Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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Quatro pôs um pedaço de melão amassado numa tigela. Cinco e Três tiraram seus aventais, ficando prontas para enxotá-lo quando ele descesse. Chistérico estava ainda olhando para a fruta quando a porta abriu com estré­pito contra a parede e Elphaba entrou, com passos desajeitados. “Com toda essa comoção, como conseguem ouvir vocês mesmas pensando?”, ela gritou, e então percebeu a presença de Chistérico, subitamente servil e tomado de remorso, e das irmãs, aprumadas para pegá-lo na armadilha de seus aventais cheios de farinha.

“Que diabos ele fez?”, ela disse.

“Não precisa gritar”, disse Dois aborrecida, sussurrando, mas elas bai­xaram seus aventais.

“Estou perguntando, o que é isto? O que é que realmente está aconte­cendo aqui? Vocês todas se parecem com Matalegria, com sede de sangue nas caras! Vocês estão brancas de raiva desse pobre animal!”

“Eu acho que não é raiva, é farinha”, disse Cinco, o que fez com que elas dessem risadinhas.

“Suas imundas selvagens”, disse Elfinha. “Chistérico, venha cá, desça. Imediatamente. Vocês, mulheres, merecem ser solteironas, porque assim não trazem nenhuma selvagem criança rastejante a este mundo. Não me ponham nunca a mão nesse macaco, estão me ouvindo? E como foi que ele fugiu de meu quarto? Eu estava no Solar com a irmã de vocês.”

“Oh”, disse Nor, lembrando, “oh, Titia, sinto muito. Fomos nós.”

“Vocês?” Ela se virou e olhou para Nor pela primeira vez, e Nor não gostou muito daquilo. Ela se encolheu, encostando-se à porta do frio porão. “O quê vocês estavam querendo lá?”, disse Elfinha.

“Um pouco de papel”, disse Nor debilmente, e num desesperado jogo de tudo ou nada, disse: “Eu fiz algumas pinturas para todo mundo, quer ver? vem cá”.

Chistérico nos braços, Elphaba seguiu-os até a sala desconfortável, onde o vento que vinha por debaixo da porta da frente fazia os papéis flutuarem contra a pedra esculpida. As irmãs vieram também, seguindo-os a uma dis­tância segura.

Elfinha ficou muito quieta. “Este papel é meu”, ela disse. “Eu não os autorizei a usá-lo. Olhem, tem palavras no verso. Vocês sabem o que são palavras?”

“Claro que eu sei, você acha que sou estúpida?”, respondeu Nor agres­sivamente.

“Vocês deixem meus papéis em paz”, disse Elphaba. Então, ela e Chis­térico subiram os degraus, e a porta para a torre se fechou estrepitosamente na cara deles.

“Quem quer ajudar a enrolar o pão de mel?”, disse Dois, aliviada que crâ­nios não tivessem sido rachados. “E esta sala está muito bonita, passarinhos, estou certa que Preenella e Lurline ficarão impressionadas hoje à noite.” As crianças voltaram para a cozinha e fizeram imitações de pessoas em pão de mel, e também de corvos, macacos e cães, mas não conseguiam fazer abelhas, eram pequenas demais. Quando Irji e Manek vieram, espalhando grama ne­vada no piso de ardósia, ajudaram a fazer as formas de pão de mel também, mas faziam formas asquerosas que não mostravam às crianças mais novas, e continuaram engolindo a massa crua e rindo histericamente por isso, o que deixava todo mundo louco da vida.

De manhã as crianças acordaram e correram para o andar inferior para ver se Lurline e Preenella haviam passado por lá. Decerto, havia lá um cesto de vime marrom com uma fita verde e dourada sobre ele (um cesto e uma fita que as crianças de Sarima já tinham visto ano após ano), e dentro havia três pequenas caixas coloridas, cada uma com uma laranja, um boneco, um pequeno saco de bolas de gude e um rato de pão de mel.

“Onde está o meu?”, disse Liir.

“Não vejo nenhum com seu nome em cima”, disse Irji. “Olhe: Irji. Ma­nek. Nor. Acho que Preenella deixou algum pra você lá na sua velha casa. Onde é que você morava?”

“Eu não sei”, disse Liir, e começou a chorar.

“Aqui, você pode ficar com o rabinho do meu rato, só o rabinho”, disse Nor gentilmente. “Primeiro você tem de dizer: ‘Posso ficar com o rabinho de seu rato?’ ”

“Posso por favor ficar com o rabinho do seu rato?”, disse Liir, embora suas palavras soassem quase ininteligíveis.

“E eu prometo obedecê-lo.”

Liir continuou murmurando. A permuta foi finalmente consumada. De vergonha, Liir não mencionou o descaso. Sarima e as irmãs nunca o notaram.

Elphaba não mostrou seu rosto o dia todo, mas mandou uma mensagem dizendo que a Véspera de Lurlinemas e Lurlinemas faziam-na sentir-se mal, e estava de folga por uns dias em conforto solitário, e não queria ser perturbada nem com refeições nem com visitas, nem com barulho de espécie alguma.

Assim, enquanto Sarima se recolhia à sua capela particular para lembrar seu querido marido nesse dia sagrado, as irmãs e as crianças cantavam alegres cânticos o mais alto que podiam.


4
Poucas semanas depois, quando as crianças travavam batalhas de bolas de neve, e Sarima estava preparando algum grogue medicinal na cozinha, Elfinha deixou seu quarto por fim e desceu furtivamente as escadas e bateu à porta da sala das irmãs.

Elas não gostaram disso, mas sentiram-se obrigadas a acolhê-la. A ban­deja de prata com garrafas de licor forte, o precioso cristal carregado em lombo de burro da Casa de Dixxi em Gillikin até ali, o mais belo e ricamente escarlate dos tapetes nativos no piso, o luxo das lareiras a cada um dos lados do aposento, cada uma delas flamejando alegremente ― bem, elas teriam escondido um pouco disso caso houvessem sido informadas da visita. Tal como foi, Quatro teve de esconder entre as almofadas do sofá o volume de couro que ela lia em voz alta, uma história forte de uma pobre mulher jovem assediada por uma abundância de bonitos pretendentes. O livro tinha sido um presente de Fiyero, o melhor que ele mandara para as irmãs ― e também o único. “Você gostaria de tomar um pouco de cevada com limão?”, disse Seis, serviçal até o dia de sua morte, a menos que por sorte alguém morresse antes.

“Sim, tudo bem”, Elphaba disse.

“Sente-se ― neste assento aqui, vai achá-lo mais confortável.”

Elfinha não tinha o ar de quem procura conforto, mas ela se sentou no assento indicado, de qualquer modo, rija e pouco à vontade naquele aposento que mais parecia um casulo acolchoado.

Ela tomou o menor golinho possível de sua bebida, como se suspeitasse de algum veneno.

“Suponho que preciso pedir desculpas por aquele tropel por causa do Chistérico”, ela disse. “Sei que sou hóspede aqui em Kiamo Ko. Eu apenas perdi um pouco a cabeça.”

“Bem, foi bem isso que você fez”, começou Cinco, mas as outras disse­ram, “Oh, não foi nada, nós todas temos dias como esse, na verdade para nós acontece sempre no mesmo dia, tem sido assim há anos...”

“É muito censurável”, Elfinha disse com algum esforço. “Eu passei mui­tos anos sob voto de silêncio, e eu não aprendi ainda a regular a voz no volume permissível.

Além disso, aqui estamos numa cultura diferente, de certo modo.”

“Nós, arjikis, sempre nos orgulhamos de ser capazes de falar com qual­quer outro cidadão de Oz”, disse Dois. “Em casa, recebemos de maneira igua­litária tanto o maltrapilho vagabundo scrow da parte sul quanto a elite de Cidade Esmeralda da parte leste.” Não que elas tivessem saído alguma vez do Vinkus.

“Quer um bocadinho?”, disse Três, trazendo uma lata de frutas de marzipã.

“Não”, Elfinha disse, “mas estou pensando no que vocês poderiam me contar sobre a tristeza particular de sua irmã.”

Elas se aprumaram, atraídas pelo assunto, e desconfiadas.

“Eu gosto de meus papos com ela no Solar”, disse Elfinha, “mas toda vez que a conversa chega perto de seu falecido esposo ― a quem vocês podem perceber que conheci pessoalmente ― ela mostra má vontade para discutir qualquer coisa.”

“Oh, bem, foi tão triste”, disse Dois.

“Uma tragédia”, disse Três.

“Para ela”, disse Quatro.

“Para nós”, disse Cinco.

“Titia Hóspede, ponha um pouco de licor de laranja na sua cevada com limão”, disse Seis, “ele vem das ladeiras aromáticas dos Kells Menores e é um luxo absoluto.”

“Bem, só um pouquinho”, disse Elfinha, mas não bebericou o licor que Seis lhe oferecera. Pôs os cotovelos sobre os joelhos e inclinou-se para a frente e disse: “Por favor, me contem como ela soube da morte de Fiyero”.

Houve um silêncio. As irmãs evitaram lançar olhares umas para as ou­tras, ocupando-se com as pregas de suas saias. Depois de uma pausa, foi Dois que disse: “Aquele triste dia. Ainda dói na memória”.

As outras se mexeram em seus assentos, virando-se desrespeitosamente para ela. Elphaba piscou duas vezes, parecendo um de seus próprios corvos.

Dois contou a história, sem sentimento ou drama. Um dos colegas de negócio de Fiyero, um comerciante arjiki, viera até o desfiladeiro da montanha no primeiro degelo de primavera, em lombo de escarque. Ele pediu para se encontrar com Sarima e insistiu que as irmãs ficassem por perto para apoiá-la quando ela recebesse as más notícias. Ele contou a elas como, nos Lurline­mas, recebera em seu clube uma mensagem anônima revelando que Fiyero tinha sido assassinado. Era num endereço em área de má reputação ― não havia vizinhança residencial. O membro do clã contratou um par de brutos e arrombou a porta do armazém. Lá dentro havia um pequeno apartamento no andar superior, um ambiente para encontros furtivos, obviamente. (O membro do clã relatou isso sem hesitação, talvez por uma manobra para diminuir o impacto do fato.) Havia evidência de luta e maciças quantidades de sangue, tão espesso em alguns pontos que ainda estava pegajoso. O corpo tinha sido removido, e nunca foi recuperado. Elphaba apenas balançou a cabeça em sinal afirmativo, soturnamente, ao ouvir essa recapitulação.

“Por um ano”, continuou Dois, “nossa querida aflita Sarima recusou-se a crer que ele estivesse realmente morto. Nós não ficaríamos surpresas se surgisse um bilhete pedindo resgate. Mas, nos Lurlinemas seguintes, quando não apareceu notícia alguma sobre o caso, tivemos de aceitar o inevitável. Além disso, a liderança do clã foi tão longe quanto pôde com uma colabo­ração imprevista; eles requisitaram um simples chefe, e ele foi posto à frente da investigação, saindo-se bem. Quando Irji ficar adulto, ele poderá reclamar os direitos de progenitor, se for ousado o bastante; ele ainda não é ousado, de maneira alguma. Manek é o candidato mais óbvio, mas ele é apenas o segundo pela ordem.”

“E o que Sarima acredita que aconteceu?”, disse Elfinha. “E vocês? Todas vocês?”

Agora que a parte mais sombria da história havia sido contada, as outras irmãs sentiram que podiam chegar a um consenso. Vinha à tona que Sarima por alguns anos suspeitara que Fiyero tinha tido um caso de amor com uma antiga colega de escola chamada Glinda, uma garota gillikinesa de lendária beleza.

“Lendária?”, Elfinha disse.

“Ele nos contou como ela era encantadora, como era discreta, que graça e que brilho ela tinha...”

“Isso seria o equivalente a dizer que ele exaltava as qualidades de uma mulher com quem estaria cometendo adultério?”

“Os homens”, disse Dois, “como todas sabemos, são ao mesmo tempo cruéis e astuciosos. Que artimanhas ele teria melhor que essa de admitir fervorosamente e sempre que ele a admirava? Sarima não teria bases para acusá-lo de manha e trapaça. Ele nunca deixou de ser atencioso com ela...”

“A seu modo frio, mal-humorado, reservado, amargo”, Três se interpôs.

“Muito diferente daquilo que se lê nos romances”, disse Quatro.

“Em caso de se ler romances”, disse Cinco.

“O que não se faz aqui”, disse Seis, fechando seus lábios sobre uma pêra de marzipã.

“E então Sarima acredita que seu marido estava tendo um romance com essa... essa...”

“Essa mulher deslumbrante”, disse Dois. “Você deve tê-la conhecido, você não freqüentava Shiz?”

“Conheço-a um pouquinho”, disse Elfinha, sua boca se esquecendo de ficar fechada. Ela estava passando por maus bocados para tentar acompanhar as múltiplas narrações. “Não a vejo há anos.”

“E na mente de Sarima está claro o que aconteceu”, disse Dois. “Glinda era ― e, por tudo que sei, ainda é ― casada com um rico senhor mais velho chamado Sir Chuffrey. Ele deve ter suspeitado de alguma coisa, e a seguiu, e descobriu o que se passava. Então ele contratou uns bandidos assassinos para matar o bastardo. Quero dizer, o pobre Fiyero. Não faz sentido?”

“É totalmente plausível”, Elfinha disse lentamente. “Mas, há alguma prova disso?”

“Prova nenhuma”, disse Quatro. “Se houvesse, a honra da família teria exigido que Sir Chuffrey fosse assassinado por vingança. Mas ele deve ain­da estar gozando de boa saúde. Não, é apenas uma teoria, mas é nisso que Sarima acredita.”

“É a isso que ela se apega”, disse Seis.

“E por que não?”, disse Cinco.

“É direito dela”, disse Três.

“Tudo é direito dela”, disse Dois tristemente. “Além do mais, pense só nisso. Se seu marido tivesse sido assassinado, não seria mais fácil de suportar o fato se você achasse que de algum modo, mesmo que fosse só um pouqui­nho, ele bem que merecia?”

“Não”, Elfinha disse, “eu não acho que seria.”

“Nem nós”, admitiu Dois, “mas nós achamos que é o que ela pensa.”

“E vocês?”, Elfinha perguntou, estudando o desenho do tapete, os losan­gos de um vermelho sangüíneo, as franjas pontiagudas, os animais e folhas de acanto e os medalhões em relevo. “O que vocês pensam?”

“Dificilmente pode-se esperar de nós uma opinião unânime”, disse Dois, mas ela desembestou a falar de qualquer jeito. “Parece razoável supor que, sem que a gente soubesse, Fiyero se envolveu em algum movimento político na Cidade Esmeralda.”

“Uma estada que era para ser de um mês acabou durando quatro”, disse Quatro.

“Ele tinha ― afinidades políticas?”, disse Elphaba.

“Ele era o Príncipe dos Arjikis”, Cinco lembrou a todas. “Ele tinha liga­ções ― responsabilidades ― alianças ― que quem de nós poderia adivinhar? Era direito seu ter opiniões sobre coisas que nós não precisávamos saber.”

“Ele era simpatizante do Mágico?”, disse Elfinha.

“Você está dizendo que ele estava envolvido numa daquelas campanhas? Num daqueles ― genocídios? Primeiro os quadlings, depois os Animais?”, disse Três. “Você parece surpresa que saibamos dessas coisas. Você acha que vivíamos tão isoladas do resto de Oz?”

“Nós somos isoladas”, disse Dois. “Mas nós escutamos muita coisa. Gostamos de dar abrigo a viajantes quando eles cismam de parar por aqui. Sabemos muito bem como a vida pode ser podre por aí.”

“O Mágico é um déspota”, disse Quatro.

“Nossa casa é nosso castelo”, disse Cinco ao mesmo tempo. “Algum alheamento quanto a todas essas coisas é uma coisa saudável. Com isso, mantemos nossa fibra moral, ficamos imaculadas.”

Todas deram risadinhas de gozação ao mesmo tempo.

“Mas, vocês acham que Fiyero tinha uma opinião sobre o Mágico?”, Elphaba perguntou novamente, pressionando com alguma urgência.

“Ele guardava essas coisas só para si”, replicou Dois. “Em nome da doce Lurline, ele era um príncipe e um homem! ― e nós não éramos nada senão suas mais jovens e dependentes cunhadas! Você acha que ele faria confiden­cias conosco? Ele podia até ter sido um amigo íntimo do Mágico, por tudo que sabemos! Ele com certeza tinha ligações no Palácio, pois era um príncipe. Mesmo que apenas de nossa pequena tribo. O que ele fazia com essas ligações ― quem somos nós para dizer? Mas nós não achamos que ele morreu como vítima de um marido ciumento. Talvez estejamos nos resguardando, mas não achamos. Achamos que ele foi pego no fogo cruzado de alguma luta alheia. Ou que ele foi surpreendido no meio de um ato de traição de algum grupo esquentado ou outro. Ele era um homem bonito”, disse Dois, “e nenhuma de nós negaria isso, naquele tempo e agora. Mas ele era forte e reservado, e duvidamos que teria se afrouxado o bastante para manter um caso de amor.” Pelo menor dos gestos ― uma repuxada em seu abdômen e uma endireitada em seus ombros ― Dois deixou escapar o motivo de sua posição: Como ele poderia ter sucumbido aos encantos de Glinda se fora capaz de resistir às suas próprias cunhadas?

“Mas”, perguntou Elfinha a boca pequena, “vocês acham que ele traba­lhava como espião para alguém?”

“Por que seu corpo nunca foi encontrado?”, disse Dois. “Se tivesse sido por um ataque de ciúme, o corpo não precisaria ter sido removido. Talvez não tivesse morrido ainda. Talvez tivesse sido levado para uma sessão de tortura. Não, em nossa limitada experiência, achamos que isso leva jeito de ter sido uma traição de feitio político, não romântico.”

“Eu...”, disse Elphaba.

“Você ficou pálida, querida. Seis, traga um pouco d’água...”

“Não”, disse Elphaba. “É só que ― ninguém pensava nisso naquele mo­mento ― eu nunca. Devo lhes contar o pouco que sabia a respeito? E talvez vo­cês possam repassar para a Sarima.” Ela começou a narrar. “Eu vi Fiyero...”

Mas, no momento mais estranho possível, a solidariedade familiar deu as caras. “Querida Titia Hóspede”, disse Dois, num tom de responsabilidade, “estamos debaixo das ordens mais estritas de nossa irmã para não cansar você com conversinhas sobre Fiyero e as tristes circunstâncias de sua morte.” Era evidente que Dois tivera de travar uma luta consigo mesma para dizer isso, já que o apetite por ouvir o que Elphaba tinha a dizer era enorme. As barrigas ali presentes estavam roncando pela carne que estava por vir. Mas o decoro, ou o medo da cólera de Sarima quando ela descobrisse, venceu. “Não”, disse Dois novamente, “não, creio que não devemos mostrar um interesse indevido. Podemos não ouvir e não falaremos a Sarima do que ouvimos.”

No fim, Elphaba deixou-as ali, e saiu trôpega. “Numa outra ocasião”, ela continuou dizendo, “quando vocês estiverem prontas, quando ela estiver pron­ta, falaremos disso. Vocês entendem que isso é essencial; há tanta angústia de que ela poderia ser aliviada ― e que ela mesma poderia aliviar, também...”

“Adeus, por enquanto”, elas disseram, e a porta se fechou para ela. As chamas nas lareiras gêmeas se refletiram por todo o aposento, e elas tomaram suas posições de dignidade frustrada, por terem de obedecer à irmã mais velha ― que Sarima fosse para o quinto dos infernos.


5
O gelo grudava nos telhados, desalojava telhas e pingava sujeira nos apo­sentos particulares, na sala de música, nas torres. Elphaba deu para usar seu chapéu dentro de casa para evitar a queda casual de gelo em sua cabeça. Os corvos estavam com os bicos mofados e traziam algas entre as garras. As irmãs concluíram a leitura de seu romance, e coletivamente suspiraram ― por vida, por vida! ― e começaram a ler de novo, como vinham fazendo havia oito anos. Na feroz corrente de ar ascendente do vale, a neve parecia tanto estar caindo quanto subindo. As crianças adoravam isso.

Numa tarde melancólica Sarima enfeitou-se com agasalhos de lã verme­lha e, para matar o tédio, saiu a vagar por quartos mofados e em desuso. Ela localizou uma escada num eixo trapezoidal, oblíquo ― talvez essa alta alcova se encostasse a algum lado da cumeeira que não era visível, ela não era boa em imaginar arquitetura em três dimensões. De qualquer modo, ela subiu os degraus. No topo, através de uma tosca treliça, ela viu uma figura na clara penumbra. Sarima tossiu para não sobressaltá-la.

Elphaba se curvava quase em duas sobre um enorme fólio estendido num banco de carpinteiro. Ela se virou, surpresa, mas não muito, e disse: “Nós temos a mesma inclinação, que curioso”.

“Você encontrou alguns livros de que eu tinha me esquecido completa­mente”, disse Sarima. Ela sabia ler agora, mas não bem, e os livros faziam-na sentir-se inferior. “Eu não poderia lhe dizer do que eles tratam. Tantas palavras, você mal poderia imaginar que o mundo merecesse tamanho escrutínio.”

“Aqui diante de mim tenho uma geografia arcaica”, disse Elfinha, “e al­guns registros de pactos de usufruto entre várias famílias dos arjikis ― aposto que haveria chefes que ficariam muito felizes de vê-los. A menos que estejam anacrônicos. Alguns textos que Fiyero tinha em Shiz ― eu os reconheço tam­bém, do curso de estudos de ciências da vida.”

“E essa coisa grande ― páginas roxas e tinta prateada, que enorme.”

“Achei no piso do guarda-roupa. Parece ser um Livro das Sombras”, Elfinha disse, pondo a sua mão numa página apenas suavemente empenada com a umidade. Fazia um belo contraste, sua mão no pergaminho.

“O que é isso, além de belo?”

“Tal como posso entender”, Elfinha disse, “uma espécie de enciclopédia de coisas místicas. Magia; e do mundo dos espíritos; e de coisas vistas e não vistas; e de coisas passadas e futuras. Posso compreender apenas uma linha aqui ou ali. Repare como elas se misturam quando você olha.” Ela apontou um parágrafo de texto em letra manuscrita. Sarima verificou. Embora sua habilidade para ler fosse mínima, ela ficou boquiaberta com o que viu. As letras flutuavam e se rearranjavam na página, como se estivessem vivas. A página ia mudando de opinião à medida que era olhada. As letras se coalha­vam num grande emaranhado negro, como se fossem um monte de formigas. Então Elphaba virou uma página. “Aqui, esta seção é um bestiário.” Havia elegantes, diluídos desenhos em vermelho-sangue e folheados a ouro, nas elevações fronteiras e traseiras de (parecia) um anjo, com anotações em uma letra delgada sobre os aspectos aerodinâmicos do ente sagrado. As asas se dobravam para cima e para baixo e o anjo sorria com uma espécie de santidade atrevida. “E há uma receita nesta página. Ela diz: ‘De maçãs de casca negra e polpa branca: para encher o estômago de gula até a Morte’.”

“Eu me lembro deste livro agora”, Sarima disse. “Eu realmente lembro como veio parar aqui, eu mesma o pus aqui; eu tinha esquecido. Bem, os livros são tão fáceis de ser negligenciados, não são?”

Elfinha olhou pensativa, seus olhos se apertando debaixo das pétreas glabras sobrancelhas. “Conte-me, Sarima, por favor.”

A Viúva Princesa de Kiamo Ko ficou alvoroçada. Ela foi até uma pe­quena janela e tentou abri-la, mas incrustações de gelo a impediram. Assim ela sentou-se pesadamente num caixote e contou a história para Elphaba. Ela não se lembrava exatamente quando, mas fora há um longo tempo, quando todos eram jovens e esbeltos. O adorado Fiyero ainda estava vivo, mas estava distante, nas Pastagens Milenares, com a tribo. Queixando-se de uma dor de cabeça, ela estava completamente sozinha no castelo. O sino da ponte levadiça soou e ela foi ver quem era.

“Madame Morrible”, Elphaba disse. “Uma ou outra Bruxa de Kumbric.”

“Não, não era a Madame. Era um homem idoso usando túnica e pernei­ras, com um manto que precisava urgentemente de um reparo da costureira. Ele disse que era um feiticeiro, mas talvez fosse apenas um louco. Ele pediu uma refeição e um banho, coisas que lhe foram concedidas, e depois me disse que queria retribuí-las dando-me este livro. Disse a ele que, com um castelo para administrar, eu não tinha muito tempo para frivolidades, leituras e o mais. Ele disse que isso não importava.

Sarima soltou seus roupões, e traçou um desenho no pó frio numa pilha de códices próxima. “Ele me contou um caso fabuloso que me persuadiu a pegar o presente que me entregava. Revelou que era um livro de sabedoria, e que pertencia a um outro mundo, mas não estava seguro lá. Então, ele o trouxera para cá ― onde podia ficar escondido e fora de perigo.”

“Que monte de porcarias”, disse Elfinha. “Se tivesse vindo do outro mundo eu não seria capaz de ler nada do que estava escrito. E bem que pude ler um pouco.”

“Mesmo que seja mágico, como ele disse?”, disse Sarima. “Mas você sabe que acreditei nele. Ele disse que havia mais intercâmbio entre os mundos do que qualquer pessoa poderia acreditar, que nosso mundo possuía atributos do seu, e o seu do nosso, uma espécie de efeito de vazamento, ou talvez uma infecção. Ele tinha uma barba franzida branca e cinza, e modos muito amáveis e abstratos, e cheirava a alho e creme azedo.”

“Prova indiscutível de que era extraterreno...”

“Não zombe de mim”, disse Sarima brandamente, “você me pediu, então estou contando. Ele disse que o livro era poderoso demais para ser destruído, mas ameaçador demais ― para aquele outro mundo ― para ser preservado. En­tão, fizera uma viagem mágica ou qualquer coisa do gênero e viera para cá.”


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