Interdisciplinaridade
Conversando com a Química
NPK, DDT e biocombustíveis
André Von-Held Soares
Na Grécia Antiga, o filósofo Empédocles foi um dos primeiros a teorizar sobre a composição da matéria, estabelecendo quatro princípios básicos: água, fogo, ar e terra. Embora a tabela periódica tenha evoluído consideravelmente desde então (em 2012 a IUPAC1 registrou a existência de 114 elementos, dos quais 90 são de ocorrência natural), continuaremos por um bom tempo dependentes da retirada de muitas substâncias importantes de minérios, diretamente das rochas e da terra.
Mas ainda é da terra que o homem tira seu alimento e é impossível deixar de notar que a diferença de acesso a ela não está restrita apenas ao espaço e à qualidade do solo, mas às ferramentas e tecnologias usadas para plantar e colher com eficiência. Temos tomate, alface, morango e mamão disponíveis o ano todo, independentemente da estação, graças a algumas classes de moléculas que mudaram a prática da agricultura em larga escala.
Um avanço importante veio no primeiro quarto do século XX com o processo Haber-Bosch de produção de amônia (NH3), a partir do nitrogênio do ar. Toda planta precisa do elemento nitrogênio para sintetizar aminoácidos e se desenvolver. Assim, a partir da amônia é possível fabricar moléculas que deixem o nitrogênio mais disponível, como a ureia e o nitrato de amônio, diminuindo a dependência de organismos nitrificadores no solo. Além do nitrogênio (N), são importantes o fósforo (P) e o potássio (K). Fertilizantes que contenham esses três elementos com concentração acima de 5% são chamados de NPK. Os fertilizantes trouxeram um entusiasmante aumento na produção de alimentos, mas permanece ainda a distribuição desigual.
Outra classe de moléculas de grande interesse industrial é a dos pesticidas, que desempenham um papel um pouco mais controverso que os fertilizantes. Os pesticidas são utilizados para o controle de pragas na lavoura, mas podem trazer danos à saúde e à qualidade das águas e solo, em concentrações elevadas. Os organofosforados, carbamatos e organoclorados, como o DDT, são exemplos de moléculas projetadas para matar insetos, atuando em seu sistema nervoso. O DDT (Dicloro-DifenilTricloroetano) foi o primeiro inseticida a ser sintetizado e foi usado, inicialmente, no combate à malária e ao tifo, mas veio finalmente a ser controlado pela Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, em 2001, por poder causar câncer ao homem e danos ambientais. No Brasil, sua proibição ocorreu em 2009 e hoje, no mundo todo, há intensas pesquisas por novas moléculas que gerem o mínimo impacto ambiental e de saúde pública, mas façam o controle de pragas eficientemente.
Paralelamente, um debate interessante que se trava hoje diz respeito à competição por terra entre o plantio de alimentos e de espécies destinadas à produção de biocombustíveis. Ainda não se sabe quais serão os eventuais impactos na alimentação mundial, caso boa parte das áreas agricultáveis seja destinada a "plantar combustíveis" (biodiesel de palma, etanol de milho, etc.). Uma coisa, porém, pode ser dada como certa: lá estarão os fertilizantes e pesticidas.
André Von-Held Soares é professor das disciplinas de Físico-Química e Corrosão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - IFRJ, no campus de Duque de Caxias. Graduado e Mestre em Engenharia Química pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Doutor em Química na UFF.
1. Sigla em inglês de International Union of Pure and Applied Chemistry (União Internacional de Química Pura e Aplicada).
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Interatividade
Revendo o capítulo
1 - Relacione a História do Brasil Colonial com a concentração de terras nas mãos dos grandes latifundiários.
2 - Qual foi o significado da Lei de Terras, de 1850?
3 - De que forma podemos dizer que a Guerra de Canudos se relacionou com a questão da terra no Nordeste brasileiro?
Dialogando com a turma
1 - Pesquise na Internet e/ou nos livros de História a respeito das nações indígenas brasileiras e procure entender o que significou a ocupação das suas terras pelos colonizadores portugueses.
2 - Investigue os diversos posicionamentos existentes na sociedade brasileira sobre as ações do MST e discuta em sala se o movimento é uma "organização legítima dos trabalhadores rurais que lutam por seus direitos" ou se é uma "organização criminosa".
Verificando o seu conhecimento
(ENEM, 1998)
Em uma disputa por terras, em Mato Grosso do Sul, dois depoimentos são colhidos: o do proprietário de uma fazenda e o de um integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terras:
Depoimento 1
"A minha propriedade foi conseguida com muito sacrifício pelos meus antepassados. Não admito invasão. Essa gente não sabe de nada. Estão sendo manipulados pelos comunistas. Minha resposta será à bala. Esse povo tem que saber que a Constituição do Brasil garante a propriedade privada. Além disso, se esse governo quiser as minhas terras para a Reforma Agrária terá que pagar, em dinheiro, o valor que eu quero." - proprietário de uma fazenda no Mato Grosso do Sul.
Depoimento 2
"Sempre lutei muito. Minha família veio para a cidade porque fui despedido quando as máquinas chegaram lá na Usina. Seu moço, acontece que eu sou um homem da terra. Olho pro céu, sei quando é tempo de plantar e de colher. Na cidade não fico mais. Eu quero um pedaço de terra, custe o que custar. Hoje eu sei que não estou sozinho. Aprendi que a terra tem um valor social. Ela é feita para produzir alimento. O que o homem come vem da terra. O que é duro é ver que aqueles que possuem muita terra e não dependem dela para sobreviver, pouco se preocupam em produzir nela."- integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de Corumbá - MS.
1 - A partir da leitura do depoimento 1, os argumentos utilizados para defender a posição do proprietário de terras são:
I. A Constituição do país garante o direito à propriedade privada, portanto, invadir terras é crime.
II. O MST é um movimento político controlado por partidos políticos.
III. As terras são o fruto do árduo trabalho das famílias que as possuem.
IV. Este é um problema político e depende unicamente da decisão da justiça.
Estão corretas as proposições:
(A) I, apenas.
(B) I e IV, apenas.
(C) II e IV, apenas.
(D) I, II e III, apenas.
(E) I, III e IV, apenas.
2 - A partir da leitura do depoimento 2, quais os argumentos utilizados para defender a posição de um trabalhador rural sem terra?
I. A distribuição mais justa da terra no país está sendo resolvida, apesar de que muitos ainda não têm acesso a ela.
II. A terra é para quem trabalha nela e não para quem a acumula como bem material.
III. É necessário que se suprima o valor social da terra.
IV. A mecanização do campo acarreta a dispensa de mão de obra rural.
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Estão corretas as proposições:
(A) I, apenas.
(B) II, apenas.
(C) II e IV, apenas.
(D) I, II e III, apenas.
(E) III, I, IV, apenas.
Pesquisando e refletindo
LIVROS
CHIAVENATO, Júlio José. Violência no campo: o latifúndio e a reforma agrária. São Paulo: Moderna, 1996.
O autor examina a violência no campo como reflexo da nossa estrutura social, consequência de uma das maiores concentrações de rendas e terras do mundo.
MARTINEZ, Paulo. Reforma agrária: questão de terra ou de gente? 12ª ed. São Paulo: Moderna, 1996.
As polêmicas que envolvem a reforma agrária são discutidas neste trabalho. O autor mostra que na realidade não faltam terras, mas o trabalhador agrícola parece cada vez mais longe de ser dono do seu pedaço de chão.
FILMES
TERRA PARA ROSE (Brasil, 1987). Direção: Tetê Moraes. Duração: 84 min.
Documentário que retrata a história de Rose, agricultora sem-terra que, com outras 1.500 famílias, participou da primeira grande ocupação de uma terra improdutiva, a fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, em 1985. O filme aborda a questão da reforma agrária no Brasil, no período de transição pós-regime militar.
O VENENO ESTÁ NA MESA (Brasil, 2011). Direção: Silvio Tendler. Duração: 50 min.
Documentário que denuncia o modelo baseado no agronegócio e de que forma ele substitui a agricultura tradicional, atacando a fertilidade do solo, os mananciais de água e a biodiversidade, contaminando os alimentos produzidos. O filme pode ser assistido no YouTube.
INTERNET
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: http://www.mst.org.br/
Página que traz muitas informações sobre a questão da terra no Brasil a partir do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Acesso: janeiro/2016.
OBSERVATÓRIO DO AGRONEGÓCIO: http://www.observatoriodoagronegocio.com.br/
Site que traz notícias, análises, artigos e dados sobre o agronegócio. Acesso: janeiro/2016.
MÚSICAS
FUNERAL DE UM LAVRADOR - Autores: João Cabral de Mello Neto e Chico Buarque. Intérpretes: Chico Buarque e MPB 4.
Poema de João Cabral de Mello Neto, musicado por Chico Buarque, que compõe a peça Morte e Vida Severina. Denuncia a condição social do trabalhador do campo.
ASSENTAMENTO - Autor e intérprete: Chico Buarque.
Diferentemente do lavrador de João Cabral, o trabalhador rural de Assentamento morre cansado, mas feliz, por ter lutado e conquistado o seu pedaço de terra.
FILME DESTAQUE
CABRA MARCADO PARA MORRER
FICHA TÉCNICA:
Direção: Eduardo Coutinho
Elenco: Elisabeth Teixeira e família, João Virgínio da Silva e os habitantes do Engenho Galileia (Pernambuco).
Narração de Ferreira Gullar, Tite Lemos e Eduardo Coutinho
Duração: 119 min.
(Brasil, 1964/1984)
FONTE: Eduardo Coutinho Produções Cinematrográficas
SINOPSE:
A produção do documentário Cabra Marcado Para Morrer foi iniciada em fevereiro de 1964. O objetivo era contar a história política do líder da Liga Camponesa de Sapé (Paraíba), João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. No entanto, as filmagens foram interrompidas com o golpe de 31 de março, com as forças militares cercando o Engenho Galileia. Na década de 1980, durante o processo de redemocratização do país, o diretor Eduardo Coutinho retoma e conclui a filmagem.
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Aprendendo com jogos
Revolta da Cabanagem
(Laboratório de Realidade Virtual - LaRV/ Faculdade de Engenharia de Computação da Universidade Federal do Pará, 2009)
QUEM É O DONO DA TERRA?
FONTE: Divulgação: LaRV/UFPA
O objetivo do jogador é reproduzir as batalhas dos Cabanos, desde a fase pré-revolucionária, vencê-las e escapar da perseguição dos soldados. Na página oficial do game, somos informados que o enredo deste jogo de estratégia está dividido em três fases e cinco missões, de acordo com os acontecimentos ocorridos na revolução. O jogo inicia com a exibição da tela principal de onde o jogador pode escolher se deseja começar uma campanha, visualizar os créditos ou o conteúdo extra adicionado ao jogo, como a primeira edição do jornal O Paraense ou as referências utilizadas durante o desenvolvimento.
Como jogar:
1. Baixe o jogo em http://goo.gl/WZ3YT7
2. Levante informações em sites do MST, ministérios do Governo Federal, organizações e movimentos sociais e sindicais, mídia tradicional e alternativa e igrejas sobre a questão agrária no Brasil e as lutas no campo.
3. Relacione fatos das lutas das populações rurais e das florestas, do movimento dos sem-terra e das lideranças do campo com os eventos, as lutas e as adversidades enfrentadas pelos personagens do jogo.
4. Organize um debate em sala de aula para discutir o que aprendeu.
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Capítulo 19 - "Chegou o caveirão!" E agora? Violência e desigualdades sociais
LEGENDA: O caveirão é um veículo usado pela Polícia Militar, do Rio de Janeiro, no combate à criminalidade urbana. Na foto, operação na favela Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro, em 2007.
FONTE: Urbano Urbiste/Agifi/Folhapress
Boxe complementar:
Quando o carro blindado entra numa favela carioca todo mundo corre, pois as frases entoadas pelos policiais através dos alto-falantes acoplados ao veículo são bem explícitas:
"Sai da frente, vim buscar sua alma!"
"Trabalhador nós batemos na cara, bandido a gente mata com fuzil!"
"Tá indo pra escola para quê, semente do mal?"
Ele é o "Caveirão", carro blindado construído para fins militares, semelhante a um tanque de guerra, e que é utilizado nas incursões nas favelas por parte do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A Polícia Civil do estado tem também o seu blindado de mesmo tipo, mas que recebe a alcunha oficial de "Pacificador". A população chama ambos os veículos de "Caveirão". No caso do blindado do BOPE, esse nome é utilizado pelos próprios policiais.
Fim do complemento.
As informações apresentadas acima fazem parte da rotina de milhares de moradores das favelas do Rio de Janeiro e se tornaram conhecidas de toda a população por intermédio de diversas notícias veiculadas pela imprensa. Durante o XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado entre 29 de maio e 01 de junho de 2007, em Recife, Pernambuco, dois pesquisadores, Viviane Rocha e Luiz Kleber Rodrigues, apresentaram o resultado parcial do trabalho que estavam desenvolvendo, confirmando as informações que eram divulgadas pela mídia. No artigo "O Caveirão como representação da polícia em favelas cariocas", os dois pesquisadores não só confirmaram as frases ditas na abertura do texto, como acrescentaram outras, ditas por "policiais distorcendo a voz", que "proferem maldições e ameaças".
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Por vezes, os policiais utilizam "um tom mais polido", pedindo àqueles que se encontram nas ruas que voltem para suas casas, pois "vai haver tiroteio". Os moradores entrevistados nessa pesquisa relataram a correria e o nervosismo que sempre se instaura na favela com a chegada do blindado, que ocorria quase sempre no horário de entrada e saída das escolas. Descrevem os pesquisadores:
Boxe complementar:
(...) Os empregados do tráfico devidamente armados, via de regra, são os primeiros a saberem da entrada do Caveirão, e o aviso é repassado aos demais traficantes por meio de fogos de artifício ou do disparo de tiros. (...) A sequência de acontecimentos rápidos instaura o pânico naquela área residencial onde a grande maioria de seus moradores não está envolvida no narcotráfico. Adultos e crianças correm para se esconder do tiroteio que se segue entre os policiais em seu veículo blindado e os traficantes da favela. De acordo com um informante, a instrução dada pelos próprios policiais para que os moradores se retirem das ruas rapidamente é interpretada pelo avesso por eles mesmos, como ressalta um entrevistado: "quando vem o Caveirão todo mundo corre. E aí, todo mundo corre, todo mundo é bandido.
(ROCHA; RODRIGUES, 2007, p. 7)
Fim do complemento.
Não há como qualquer pessoa não ficar impactada e sensibilizada com um cenário de tanta violência, que parece reproduzir a rotina de um país em estado de guerra civil, você não acha? Quando a polícia, civil ou militar, entra na favela da forma como estamos reproduzindo aqui, passa-se a ideia de que todos os moradores podem estar envolvidos com o tráfico de drogas, ou seja, de que as comunidades pobres e negras - a grande maioria daqueles que residem nas favelas - devam ser criminalizadas, pois é ali que se encontram todos os males da violência, que envolvem também o comércio varejista de drogas.
Mas se procurarmos mais informações, veremos que muita coisa está por trás disso tudo.
Em reportagem, da revista Caros Amigos sobre o crime organizado, publicada em janeiro de 2003, três promotores de justiça afirmaram que não há organização criminosa que sobreviva sem a participação do Estado.
Nessa reportagem eles fazem revelações surpreendentes, como o fato de o PCC (Primeiro Comando da Capital - organização que atua principalmente no estado de São Paulo), ser constituído por líderes que, há pouco tempo, não eram considerados criminosos perigosos. Mas que, por intermédio de um sistema carcerário administrado pelo Estado, com suas torturas e maus-tratos, teriam sido levados ao mundo do crime organizado.
Entretanto, muitas vezes, no senso comum, não percebemos que a violência e a criminalidade urbanas têm as mais diversas origens possíveis. Quem nunca ouviu estas frases?
"Bandido bom é bandido morto."
"O pobre é um fracassado que não luta pelos seus direitos."
"Os meninos do tráfico estão nessa vida porque querem."
Para você perceber melhor o enorme significado de frases assim, vale a pena pensar em algumas situações que ocorrem em nosso país. A primeira reflexão diz respeito ao motivo por que vem crescendo a quantidade de "linchamentos" no Brasil nesta segunda década do século XXI. De vez em quando surgem notícias de que um determinado grupo ou uma multidão decidiu "fazer justiça com as próprias mãos", executando (assassinando) uma pessoa acusada de ter praticado um assalto ou algum outro tipo de crime. Isto ocorreu em São Luís, capital do Maranhão, no início de julho de 2015, e alguns dias depois, na Zona Oeste do Rio de Janeiro - esta última, contudo, sem ter resultado em morte. Cerca de um ano antes teve enorme repercussão o caso de um jovem de 15 anos que foi amarrado a um poste no Aterro do Flamengo, também na cidade do Rio, por um grupo de 15 homens que se autointitulavam como "justiceiros". Outro caso de grande impacto, em maio de 2014, foi a execução de uma dona de casa na periferia de
Guarulhos, litoral de São Paulo, tendo como base uma acusação falsa espalhada pela internet.
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Ela foi espancada e morta por dezenas de moradores que acreditaram num boato.
Outra reflexão necessária, relacionada ao que observamos acima, se refere ao debate sobre a adoção da redução da maioridade penal para dezesseis anos de idade. Ou seja, devido ao fato de muitos adolescentes, menores de dezoito anos, estarem matando pessoas de bem por causa de drogas, por que, então, não diminuir a maioridade penal para, por exemplo, catorze anos? Afinal, como se diz no senso comum: "os menores de idade já tiram carteira de identidade, podem votar e por que, quando matam pessoas, não podem ir para a cadeia?" Ou ainda: "essas pessoas que cometem crime, sejam menores ou adultos, não têm caráter, são monstros que promovem a violência e se houvesse a pena de morte no Brasil isso diminuiria."
FONTE: © Angeli - FSP 14.02.2007
Essas afirmações e conclusões do senso comum precisam ser discutidas. Devemos estudar o fenômeno da violência urbana para que possamos ter um conhecimento preciso, além de identificar as razões que levam certos indivíduos à prática do ato criminoso.
Neste capítulo veremos que a violência urbana é um fenômeno social resultado da carência de cidadania e de acesso às condições de vida dignas. Resulta também da desigualdade social decorrente de um modelo econômico dominante que impede parcelas significativas de indivíduos de terem outra possibilidade de existência, senão a da violência, ou como vítimas ou como atores principais.
A Sociologia da Violência
A palavra "violência" tem origem no latim violentia, que quer dizer "impetuosidade", "veemência", derivando da raiz vis, que significa "força", "vigor". O dicionário Aurélio apresenta, entre outras definições atuais para o termo, a ideia de constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém. O que existe de diferente, portanto, entre a sua raiz latina e a sua definição moderna, é que a violência pode ser entendida não somente como física, mas também como psicológica.
A Organização Mundial da Saúde - OMS - propõe a seguinte definição:
Boxe complementar:
O uso intencional da força física ou do poder, real ou potencial, contra si próprio, contra outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
(cf. KRUG, 2002)
Fim do complemento.
Como se pode perceber, a OMS amplia bastante a definição de violência, que passa a abarcar a prática do suicídio e das relações de poder, incluindo a possibilidade de ameaças e intimidações, que se inserem nas mais variadas formas de opressão. Nesse sentido, podemos citar como exemplo um determinado tipo de violência que ocorre com certa frequência nas escolas e que tem sido divulgado recentemente pelos meios de comunicação através do termo em inglês bullying (bully = "valentão", "brigão"). São formas agressivas e repetitivas de intimidação e discriminação em relação a determinados alunos, por parte de um grupo ou até mesmo de um professor.
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Pesquisas indicam que essa prática envolve entre 25% e 36% dos estudantes brasileiros, seja no papel de agressores, seja no papel de vítimas (cf. IBGE, 2009. Para maiores informações sobre a prática do bullying, consultar SILVA, 2010). Outra modalidade desse tipo de violência - que tem crescido a cada ano em razão das maiores possibilidades de acesso à Internet - é o cyberbullying, ou seja, utilizar o espaço do mundo virtual para intimidar, insultar, difamar, discriminar ou hostilizar alguma pessoa, que pode ser algum colega de escola, professor, vizinho, ou mesmo alguém desconhecido. Esse tipo de violência tem ficado cada vez mais comum entre grupos de jovens, resultando até em casos de suicídios - a esse respeito, vale muito a pena ler e refletir sobre a reportagem intitulada "Como um sonho ruim - Adolescentes falam sobre internet e cyberbullying (ver DIP; AFIUNE, 2013).
LEGENDA: Certas "brincadeiras" comuns nas escolas têm sido definidas atualmente como bullying. Alguns sociólogos e pedagogos identificam a prática do bullying como uma forma de violência. E você, o que acha?
FONTE: Image Source/Alberto Guglielme
O fenômeno da violência, como uma questão historicamente presente em todas as sociedades humanas, é objeto frequente de diversos estudos antropológicos. Um exemplo clássico que podemos citar é a obra Arqueologia da violência, escrita por Pierre Clastres (2004, publicada originalmente em 1977). Pesquisando em sociedades ameríndias, Clastres procura mostrar que estas poderiam ser entendidas como "sociedades-para-a-guerra", onde aquelas que são diferentes podem ser vistas como inimigas, podendo ser negadas e, consequentemente, destruídas ou submetidas, como uma afirmação da identidade da sua própria sociedade (segundo Clastres, não existiria apenas a possibilidade da guerra, mas também a existência de alianças entre sociedades diferentes). A violência, então, não deveria ser entendida como uma negação das relações sociais (como interpretavam outros antropólogos), mas sim, ao contrário, como um elemento fundamental para a preservação e a conservação da autonomia desses grupos locais e das relações sociais vigentes.
Dados sobre a violência que a definem como um problema mundial: segundo o Relatório Mundial de Saúde, de 2000, aconteceram 520 mil homicídios em todo o mundo, em 1999, estabelecendo um índice geral de 8,8 homicídios para cada 100 mil habitantes do planeta. Deste total, os homens foram responsáveis por 77% - três vezes mais que o número de mulheres. A distribuição das vítimas da violência é desigual também em relação a outros aspectos, pois atingia mais jovens do sexo masculino, entre 10 e 29 anos de idade, com uma média de 565 jovens por dia.
A apuração de dados mundiais mais recentes sobre a violência, efetuada por distintas organizações de atuação global, confirmam a magnitude desse problema. O documento Relatório Global sobre Homicídios 2013, por exemplo, divulgado pela ONU em 10 de abril de 2014, apontou um total de 437 mil homicídios ocorridos em todo o mundo em 2012. Esse relatório teve como foco a ocorrência de homicídios dolosos - ou seja, quando houve a intenção de matar -, vinculados a problemas de relações interpessoais, sociais ou políticas, não considerando, portanto, as mortes causadas por guerras e outros conflitos armados. Outro dado reafirmado pelo documento se refere ao perfil das vítimas: 43% têm entre 15 e 29 anos, e "pelo menos uma em cada sete do total de homicídios no mundo é um homem jovem [...] vivendo nas Américas" (PIMENTEL, 2014).
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O Brasil também se destaca em relação a esses números, pois ocorriam em nosso país 10% do total de homicídios de jovens do planeta em 1999. Dados do citado Relatório Mundial de Saúde, de 2000, alçava-nos então à terceira posição mundial dentre as taxas de homicídios nessa faixa etária. Em relação a todos os homicídios, o Brasil passava para o segundo lugar, numa relação de 60 países - o primeiro lugar, em 1999, era da Colômbia, que enfrentava naquele momento um estado de "guerra civil" (cf. PINHEIRO; ALMEIDA, 2003, p. 17-18).
LEGENDA: Segundo a ONU, em 2012 dez por cento (10%) do total de homicídios do planeta ocorreram no Brasil. Na foto, grupo de jovens da Zona Sul da cidade de São Paulo faz manifestação denunciando a violência policial na periferia, em 2001.
FONTE: Caio Guatelli/Folhapress
Perguntamos: será que, depois desses anos, esses números se modificaram de alguma forma?
"Não" - esta foi a resposta do Relatório Sobre a Situação Mundial da Prevenção à Violência 2014, também da ONU (parceria OMS - Organização Mundial de Saúde/PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), assim como do já citado Relatório Global sobre Homicídios 2013, da ONU, sob responsabilidade da UNODC. Os documentos da ONU confirmam que no Brasil, onde vivem menos que 3% da população mundial, foram registrados cerca de 10% dos homicídios do planeta, ou seja, 50.108 de um total de 437 mil assassinatos (cf. UNODC, 2013). O percentual apontado, neste caso, foi apurado levando-se em conta todas as faixas etárias. Já o cálculo efetuado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para esse mesmo ano de 2012, contabilizou 53.054 assassinatos em todo o país (cf. MONTEIRO; TUROLLO JR., 2014).
Já o relatório da OMS/PNUD/UNODC (2014), também tomando como referência o ano de 2012, foi ainda mais abrangente, por inserir em sua metodologia casos de latrocínios (roubos seguidos de morte da vítima) e de lesões corporais que resultaram em morte (cf. MONTEIRO; TUROLLO JR., 2014). Dessa forma o número de homicídios no Brasil se elevou para 64.357 pessoas em 2012, colocando o país como aquele com maior número de mortes, em termos absolutos, num total de 194 países. Só para você ter uma ideia, a Índia, que apresenta uma população com um 1 bilhão de habitantes a mais do que o Brasil, aparece nessa estatística somente em segundo lugar, com 53 mil mortes (Idem, ibidem). Em termos percentuais, o Brasil apresenta a 11ª maior taxa de homicídios do mundo, com um índice de 32,4 mortes/100 mil habitantes. O recordista, em 2012, foi Honduras, com 103,9, seguido pela Venezuela, com 57,6. Com exceção de Lesoto e África do Sul, 8º e 9º colocados nesse ranking (com 37,5 e 35,7, respectivamente), os demais países com taxa superior à brasileira são todos da América Latina (Idem, ibidem). Para efeito de comparação, veja a seguir outros índices de homicídios por 100 mil habitantes, apurados pela OMS nesse mesmo ano: México (22,0), Rússia (13,1), Uganda (12,0), Argentina (6,0), Estados Unidos (5,4), Cuba (5,0), Índia (4,3), China (1,1) e Itália (0,9). Fecham o ranking o Japão, com 0,4 (na posição 193º), e Luxemburgo, com 0,2 (194º).
Você deve reparar que muitas vezes esses números destoam na quantidade total de ocorrências de homicídios, mesmo quando referente ao mesmo ano - como vimos acima. Essas diferenças acontecem porque se relacionam sempre com a metodologia utilizada por cada órgão que faz o levantamento. No resultado final, entretanto, os números são aproximados e mantêm os países citados nas mesmas posições, em termos de classificação nas ocorrências de mortes violentas.
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Apesar dessas diferenças, os índices de homicídio continuam reportando, invariavelmente, ao mesmo perfil apontado nos diversos documentos e estatísticas sobre o tema: 90% das vítimas brasileiras são homens, em sua maioria jovens e negros, residentes nas periferias urbanas. Em relação às mulheres assassinadas, os homicídios ocorridos no país confirmam o que ocorre globalmente: quase a metade das mulheres mortas em 2012 foram vítimas de violência doméstica, atacadas pelos parceiros ou por outros membros da sua família (cf. PIMENTEL, 2014).
Não é sem motivo, portanto, que os chamados estudos sobre a violência estão presentes em centros de pesquisa de diversas universidades brasileiras, como, entre outros, o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), criado em 1999, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo sociólogo, professor e especialista brasileiro no tema Michel Misse. Em 2002, foi criado na UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o Laboratório de Análises da Violência, coordenado em 2015 pelos sociólogos Ignacio Cano e João Trajano Sento-Sé. O centro de estudos mais antigo sobre o tema, porém, é o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP), criado em 1987, ao qual pertencem sociólogos como Paulo Sérgio Pinheiro, Sérgio Adorno e Nancy Cardia.
Mas podemos dizer que os estudos sociológicos sobre a violência tiveram origem com a própria constituição da Sociologia como ciência, afinal, basta recorrer aos autores considerados clássicos para atestar isso. O suicídio foi um dos principais estudos desenvolvidos por Durkheim, e o papel do Estado como detentor do monopólio legítimo da força foi uma das questões debatidas por Max Weber. Já Karl Marx pode ser citado aqui por sua percepção e descrição da violência presente nas lutas de classes existentes em diferentes sociedades através da História, com especial atenção para a sociedade capitalista e seus mecanismos de exploração dos trabalhadores e reprodução das desigualdades sociais.
Sociólogos contemporâneos conhecidos, além dos brasileiros citados, também se dedicaram ao estudo da violência, tornando-se referências sobre o tema. Um exemplo importante foi o francês Pierre Bourdieu (1930- 2002) e o seu conceito de violência simbólica, que ele elaborou para definir uma forma de violência que é aparentemente consentida por aquele que é a vítima, mas que não se percebe como tal - pelo contrário, trata as relações de dominação como "naturais" e "inevitáveis". Assim, para Bourdieu, a violência simbólica é um mecanismo que reproduz socialmente e legitima a dominação de uma classe sobre outra. Um exemplo clássico estudado por Bourdieu é a educação que inculca nos estudantes uma determinada forma de pensar, de se ver o mundo, que é exatamente a visão de mundo da classe dominante, com os seus valores, ideias, enfim, a sua cultura. Tal mecanismo arbitrário é essencial para se entender a manutenção das estruturas de poder e do pensamento conservador em uma determinada sociedade (BOURDIEU; PASSERON, 1975). Um dos sociólogos contemporâneos mais importantes que desenvolve estudos nessa área é um ex-aluno de Bourdieu, Loïc Wacquant.
Então, podemos perceber como a Sociologia pode contribuir para entender os mecanismos que produzem e reproduzem a violência em nossas sociedades, em todas as suas modalidades, seja ela representada pelas diversas formas de violência simbólica, seja ela motivada por disputas políticas de qualquer tipo; sob a forma da criminalidade urbana ou como aquela que caracteriza a luta pela terra no Brasil e em outros países; como uma forma de opressão, de abusos sexuais ou as mais distintas tentativas de submissão da mulher diante dos homens ou como discriminação, intimidação e maus-tratos contra idosos e crianças. No limite, qualquer uma das formas de violência que citamos aqui como exemplo pode resultar na morte daquelas que são as suas vítimas. Tratamos neste livro destes temas, de acordo com a abordagem de cada capítulo.
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Neste, especificamente, nos deteremos sobre a versão urbana da violência, com atenção para os índices de criminalidade e para as desigualdades sociais que afloram em nosso país.
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