O lirismo contemporâneo de delermando vieira



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O LIRISMO CONTEMPORÂNEO DE DELERMANDO VIEIRA
Rainer Maria Rilke
Somente o poeta juntou as ruínas

de um mundo desfeito e de novo o fez uno.

Deu fé de beleza nova, peregrina,

e embora celebrando a própria má sina,

purificou, infinitas, as ruínas:

assim o aniquilador tornou-se mundo.
BAUDELAIRE


RESUMO: A fala da lírica de Delermando, na sua maneira enigmática e obscura, exprime as perspectivas da lírica contemporânea que não pode ser colocada em dúvida quanto à sua significação. De acordo com Hugo Friedrich, em sua Estrutura da lírica moderna (1978), a obscuridade dessa lírica fascina o leitor “na medida em que o desconcerta. A magia de sua palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, fazer-se compreensível” (Idem,p.16). Esta tese defende a ideia da poesia como uma criação auto-suficiente, plurissignificativa, “consistindo em um entrelaçamento de tensões de forças absolutas, as quais agem sugestivamente em estratos pré-racionais, mas também deslocam em vibrações as zonas de mistério dos conceitos” (Friedrich, 1978, p.16). Nesse sentido, a obra poética de Delermando Vieira tem como prioridade a polissemia da linguagem com seus mistérios e matizes, mesmo que este poeta seja acusado muitas vezes de enigmático. No entanto, a poesia é mesmo um enigma e um ouriço não muito acessível.
Palavras-chave: Lírica; Contemporaneidade; Arte; Poesia; Conhecimento;

Agora & na Hora de Nossa Morte
A primeira condição para penetrar na lírica de Delermando Vieira é mergulhar no “discurso-rio” da linguagem poética deste artista da palavra. Nesse mergulho, o leitor deve procurar os sentidos das palavras e descobrir sempre novos mundos e interpretações. A poesia de Delermando exige atenção, conhecimento e sensibilidade. Seus textos são densos e possuem lâminas que sangram uma existência dolorida e conduzem os leitores a um mundo de verdades e vivências.

Ao contrário do poeta que ainda acredita na poesia como expressão do “eu”, este poeta, como um sujeito lírico moderno, sabe perfeitamente que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem e não lhe é possível mais do que isto: o poeta moderno se vê projetado no mundo exterior sabendo que desse mundo só poderá fazer apenas uma tradução parcial.

Na poesia contemporânea, o sujeito explicitado como “eu” não se refere a uma pessoa particular. A poesia não alimenta nenhuma ilusão de ser um armazém de emoções reais. Existe uma distinção entre o poeta do texto e o poeta real, isto é, entre aquele que fala no poema e o homem comum que escreve. Aquele que fala no poema é o “eu” poético, que é a presença do poeta no texto, enquanto sentimento que se revela.

A primeira parte de “Agora & Na Hora de Nossa Morte” canta a finitude dos rios, das águas, dos peixes, a morte nas suas formas e fôrmas, seus gumes e cores, seu passo inexorável: A morte dos rios, / peixes; / a morte súbita, / náufraga, / insustentável, / de cada tronco, / árvores e frutos / fluxos sazonais na perpendicular / obsessão / dos loucos, / dos bichos, / das grandes cidades / nos templos, / no mundo; / a morte do boi, / do vento – / o zunido comendo as parcas sandálias / da tarde, / horizontalmente. / A morte das horas, / dos ponteiros / dos relógios, / da funesta sombra / de um corpo decrépito pendurado / na forca do caibro de um cômodo miserável / A mísera morte de um mendigo / em pleno meio-dia, / fedendo mijo em seus trapos, / o pão mofo / e a caneca de moedas esparramadas na calçada.

O “eu” poético filosofa sobre a morte como um fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, um animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz, uma época. Ele não fala da morte de uma tempestade, mas da morte de um belo dia. Enquanto símbolo, a morte é aspecto perecível e destrutível da existência. Ela indica aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas: está ligada ao simbolismo da terra, mas também ao mundo dos desconhecidos: inferno ou paraíso.

A morte nesta lírica é revelação e introdução. Todas as iniciações atravessam uma fase de morte, antes de abrir o acesso a uma vida nova: A morte da alegria, / do salto para o Nada, o Absoluto, / o trapezista feito plasta / esborrachado no chão. / A morte dócil, / frágil, / amarela, / infantil, / no rosto da criança desnutrida, / descorada, / arrasada – / mortemarter dolorosa; / pungente, / aquela, / ela, / rosto de anjo / espelhando no ataúde o que nenhum mortal / – ainda vivo – / seria capaz de imaginar, / compreender.

A morte, no sentido em que está sendo apresentada no poema, tem um valor psicológico: ela liberta das forças negativas e regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de ascensão do espírito: A morte, / Morte e Vida Severina, / de Cabral de Melo Neto – / “esta cova em que estás” / A morte, / insana morte, / onde apenas uma côdea de feijão / pincela e sustenta / – no vácuo – / a sustentável agonia / da boca sem ação. Ou seja a morte: A morte de Inês, / meu outro amor, / tão pura, / tão bela, / mas que comi muitas vezes / não paiol da estância de meu avô. / Pobre Inês! / como foste gostosa, / tarada, / ela louca, / angelical, / gemendo, / retorcendo-se feito cana-de-açúcar, / sob o fogo chiando, / estalando impiedosamente! / A morte, / sim, / a morte do poema Momento Num Café, / de Bandeira, / “a alma extinta, / liberta para sempre da miséria”.

Os místicos, de acordo com os médicos e os psicólogos, notaram que em todo o ser humano, em todos os seus níveis de existência coexistem a morte e a vida, isto é, uma tensão entre duas coisas contrárias. A morte, assim interpretada, é talvez a condição de uma vida superior em outro nível. Conforme Nicola Abbagnano (1999), em sua “relação específica de coexistência humana, a morte pode ser entendida: a) como um ciclo de vida; b) como o fim de um ciclo de vida; c) como possibilidade existencial”. (p. 663).

Isso não impede que o mistério da morte seja tradicionalmente sentido como angustiante e figurado com traços assustadores elevados ao máximo, à resistência, à mudança e a uma forma de existência desconhecida, mais do que o medo de uma absorção pelo nada: A morte / estranha, / trágica, / trêmula, / túrgida, / dos náufragos, / dos bêbados – / os rebentos da solidão! (...) / A morte também / de Cora Coralina, / morre mulher, / no timbre, / no só e o pó / das palavras revelando / o vermelho no vento / dos becos de Goiás – / “Venho do século passado...” / (ah, quem foi que disse que a poesia / não morre?).

O poema exterioriza toda uma prescrição poética sobre a morte, desde A morte de um / dos homens esmagados pelas patas de um / paquiderme / num longínquo circo de Bombaim / na Índia. / A morte (depois) inocente / do paquiderme fuzilado pelos / trovões-de-fogo / dos guardas – / seu barrido rompendo as fibras, / os lenhos do vento, / dando adeus à vida. / A morte, / a pública morte dos meninos da Candelária / no Rio, / os estampidos dos tambores cuspindo balinhas / não tão doces: cruéis, / amargas demais para a Vida! / A morte / dos sem-terra / (no Pará); / morre sem terra, / sem água, / sem Deus, / assassinada, / enterrada até o pescoço! Enfim, o texto explicita a morte como falecimento das coisas naturais ou em sua relação específica com a existência humana. O discurso enquanto poetiza um conceito filosófico, torna presente, isto é, presentifica uma realidade pré-existente, um mundo vivido pelo artista da palavra, agora transfigurado em forma de poesia.

Ao mudar a figura da realidade, o discurso poético não se contenta em “fotografar o real”, mais do que isso, a arte interroga o mundo sobre sua realidade e a linguagem sobre sua obsessão de uma adequação perfeita ao ser do mundo: A morte / a minha morte, / como e quando será? / A morte, / a morte minha, / made in Brazil, / made in cerveja, / made in paixão / made in loucura, / como e quando será? (...) / Terei enfim no pulso, / por encanto, / o colar, / as serpes: aros de Lúcifer!

Esse texto, na qualidade de uma obra de arte, tem a propriedade de abrir-se sobre a totalidade do mundo para dele nos dar a ver e viver o essencial. E, enquanto abre-se ao mundo e à sua “realidade”, visa não uma explicação, mas uma tomada de consciência em relação ao próprio ser das coisas: uma interrogação.

Pois, o que é essencial? Sem dúvida, a coisa mais simples entre todas e que desde sempre constituiu o problema por excelência, digamos, o problema metafísico e humano. O ser implica o não ser como sua condição, a vida segue a presença da morte, e o viver é, ao mesmo tempo, a existência do fim: toda a manifestação de vida do ser se confunde com a interrogação do propósito do que fazemos e para que fazemos. A vida, como a linguagem poética, é sua interrogação. Maurice-Jean Lefebve (1980), em sua Estrutura do discurso da poesia e da narrativa quando discute sobre a realidade teórica-prática – e realidade metafísica-estética, explicita que “o essencial do mundo é a interrogação que lhe dirigimos e a que ele nos dirige a propósito da sua essência (da sua realidade) e da sua possibilidade de aparição” (p. 121). E, fundamentada nesse princípio do discurso poético, é que esta obra poetiza enquanto formula o problema da dimensão do ser do homem.

Funeral de um corpo Vivo
“Funeral de um Corpo Vivo” (p.27) é um quadro existencialista formado por sete poemas: “Rio inesgotável” (p.31), “Caminho” (p.32), “Que de tão surdo” (p.33), “Solidão” (p.35), “As parcas sandálias” (p.36), “Sibylla” (p.37) e “Funeral de um corpo vivo” (p.39). Todos esses textos despertam o homem para sua humanidade perdida no deserto da realidade. A poesia de Delermando é um grito que, ao falar da morte, fala antes de tudo da vida, de todas as vidas. A arte do autor de Os labirintos do novelo é um grito vitorioso, a sua vitória verbal. Com muita propriedade, esta poética transporta o homem do simples estar para o eterno ser: conduz a criatura a perceber sua humanidade, inteligência, criatividade, existência dentro desse universo tão amplo, tão cheio de perguntas e respostas, aparentemente herméticas, mas compreensíveis para o homem que contempla a vida e filosofa sobre a existência de tudo.

Rio Inesgotável

O poema “Rio Inesgotável” (p. 31) apresenta uma dúvida supra-sensível que filosofa sobre a essência dos seres. Ao mesmo tempo põe em evidência a intersecção dos dois movimentos de sentidos opostos, cuja natureza está explicitada em Lefebve (1980): “a obra literária é lugar de uma dupla intenção ou de um duplo movimento: um primeiro movimento, que poderíamos dizer centrífugo e pelo qual ela se abre ao mundo exterior e aos seus problemas, e o visa pondo-lhe a questão da sua “realidade”; um outro movimento, agora centrípeto, que tende, pelo contrário, a fechar a obra sobre si mesma, a construí-la como seu próprio fim e como seu próprio sentido, num esplêndido isolamento” (p.14). Desta forma, o texto artístico pode fechar-se sobre si mesmo enquanto linguagem e abrir-se para as coisas do mundo, reproduzidas numa presença total, numa realidade inigualável. Esse “Rio Inesgotável”, tanto pode ser a linguagem poética refletindo sobre a sua pluralidade, ou seja, sobre as várias significações realizadas na produção artística, como pode também representar uma reflexão sobre a existência do “Rio Inesgotável” que mora no ser. Destarte, este rio que não se esgota, que é muito abundante, significa, ao mesmo tempo, o rio da linguagem poética e o rio como a existência do ser humano.

Não sei por que me tenho

insólito e maldito,

se fala é meu poema

no silêncio do meu grito.


Não sei por que me vejo vivo

enterrado,

assim carpido,

doido,


calado.

(p.31)
Sobre este rio inexaurível do ser, Nietzsche escreve que “ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho onde só tu podes passar. Onde levas? Não perguntes, segue-o” (www.encantosepaixoes.com.br/poesia1742.htm).

O “eu” lírico mergulha no reino infinito do espírito que é o objeto da poesia, e nesta inclinação sobre a linguagem literária, o “eu” poético encontra imagens, lembranças e fica marcado por incertezas acerca da realidade de um fato ou da verdade de uma asserção. Dessa indagação surge Baudelaire:

Não sei,


sequer imagino, Baudelaire,

esta infernal agonia,

se o que penso é tão intenso

(e mais belo)

que os campos da Ambrósia.
O que penso pouco importa.

Importa mais que o meu pensar

seja sempre afiançável.

Talvez deserto, nunca areia: rio inesgotável!

(p.31)

Estes versos fazem uma pintura impressionista da dor do homem inserido na modernidade, nos moldes do aludido poeta Baudelaire, o chamado “pintor da vida moderna”. O artista francês incorporou a seus conceitos estéticos os dados dos novos tempos das metrópoles, abandonando o interesse pelo belo absoluto. Baudelaire preconizou o impressionismo e afirmou que a modernidade está também na possibilidade de transformar em poético tudo aquilo de artificial, grotesco e feio que a grande cidade pode oferecer ao artista: o caminho para uma estética do feio.



A poética de Delermando, por sua vez, também verbaliza seu “Caminho” (p.32) ao afirmar: Depois de tudo,/ aprendi que o caminho/ se nivela/ entre a fivela/ e o velar/ das sepulturas. E, “Que de tão surdo” (p.33) revela: Pus meu canto no meu enterro/ e suas figueiras de alumínio,/ sabendo que a Vida/(além do Tempo)/viaja em seu tormento. Assim, a arte vai revelando um retrato da vida, cheio de penumbra e de “Solidão” (p.35), por meio desse “Funeral de um corpo vivo” (p.39), num funéreo/ canto aéreo/de viver! Esta existência de estradas sinuosas, cheias de dificuldades e perigos, não pode ser figurada por meio de perfumes e encanto das flores, mas sob a forma de desencantos e avessos do modo de ser ou de estar, do que subsiste pelos caminhos tortuosos.

Caminhos Tortuosos


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