Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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“Oh, as crianças são boas de coração”, Sarima disse, raspando as ce­nouras. “São tão inocentes e alegres. Fico alegre de vê-las correndo pela casa numa brincadeira ou noutra. Depressa demais esses dias preciosos vão passar, cara Titia, e então teremos saudade dos tempos em que a casa vivia cheia dos repiques das risadas infantis.”

“Risadas demoníacas.”

“Há alguma coisa naturalmente boa nas crianças”, disse Sarima convic­tamente, inflamada pelo assunto. “Você conhece a história daquela pequena Ozma, que há anos foi deposta pelo Mágico? Dizem que ela está escondida em algum lugar, congelada numa caverna ― talvez até mesmo aqui nos Kells, até onde eu saiba. Foi preservada em sua inocência infantil porque o Mágico não teve coragem de matá-la. Um dia ela voltará para governar Oz, e ela será a melhor e mais sábia soberana de todos os tempos, devido à sabedoria de sua tenra idade.”

“Eu nunca acreditei em salvadores infantis”, Elphaba disse. “Até onde sei, são as crianças que precisam de salvação.”

“Você está irritada só porque as crianças têm espíritos elevados.”

“Seus filhos são é uns duendes encapetados”, Elfinha disse, num tom desaprovador.

“Meus filhos não são maus, nem minhas irmãs e eu fomos crianças más.”

“Seus filhos não são bons”, disse Elfinha.

“Bem, como é que você julga Liir nesse aspecto, então?”

“Oh, Liir”, Elfinha disse, e fez uma expressão, e disse pfaaah, com sua língua e as mãos. Sarima estava prestes a abordar isso ― um assunto que sempre a deixara curiosa ― quando Três entrou correndo na cozinha.

“As passagens devem ter derretido mais cedo que de costume”, ela disse, “porque a gente avistou uma caravana lutando para passar pela Trilha do Galho Preso, vinda lá do norte! Ela vai chegar aqui amanhã!”

“Oh, beleza”, Sarima disse, “e o castelo nesta bagunça! Isso sempre acon­tece. Por que a gente nunca aprende? Rápido, chame as crianças e vamos ter de dar um jeito de esfregá-las e limpá-las. A gente nunca sabe, Titia, pode ser um visitante de alta honra. A gente tem de ficar preparada.”

Manek e Nor e Irji deixaram correndo a sua brincadeira. Três contou lhes a notícia, e eles imediatamente tiveram de subir à torre mais alta para ver o que podiam avistar através da chuva branda, e para acenar com aventais e lenços. Sim, havia uma caravana, cinco ou seis escarques e um pequeno vagão, avançando através da neve e da lama, enfrentando problemas ao va­dear as correntezas, parando para consertar uma roda fendida, parando para alimentar os animais! Era um prazer maravilhoso, e, durante toda a refeição de sopa de legumes do jantar, as crianças jogaram conversa fora falando das surpresas que poderiam encontrar entre os passageiros da caravana. “Eles nunca deixaram de achar que o pai ainda voltará”, disse Sarima, em cochicho para Elphaba. “Essa excitação toda é uma esperança para eles, embora não se lembrem disso.”

“Onde está o Liir?”, perguntou Quatro, “é um perfeito desperdício de uma boa sopa quando ele não aparece a tempo. Ele não vai conseguir nada se vier gemendo me pedir depois. Crianças, onde está o Liir?”

“Ele estava brincando com a gente no começo. Talvez tenha pegado no sono”, disse Irji.

“Vamos fazer uma fogueira e um sinal de fumaça com um alô para os viajantes”, disse Manek, saindo aos pulos da mesa.


9
Era hora do almoço quando os escarques e o vagão começaram a ascensão final e penosa do penhasco rumo ao portão de ferro e aos portões de jaspe e carvalho do castelo. Os aldeões saíram de suas choças e ajudaram a empurrar a caravana com seu peso, fazendo-a atravessar os sulcos de lama e gelo, até que por fim ela se aprumou e cruzou a ponte levadiça erguida. El­phaba, com a curiosidade espicaçada como todo mundo, ficou com a Viúva Princesa dos Arjikis e suas irmãs num parapeito acima da rudemente enta­lhada porta frontal. As crianças esperavam no pátio de pedras redondas logo abaixo, todas, exceto Liir.

O líder da caravana, um homem jovem grisalho, fez a mais apagada mesura montanhesa para Sarima. Os escarques defecaram mole nas pedras do pátio, para deleite das crianças, que nunca tinham visto os excrementos daquela espécie. Então, o líder se dirigiu à cabine e abriu a porta, e subiu para dentro. Podiam ouvir a sua voz, erguida a bom volume como se conversasse com alguém que tivesse dificuldade para escutar.

Esperaram. O céu era de um azul penetrante, na verdade quase um azul de primavera, e os pingentes de gelo pendurados nos beirais, como perigosos punhais, derretiam-se rapidamente. As irmãs todas encolheram as barrigas, maldizendo algum pedaço extra de pão de mel, o creme melado no café, desejando ostentar a melhor das aparências. Por favor, doce Lurlina, dá-nos a graça de um homem.

O líder saiu novamente, e estendeu uma mão, e ajudou uma figura a apear da cabine: uma velha figura de membros rachados, vestindo saias des­botadas e um gorro horrivelmente fora de moda, mesmo do ponto de vista provinciano. Mas Elphaba se adiantou, cortando o ar com seu queixo pon­tudo e seu nariz de machadinha, e farejando como um animal. A visitante se virou e o sol bateu em seu rosto.

“Pela glória divina”, disse Elfinha, perdendo o fôlego. “É minha velha Babá!” E ela deixou o parapeito para correr e agarrar a idosa em seus braços.

“Sentimentos humanos, olhem só”, disse Quatro, com desprezo. “Eu não a supunha capaz dessas coisas.” Pois a Titia Hóspede estava soluçando de prazer.

O líder da caravana não ficou para a refeição, mas a Babá com suas valises e baús tinha a clara intenção de não ir para outro lugar que não fosse aquele. Ela se alojou num pequeno quarto mofado abaixo do de Elphaba, e levou o tempo infindável que os idosos gastam para fazer a sua toalete. Quando ela ficou pronta para ser apresentável, o jantar foi servido. Uma velha galinha de corte, feita mais de fibras que de carne, se estendia num pires com pimentas sobre uma das travessas de receber visitas. As crianças estavam vestidas nos trinques, e dessa vez autorizadas a jantar naquele aposento. A Babá entrou de braço dado com Elphaba, e sentou-se ao seu lado esquerdo. Devido a essa ser uma visita para Elfinha, as irmãs tinham amavelmente colocado o porta-guardanapo de Elphaba na ponta da mesa, no oposto de Sarima ― um lugar que por costume era deixado vago, em honra ao pobre falecido Fiyero. Foi um grande erro, e elas o reconheceram imediatamente, já que Elphaba nunca abria mão de seu lugar habitual. Mas, por ora, tudo eram sorrisos e hospitalidade saborosa. O único pequeno aborrecimento (além do de a Babá não ser um jovem pretendente à procura de noiva) era que Liir ainda se obstinava em sua atitude de mal-humorado sumiço. As crianças não sabiam onde ele estava.

A Babá era uma idosa cansada e caduca, a pele rachada como a de um sabão seco, os cabelos fininhos e as mãos de um branco amarelado com veias tão salientes quanto os cordões em torno de um queijo de cabra de Arjiki. Ela comunicou de modo ofegante, com muitas pausas para respirar e refletir, que soubera por alguém chamado Crope, da Cidade Esmeralda, que sua velha afilhada Elphaba tinha ajudado Tibbett em seus últimos dias no Claustro de Santa Glinda na periferia da Cidade Esmeralda. Ninguém da família tinha notícias de Elphaba havia anos, e a Babá decidira que era tarefa exclusivamente sua sair à procura dela. As monjas a princípio foram relutantes em informá-la, mas a Babá persistiu, e então esperou até que uma nova caravana estivesse pronta para partir. As monjas revelaram que Elphaba tinha uma missão em Kiamo Ko, e a Babá conseguiu passagem na primavera seguinte. E ali estava ela.

“E do mundo exterior?”, perguntou Dois ansiosamente. Deixe essas duas se pegarem com assuntos de família quando tiverem tempo.

“O que você quer dizer?”, disse a Babá.

“Política, ciência, moda, as artes, o centro dominante!”, disse Dois.

“Bem, nosso magnífico Mágico coroou-se Imperador”, disse a Babá. “Vocês sabiam disso?”

Não sabiam. “Autorizado por quem?”, perguntou Cinco, escarninha. “E, ademais, Imperador de quê?”

“Não há ninguém que tenha mais autoridade que ele, como ele mesmo afirmou”, disse a Babá calmamente, “e quem vai discutir com isso? Do jeito que as coisas são, ele é o encarregado de distribuir as honrarias anualmente. Aí, ele apenas decretou uma honraria extra para si mesmo. Quanto ao de que ele é Imperador, não sei. Algumas pessoas dizem que isso implica em ambições expansionistas. Mas, até onde ele poderá se expandir ― eu não poderia dizer; não poderia mesmo. Até o deserto? Além dele, a Quox, Ix ou Fliann?”

“Ou ele desejará ter um maior controle sobre terras que ele governa apenas frouxamente”, perguntou Elphaba, “como o Vinkus?” Ela sentiu um calafrio, como se uma velha ferida bem abaixo de suas costelas a fisgasse.

“Ninguém está particularmente feliz”, disse a Babá. “Há um recruta­mento forçado agora, e a Tropa da Tormenta ameaça exceder em número o Exército Real. Ninguém sabe se não estará havendo uma luta interna pelo poder, e se o Mágico não estará se preparando para alguma tomada de poder definitiva. Quem pode ter uma opinião firmada sobre essas coisas? Velhas e mulheres como somos?”, ela sorriu ao incluí-las todas. As irmãs e Sarima fuzilaram-na com o olhar mais cheio de juventude que puderam ostentar.

10

O dia seguinte mal teve uma aurora, tão escuro, tão ameaçador em vagas nuvens ameaçadoras de chuva se mostrou. Na sala de visitas, esperando que a Babá despertasse e continuasse sua obrigação de entretê-las, as irmãs e Sarima discutiam quais novos fatos sobre a Titia Hóspede elas tinham conhecido. “Elphaba”, refletiu Dois. “É um nome bem bonitinho. De onde será que vem?”

“Eu me lembro”, disse Cinco, que em certa época entrara numa fase debilmente religiosa ao perceber que as possibilidades de casamento estavam se apagando. “Eu tive uma Vida dos Santos uma vez. Santa Elphaba da Ca­choeira ― ela foi uma mística da terra de Munchkin, há seis ou sete séculos. Vocês não se lembram? Ela queria rezar, mas tinha uma tal beleza que os homens de sua terra ficavam importunando-a em busca de... atenção.”

Todas suspiraram, em coro.

“Para preservar a sua santidade, ela foi para uma floresta desolada com suas escrituras sagradas e um simples cacho de uvas. As bestas selvagens ameaçaram-na, e os homens selvagens também a perseguiram, e ela sofria com as aflições. Foi quando chegou a uma enorme cachoeira que caía de um rochedo. Ela disse: “Esta é a minha caverna”, e tirou todas as suas roupas, e atravessou a tela de água que caía. Depois dela, havia uma caverna escavada pela força da água. Ela lá se estabeleceu, e, com a ajuda da luz que era coada através da parede de água, lia seu livro sagrado e meditava sobre questões espirituais. Ela comia algumas uvas de vez em quando. Quando, por fim, o alimento acabou, ela saiu da caverna. Centenas de anos haviam se passado. Havia uma aldeia erguida às margens do rio, e até mesmo uma represa nas proximidades. Os aldeões tremeram de horror, porque, quando crianças, ti­nham todos brincado na caverna atrás da cachoeira ― amantes ali marcaram encontro ― ali haviam ocorrido assassinatos e outros atos repugnantes ― um tesouro ali fora enterrado ― e ninguém nunca chegara a ver Santa Elphaba em seu nu esplendor. Mas tudo que Santa Elphaba teve de fazer foi abrir a boca e falar seus velhos sermões, e todos souberam que só podia ser ela, e construíram uma capela em sua honra. Ela abençoou as crianças e os velhos, e ouviu as confissões dos de meia-idade, e curou alguns doentes e alimentou alguns famintos, toda essa espécie de coisa, e então desapareceu novamente por trás da cachoeira com outro cacho de uvas. Acho que dessa vez levou um cacho maior. E isso foi a última coisa que dela se soube.”

“Então, pode-se desaparecer e não estar morta”, disse Sarima, olhando pela janela, com um ar um pouco sonhador, para a chuva.

“Se você for uma santa”, disse Dois, prontamente.

“Se você acredita mesmo nisso”, disse Elphaba, que tinha entrado na sala de visitas no fim da narração. “A ressuscitada Santa Elphaba deve ter sido alguma namoradeira da cidade próxima que queria oferecer aos crédulos camponeses uma boa transadinha.”

“Essa sua mania de duvidar, deixa tudo desprovido de esperança”, Sari­ma disse, aversiva. “Titia, de vez em quando você me mata, realmente.”

“Eu acho que seria encantador chamar você de Elphaba”, disse Seis, “porque é uma história encantadora. E foi bom saber seu nome verdadeiro pelos lábios da Babá.”

“Nem tente”, disse Elfinha. “Se a Babá não pode evitar, tudo bem; ela é uma anciã e isso é difícil de mudar. Mas você não.”

Seis franziu seus lábios como se estivesse para articular uma argumen­tação, mas nesse exato momento ouviu-se um ruído de pés no andar inferior, e Nor e Irji irromperam na sala.

“A gente achou o Liir!”, eles disseram. “Venham, a gente acha que ele está morto! Ele está caído no poço dos peixes!”

Todas desceram as escadas que levavam ao porão. Chistérico fora quem o achara. O nariz do macaco de neve tinha enrugado quando ele e os meninos passavam pelo poço dos peixes, e ele gemera, e choramingara, e tentara puxar com força a cobertura pesada. Nor e Irji tiveram a idéia de baixá-lo no balde então, mas quando eles giraram o tampo para descobrir o poço, o lúgubre brilho da luz na pálida carne humana os aterrorizara.

Manek veio correndo quando ouviu o barulho de sua mãe e dos outros exclamando diante do poço. Puxaram Liir da água. A água subira, o que complementava o contínuo derretimento da neve e a chuva adicional. Liir parecia um cadáver abandonado numa correnteza, intumescido. “Oh, é onde ele estava”, disse Manek numa voz de gozação. “Vocês sabem que ele disse que queria descer nesse poço um dia.”

“Vão embora, crianças, vocês não elevem ver isso, vão para cima”, Sarima disse, ralhando com eles. “Vamos agora, comportem-se, o lugar de vocês é lá em cima”. Eles não sabiam para que estavam olhando e estavam com medo de olhar mais de perto.

“Não posso acreditar nisso, é tão terrível”, disse Manek de um modo excitado, e Elphaba lançou-lhe um olhar penetrante, cheio de ódio.

“Obedeça a sua mãe”, ela disse bruscamente, e Manek fez uma cara de nojo, mas ele e Irji e Nor correram para o andar superior, e se acotovelaram na porta aberta lá no topo para ouvir, e observar.

“Oh, quem daqui tem a arte da medicina nas mãos, você tem, Titia?”, perguntou Sarima. “Vamos rápido, pode ainda restar algum tempo para ele. Você tem as artes, não tem, você estudou as ciências da vida! O que você pode fazer?”

“Irji, vá buscar a Babá, diga a ela que é uma emergência”, gritou Elfinha. “Vamos levá-lo para a cozinha, com carinho, agora. Não, Sarima, eu não sei o suficiente.”

“Use seus feitiços, use sua mágica!”, exclamou Cinco.

“Ressuscite-o”, pressionou Seis, e Três acrescentou, “Você é capaz disso, não seja hipócrita e tímida com seu dom agora!”

“Eu não posso ressuscitá-lo”, disse Elphaba, “Eu não posso! Eu não tenho aptidão para a feitiçaria! Eu nunca tive! Foi tudo uma tola armação de Madame Morrible, que eu rejeitei!” As seis irmãs olharam para ela de esguelha.

Irji escoltou a Babá até a cozinha, Nor trouxe a vassoura, Manek trouxe o Livro das Sombras, e as irmãs e Sarima trouxeram o corpo de Liir, gote­jante e inchado, e estenderam-no na tábua do abatedouro. “Oh, agora, quem é este?”, a Babá se espantou, mas começou a trabalhar bombeando as pernas e os braços, e pôs Sarima para pressionar o abdômen.

Elphaba folheou rapidamente o Livro das Sombras, contorceu seu rosto e bateu nas próprias têmporas com seus pulsos, e lastimou: “Mas eu não te­nho experiência pessoal com uma alma ― como vou encontrar a dele se nem sei com que uma alma se parece?”

“Ele está mesmo mais gordo que de costume”, disse Irji.

“Se você furar os olhos dele com uma palha mágica da vassoura mágica, a alma retornará”, disse Manek.

“Eu me pergunto por que será que ele entrou no poço dos peixes?”, disse Nor. “Eu nunca entraria.”

“Santa Lurlina, tende misericórdia, misericórdia!”, disse Sarima, cho­rando, e as irmãs começaram a murmurar o ofício dos mortos, louvando o Deus Inominável pela vida que partira.

“A Babá não pode fazer tudo”, disse asperamente a Babá, “Elphaba, dê uma ajuda! Você é igualzinha à sua mãe quando acontece uma crise! Ponha a sua boca na dele e sopre ar dentro dos pulmões do menino! Vamos!”

Elphaba enxugou a umidade do rosto pastoso de Liir com a borda da manga de sua blusa. O rosto se fixava no ponto para onde era empurrado. Ela fez uma careta, e cuspiu alguma coisa dentro de um balde, e então afundou a sua boca na boca da criança, e respirou fundo, empurrando pela passagem azeda seu próprio ar azedo. Seus dedos se enrijeceram, agarrados nos lados da tábua do abatedouro, arrancando lascas, como se ela estivesse num êxtase de tensão sexual. Chistérico respirava junto com ela, golfada após golfada.

“Ele cheira como peixe”, Nor disse, respirando fundo.

“É com isso que você se parece quando se afoga, eu preferiria queimar até morrer”, disse Irji.

“Eu simplesmente não vou morrer”, Manek disse, “e ninguém vai me fazer mudar de idéia.”

O corpo de Liir começou a dar sinais de sufocamento. Pensaram a prin­cípio que era uma reação involuntária, o ar da boca de Elphaba engolido e de novo expelido, e saiu uma pequena corrente de alguma coisa repugnante amarelada. Então, as pálpebras do menino se moveram, e sua boca se mexeu por vontade própria.

“Oh, misericórdia”, Sarima murmurou. “É um milagre. Obrigada, Lur­lina! Abençoada seja!”

“Não saímos da encrenca ainda”, disse a Babá. “Ele ainda pode morrer de frio. Rápido, tirem as roupas dele.”

As crianças observaram a tola indignação das mulheres adultas arrancando as estúpidas calças e a túnica de Liir. Elas esfregaram banha de porco no corpo todo do menino. Isso deu às crianças um pretexto para risadinhas abafadas, e fez com que Irji se sentisse muito cômico em suas calças, pela primeira vez em sua vida. Então, envolveram Liir num cobertor de lã, o que gerou uma grande bagunça, e prepararam-se para pô-lo na cama.

“Onde ele dorme?”, disse Sarima.

Todos se entreolharam. As irmãs olharam para Elphaba, e Elphaba olhou para as crianças. “Oh, às vezes no chão do nosso quarto, às vezes no chão do quarto da Nor”, disse Manek.

“Ele quer dormir na minha cama também, mas eu o empurro pra fora”, disse Nor. “Ele é gordo demais, não sobraria lugar para mim e para as minhas bonecas.”

“Ele não tem nem mesmo uma cama?”, Sarima friamente perguntou a Elphaba.

“Bem, não me pergunte, esta é a sua casa”, disse Elfinha.

E Liir se agitou de algum modo, e disse: “O peixe falou comigo. Eu falei com o peixe. O peixe dourado falou comigo. Ela disse que era...”

“Quieto, pequenino”, disse a Babá, “vai ter tempo pra isso mais tarde.” Ela lançou um olhar feroz para as mulheres e as crianças na cozinha. “Bem, não seria preciso chamar a Babá para achar para ele uma cama apropriada, mas se não há mais nenhuma para ele, o menino pode subir para o meu quarto, e eu dormirei no chão!”

“Claro que não, mas que idéia”, começou Sarima, agitando-se.

“Bárbaras, vocês todas!”, gritou a Babá.

Pelo que ninguém em Kiamo Ko jamais conseguiu perdoá-la.

Sarima repreendeu a Titia Hóspede severamente pelo que aconteceu com Liir. Elphaba tentou dizer que isso não fora causado por ela, não era culpa sua. “Foi brincadeira de algum menino, algum jogo, alguma provocação”, ela disse. Suas acusações passaram, e elas começaram a conversar sobre as diferenças entre meninos e meninas.

Sarima contou à Titia Hóspede o que ela sabia sobre o rito de inicia­ção dos meninos na tribo. “Eles são levados para as pastagens, e deixados lá com nada senão uma tanga e um instrumento musical. Exige-se que eles invoquem os espíritos e os animais dentro da noite, para conversar com eles, para aprender com eles, para acalmá-los se precisam de paz, para lutar com eles se precisam de luta. O menino que morre à noite dá prova clara de falta de discernimento para decidir se a sua companhia precisa de luta ou de paz. Então, é correto que ele morra jovem e não seja um peso para a tribo com a sua estupidez.”

“O que os meninos dizem dos espíritos que se aproximam deles?”, per­guntou a Titia Hóspede.

“Os meninos falam muito pouco, especialmente sobre o mundo dos espíritos”, ela respondeu. “Contudo, você colhe o que dá para colher. E eu acho que alguns espíritos são muito pacientes, muito desgastantes, muito obstinados. A sabedoria supõe que deveria haver conflito, hostilidade, bata­lha, mas eu penso cá comigo se, em contato com os espíritos, os meninos não precisariam era de uma boa ajuda de raiva fria.”

“Raiva fria?”

“Oh, sim, você não conhece a distinção? As mães tribais sempre dizem a seus filhos que há duas espécies de raiva: a quente e a fria. Meninos e meninas experimentam as duas, mas, à medida que crescem, as raivas se separam de acordo com o sexo. Os meninos precisam de raiva quente para sobreviver. Eles precisam da inclinação para lutar, o impulso para enfiar a faca na carne, a energia e a iniciativa da fúria. É uma exigência de caça, de defesa, de orgulho. Talvez de sexo, também.”

“Sim, eu sei”, disse Elphaba, relembrando.

Sarima ficou ruborizada e pareceu infeliz, e continuou: “E as meninas precisam de raiva fria. Elas precisam da fervura branda, do ressentimento constante, do talento para evitar a absolvição, para evitar o compromisso. Elas precisam saber quando dizer alguma coisa da qual nunca, nunca irão voltar atrás. É a compensação para uma liberdade de ação menor no mundo. Cruze o caminho de um homem e você lutará, um de vocês vencerá, haverá um ajuste e uma continuidade ― ou você ficará lá, morto. Cruze o caminho de uma mulher e o universo mudou, mais uma vez, pois a raiva fria exige uma eterna vigilância em todos os aspectos da desfeita e da ofensa”. Ela olhou ferozmente para Elphaba, alfinetando-a com acusações não exprimidas sobre Fiyero, sobre Liir.

Elphaba refletiu sobre isso. Ela pensou na raiva quente e na raiva fria, e se era dividida entre os sexos, e qual ela sentia, se sentira as duas, se alguma vez as tinha sentido. Pensou na sua mãe que morrera jovem, e em seu pai com suas obsessões. Ela pensou na raiva que o Doutor Dillamond tinha sentido ― uma raiva que o levara ao estudo e à pesquisa. Pensou na raiva que Madame Morrible mal podia disfarçar, quando tentava seduzir as garotas do colégio para entrar no serviço secreto do governo.

Ela sentou-se e pensou nisso na manhã seguinte enquanto observava o sol aumentar em intensidade e brilhar, vitorioso, sobre os montes de neve nos salpicados telhados logo abaixo. Ela observava o sol sangrar a água do gelo da geleira. Calor e frio trabalhando juntos para formar uma geleira. Calor e raiva fria trabalhando juntos para fazer uma fúria, uma fúria digna o bastante para que fosse usada como uma arma contra as velhas coisas que ainda precisavam ser combatidas.

De uma certa forma ― sem nenhum meio de prová-la, naturalmente ―, ela sempre se sentira capaz de raiva quente quanto qualquer homem. Mas, para ser bem-sucedido, é preciso ter acesso às duas formas...

Liir sobreviveu, mas Manek não. A geleira sobre a qual Elphaba treinou seu olhar afiado, pensando nas armas que eram necessárias para enfrentar tal abuso ― partiu-se feito uma lança a partir do beiral, e caiu zunindo, atingindo o crânio do menino quando ele saiu para procurar algum novo meio de fazer mal a Liir.




REBELIÕES

1

Eles estão te chamando de bruxa, você sabe?”, disse a Babá. “Agora, por que será que fazem isso?”

“Bobeira e estupidez”, disse Elphaba. “Quando eu cheguei, me sentia distanciada do meu nome depois dos meus anos no monastério, quando eu era chamada de Irmã Santa Elphaba. Elphaba parecia o nome de alguém que desaparecera havia muitos anos. Pedi que me chamassem de Titia. Embora eu nunca tivesse sentido vontade de ser a Titia de ninguém, nem soubesse como isso era. Nunca tive tias ou tios.”


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