burocrático.
III. O TIPO APARADIGMÁTICO E O ASSINTAGMÁTICO
Vimos como o tipo sintagmático de código cultural
não realizou a sua tarefa de des-semiotizar o modelo do
mundo e, por conseguinte, não deu ao indivíduo, confun-
dido cada vez mais por relações sociais mais e mais com-
plexas, um sentimento de libertação. Pelo contrário, uma
vez que esse indivíduo, a nívelfisiológico, não era reconhe-
cido como unidade social em nenhum dos dois sistemas,
encontrava-se sempre numa posição ambígua: as suas ne-
cessidades vitais, impostas pela prática quotidiana, consi-
deravam-se vulgares, humilhantes e até declaradas inexis-
tentes.
Nos momentos de crises históricas, quando as insti-
iuições sociais estão desacreditadas e a própria ideia de
sociedade é entendida como sinónimo de opressão, nasce
um sistema de cultura que se caracteriza pela tendência
para a des-semiotização. Na cultura europeia da Idade Mo-
derna, aí incluída a russa, o iluminismofoi o que exprimiu
de maneira mais concreta este código de cultura.
A diferença entre a estrutura semântico-simbólica da
Idade Média e o Iluminismo residia nofacto de este úl-
timo partir da ideia de conceder mais valor às coisas reais
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118 Ensaios de Semiótica Soviética
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que não podiam usar-se como signos: não ao dinheiro, aos
uniformes, aos níveis ou às representações, sim ao pão, à
água, à vida, ao amor.
Ao diferenciar-se do código sintagmático da época ab-
solutista, o iluminismo partia da ideia de que a realidade
máxima era possuída por aquilo que não é parte: não pela
fracção mas pelo todo. Existe aquilo que existe separada-
mente.
Portanto, os dois princípios semânticos das culturas
precedentesformavam parte deste sistema deforma nega-
tiva, como componentes de signo negativo.
As ideias do iluminismo, que baseia toda a organiza-
ção da cultura na contraposição natural/não-natural, têm
uma atitude decididamente negativaface ao próprio prin-
cípio da signicidade. O mundo das coisas é real, o mundo
dos signos, das relações sociais, é trazido pelafalsa civili-
zação. Existe o que se representa a si próprio: tudo o
que «representa» alguma outra coisa éficção. Portanto, as
realidades imediatas são válidas e verdadeiras: o homem
na sua essência antropológica, afelicidadefísica, o traba-
lho, a comida, a própria vida como um processo biológico
preciso. As coisas que têm significado apenas em determi-
nadas situações sígnicas carecem de valor e sãofalsas: o
dinheiro, os graus, a tradição de casta e estirpe. Os signos
convertem-se em símbolos da mentira, enquanto a
sinceridade, a ausência de signicidade, são o critério má-
ximo de valor. Nestas condições, o tipofundamental de
signo, a «palavra», que no sistema anterior era considerada
como primeiro acto da criação divina, converte-se em mo-
delo de mentira. A antítese natural/não-natural é sinoní-
mica da contraposição coisa-acção, realidade-palavras. To-
dos os signos sociais e culturais são declarados «palavras»
Chamar alguma coisa «palavra» significa denunciar a sua
falsidade e a sua inutilidade. «O horrendo reino das pala
vras em vez do dosfactos»: assim é a civilização moderna
segundo Gogol ez4).
O homem, perdido nas palavras, perde a sensação de
realidade. Portanto, a verdade é um ponto de vista, não
introduzido na esfera extra-sígnica (extra-social) das rela
ções reais, mas também contraposto às palavras. A crial
e o selvagem, seresfora da sociedade, não são os únicos
portadores da verdade, mas também o é o animal,
aliás estáfora da linguagem. No romance de L. Tol
Prática de Análise: Leituras Semióticas 119
Cholstomer [História dum cavalo] ofalso mundo social é
o mundo dos conceitos expressos na linguagem. A este se
contrapõe o mundo sem palavras dum cavalo. A relação
de propriedade não é outra coisa que «palavras». O narra-
dor, um cavalo, conta: «Naquela altura eu não lograva
entender o que significava ofacto de me chamarem pro-
priedade do homem. As palavras: o meu cavalo, referidas
a mim, cavalo vivente, pareciam-me tão estranhas como as
palavras: a minha terra, o meu ar, a minha água.
Mas estas palavras tiveram uma enorme influência em
mim. Eu pensava continuamente nisto, e só após muito
tempo, depois das relações mais variadas com os homens,
compreendi,finalmente, o significado que os homens atri-
buem a estas estranhas palavras. O significado é este: os
homens são guiados na vida não pelas acçôes mas pelas
palavras. Eles amam não tanto a possibilidade defazer ou
nãofazer algo, quanto a possibilidade de pronunciar sobre
os distintos objectos as palavras combinadas entre eles.
Essas palavras, consideradas entre eles muito importantes,
são: meu, minha, meus (...). Eles chegam ao acordo de
apenas um dizer minha em relação a uma mesma coisa.
E quem de entre eles diga mais vezes meu quandofale de
coisas, segundo este jogo, combinado entre eles, é consi-
derado o maisfeliz. Porque é que isto é assim não sei,
mas é assim. Tentei até explicá-lo a mim mesmo durante
longo tempo com uma vantagem directa 1251, mas estava
enganado.
Por exemplo, muitos dos homens que me chamavam
o seu cavalo, nunca me tinham montado, enquanto
outros, esses sim, ofaziam. Não eram eles que me davam
de comer, mas outros... E os homens na sua vida aspi-
ram não já afazer o que consideram bem, mas a cha-
mar minhas ao maior número de coisas possível. Agora
estou convencido de que justamente aqui reside a dife-
rença entre os homens e nós. A actividade dos homens (...)
é guiada pelas palavras, enquanto a nossa o é pela
acção» 1261. A incompreensão das palavras converte-se em
signo cultural duma autêntica compreensão (veja-se Akim
no Vlast' t'my [Poder das sombras] de Tolstói). A palavra
é instrumento de mentira, concentrado de sociabilidade.
Assim nasce o problema da comunicação extraverbal, a
superação das palavras que dividem os homens. Neste
sentido, é significativo o interesse que se manifesta em
120 Ensaios de Semiótica Soviética
Rousseau pela entoação e a paralinguística (às vezes o
princípio afinador identifica-se com o emocional e popu-
lar, e o princípio verbal com o racional e o aristucrático).
«Toutes nos langues sont des ouvrages de 1'art. On a Iong-
temps cherché s'il y avait une langue naturelle et comune
à tous les hommes: sans doute il y en a une et c'est celle
que les enfants parlent avant de savoir parler (...) ce n'est
point le sens du mot qu'ils entendent, 1'accent dont il est
accompagné. Au langage de la voix se joint celui du geste,
non moins énergique. Ce geste n'est pas dans lesfaibles
mains des enfants, il est sur leurs visages.» «L'accent est
1'âme du discours; il lui donne le sentiment et la vérité.
L'accent ment moins que la parole 1z
.»
A citação de Tolstói aaui transcrita é interessante tam-
bém nesta óptica: nela se sublinha o carácter convencional
de todos os signos culturais, desde as instituições sociais
à semântica das palavras. Se para o homem medieval o
sistema dos significados tinha carácter preestabelecido e
toda a pirâmide das subordinações sígnicas reflectia a hie-
rarquia da ordem divina, na época iluminística o signo,
entendido como quinta-essência da incivilização artificial,
contrapõe-se ao mundo natural dos não-signos. É justa-
mente nesta época que se descobre o carácter convencio-
nal, não - motivado, da relação significante - significado.
A sensação da relatividade do signo penetra profunda-
mente na estrutura do código cultural. No sistema medie
val a palavra é captada como ícone, imagem do conteúdo
enquanto na época iluminística até as imagens pictóricas
parecem convencionais.
De tudo quanto se tem dito tira-se como consequência
uma propriedade essencial da estrutura cultural do código
iluminístico: contrapondo o natural ao social, assim como
o existente ao efémero, introduzia-se o conceito de norma
e da sua transgressão em numerosas realizaçôes casuais.
Providos de significado, justamente porque não são
signos, as coisas e o homem na cultura do iluminismo não
mudavam o valor nem sequer pelos nexos sintagmáticos
do sistema. Tem um verdadeiro valor, no homem e no ob-
jecto, aquilo que lhes é próprio enquanto indivíduos: no
objecto, a sua propriedade, no homem, as suas qualida-
des antropológicas. Estabelecendo laços de união com ou-
tros homens, entrando no sistema na qualidade de ele-
mento seu, o homem não ganha, perde.
Prática de Análise: Leituras Semióticas 121
Rousseau no Contrato Social escreve: «Supposons que
1'état soit composé de dix mille citoyens. Le souverain ne
peut être considéré que collectivement et en corps: mais
chaque particulier, en qualité de sujet, est considéré, comme
individu: ainsi le souverain est à un sujet comme dix mille
est à un; c'est-à-dire que chaque membre de 1'état n'a pour
sa parte que la dix-millième partie de 1'autorité souveraine
,
quoiqu'il lui soit soumis tout entier. Que le peuple soit
composé de cent mille hommes, 1'état des sujets ne change
pas, et chacun porte également tout 1'empire des lois, tan-
dis que son suffrage, réduit à un cent-millième, a dixfois
moins influence dans leur rédaction. Alors Ie sujet restant
toujours un, le rapport du souverain augmente en raison
du nombre des citoyens. D'oix il suit que, pIus I'état s'agran-
dit, plus Ia liberté diminue» 11>.
O raciocínio de Rousseau é muito característico. Isto
permite também introduzir um bom critério técnico para
dividir os sistemas de cultura com paradigmática domi-
nante dos sintagmáticos: se o pertencer à maioria se con-
sidera que é positivo e que enobrece, se isso aumenta o
significado do indivíduo, estamos perante um sistema sin-
tagmático e, em caso contrário, perante um paradigmático.
Um cavaleiro age sempre como membro duma «pe-
quena tropa», como diz a crónica de Kiev, um contra mui-
tos. Ao participar na batalha une-se a quem está em mino-
ria. Do ponto de vista do iluminista, Robinson, na ilha de-
sabitada, possui a máxima dignidade, ou Karl Moor, que
com um punhado de bandidos se rebela contra o mundo 11'>.
Em qualquer caso, Pierre Bezuchov, em Vojna i mir
[Guerra e Paz], procura uma visão genuína da vida nafu-
são com a maioria (povo), enquanto para 1Lomonosov
a grandeza sempre será inseparável da imensidade do es-
paço geográfico. A ideia da poesia da imensidade não será
por casualidade um elemento orgânico das odes na época
classicista. (hia época clássica não é casual que a ideia do
poético, do imenso, constitua um elemento orgânico das
odes.)
Uma variante deste problema é a questão do que é
que tem maior valor: se a vitória ou a morte. Determina-
dos tipos de cultura poetizam a vitória. O triunfo, a apo-
teose, são componentes obrigatórias dofinal dos entrela-
çados heróicos do classicismo. Os heróis da Chanson de
Roland ou da Slovo o polku Igoreve cantam as gestas de
122 Ensaios de Semiótica Soviética
Igor, ou morrem ou sofrem derrotas. A morte é insepará-
vel da conversão em heróis no sistema romântico que por
sua vez possuía traços claríssimos de assintagmatismo. O
dezembrista A. Odoevskü, quando na manhã 14 de
Dezembro de 1825 se dirigia para a praça onde deviam reu-
nir-se os insurrectos, exclamou: aMorreremos, morreremos
cheios de glória» 11°). E o dezembrista A. Bestuzev no decor-
rer do seu julgamento disse: «Todos nós, sem excepção,
nos sacrificávamos pela pátria» 13t).
O iluminista não aspirava afazer parte da maioria,
já que estava convencido que todas as propriedades au-
tênticas e as necessidades do homem se encontravam já
nele como dados antropológicos. Acrescentar algo signifi-
cava alteração, mentira, preconceito. De acordo com Do-
broliubov, toda a sabedoria das doutrinas sociais se reduz
àfórmula seguinte: ao homem e a suafelicidade». E acres-
centa: «Mas estafórmula já a tinha eu na alma, quando
criança, ainda antes de começar a estudar as diferentes
ciências» 11).
O povo não é mais do que um aglomerado mecânico
de pessoas, e podem-se estudar todas as propriedades da
humanidade no indivíduo.
É curiosa a atitude para com o povo: um iluminista
luta afavor do povo, mas a sua simpatia para com o ho-
mem do povo depende dofacto de ser «como eu» e não
dofacto de aser distinto». «Tornar-se como o povo» signi-
fica mudar para «se tornar o próprio» e não «mudar para
se tornar distinto»; por um lado, a aspiração de misturar-
-se com o povo significa, dum ponto de vista, unir-se àque-
les que são «distintos» e que são «tantos», e, de outro,
àqueles que são «iguais» mas dominados. O povo resulta
atractivo pelofacto de estar dominado e não por ser nu-
meroso; por ser débil e nãoforte.
Veja-se em Blok a simpatia pelo povo enquanto débil:
Sim, assim dita a inspiração:
A minha livrefantasia sempre
Vai para onde está a humilhação,
A sujidade, a obscuridade e a miséria.
Ali, com humildade, em baixo,
Onde outra vida se vislumbra melhor...
Viste as crianças em Paris
Ou os mendigos na ponte de inverno? 133)
Prática de Análise: Leituras Semióticas 123
Apesar de tudo também poderemos encontrar em
Blok versos como este:
Sonhei não estar só.
E ali, afiando os machados,
Alegres homens vermelhos,
Rindo, acendiam asfogueiras 13°>
A base da cultura do iluminismo está na tendência
para a des-semiotização, na luta contra o signo. Mas não
pode dizer-se que por isso esta cultura não seja um sis-
tema semiótico. A ter sido assim, esta não teria sido um
tipo especial de cultura; mas teria sido uma anticultura e
destruindo as outras maneiras de conservar e transmitir
a informação não teria podido cumprir afunção de sis-
tema comunicativo. Mas as coisas não são assim. Por isso,
ao destruir os signos das culturas anteriores, o iluminismo
cria os signos da destruição dos signos. Isto pode-se ver
claramente com um único exemplo: o iluminismo convida
a abandonar as quimeras do mundo sígnico e a voltar-se
para a realidade da vida natural, não deformada pelas «pa-
lavras». A essência das coisas está contraposta aos signos
,
como o está o real aofantástico. Mas este «realismo» é de
tipo particular. Visto que o mundo que rodeia o escritor
é um mundo de relações sociais, chama-se-lhe quimérico.
Real, pelo contrário, é o homem que, levado à sua essên-
cia, não existe na realidade. Deste modo, a realidade re-
sultafantasticamente irreal, enquanto a realidade su-
perior é excluída totalmente do mundo da realidade social.
O não-signo do iluminismo torna-se signo de segundo grau.
IV. O TIPO SEMÃNTICO - SINTAGMÁTICO
O iluminismo europeu do século XVIII 1351foi um dos
sistemas mais poderosos da cultura da Idade Moderna.
E este, aliás, criava o quadro dum mundofragmentado
ao destruir a sintagmática e criar o quadro dum mundo
absurdo, na medida em que se opunha à semântica.
Na cultura europeia defins do século XVIII e princí-
pio do século XIX identificou-se este quadro do mundo
com a sociedade burguesa, surgida após a Revolução Fran-
cesa. Aindafoi maisforte a aspiração de criar um modelo
124 Ensaios de Semiótica Soviética
do mundo que o apresentasse provido de sentido e de uni-
dade. Isto coincide com a explosão das ideias historicistas
e dialécticas tão típicas do pensamento social russo du-
rante os anos 40 do século passado. Estes problemas inte-
ressam a Puchkine, a partir de Poltava, ao jovem Kireevs-
kij, Caadaey, o círculo de Stankevic e desembocam no
originalfenómeno do hegelismo russo. A expressão ex-
trema, mas lógica, destes estados de espírito é «A reconci-
Prática de Análise: Leituras Semióticas 137
com os estrangeiros, etc. É sintomático que palavras deste
tipo possam ver-se associadas, quer pela sua forma quer
pelo seu uso, a nomes próprios: assim vemos que, em
russo, as «palavras infantis» se formam conforme o modelo
dos nomes próprios hipocorísticos ~il~: kisa [«gatinho»],
bjaka [«vaca»]; vova em vez de voZk [«lobo»], netja em vez
de petuch [«galo»], etc; as vozes de chamamento (cyp-cyp,
kis-kis, mas'-mas', etc.) intervêm, em definitivo, como for-
mas vocativas (respectivamente das «palavras infantis»
cyna [«pinto, galinha»], kisa, masja [«cordeiro, ovelha»];
etc.). São de grande interesse os pontos em comum que
estes fenómenos têm com a linguagem infantil: pontos em
comum que podem explicar-se pelo papel particular que
desempenham os nomes próprios no mundo da criança
(onde, em geral, todas as palavras podem, ainda que ape-
nas potencialmente, cumprir a função dos nomes pró-
prios): veja-se mais à frente 5.1.
4. É própria do mundo mitológico uma concepção es-
pecificamente mitológica do espaço, que não se apresenta
sob a forma dum continuum marcado por traços distinti-
vos, mas como um conjunto de objectos isolados marcados
por nomes próprios. Disto se deduz que nos intervalos
existentes entre estes o espaço parece interromper-se, ao
não dispor do traço distintivo, fundamental segundo o
nosso ponto de vista, da continuidade. Pode ver-se uma
consequência em particular, na construção «à maneira de
mosaico» do espaço mitológico e no facto de a transfe-
rência dum locus para um outro poder dar fora do tempo,
por meio de algumas fórmulas épico-narrativas fixas, ou
mesmo que o tempo possa contrair-se ou dilatar-se arbi-
trariamente, relativamente ao tempo dos Zoci designados
por nomes próprios. Por outro lado, uma vez situado num
outro lugar, o objecto pode perder o seu nexo com a sua
condição anterior e converter-se num outro objecto (nal-
guns casos a isto pode corresponder também uma mudança
de nome).
Donde deriva a capacidade, típica do espaço mitoló-
gico, de modelizar uma outras relações, não espaciais (se-
mânticas, valorativas, etc.). O facto de o espaço mitológico
estar cheio de nomes próprios confere aos seus objectos
um carácter realizado e definido, o próprio espaço está
delimitado. Neste sentido, o espaço mitológico é sempre
1.~8 Ensaios de Semiótica Soviética
pequeno e fechado, embora o mito em geral comporte
dimensões cósmicas ~'2~.
Ao falar do carácter circunscrìto e delimitado do un.i-
verso mitológico podemos alegar que a presença de vários
denotados num nome próprio contradiz de facto a sua
natureza (criando dificuldades reais às comunicações), en-
quanto num nome a presença de denotados diferentes é,
em termos gerais, um fenómeno normal.
[I~IOTA. - O tema do mito como texto baseia-se fre-
quentemente na transgressão por parte do herói da fron-
teira do espaço «reduzido» e fechado e a sua passagem a
um mundo sem limites.
De qualquer modo, na base do mecanismo gerador de
tais textos está o pequeno «mundo dos nomes próprios».
Este tipo de tema mitológico inicia-se com a passagem a
um mundo no qual o homem ignora o nome dos objectos.
Daqui o tema da morte inevitável do herói, que sai para
o mundo exterior sem conhecer o sistema de denominação
não humano, e, pelo contrário, a sobrevivência do herói
que, de maneira milagrosa, recebeu esse conhecimento.
É a própria existência dum mundo «estranho» que
pressupõe, no mito, a presença dum mundo «familiar»,
caracterizado por traços de delicadeza e cheio de objectos
designados por nomes próprios.~
5.0. A consciência mitológica que caracterizámos nas
páginas anteriores pode chegar a ser objecto de observa-
ções directas examinando o contacto da criança pequena
com o mundo. A sua tendência para considerar todas as
palavras da língua como nomes próprios ~'3~, a identificar
conhecimento com processo de denominação, a forma de
sentir o espaço e o tempo (veja-se o conto de Tchékhov
Grisa: «Até esse momento Grisa não conhecia mais do que
um mundo quadrangular: numa das esquinas encontrava-
-se a cama, na outra a arca da ama, na terceira a mesa,
enquanto no quarto ardia a luz do candeeiro») ~'4~ e uma
outra série de traços que coincidem com os mais típicos
da consciência mitológica permitem falar da consciência
da criança como duma consciência tipicamente mitoló-
gica ~'5~. Evidentemente, no mundo da criança em que num
determinado nível do seu desenvolvimento não há dife-
Prática de Análise: Leituras Semióticas 139
rença de fundo entre nomes próprios e nomes comuns,
esta oposição deixa de ser pertinente.
A este respeito, é oportuno lembrar a importantíssima
observação de Jákobson, que demonstra que justamente os
nomes próprios são os primeiros a serem assimilados pela
criança e os últimos a desaparecerem nos primeiros pro-
blemas de afasia. Também é significativo que a criança
retirando das conversas dos mais velhos as formas prono-
minais - as últimas a desaparecerem, sempre segundo
Jáckobson - as utiliza como nomes próprios: criança es-
clarecemos] tratará, por exemplo, de monopolizar o pro-
nome na primeira pessoa: `ivIão tentes chamar-te «eu».
Apenas eu sou eu; tu és tu e mais nada.) (t6)
É interessante comparar isto com o uso do pronome
(ele, aquele, etc.) em substituição de determinadas palavras
tabus, como as diversas denominações do demónio, ou dos
espíritos do bosque e do lar, que podem observar-se em
distintas áreas etnográficas, ou, também, na designação da
esposa ou do marido (que vem da proibição imposta aos
cônjuges de se chamarem pelos nomes próprios). IvIestes
casos o pronome funciona de facto como um nome pró-
prio cn>.
IvIão é menos significativa, em termos gerais, a desig-
nação das acções no discurso infantil. Onde o adulto uti-
lizaria um verbo, a criança pode passar para uma repre-
sentação paralinguística da acção lançando uma interjei-
ção. Mais: esta pode considerar-se como a forma narra-
tiva específica do discurso infantil. O modelo mais próximo
do modo de narrar da criança poderia ser um texto com-
posto artificialmente, em que a denominação dos objectos
se operasse por meio de nomes próprios, e a acção fosse
descrita através duma montagem de planos cinematográ-
ficos ~t8~.
Este modo de transmissão das significações verbais
denota claramente um mitologismo do pensamento, visto
que a acção não é abstraída do objecto, antes se integra
no sujeito e, em geral, pode intervir como condição do
nome próprio.
Pode admitir-se que este estrato mitológico, determi-
nado ontogeneticamente ~t9>, se fixe na consciência (e na
língua), tornando-a heterogénea, e acabe por criar tensão
entre os pólos mitológico e não mitológico da percepção.
140 Ensaios de Semiótica Soviétìca
5.1. É preciso realçar que nem as observaçôes sobre
a criança nem a etnografia podem proporcionar-nos um
modelo «puro», quer dizer, dotado de absoluta coerência.
Em ambos os casos o investigador enfrenta-se com textos
de organização complexa e com uma consciência mais ou
menos heterogénea. Este facto pode explicar-se para lá do
impacte perturbador da consciência do observador, porque
a etapa mitológica faz referência a uma fase do desenvol-
vimento tão precoce que não pode ser observada, quer por
razôes cronológicas, quer pela impossibilidade de princípio
de entrar em contacto com ela; apenas é possível inves-
tigá-la através da reconstrução. É igualmente lícita uma
outra explicação, que tenta ver na heterogeneidade um
atributo da consciência humana, cujo mecanismo precisa
essencialmente da presença de pelos menos dois sistemas
que de algum modo se traduzam um no outro.
A primeira posição propõe uma explicação evolucio-
nista (que na prática se converte em juízo de valor) da
essência do mitologismo; e a segunda interpreta-o como
um fenómeno tipológico universal. As duas posiçôes são
complementares. Pode observar-se que dum ponto de vista
puramente formal (quer dizer, abstraindo do fundo do pro-
blema) o próprio princípio da localização espacial ou tem-
poral da consciência mitológica (a sua relação com tal ou
tal fase do desenvolvimento humano, ou com tal ou tal
área determinada) corresponde, em linhas gerais, precisa-
mente a essa concepção mitológica do espaço de que já
falámos anteriormente. Pelo contrário, querer fazer do
mitologismo um fenómeno tipológico universal corres-
ponde ao quadro lógico-convencional do mundo.
ivIão há que esquecer, de qualquer maneira, que os
grupos étnicos que se encontram claramente nas fases
primitivas do desenvolvimento cultural, e que se carac-
terizam por um pensamento vivamente tingido de mito-
logismo, podem revelar, numa série de casos, uma sur-
preendente aptidão para construir complexas e detalha-
das classificações de tipo lógico (vejam-se as múltiplas
classificações dos mundos vegetal e animal apoiadas em
marcas abstractas, observadas nos aborígenes áustralia-
nos ~Z°~. Neste caso, pode dizer-se que o pensamento mito-
lógico coexiste com o lógico e descritivo. Por outro lado,
podem descobrir-se elementos do pensamento mitológico
Prática de Análise: Leituras Semióticas 141
no comportamento linguístico quotidiano de membros das
nossas sociedades civilizadas modernas ~2'>.
6. De quanto temos dito conclui-se que a consciência
mitológica é, por princípio, intraduzível, numa descrição de
um outro plano, que está fechada em si própria, e que ape-
nas se compreende, portanto, desde o interior e não desde
o exterior. Isto é-nos dado, em particular, pelo tipo de
semiose própria da consciência mitológica e encontra um
paralelo linguístico no intraduzível dos nomes próprios.
A luz destes elementos, a própria possibilidade de descre-
ver o mito no espírito da consciência contemporânea seria
extremamente duvidosa, se não fosse pelo carácter hete-
rogéneo do pensamento, que conserva em si mesmo certos
traços isomorfos com a língua mitológica.
Deste modo, é precisamente o carácter heterogéneo
do nosso pensamento que nos permite, na construção da
consciência mitológica, apoiar-nos na nossa experiência in-
terior. Em certo sentido comprender a mitologia equivale
a lembrarmo-nos.
II
l. A importância que têm os textos mitológicos para
as culturas não arcaicas está confirmada, em particular,
pelas contínuas tentativas de tradução para as línguas cul-
turais de tipo não mitológico. No âmbito da ciência isto
gera versões lógicas de textos mitológicos; no âmbito da
arte - e, frequentemente, também com a simples tradução
para uma língua natural - gera construções meta f óricas.
É necessário sublinhar a diferença de fundo entre mito e
metáfora, embora esta última apareça como a tradução
natural do primeiro nas formas comuns da nossa consciên-
cia. Na realidade, no próprio texto mitológico, a metáfora,
enquanto metáfora, em sentido estrito, é impossível.
2. Numa série de casos o texto mitológico, traduzido
em categorias da consciência não mitológicas, é entendido
como simbólico. Um símbolo desta classe ~~~ pode ser in-
terpretado como resultado duma leitura do mito na óptica
duma consciência semiótica ulterior, quer dizer, reinter-
pretá-lo como um signo icónico ou quase icónico. De qual-
142 Ensaios de Semiótica Soviética
quer maneira, há que observar que, embora sendo os signos
icónicos os mais próximos em certa medida dos textos
mitológicos, estes, da mesma maneira que os signos con-
vencionais, são fundamentalmente produto duma consciên-
cia muito diferente.
Falando do símbolo e da sua relação com o mito, há
que distinguir entre o símbolo como um tipo de signo di-
rectamente gerado pela consciência mitológica, e aquele
que não supõe mais que uma situação mitológica. Igual-
mente há que distinguir entre o símbolo que reenvia ao
mito como texto e o que reenvia ao mito como género.
I~Ieste último caso, entre outras coisas, o símbolo pode pre-
tender criar uma situação mitológica, intervindo como
princípio criativo.
Quando um texto simbólico se põe em relação com um
texto mitológico, este cumpre a função de metatexto rela-
tivamente ao primeiro, e o símbolo corresponde a um ele-
mento concreto do dito texto ~~~. Mas quando o texto sim-
bólico se relaciona com o mito como género, ou seja, com
uma determinada situação mitológica não dividida, o mo-
delo mitológico do mundo, sofrendo mutações, intervém
como um metassistema que assume a função duma meta-
linguagem. Da definição dada anteriormente (cf. I-1)
deduz-se que o símbolo, nesta primeira acepção, não sai
do campo da consciência mitológica, enquanto, na
segunda, pertence à consciência não mitológica (quer di-
zer, a uma consciência que gera representaçôes «descri-
tivas» e não «mitológïcas»).
Como exemplo de simbolismo não relacionado com a
consciência mitológica podem dar-se alguns textos de prin-
cípios do século XX; como, por exemplo, os dos «simbo-
listas» russos. Importa dizer aqui que os elementos dos
textos mitológicos se organizam de acordo com um prin-
cípio não mitológico e até, poderíamos dizer, quase cien-
tífico no seu conjunto.
3. Se nos textos modernos os elementos mitológicos
se podem organizar racionalmente, isto é, não mitologi-
chamente, é possível observar-se uma situação totalmente
oposta nos textos barrocos, nos quais as construções abs-
tractas se organizam segundo o princípio mitológico: os
elementos e as propriedades naturais podem comportar-se
como heróis do mundo mitológico. Isto explica-se pelo
Prática de Análise: Leituras Semióticas 143
facto de o Barroco ter surgido sobre o fundo duma cul-
tura religiosa, enquanto o simbolismo moderno nasce so-
bre o fundo duma cultura racionalista, com os nexos que
lhe são próprios.
[NOTA. - Disto se deduz, entre outras coisas, que a
controvérsia sobre a verdade histórica do Barroco - pro-
duto da Contra-Reforma, exaltação vibrante do pensa-
mento católico, ou arte «realista» e aoptimista» do Renas-
cimento - não tem iustifica~ão. hIa sua posição de inter-
mediário, a cultura barroca está em relação, ao mesmo
tempo, com a cultura do Renascimento e com a da Idade
Média na sua variante restaurada contra-reformista. A
primeira encontra a sua expressão num sistema de objec-
tos e a segunda num sistema de nexos (em termos figura-
dos, poderíamos dizer que a cultura do Renascimento de-
termina um sistema de nomes, e a medieval um sistema
de verbos).]
4. Visto que, como já se disse, o texto mitológico gera,
no quadro duma consciência não mitológica, construções
metafóricas, a tendência para o mitologismo pode dar-se
num processo orientado em sentido contrário, isto é, na
realização da metáfora, na sua interpretação literal (inter-
pretação que anula a própria metaforicidade do texto).
Este procedimemto é característico do Surrealismo. Obtém-
-se então uma imitação do mito fora da consciência mito-
lógica.
III
1.0. Apesar da variedade das suas manifestações con-
cretas, o mitologismo, a níveis distintos, pode observar-se
nas culturas mais diversas e em geral revela uma estabi-
lidade considerável na história da cultura. As formas cor-
respondentes podem ser relíquias ou o resultado duma
regeneração; podem ser conscientes ou inconscientes.
[NoTA. - É necessário distinguir os níveis mitológicos
que surgem espontaneamente na consciência individual
ou sacial e as tentativas conscientes, condicionadas por va-
riadas razões históricas, de imitar a consciência mítica,
144 Ensaios de Semiótica Soviética
com os meios do pensamento não mitológico. Textos deste
tipo podem considerar-se mitos (e até não se distinguem
dos mitos) apenas do ponto de vista da consciência não
mitológica. Mas a sua inserção orgânica na série não mito-
lógica dos textos e a sua total traduzibilidade para as lín-
guas não mitológicas demonstram a falácia da dita coin-
cidência. ]
1.1. Do ponto de vista semiótico a estabilidade dos
textos mitológicos explica-se pelo facto de, nascidos duma
semiose específica de denominação - na qual os signos
não são atribuídos, mas reconhecidos, e o acto de denomi-
nação se identifica com o acto de conhecimento -, o mito
no desenvolvimento histórico sucessivo começar a ser en-
tendido como alternativa ao pensamento sígnico (veja-se
mais acima: 3.1.). Visto que a consciência sígnica acumula
em si própria as relaçôes sociais, a luta contra determi-
nadas formas do mal social na história da cultura encon-
tra com frequência saída na rejeição de sistemas sígnicos
isolados (até dum sistema tão geral como a língua natu-
ral) ou mesmo do princípio da signicidade enquanto tal.
O recurso, em tais casos, ao pensamento mitológico (e,
paralelamente, às vezes, à consciência infantil) é um facto
bastante frequente na história da cultura.
2. No plano tipológico, embora tendo em conta a ine-
vitável heterogeneidade de todas as culturas realmente fi-
xadas nos textos, é útil distinguir as culturas que se orien-
tam para um tipo de pensamento mitológico daquelas que
escolhem o caminho contrário. As primeiras podem defi-
nir-se também como culturas orientadas para os nomes
próprios.
Note-se um paralelismo que não carece de interesse
entre o carácter das variações que se verificam na «língua
dos nomes próprios» e nas culturas orientadas para a cons-
ciência mitológica. E é bastante significativo que seja jus-
tamente o subsistema dos nomes próprios que forme, na
língua natural, esse estrato especial que pode alterar e re-
gular conscientemente (artificialmente) o sujeito falante~24).
Na realidade, se o movimento na língua natural evolui
gradualmente por deslocações semânticas internas, a «lín-
gua dos nomes próprios» movimenta-se como uma corrente
de actos de denominação e redenominação, todos eles cons-
Prática de Análise: Leituras Setnióticas 145
cientes e claramente limitados entre si. A uma nova situa-
ção corresponde um novo nome. Do ponto de vista mito-
lógico a passagem dum estado a um outro representa-se
pela fórmula «e viu um céu novo e uma terra nova» (Apo-
calipse, 21, 1), e entende-se, ao mesmo tempo, como um
acto de substituição de todos os nomes próprios.
3. Um exemplo de orientação para a consciência mito-
lógica numa época relativamente próxima (e ligada, com-
mumente, à rejeição das antigas concepções) pode dá-lo a
corrente de auto-interpretação da época de Pedro I, e a
inércia que imprimiu à compreensão da Rússia do século
XVIII e de princípios do século XIX. Quando se fala da
interpretação que os contemporâneos de Pedro o Grande
deram da sua própria época salta imediatamente à vista
o cânone mitológico que se tinha formado, e que se con-
verteu, não apenas para as gerações seguintes, mas em
grande medida também para os historiadores, no instru-
mento de codificação dos acontecimentos reais da época.
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar a sua fé profunda
numa densa e total regeneração do país, convicção esta que
os leva a atribuir um papel mágico a Pedro, demiurgo
dum mundo novo que, segundo a expressão de Kantemir~u>
,
tinha transformado o povo russo num apovo novo».
Ele foi um deus, foi o teu deus, Rússia!
[On bog, on bog Tvoi byl, Rossia!] ~~~
No seu leito de morte Augusto, o Imperador Romano,
declarou: «Herdei uma Roma de pedra; erctrego uma Roma
de mármore!» Seria vaidade e não um elogio atribuir tais
palavras ao nosso Glorioso Monarca, pois a verdade é que
herdou uma Rússia de madeira e dela f ez uma de ouro ~~~.
Esta criação duma Rússia «nova», «áurea», era enten-
dida como uma redenominação geral, como uma mudança
radical e completa dos nomes; uma mudança da denomi-
nação do Estado, uma mudança da capital à qual era atri-
buído um nome aestrangeiro», uma modificação do título
do chefe do Estado, das denominações dos graus e das
instituições, mudança da sua «própria» língua por uma lín-
gua «estrangeira» na vida quotidiana ~'8~, e nesta linha uma
146 Ensaios de Semiótica Soviética
total denominação do mundo como tal ~Z9). Ao mesmo
tempo dava-se uma monstruosa dilatação do âmbito !
dos nomes próprios, visto que a maioria dos nomes comuns
socialmente activos no plano funcional passavam de facto
à classe de nomes próprios ~~°).
4. Poderiam citar-se aqui outras manifestações, não
menos significativas no seu género, da consciência mitoló-
gica do século XVIII que actuava no pólo social oposto.
Os traços que a distinguem podem encontrar-se, em parti-
cular, no movimento do Samozvancestvo ~3') O simples
facto de se perguntar qual é o nome «verdadeiro» no bi-
nómio «Pedro III-Pugaciov» demonstra uma atitude tipica-
mente mitológica a respeito do problema do nome (cf. o
apontamento de Púchkin: «Conta-me», disse a D. Pkhanov,
Kcomo é que Pugaciov foi o teu padrinho de casamento. E o
velho, irritado, respondeu-me: «Para ti ele é Pugaciov, mas
para mim era o grande tsar Pedro Fedorovitch»). E não
são menos características as histórias relativas aos famo-
sos «signos imperiais» do corpo de Pugaciov ~32).
Contudo, o exemplo mais evidente talvez seja o do cé-
lebre retrato de Pugaciov que se encontra no Museu Histó-
rico de Moscovo. Provou-se que foi pintado por uma mão
anónima sobre um de Catarina II ~33~. Se o retrato é, em
pintura, o paralelo do nome próprio, voltar a pintar um
retrato equivalerá a um acto de redenominação.
Poderiam multiplicar-se os exemplos.
3. Seria no mínimo fascinante descrever os campos
de funcionamento real dos nomes próprios nas diferentes
culturas, o grau de actividade cultural de um dado estrato
e da sua relação, durn lado, com o conjunto da língua na
sua totalidade e, do outro, com o pólo diametralmente
oposto: a esfera metalinguística no quadro da cultura em
questão.
IV
1.0. A oposição entre a linguagem amitológica» dos
nomes próprios e a linguagem descritiva da ciência pode,
evidentemente, associar-se à antítese entre poesia e ciên-
cia. Na ideia que vulgarmente fazemos, o mito relaci~~na-se
Prática de Análise: Leituras Semióticas 147
com o discurso metafórico e, através deste, com a arte
verbal. Perante o que acabamos de ver, tal nexo parece
pelo menos duvidoso. Se se admite, embora hipoteti-
camente, a existência duma «linguagem dos nomes pró-
prios» e, unido a esta, dum substrato de pensamento
(construção essa que, em todo o caso, pode considerar-se
modelo duma das tendências linguísticas realmente exis-
tentes), deduz-se, por conseguinte e de maneira demons-
trável, a afirmação de que a poesia numa f ase mitológica
é impossível. Poesia e mito encontram-se nos antípodas;
ambos são possíveis apenas enquanto negação uma do
outro.
l.l. Lembremos o conhecido princípio de A. I~I. Kol-
mogorov, que define a quantidade de informação de cada
língua H com a seguinte fórmula:
H=hl+h2
onde hl é a variável que permite transmitir o conjunto
duma informação semântica qualquer, e h2 é a variável
que exprime a flexibilidade da língua e permite transmitir
um mesmo conteúdo de várias formas diferentes, quer
dizer, representa a entropia propriamente linguística. A.
IvI. Kolmogorov observava que é justamente h2, quer dizer
a sinonímia em sentido amplo, a fonte da informação
prática. Quando h2 = 0, não pode haver poesia ~34~. Mas se
imaginarmos uma língua formada por nomes próprios
(uma língua na qual os nomes comuns cumpram a função
dos nomes próprios) e, fora deles, um mundo de objectos
únicos que lhe corresponda, é evidente a ausência em tal
universo de um lugar para os sinónimos. A identificação
mitológica é uma sinonímia. A sinonímia pressupõe a pre-
sença, para um mesmo objecto, de vários nomes intermu-
táveis e a consequente liberdade relativa do seu emprego.
A identidade mitológica tem um carácter fundamental-
mente extratextual, visto que se baseia na inseparabilidade
do nome e da coisa. Aliás, pode tratar-se não já dum suce-
der de nomes equivalentes, mas duma transformação do
próprio objecto. Cada nome refere-se a um momento deter-
minado duma transformação, e, portanto, não podem subs-
tituir-se uns por outros num mesmo contexto. Por conse-
guinte, os nomes que designam diferentes hipóteses ~35> dum
148 Ensaios de Semiótica Soviética
objecto que se vai modificando não podem substituir-se
entre si, não são sinónimos, e sem sinónimos a poesia é
impossível ~36).
I
1.2. A destruição da consciência mitológica é acompa-
nhada por processos tumultuosos em que os textos mito-
lógicos são reinterpretados como metafóricos e a sinoní-
mia se desenvolve à custa das expressões perifrásticas.
Dá-se um crescimento imprevisto da «flexibilidade da lín-
gua», e com isto criam-se as condições para o desenvolvi-
mento da poesia.
2.0. O quadro que traçámos, apesar de estar confir-
mado por inumeráveis exemplos de textos arcaicos, é em
grande medida hipotético, já que se apoia na reconstru-
ção dum período cronologicamente muito longínquo, e não
fïxado directamente em nenhum texto. Mas podemos ver
o mesmo quadro, do ponto de vista sincrónico, e não dia-
crónico. Então encontrar-nos-emos face à linguagem natu-
ral como estrutura organizada sincronicamente e em cujos
pólos semânticos opostos se encontram, por uma parte,
os nomes próprios e os grupos de palavras equiparados
a eles no plano funcional (veja-se mais acima I-3.1) e,
por outra, os sinónimos, que são a base natural na qual se
desenvolvem respectivamente os modelos mitogénicos e os
metalinguísticos ~3').
2.1. Para a nossa consciência, educada na tradição
cïentífica que se tem vindo a formar na Europa desde Aris-
tóteles a Descartes, parece natural supor que para além
duma descrição em dois planos (segundo o esquema «con-
creto-abstracto») não pode existir actividade cognoscitiva.
Apesar disso é possível demonstrar como a língua dos no-
mes próprios, que serve colectividades arcaicas, é plena-
mente capaz de expressar conceitos que correspondem às
nossas categorias abstractas. IvIós limitarmo-nos-emos a ex-
por um exemplo tirado do livro que A. Ia. Gurevic dedicou
recentemente às Categorias da cultura medieval. O autor
examina as locuções particulares dos textos escandinavos
arcaicos que estão construídas segundo o princípio da com-
binação dum pronome e dum nome próprio. Gurevic afir-
ma, de acordo com Kacnel'son, que se trata de colectivi~
dades estáveis, de base familiar (clã), designadas corr
Prática de Análise: Leituras Semióticas 149
nome próprio ~38~. O nome próprio, signo do indivíduo iso-
lado, intervém aqui no papel de denominação colectiva
(do clã), o que requereria pela nossa parte a adopção dum
metatermo dum outro nível na Polónia cavaleiresca. O es-
cudo gentílico é por natureza um signo pessoal, já que não
pode ser ostentado senão por um único representante vivo
do clã e apenas por morte deste se pode herdar. De qual-
' quer modo, o escudo dum magnate, embora sendo o seu
; signo heráldico pessoal, cumpria ao mesmo tempo a meta-
função de designação do grupo de nobreza menor, a
; szlachta, que militava sob as suas bandeiras.
2.2. A falta de distinção entre os níveis de observação
imediata e da construção lógica, pela qual os nomes pró-
prios (objectos individuais), embora permanecendo como
' tais, se elevavam de categoria e substituíam os nossos con-
; ceitos abstractos, resultava extremamente vantajosa para
, um pensamento construído sobre uma modelização ime-
diatamente perceptível. A isto, evidentemente, estão ligados
os grandiosos êxitos das culturas arcaicas na elaboração
' dos modelos cosmológicos, na acumulação de conhecimen-
tos astronómicos, climatológicos, etc.
2.3. IvIão permitindo ao pensamento lógico-silogístico
desenvolver-se, a «língua dos nomes próprios» - e o pen-
samento mitológico que a ela está unido - estimulava uma
certa capacidade para estabelecer identidades, analogias e
equivalências. Por exemplo, quando a consciência arcaica
construía um modelo tipicamente mitológico, segundo 0
qual o universo, a sociedade e o corpo humano se consi-
deravam mundos isomorfos (e o isomorfismo podia levar-
-se até à instituição de relações de semelhante entre pla-
netas únicos, minerais, plantas, funções sociais, partes
do corpo humano), deste modo elaborava a ideia do iso-
morfismo, um dos conceitos de fundo não apenas das
matemáticas, mas de toda a ciência contemporânea.
O específico do pensamento reside no facto de que a
identificação das unidades isomorfas ocorre ao nível dos
próprios objectos e não dos nomes. Correlativamente a
identificação mitológica pressupõe a transformação do
objecto num espaço e num tempo concretos. O pensamento
lógico opera pelo contrário com as palavras, que possuem
uma relativa autonomia fora do tempo e do espaço. A
15o Ensaios de Semiótica Soviética
ideia de isomorfismo é válida em ambos os casos, mas nas
condições de pensamento lógico possui-se uma liberdade
relativa de manipulação das unidades de partida.
3. Tendo em conta o que deixamos dito pode-se ques-
tionar a ideia tradicional dum movimento da cultura hu-
mana desde uma primeira idade poético-mítica para uma
idade lógico-científica. Tanto no plano sincrónico como
no diacrónico, o pensamento poético ocupa uma zona in-
termédia. Há que sublinhar, aliás, o carácter puramente
convencional das etapas indicadas. Uma propriedade cons-
tante da cultura, desde o seu surgimento, é evidentemente
a coexistência nela de estruturas semióticas, organizadas
de maneira oposta (a multiplicidade dos canais de comu-
nicação social). Apenas se pode falar duma hegemonia de
determinados modelos culturais ou duma orientação sub-
jectiva para eles da cultura como totalidade. Desde este
ponto de vista a poesia, tal como a ciência, tem vindo a
acompanhar a humanidade ao longo de todo o seu cami-
nho cultural. Isto não contradiz o facto de que determi-
nadas épocas de desenvolvimento cultural podem decorrer
«sob o signo» dum certo tipo de semiose mais do que de
um outro.
Notas
(1) [Enquanto a «linguagem-objectoN fala de objectos estranhos à
linguagem como tal, a «metalinguagem» - tradução do termo pro-
posto por Alfred Tarski em 1830-fala da própria linguagem.
Neste sentido ver R. Jákobson, «Metalanguage as a linguistic prob-
lem", conferência inédita - 27 de Dezembro de 1956 - publicada
em Lo sviluppo de la semiótica, loc. cit., Introdução.
Lótman utiliza o conceito de metalinguagem no sentido usado na
lógica moderna e mais concretamente de acordo com a definição que
dela dá G. Klaus: «A teoria dos graus [stufen] semânticos repre-
senta uma formulação importante da semiótica. Daí se deduz que
existem coisas, propriedades, relações, etc., que pertencem à rea-
lidade objectiva e por si só não constituem signos linguísticos.
Tais objectos formam o chamado grau zero. Os signos por que são
designados os objectos do grau zero pertencem a uma linguagem
objecto, ou língua de primeiro grau. Uma metalinguagem, ou lín-
gua de segundo grau, contém todos os signos necessários para a
designação dos signos da linguagem objecto. Se em continuação
Prática de Análise: Leituras Semióticas 151
se de-vesse falar duma metalinguagem similar, fá-lo-íamos numa lín-
gua de terceiro grau e assim sucessivamente», Georg Klaus, Mo-
derne Logik, Berlim, 1964, p. 82, citado por Iúri Lótman em
«0 metakhazyke Tipologicheskitch opisanü Kulturi", em Trudy po
znakovyrn sisteman IV, Tártu, 1969.) N. T.]
(2) Cf. em R. Jákobson aOs nomes próprios [...] ocupam um lugar
particular no nosso código linguístico: A significação dum nome
próprio não pode definir-se sem referência ao código. No código
de inglês, Jerry significa uma pessoa chamada Jerry. A circulari-
dade é patente: o nome significa qualquer pessoa a quem se tenha
atribuído este nome. O termo cãozittho significa um cão novo,
perdigueiro um cão destinado à caça de perdizes, coelheiro um cão
destinado à caça do coelho, enquanto Fido significa, nem mais
nem menos, um cão cujo nome é Fido. O significado geral de pala-
vras como cãozinho, perdigueiro e coelheiro poderia indicar-se por
meio de abstractos como cãozinhocidade, perdigueiricidade, coe-
Iheiricidade, enquanto a significação geral de Fido não poderia
qualificar-se deste modo. Parafraseando Bertrand Russell diríamos
que há muitos cães chamados Fido, mas sem que compartam uma
suposta propriedade que seria a «fidicidade». (R. Jákobson, «Chif-
tery glagol, nve kategorü i russkij glagol», em Principy tipologi-
ceskogo attaliza janykov razlicnogo stroja, Moscovo, 1972, p. 96;
cf. R. Jákobson, «Shifters, Verbal Categories and Russian Verb,>
em Selected Writings, II, Haia, Paris, 1971, p. 131. [Há uma tradu-
ção castelhana deste texto de R. Jákobson, «Conutadores, catego-
rías verbales y verbo ruso", em Ensayos de lingüitica general, Bar-
celona, 1.975, pp. 308-309. N. T.]
(3) Para este efeito, entre outras coisas, adquire particular inte-
resse a história da expressão evangélica ecce homo (João, 19, 5).
Pode supor-se fundadamente que esta frase tenha sido pronunciada
~m aramaico: neste caso parece evidente que o seu significado
originário devia ser simplesmente «ei-lo aqui>,, visto que a palavra
que exprime o conceito de «homem» em aramaico era usada com
função pronominal, como hoje em alemão man (comunicação oral
de A. A. Zalizniak). A reinterpretação sucessiva desta frase está li-
gada ao facto de a palavra a
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