como um signo e como um denotatum.
2.1. O Texto universal realiza-se nos atextos da vida»
e nos «textos da arte». A unidade do Texto opõe-se à plu-
ralidade infinita das suas manifestações concretas.
2.2. Enfim, forma com os próprios textos /2.1./ esse
mundo exterior com o qual cada obra de arte isolada se
encontra em relação complexa.
160 Ensaios de Semiótica Soviética
3.0. A relação mútua dos níveis delimitados é muito
complexa.
3.1. Por um lado, constituem, a nosso ver, uma hierar-
quia de classes (o Texto é universal; os textos de nível in-
ferior não constituem o Texto senão tomado no seu con-
junto) e de valores (o Texto é o primeiro, os textos «não
são mais do que uma sombra, um reflexo»).
3.2. Esta relação hierárquica não é, contudo, a única
relação mútua dos diversos tipos de textos. Isto depende
duma singularidade profunda da compreensão simbolista
do mundo na sua totalidade. O «quadro do mundo» dos
simbolistas está sempre formado por duas tendências de
direcção contrária. Uma consiste em estabelecer um sis-
tema de antíteses que organiza o mundo no plano espa-
cial, sobre o dos valores, etc.; a outra, em aproximar os
contrários predicando o isomorfismo universal de todos
os fenómenos da vida («o mundo está cheio de correspon-
dências» - A. Blok ~l>). Segundo este último ponto de vista,
por exemplo, os textos /2.1./ e /2.2./ não são de nenhum
modo imagens de tal ou tal parte do Texto; são encarna-
ções, «manifestações» integrais. Nles, como no próprio
Texto, apagam-se (se bem que sob o efeito do mecanismo
que consiste em estabelecer oposições, e parcialmente) as
fronteiras da representação e do representado. Os textos
de nível dois e três perdem assim em grande parte o seu
carácter de puras aimagens» secundárias e, ao destruírem a
hierarquia descrita, elevam-se ~2~.
3.2.1. Estes dois mecanismos, opostos um ao outro,
deslocam a relação mútua dos textos para outros planos,
uma vez mais. Assim, por exemplo, a maioria dos simbo-
listas da nova geração coloca teoricamente ao mesmo nível
os «textos da vida» e os «textos da arte».
Pois bem, descobre-se neles uma tendência - surgida
do romantismo e dos simbolistas da primeira geração (os
« decadentes ») - para acusar claramente a oposição da
«arte» e da avida». Deste ponto de vista, os «textos da vida~
são infinitamente inferiores aos «textos da arte», e quali
tativamente diferentes. A hierarquia toma a forma de:
Prática de Análise: Leituras Semióticas 161
TEXTO («mito do mundo~)
I
texto da arte «textos da vida»
I
texto dado
ou (para os simbolistas da primeira geração, e em parti-
cular Sologub e Briússov nos seus inícios):
Texto dado (expressão do aeu» do autor)
TEXTO «textos da vida»
I
textos da arte
Neste último caso, os «textos da vida» consideram-se
fenómenos exteriores ao mundo da arte.
Mas, na prática, estes dois conceitos do mundo como
«texto~ foram obscurecidos de maneira complexa.
4.0. Longe de não apresentar mais do que uma sim-
ples estrutura de texto, o mundo - e o «mito do mundo»
global - possuem uma estrutura isomorfa na organização
do texto artístico. Isto manifesta-se:
4.1. Na faculdade do Texto de constituir um atema».
A existência do Texto universal concebe-se como um des-
dobrar no tempo, numa alternância de «episódios» que
são os períodos do seu devir ~3~.
4.2. Na sua natureza imaginada e concreta: no nível
do Texto universal, a essência do mundo abre-se como uma
correlação de leis não abstractas, mas de significação glo-
bal, que os sentidos podem perceber como «actuantes»
(«O Criador», «A Alma do Mundon, «O Caos», etc.) ~4~.
4.3. A atitude dos simbolistas em relação aos «textos
da vida» está ~condicionada por dois processos dirigidos
em sentido inverso. Um força-os a ver a vida como arte,
como uma suma de textos de estrutura isomorfa à dos
«textos da arte» e, por conseguinte, à do Texto. Contudo,
simultaneamente, marcarão uma tendência para perceber
toda a deficiência dos «textos da vida» (considerados, por
exemplo, desprovidos de evolução ou de «actuantes>, autên-
ticos, ou como «resíduos do mundo» misturados sem sen-
tido, ou como um odioso reflexo de máscaras, etc.). A
162 Ensaios de Semiótica Soviética
«acção conjunta» destes dois pólos levá-los-á quer a per-
ceber «os textos da vida» como textos ao mesmo tempo
completos e deficientes, quer a representar a realidade
da sua época como uma suma de textos deficientes, e a
vida «normal» (ideal) como uma suma de textos organiza-
dos segundo as leis da arte.
5.0. A relação dos atextos da arte» com o Texto po-
dem ser de quatro tipos ~5~:
5.1. O texto concreto é um reflexo meta f órico do Texto
(a imagem da Primavera substituída pelo Inverno que
volta de novo à terra como história da «Alma do Mundo»).
A significação linguística comum das imagens que com-
põem estes textos ainda que esforçando-se por ser impor-
tante não é mais do que uma das que produzem a lingua-
gem da obra de arte. Os outros significados formam-se
segundo leis de associação metafórica, mas na prática su-
gere-os menos o texto da obra que o contexto mais amplo
da arte simbolista no seu conjunto.
5.2. O texto concreto é uma parte que representa me-
tonimicamente o Texto como um todo (a história do in-
cumprimento trágico das encarnações terrestres do Eterno
Feminino, que supõe um conhecimento das situações ini-
cial e final do mito da Alma do Mundo). IvIeste caso, o
leitor deve guardar na sua memória o que sabe do «mito
do mundo». Por outra parte, o que actua, então, é uma
presunção de equivalência entre um episódio qualquer e
o sujeito inteiro.
5.2.1. Consequência: embora o simbolismo tenha cul-
tivado sobretudo o género lírico, cada obra lírica pôde
(e, em certo grau teve de) ser considerada também como
um episódio tirado da cadeia do desenvolvimento dum
tema, mas sempre ligado a ele.
5.3.0. O texto concreto é um reflexo meta f órico duma
parte do Texto e, ao mesmo tempo, representa metonimi-
camente o Texto como um todo (o quadro da chegada da
Primavera; os poemas de separação, aqueles onde morre
a heroína, etc.).
Prática de Análise: Leituras Semióticas 163
5.3.1. A maioria das obras simbolistas pertence ao
típo 5.3.0. IvIo fundo, também se forma desta maneira o
significado dos símbolos isolados, por pouco que se en-
tenda como palavra-símbolo uma situação invertida (ve-
ja-se em particular a concepção da relação mútua do sím-
bolo e do mito nos artigos de V. V. Ivanóv).
5.4.0. Por último, a obra de arte pode ser também
um desprendimento mais geral do conteúdo do Texto no
idioma da poesia lírica filosófica (cf., antes de mais, a
poesia de F. Sologub).
5.4.1. ~Qualquer que tenha sido a importância para os
simbolistas da tradição de Tiútchev e da poesia lírica filo-
sófica de VI. Soloviev, a construção 5.4.0 nunca foi deter-
minante para a sua poesia. Isto relaciona-se verosimil-
,
mente com a sua maneira de conceber toda a generalização
, como uma derivação em comparação com a natureza ima-
ginada e concreta do Texto do «mito do mundo» e como
impotente para fazer compreender a sua essência.
6. ~ necessário, não obstante, lembrar que nem a me-
taforicidade das metáforas dos simbolistas nem o carácter
metonímico das suas metonímias coincidem com a concep-
ção que se costuma fazer destes tropos na ciência actual.
Como consequência do isomorfismo universal dos fenó-
menos e das imagens antes mencionados, cada significado
dum símbolo remete, sem dúvida, para numerosos outros,
mas também os contém, os representa por completo. Por
I outra parte, ao serem isomorfos, a imagem artística e o
denotatum, cada imagem é «mitológica» e próxima do que
I representa.
; Também o símbolo não é apenas uma metáfora (cf.
¡ em 5.1 o papel dos significados linguísticos commumente
admitidos da imagem-símbolo). A realização da metáfora
não é aqui mais do que um procedimento artístico, tende
igualmente a sublinhar a sua natureza (no sentido de «rea-
lidade mística»). Ao derivar de tal processo, o próprio
Texto deixa de ser um simples conjunto de partes-«episó-
dios» ou de «actantes» e produto de actantes); o paralelo
«Texto-palavra» passa a primeiro plano.
164 Ensaios de Semiótica Soviétìca
7. O que acaba de ser exposto ajuda a compreender
numerosos aspectos da estética do simbolismo russo. Li-
mitemo-nos a três questões essenciais.
8. Os caminhos, o estudo da estética e da com-
preensão do mundo dos simbolistas. I~Iem os próprios re-
presentantes desta corrente (e a sua óptica é essencial
para compreender a questão) nem os investigadores actuais
procuram em qualquer momento analisar os pontos de
vista dos simbolistas russos sem uma reconstrução o mais
completa possível do «mito do mundo».
Aliás, seja qual for a universalidade e a exterioridade
deste último em relação com o mundo terrestre, o Texto
é asemelhante à arte» e: a) são as obras de arte e não as
descriçôes de tipo filosófico) que, para os possuidores desta
cultura, são as mais autorizadas para o reconstruir; b)
abre-se mais inteiramente pelos métodos da análise das
obras de arte.
9.0. A influência desta maneira de conceber o mundo
como um texto sobre a criação artística dos simbolistas.
Podem-se referir aqui algumas particularidades da cons-
trução das suas obras:
9.1. ~Qualquer parte da obra de arte pode considerar-
-se como isomorfa da obra inteira, donde vem uma poética
particular dos nomes (veja-se especialmente F. Sologub)
e, de maneira geral, o papel particular que nela desempe-
nham diversos tipos de proposiçôes incompletas e defi-
cientes ~6~. Daí, também, o princípio da citação e a abun-
dância de múltiplas formas de alusões «mala» a outros
textos. Todos estes aspectos criam um sistema de subs-
tituições complexas típico do simbolismo. Um «resplen-
dor>, de imagem copiada representa, por exemplo, uma ci~
tação inteira; esta, por sua vez, todo o texto que se cita; en
quanto este último é com frequência o signo dum textc
mais geral (ou do Texto como tal).
9.2. Qualquer conjunto de textos pode ser concebid
como um texto completo. É isso o que define não apem
a particularidade - já apontada por vários estudiosos s~
viéticos (L. Ginzburg, P. Grornov, V. Sapogov) - do pap
dos ciclos na obra dos simbolistas, mas também a hiera
Prática de Análise: Leituras Semióticas 165
quia muito característica dos seus reagrupamentos de tex-
tos (com frequência compõem subciclos que, reunidos em
ciclos, se inserem em recompilaçôes [livros, tomos], que
formam por sua vez conjuntos mais vastos e, eventual-
mente, obras completas que se consideram quase sempre
como uma obra única).
De acordo com a óptica dos simbolistas, só assim rea-
grupados os textos separados adquirem o seu sentido au-
têntico ~'~
Também, com frequência, formam, justapostos em re-
compilações, unidades supratextuais - umicro-ciclos» uni-
dos por temas, imagens lexicais (cf. K. Balmont, Nesta
vida conjusa... e Não, não posso adormecer...), pela mé-
trica (cf. Sologub, A minha lâmpada triste está acesa... e
0 f rio soprou na janela), etc.
9.3. Os factos da vida que atraem a atenção do escri-
tor adquirem traços do texto artístico: neles delimita um
«tema», «actantes», «princípios» e «fins». É assim que,
particularmente, os simbolistas concebem a sua própria
biografia (o romance de A. Blok e de L. D. Mendéléeva,
«a amizade-ódio» de Blok e de Bieli, as relações de V.
Briússov e de N. Pétrovskaia, etc...). Vejam-se as palavras
com que, em 1904, K. Balmont evoca o modo como chega
o tema da sua obra: «A minha obra (...) foi iniciada sob
o céu do I~Iorte, mas por uma força interna e invencível,
numa sede de Infinito, em longo vadiar entre (...) os abis-
mos do Silêncio, aproximou-se (...) do Sol.» ~8~
9.4. Os outros textos artísticos são um meio de codi-
ficação importante da realidade extratextual dos «textos
da vida». Daí o papel imenso das citações e das autocita-
ções que, de novo, compõem uma hierarquia completa. A
título de exemplo, na sua tragédia A Vitória da Morte
(1907), F. Sologub codifica os problemas que lhe inspira a
época mediante imagens extraídas: a) da lenda histórica
de Berta, a dos pés grandes; b) da literatura de Don Qui-
jote; de obras de Blok como Les vers de la belle dame, Le
masque de neige, L'inconnue); c) de mitos de origens muito
diversas (a serpente, «Cinderela», a ressurreição após a
morte,... etc....).
Todos estes textos de codificação se consideram por
sua vez como parte do mito mais geral que os codifica.
166 Ensaios de Semiótica Soviética
10. Enfim, precisamente por esta maneira de conceber
o mundo como um texto «parecido com a arte» se explica
a ideia simbolista de «construção da vida» ~9~ - a qual
reúne um utopismo ingénuo, uma concepção patética da
harmonia da personalidade, um historicismo, sem esque-
cer esse movimento de «defesa da cultura» que, mais tarde,
no século XX, revelará a sua orientação antifascista.
Notas
(1) Não é difícil comprovar que a primeira particularidade da
compreensão simbolista do mundo a une geneticamente ao ro-
mantismo, a segunda ao panteísmo pós-romântico, assim como às
teorias da ~,síntese» de VI. Soloviev (cf. S. V. Suvalok, «Blok e
Lermontov,>, em Sur Blok, Moscovo, 1929).
(2) É uma das diferenças entre o conceito de símbolo na teoria
simbolista e, por outro lado, nos diversos sistemas filosóficos pós-
-kantianos. Apesar da importante influência que estes últimos tme-
ram sobre a teoria do simbolismo russo, os simbolistas (parti-
cularmente da nova geração) esforçaram-se constantemente por
sublinhar os laços do simbolismo com o mundo das essências
objectivas reflectidas nele, de colmatar a lacuna entre o objecto
de conhecimento e o sujeito conhecido.
(3) Na maior parte dos simbolistas, esta percepção do mundo com-
bina-se de maneira complexa:
a) com uma concepção cíclica da evolução. Realizando-se no
Texto, o «tema" pode ser concebido como repetindo-se até ao infi-
nito, como conjugando todos os estádios do devir no todo pan-
crónico da essência definitiva do ser, no desenvolvimento simul-
tâneo em diversos níveis (por exemplo, na história da humani-
dade e na vida pessoal). Cf. D. E. Maksimov «L'idée du trajet
dans 1'oeuvre de BlokH, em Recueil sur Blok, IÏ, Tártu, 1972.
b) com a ideia de que o estádio supremo da evolução do
mundo (o estado final do Texto) supõe um aniquilamento das for-
mas espácio-temporais do ser.
(4) Isto distingue qualitativamente a compreensão simbolista do
mundo das tradições ligado à estética de Hegel. Para Hegel, é
impossível alcançar a essência objectiva do mundo sem passar do
pensamento por imagens e unidades para o pensamento abstracto
generalizante, e a ciência é superior ~à arte na via do conhecimento
do mundo e a sua organização. Para os simbolistas os problemas
relativos à essência do mundo, as vias do seu conhecimento e a
apreciação do valor mútuo da arte e da ciência resolvem-se de
maneira diametralmente oposta.
Prática de Análise: Leituras Semióticas 167
(5) Os três primeiros interpretam também, em princípio, a rela-
ção do Texto com os «textos da vida».
(6) É óbvio que as frases incompletas ou deficientes não têm como
única razão de ser substituir as frases completas que faltam: o
específico da sua estrutura é uma das fontes importantes do estilo
«criptográfico,>, «esotérico" dos simbolistas.
(7) Cf.: «Tomados isoladamente, muitos deles (dos poemas-
Z. M.) não têm valor nenhum; mas cada poema é indispensável
para a formação dum capítulo~ alguns capítulos formam um
livro~ cada livro é uma parte da trilogia e a toda a trilogia
chamo-lhe eu um «romance em verso~ (A. Blok, Obras, em 8 vo-
lumes, t. 1 Moscovo-Leninegrado, 1960, p. 559); «Apenas sobre a
base do ciclo... se cristaliza lentamente, na consciência perceptora,
esse todo global que pode chamar-se o estilo individual do poeta;
e então, é desde esse todo global que se ilumina «a semente>, de
cada poema isolado... que não se descobre em nenhum poema se
se toma isoladamente" (A. Beéli, «A guisa de prefácios,>, em Poe-
mas, Berlim-São Petersburgo-Moscovo, 1923, p. 5).
(8) K. D. Balmont, Obras completas, t. I, Moscovo, 1909, p. VII.
(9) T. M. Rodina, Alexandre Blok e o teatro russo no início do
século XX, Moscovo, 1972.
O CARACTER GERAL DA SIMBÓLICA
NA ALTA IDADE MÉDIA
(1973)
S. S. AVERINCEV
0. A síntese final da civilização greco-romana nas for-
mas estéticas do fim do Império e nas da filosofia neopla-
tónica efectuou-se de maneira tal que chegou a salvaguar-
dar todos os fundamentos, ou quase, do seu desenvolvi-
mento milenário, mas sempre por meio do truque duma
alegoria, duma metáfora ou dum símbolo de significação
indirecta. A estrutura semântica desta síntese baseia-se,
antes de mais, num material de símbolos «figurados», «im-
próprios ».
A última forma onde se encontra a percepção sensível
da polis é na percepção espiritual do Império universal: a
urbe como orbis; «Roma» como «mundo».
O último garante da civilização das polis é o impera-
dor romano em cuja pessoa se encarna a negação da sua
liberdade; o césar como «amigo das polis» (philopolis).
A última sanção da corrente intelectualista e filosófica
«pagã~ é a fé dos neoplatónicos nos poderes milagrosos
dos seus mestres Jamblico e Proclo, no carácter revelado
dos textos de Homero e de Platão, na antiga sabedoria do
mito e do ritual: a dialéctica e a lógica como formas de
«purificação» mágica e ascética.
l. Este balanço (que tinha transformado o que em
realidade era no seu próprio contrário) esteve muito longe
de ser anulado no princípio do ciclo seguinte. Pelo contrá-
rio, a síntese da Antiguidade manteve o seu lugar de norma
e de paradigma, de signo e de índice até aos últimos tem-
pos da Idade Média. Até no Ocidente o Império romano
~não~ se derrubou «senão» na realidade dos factos - a
170 Ensaios de Semiótica Soviética
sua ideia sobreviveu; privado de existência real, ganhou
em troca uma existência «semiótica». Odoacro que, em 476,
tinha deposto o último imperador romano do Ocidente,
Rómulo Augusto, não pôde conquistar as insígnias impe-
riais. Foi-lhe impossível juntar ao seu saque os signos do '
velho poder exercido sobre o Império desaparecido visto
que o seu significado passava do domínio da realidade
para inscrever-se totalmente no do dever. A cidade devas-
tada de Roma converteu-se, para o Ocidente, no signo dos
signos; e o seu nome, a insígnia mais preciosa dos papas
e dos imperadores medievais.
Quanto ao Império do Oriente, este não desapareceu
em nenhum aspecto: sobreviveu ainda um milénio, con-
vertido no Império «bizantino». Há que mencionar o papel
fundamental desempenhado pela operação semiótica de
redenominação da sua existência. I~Io lugar de Constanti-
nopla erguia-se desde há séculos uma pequena cidade grega
chamada Bizâncio; mas a sua história foi riscada pelo acto
emblemático da «fundação» da cidade em 17 de Maio de
330. Também se deu a tendência para imaginar que a ca-
pital bizantina tinha surgido num lugar deserto e, ainda
que falso, este gesto contribuiu muito para arreigar essa
ideia. Bizâncio é vista como uma cidade sem identidade
própria, mas identificada com Roma (a «nova Roma»).
Perde um nome, mas ganha um título. Orgulhosos de se-
rem os depositários da tradição estatal imperial os gregos
e os outros povos meridionais trocaram o seu nome pelo
de «romanos» (os «rumis»).
De repente, desde a mudança da antiga capital para
zantina afasta-se tanto dos acontecimentos que tinham
presidido à fundação de outros impérios como um acto
simbólico se distingue dum acto da vida quotidiana; o seu
«início» foi uma cerimónia. A lenda «etiológica» do prin-
cípio do Império de Constantino não nos oferece mais que
outro signo, que é `índice' e `emblema': «In hoc signo
vinces».
2. Em qualquer regime monárquico, o espaço socia
enche-se de diversos graus de toda a espécie de signos, te~
temunhando a presença da «pessoa» do monarca (imagen
pintadas e esculpidas, estandartes, monogramas; moedas
gravadas com o seu nome e a sua efígie [nos Evangelhos
Prática de Análise: Leituras Semióticas 171
o apotegma do último César, levando «a efígie e a lenda»
do potentado; «a efígie» e aa lenda», quer dizer, «a ima-
gem» e «o nome», duas categorias cruciais da simbólica
patrística; mais tarde o ícone bizantino será, também,
uma «efígieH associada necessariamente a uma «lenda»]).
Mas esta «pessoa» em si mesma é o signo do impessoal; é
«representativa», a sua presença é «representação». Se
Asta observação é típica de toda a monarquia, é-o num
grau muito particular da teocracia cristã de Justiniano I
ou de Otão III. Do ponto de vista teocrático, o monarca
não é mais do que um homem, mas o poder que exerce
sobre os homens não pode pertencer a um homem e ape-
nas pertence a Deus. Não divino, o monarca participa
(concepção platónica da «participação» da coisa na ideia)
do poder divino sendo o seu emblema e o seu ícone vi-
vente; todo o seu ser se torna emblemático. Mas esta ima-
gem «afasta-se» do seu protótipo (teoria da imagem de
São João Damasceno). A única imagem absolutamente
«verdadeira» do reino celestial de Deus é o reino escato-
lógico de Cristo. Cristo é o único soberano legítimo e in-
condicional; qualquer outro poder é resultado, tal como
o signo, duma convenção. O poder imperial e a ideia cristã
não puderam conciliar-se, conjugar-se num sistema de «or-
todoxia,> única a nãõ ser pela mediação dum simbolismo
tingido de platonismo.
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