sua aceitação e frequência no terreiro, se dedicando ao serviço religioso inteiramente e sem a intervenção de outras religiosidades.


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