sentido quantitativo e qualitativo, em relação ao todo.
108 Ensaios de Semiótica Soviética
Neste caso, não tendo valor pessoal e sendo infinita-
mente menor do que o todo no qual tinha permutado di-
reitos e valor, o homem teria efectivamente tido que perder
todo o significado. Mas na realidade o sistema medieval
era diferente: sendo parte insignificante duma enorme
totalidade (por exemplo, parte dafeudalidade russa que
aqui servia como plano de expressão duma determinada
hierarquia social), o homem representava toda esta tota-
lidade (vej a-se a ideia de que um acto proibido - parti-
cular no plano da expressão - macula toda a corpora-
ção - a ordem cavaleiresca, mais tarde nobreza, o regi-
mento - e não a sua parte comprometida).
Contemporaneamente, um dano que não lesava no
homem a pessoa corporativa por ele representada, mas,
pelo contrário, lhe proporcionava vantagem (a morte glo-
riosa) apreendia-se muito menos do que noutros sistemas
socioculturais.
Esta clara divergência entre pessoa biológica e social
era um dos resultados do alto grau de semioticidade do
tipo medieval de cultura.
A esta peculiaridade dos primeiros tempos dofeuda-
lismo encontra-se ligado o característicofenómeno do
mestrcicestvo: as polémicas sobre o «lugar» que se deveria
ocupar num desfile, numa assembleia ou num banquete,
que para os historiadores modernos comformação racio-
nalista sãofruto da insensatez e da ignorância, para a cul-
tura medieval tinham um significado profundo: eram po-
lëmicas sobre o lugar que se devia acupar na hierarquia,
no sistema social. E uma vez que a existência real da
pessoa humana dependia da sua relação com a estrutura
de que era signo, a polémica referia-se à existência real
de cada um dos interessados. Perder o lugar significava
deixar de existir.
Deste modo o mestnicestvo era, antes de mais, au-
to-afirmação do indivíduo que,face à pressão dos outros
feudatários, desejava conservar-se na qualidade de ele-
mento do sistema, pois só em relação a ele, e nuncafora
dele, ofeudatário obtinha o direito aos privilégios sociais
de que gozava.
Ao mesmo tempo o rhestnicestvo também limitava a
autoridade do chefe da sociedadefeudal, já que sublinhava
que o seu poder era determinado unicamente pelo seu
lugar sígnico no sistema. Não é por acaso que a luta pela
T
Prática de Análise: Leituras Semióticas 109
I
autocracia tenha sido acompanhada pelo conflito entre o
poder e a estrutura hierárquica da sociedade.
Ofacto de a visão medieval do mundo se basear
não já no princípio sintagmático, mas no paradigmático e
toda a variedade dos textos se reduzir a um texto ideal de
cultura, não por efeito da sua soma, mas pelo processo de
construção duma estrutura garadigmática, conduziu a outra
interessante consequência.
Todo o conjunto das oposições semânticas particula-
res tendia a reduzir-se a antíteses culturaisfundamentais
céu-terra, eterno-temporal, salvação-condenação, bem-pe-
cado, etc.), as quais, por sua vez, se reduziam a séries se-
mânticas que, a um nível mais abstracto, podiam redu-
zir-se a uma única oposição semânticafundamental da
cultura.
Daqui advinha que, devido a esta estrutura do código
cultural, todo o leque das diferentes qualidadesfosse re-
presentado como um conjunto de graus distintos duma
mesma qualidade. Todos os pecados são distintos graus
do Pecado, todas as virtudes são distintos graus de Vir-
tude, etc. Portanto, nas culturas deste tipo o número co-
meçava a desempenhar umafunção especial. A divisão
qualitativa do quadro do mundofracturava o dito quadro
em duas partcs enormes, cuja diferença interna estava nos
valores numéricos.
O alto grau de semioticidade do modelo do mundo
ligava-se inevitavelmente a umafunção especial do sim-
bolismo dos números. Uma excelente confirmação desta
tese é a Divina Comédia de Dante onde todo o mundo das
paixões humanas é reconduzido aos graus do pecado e da
virtude, aos quais correspondem os números dos círculos
descendentes do inferno e os ascendentes do purgatório.
Nãofoi menos importante afunção desempenhada
pelo simbolismo dos números numa outrafase da cultura,
semelhante a esta quer pelo alto grau de semioticidade,
quer pelo tipo puramente paradigmático de estruturação
do todo, isto é, na maçonaria.
A atenção do homem medieval sentia-se atraída de
forma especial pela relação no signo entre o plano do
conteúdo e o plano da expressão. Justamente porque tudo
o existente se considerava como tendo significado (e, inver-
samente, apenas o que tinha significado se considerava
existente), este problema adquiria particular importância.
Ensaios de Semiótica Soviética
Sobre o conteúdo e a expressão para o código medie-
val de cultura podemfazer-se as seguintes observações ge-
rais.
1. A expressão é sempre material, o conteúdo é sem-
pre ideal.
Mas já que o conceito dos signos tem uma estrutura
não sintagmática mas hierárquica, o que num dado nível
está contido, pode, no nível mais alto, manifestar-se como
expressão com conteúdo próprio. Por isso, a principal opo-
sição ideal-material na paradigmática real de cultura sem-
pre se manifestará como amais material que... », «mais
ideal que... ». O valor dos distintos signos dependerá da
diminuição de peso que sobre eles tem o «material», isto
é. a expressão. No lugar mais alto se encontrará o signo
com expressão zero, isto é, a palavra não dita.
A oposição honra-glória ocupa um lugar de grande
importância no sistema ético da primeira parte da Idade
Média russa. A «honra» é uma deferência ligada a uma
expressão material; uma prenda, uma parte do saque, um
legado principesco. A «glória» é uma honra com expressão
zero: esta atribui-se aos mortos, expressa-se na memória,
nas canções, na notoriedade de povos longínquos. A «gló-
ria» dum ponto de vista hierárquico ocupa um lugar infi-
nitamente mais alto que a «honra», e um simplesfeuda-
tário «não pode aspirar a ela» 1ls1. Um exemplo típico da
ideia de que o valor mais alto é possuído pelo signo com
expressão zero encontra-se no conto taoista reproduzido
por Salinger no seu longo relato Raise High the Roof
Beam, Carpenters:
«O Duque de Chin, Mu, disse a Po Lo: -Agora que
estás em idade mais avançada, há algum membro da tua
família a quem eu possa usar no teu lugar na procura de
cavalos? Po Lo respondeu: - Podes escolher um bom ca-
valo se observares a sua constituição e o seu aspecto. Mas
o cavalo óptimo - o que não levanta pó e não deixa pega-
das - é algo evanescente efugidio, evasivo como o ar e
impalpável. Os meusfilhos têm talento, um talento dis-
creto; sabem reconhecer um bom cavalo quando o vêem,
mas não sabem reconhecer um cavalo óptimo. Mas tenho
um amigo, um tal Chiu-fang Kao, um vendedor ambulante
deforragens, que, no que diz respeito a cavalos, não vale
menos do que eu. Manda procurá-lo, aconselho-te.
Prática de Análise: Leituras Semióticas 111
O Duque Mu seguiu o conselho e, em seguida, enviou
Chiu-fang à procura dum corcel. Três meses depois voltou
dizendo que tinha encontrado um. - Agora está em
Schach'iu - acrescentou. - Que tipo de cavalo é? - per-
guntou o Duque. - Oh, é uma égua de cor cinzento-es-
cura -foi a resposta. E, contudo, quando mandou alguém
procurá-lo descobriu-se que o animal era um semental
preto como a noite. Muito desgostado, o Duque mandou
chamar Po Lo. - Esse teu amigo - disse-lhe -, a quem
tínhamos encarregado de procurar um cavalo, arranjou-a
boa. Pois se nem sequer sabe distinguir a cor e o sexo
dum animal, como pode saber de cavalos? Po Lo emitiu
um suspiro de satisfação. - É verdade que ele agiu
assim? - gritou. - Ah, então é dez mil vezes melhor do
que eu. Não há comparação entre ele e eu. O que interessa
a Kao é o mecanismo espiritual. Para se assegurar do es-
sencial esquece-se dos pormenores mais vulgares; está tão
atento às qualidades internas que perde de vista as exter-
nas. Vê o que precisa ver e não aquilo que não lhe inte-
ressa. Olha as coisas que se devem olhar e deixa as que
não têm importância nenhuma. Kao é tão bom conhecedor
de cavalos que tem capacidade para julgar coisas melho-
res que cavalos.
1Quando o cavalo chegou, já não houve dúvidas que
era verdadeiramente excepcional» c16).
2. Entre o conteúdo e a expressão existe uma relação
de semelhança: o signo está construído segundo o prin-
cípio icónico. A expressão é como um rasto do conteúdo.
Não é em vão que se utiliza a imagem do espelho tanto
para a matéria, enquanto plano de expressão do signo,
cujo conteúdo é o espírito, como para a representação
icónica. Também o homem, como imagem de Deus, é icó-
nico.
3. As relações entre expressão e conteúdo não são
nem arbitrárias nem convencionais: são eternas e preesta-
belecidas por Deus. É por esta razão que o escritor que
escreve um texto, o artista que pinta um quadro, não são
criadores mas apenas mediadores, através dos quais se
transmite a expressão inerente ao próprio conteúdo. Por-
tanto, um juízo sobre o valor das obras de arte não pode
contemplar o critério de originalidade.
112 Ensaios de Semiótica Soviética
O quadro do mundo construído sobre a negação do
quadro sintagmático era sistematicamente a-crónico. lvIem
a estrutura eterna do mundo, a sua essência, nem a sua
expressão material, sujeita à destruição, se submetiam às
leis do tempo histórico. Aquilo que tinha alguma ligação
com o tempo não era historicamente existente, era sim-
plesmente inexistente. Bastará dar um exemplo como
prova convincente: as categorias de «princípio» e «fim»
nos textos russos pertencentes à primeira metade da Idade
Média.
O juízo, natural para as categorias da consciência mo-
derna, «aquilo que tem princípio temfim» não se con-
firma nestes textos. Encontramos neles uma outra opo-
sição semântica: «aquilo que tem princípio é eterno, quer
dizer, não temfim, existe; a isso contrapõe-se o que
não tem princípio, quer dizer, o inexistente. E é a este
último, sendo efémero como é, que corresponde ofim».
Por isso, o cronista da antiga Kiev constrói o seu
Povest' vremennych let [Relato dos anos passados] como
uma narração dos começos.
Só aquilo que tem princípio é digno de atenção. Por-
tanto, os povos que podem assinalar os seus próprios
iniciadores, as estirpes que têmfundadores, os aconteci-
mentos que têm promotores, são povos, estirpes, aconte-
cimentos realmente existentes. E é deles de quem se deve
falar. A eles contrapõem-se, como sefossem inexistentes,
os povos que não têm o primeiro príncipe, nem o primeiro
Kcivilizador» cristão, asfamílias não ilustres, de desconhe-
cidas origens, os acontecimentos de pouca importância. O
próprio título da crónica é significativo: «1 o relato dos
anos passados, de onde tomou início o povo russo, de
quemfoi o primeiro príncipe de Kiev e onde começou a
existir o povo russo.» A parte essencial dos passos narra-
tivos da crónica são as lendas dos começos. Quanto mais
brilhante é a «raiz» mais importante é ofenómeno. Por
exemplo, o cronista rejeita, desabrido, uma lenda, para ele
já incompreensível, mas vinda de tempos muito remotos,
segundo a qual ofundador da cidade de Kievfoi um bar-
queiro chamado Kü (para ele o barqueiro não é já uma
personagem semimitológica, ligado ao seu trabalho na
água, reino dos mortos, e à superação dasfronteiras 1:o
nosso mundo-o seu mundo», mas apenas um homem que
Prática de Análise: Leituras Semióticas 113
ocupa um baixo lugar na hierarquia social) e defende a
' versão de que Küfoi um príncipe.
A ideia dofim do mundo não ocupa os pensamentos
naquele período optimista no qual o povo do estado de
Kiev se sente «jovem» e a
fim, mas o início da vida verdadeira; ofim do mundo, que
um cristão tem obrigação de recordar, não é outra coisa
? senão ofim do mundo «temporal», quer dizer, o inexis-
I tente, «imaginário» e princípio do eterno.
Um mundo no qual o movimento e a sucessão de
acontecimentos eram vistos como alguma coisa de externo,
i aparente e não essencial, não podia ter a ideia de casuali-
; dade, que nasceu como explicação das leis do movimento.
O escritor russo da primeira metade da Idade Média
nunca se preocupava em esclarecer as causas, tal como nós
o entendemos. Tenta esclarecer não a causa dum aconteci-
mento mas a sua araiz», o seu iniciador. Sobre este recai
; a culpa, se o acontecimento é mau, ou, caso contrário,
a glória. É por isto que se agrava continuamente o pecado
do primeirofratricida, enquanto a glória dos primeiros
príncipes russos cresce ao crescer a importância da sua
terra. Gogol, em Strasnaia mest' [Vingança terrível], re-
colhe muito bem este conceito, absolutamente alheio à
civilização moderna, mostrando como crescem os tormen-
tos do primeiro pecador duma estirpe conforme se acu-
mulam as más acções praticadas pelos seus descendentes.
Nos séculos XIII-XIV, quando a trágica situação das
terras russas tinha criado estados de alma escatológicos,
surgiram narrações referentes ao «fim»: ByZina kak pere-
veZs' bogatyri na Rusi [Bylina sobre a desaparição dos bo-
gatyri na Rússia], Slovo o pogibeZi Russkoi zemli [Cantar
da ruína da terra russa]. Aqui ofim introduzia-se na estru-
tura substancial do mundo: tudo o que é bom e válido
perecerá (e ao contrário: é válido aquilo que perecerá).
Mas, também aqui, àquilo que «temfim» se lhe contrapõe
não já aquilo que «tem princípio», mas sim aquilo que
mão temfim>,. O primeiro é válido, importante e exis-
tente ou existido, o segundo não tem nem valor nem im-
portância e a sua existência é ilusória. Os bogatyri morre-
ram mas existiram, enquanto as pessoas mesquinhas é
como se não tivessem existido.
114 Ensaios de Semiótica Soviética
II. O TIPO SINTAGMÁTICO
Cronologicamente, o predomínio deste tipo de código
culturalfenece na época da centralização. Manifesta-se nas
concepções eclesiástico-teocráticas e nas absolutistas dos
séculos XVI-XVII mas afirma-se nas obras dos ideólogos
do «estado regular» da época de Pedro I.
É rejeitado o significado simbólico dos acontecimen-
tos e dosfenómenos: o mundo vive não na relação entre
os dois planos (essência e expressão) mas sobre um só
plano: eclesiástico ou estatal: daqui surge o praticismo dos
representantes deste sistema: os outros dignitários ecle-
siásticos de tipo ossifiliano 1t'1 assim como os especuladores
da época de Pedro são todos homens de espírito prático e
empírico. Estes propôem-se objectivos reais e alcançáveis
e nunca sacrificarão os interesses práticos da «empresa»
por um, para eles, imaginário significado simbólico. A pas-
sagem a este sistema é como uma libertação do obscuran-
tismo medieval, como a reabilitação da actividade prática.
Os símbolos produzem irritação: Pedro I destrói cons-
cientemente a ritualística medieval da corte dos tsares
moscovitas, enquanto Teófano Prokopovitch, opondo-se
a Stefan Jaworski, que tenta conservar de maneirafebril,
mediante o terror e os suplícios, a reverência medieval
pelo ícone como signo de santidade, demonstra que a di-
vinização do ícone é idolatria. Há que rezar a Deus e não
ao ícone, que é «coisa intermédia».
O princípio quefazia do aprofundamento, em sentido
gradual, penetração da verdade, é substituído pela aspira-
ção de sensatez. Teófano Prokopovitch reprovava ofacto de
na interpretação das Sagradas Escrituras ase prestar mais
atenção não ao sentido do texto, mas à possibilidade e ao
modo de poder tirar conclusões surpreendentes e inespe-
radas, procurando algum misterioso significado nas pala-
vras e expressões mais simples e compreensíveis (...)
Deste modo, um texto tem às vezes três ou quatro senti-
dos og1.
O praticismo, por um lado, levava a uma alta valora-
ção dos «conhecimentos úteis» e, por outro, a uma atitude
dzpreciativa e irónica para com o pensamento puramente
teórico. A «sensatez» do homem prático convertia-se em
critério de realidade. Aquilo que não era por ele conside-
rado essencial excluía-se da esfera da cultura. A isto está
Prática de Análise: Leituras Semióticas 115
ligada a aspiração de «simplificar» a cultura, tirando dela
o «supérfluo», quer dizer, o inútil do ponto de vista do
homem prático. São conhecidas as anotações à margem
feitas por Pedro I na tradução que ele corrigiu da Georgica
curiosa: «Visto que os alemães costumam encher os seus
livros com muitas histórias incongruentes com o únicofim
de osfazer passar por grandes, não tem de ser traduzido
tudo, bastando as coisas essenciais e um breve discurso
que introduza cada obra; mas para que também o mencio-
nado discurso não seja um adorno ocioso mas algo que
ilumine e edifique o leitor, corrigi o tratado sobre agricul-
tura (eliminando aquilo que não presta) e mando-o, a tí-
tulo de exemplo, para que todos os livros sejam traduzidos
sem histórias inúteis, já que com isso a única coisa que
conseguem éfazer perder tempo e desanimar os leito-
res » c19).
De qualquer modo, este propósito de des-semiotizar os
valores da cultura não significava na realidade uma rejei-
ção de todos os tipos de organização sígnica (se tivesse
sido assim teríamos encontrado um novo tipo de cultura
e não a destruição desta). De qualquer maneira, o princípio
em si do significado mudava deforma radical. Substi-
tuía-se a estrutura semântica pela sintagmática. O signifi-
cado dum homem ou dumfenómeno não era determinado
pela sua relação com as essências doutro plano, mas pela
sua inserção num plano determinado.
Ofacto de pertencer a um todo converte-se em sinal
de significado cultural: existir significa ser parte. O todo
tem valor não enquanto é símbolo de alguma coisa mais
profunda, mas por si mesmo, isto é, enquanto igreja, es-
tado, pátria, casa. Eu, contudo, tenho significado enquanto
parte deste todo. Neste caso o conceito de «parte» assume
um significado distinto daquele que tem no código ase-
mântico»: a parte não equivale ao todo e reconhece com
alegria a sua própria insignificânciafrente ao mesmo. O
todo não é o significado da parte, mas a soma dasfrac-
ções sintagmaticamente organizadas.
Não deve esquecer-se que após a rigidez e a escleroti-
zação da parcialidade medieval uma tal nivelação podia
ser interpretada como a libertação do homem duma mul-
tiplicidade de participações complexas e entrecruzadas
num sistema hierárquico de categorias e como a sua sub-
116 Ensaios de Semiótica Soviética
missão a uma única estrutura igual para todos, isto é,
como a democratização da organização social.
As discussões sobre a contraposição entre mobreza»
e «Estado» nos tempos de Pedro eram sempre interpreta-
das à luz do antagonismo entre o particular e o universal.
K. Zotov, tendo sido enviado a estudar no estrangeiro, es-
crevia a Pedro, sem meias palavras, que «por toda a parte
os nobres desprezam o trabalho» e aconselha a seleccionar
ahomens de classe média» para «os serviços do Estado» 12°1.
Visto que o universal predomina sobre o particular,
trabalhar nos serviços do Estado, dignidade que não de-
riva da natureza de cada um, mas do lugar que ocupa no
sistema, é ofundamento da posição social de cada cidadão
e do próprio monarca. Também este presta serviço e re-
cebe do Estado, como que emprestada, a sua própria au-
toridade.
Ao reelaborar o primeiro regulamento militar (o deno-
minado Ustav Veide [Regulamento Veide] de 1698) no
Ustav 1716 goda [Regulamento de 1716], Pedro I substi-
tuiu com o seu próprio punho as palavras aEm tudo aquilo
que no regimentofira os interesses de sua majestade, todo
cuidado...N por «E em tudo aquilo que no regimentofira
os interesses do Estado... » c2t>
Assim se criou o ideal de um tsar democrático e da
monarquia popular sobre a qual escreveram Simeon Po-
lockij, Teófano Prokopovitch e Lomonosov. Em 1774 a isto
se referia também o ex-sargento Petrov do regimento Elec-
kij da guarnição de Voronez, contando a história dum la-
drão que agrediu Pedro I porque este, para o pôr à prova,
lhe propôs saquear um rico boiardo; o ladrão salvou de-
pois a vida do tsar, desmascarando uma conjura de boiar-
dos 11>.
O indivíduo só, não ligado ao sistema, não tinha sig-
nificado e era considerado hostil. Pedro I escreveu a seu
filho Alexei: «Eu pela minha pátria e pelas minhas gentes
não poupei a minha vida nem a poupo, como posso, então,
ter piedade dum néscio como tu?>)1'3>
A inserção no desenvolvimento temporal era um as-
pecto essencial da organização deste tipo de cultura. O sis-
tema muda à medida que se lhe vão juntando novos elos.
Entende-se este movimento como aperfeiçoamento. Além
da contraposição velho-novo, onde o primeiro termo é con-
siderado negativo e desvalorizado e o segundo cheio de
Prática de Análise: Leituras Semióticas 117
valor, também existe a ideia de um aperfeiçoamento infi-
nito do novo.
Esta progressão pode entender-se distintamente nos
vários sistemas: como submissão do indivíduo à Igreja,
como aperfeiçoamento do sistema das leis, ou como difu-
são das ciências. Mas uma coisa é comum a todos: o pas-
sado é entendido como estado caótico dos indivíduos (ve-
ja-se, por exemplo, um conjunto de palavras não organiza-
das sintagmaticamente), os quais se submetem cada vez
mais às regras da sua unificação num todo até que o sis-
tema se manifeste em estado puro.
Deste modo vemos que a estrutura que tinha procla-
mado a des-semiotização e a destruição do sistema de se-
mantização hierárquica alcançou uma semiotização não
menos rígida, mas de tipo diferente: os princípios da orga-
nização da cultura, que proclamavam a libertação do sis-
tema, levam àformação de sistemas mais rígidos de tipo
Dostları ilə paylaş: |