maneira outrosfactos citados mais acima) 1'4j
É indispensável, de todas as maneiras, considerar que
existia na Rússia uma tradição precisa de «inversão de
comportamento» (de anticomportamento), da qual Pedro
pôde, numa medida até inconsciente, sofrer a incidência
(como, na sua época, Ivan o Terrível). Esta cultura negra,
mágica (reflectida particularmente nosfeitiços...), tinha-se
construído em muitos pontos sobre uma resistência anti-
tética à cultura clerical. Observar-se-ão a este respeito com
curiosidade os motivos do disfarce, do desdobramento de
personalidade, os dois tão característicos do comporta-
mento diário de Pedro. Não é menos característico que
os actos do tsar parecessem, em toda uma série de casos,
dar razão à opinião que o socius expressava sobre esses
actos, como se se tivesse conformado, em suma, segundo
a sua própria opinião. Primeiramente, os seus actos cor-
respondem integralmente às expectativas escatológicas da
época. A vinda do Anticristo tinha sido anunciada para
1666; quando se comprovou que não se tinha cumprido,
96 Ensaios de Semiótica Soviética
foi anunciada para 1699 (1666 -I- 33 = 1699). E uns dias
antes do começo desse ano (no 25 de Agosto de 1698, já
que o ano começava no dia 1 de Setembro), Pedro vol-
tou da sua primeira viagem ao estrangeiro, marcando
logo o seu regresso com uma série de inovações culturais
(a obrigatoriedade de cortar a barba começou no dia a
seguir; acontecimento que marcou o início do ano de 1699;
foi então que começou também a luta contra o vestuário
nacional russo e que se empreendeu um conjunto de refor-
mas do mesmo estilo). A isto juntou-se naturalmente o
rumor de que o verdadeiro Pedro tinha sido assassinado
no estrangeiro, rumor que, coisa notável, tinha começado
a estender-se ainda antes do seu regresso, o que deixa supor
que esta lenda do «tsar substituído»foifavorecida ainda
mais pela mascarada carnavalesca de Pedro, que, ao longo
da sua viagem, manteve o papel do suboficial Pedro Mik-
hailov. É mais chocante ainda constatar que os rumores
relativos ao assassínio cometido por Pedro na pessoa
do seufilho Alexei se adiantaram em mais de dez anos
(comofoi demonstrado por K. Tochistov) ao próprio acon-
tecimento, parecendo antecipá-lo em certa maneira (é no-
tório que, baseando-se nesses rumores, o primeirofalso
Alexei se apresentasse quase seis anos antes da execução
do príncipe!). Os actos de Pedro inscreviam-se por inteiro
em moldes preexistentes.
Mas quaisquer que tenham podido ser os motivos pro-
fundos deste comportamento o resultado a que conduziu
a leitura desses textos na «língua» do socius parece abso-
lutamente legítimo. Nós conhecemos as consequências -
o carácter inorgânico das reformas de Pedro que, muito
mais tarde,faz ainda sentir os seus efeitos.
Notas
(1) [A identificação língua-código, como o próprio Lótman assi-
nala, carece de total rigor. Cf. também o termo «parede>, em
A. J. Greimas, «Pour un dictionnaire raisonné de sémiotique,>,
VS 17.] (N. T.)
(2) Aliás, é importante considerar que os efectivos desta seita
se modificaram consideravelmente sob Pedro, emfunção precisa-
mente das adesões daqueles que combatiam as suas reformas;
Ï
Teoria da Semiótica da Cultura 97
pode deduzir-se que as concepções dos velhos-crentes reflectem a
atmosfera geral da época.
(3) [Refere-se àfutura Catarina I. N. T.]
(4) Arcebispo de Novgorod; aderiu pessoalmente à obra de Pedro
simultaneamente como pregador, publicista, poeta e dramaturgo.
(5) Era o primeiro encontro de Pedro com Teófano Prokopovitch
e desempenhou um grande papel na promoção deste último.
A alocução por ele pronunciada por ocasião da vitória de Poltava
foi tão apreciada por Pedro que a mandou imprimir em russo e
em latim, sem qualquer delonga.
(6) A palavra «otecestvo» podia significar tanto «pátria» como
«ocovstvo», quer dizer, r1paternidaden e, portanto, também «pa-
ternidade espiritual».
(7) Esta denominação aparece pela primeira vez quando pres-
taram juramento os membros do Ministério do Culto (em 1721),
redigido pelo próprio Pedro. As palavras que dizem respeito ao
Juiz sem apelaçãoforam acrescentadas pelo próprio punho de Teó-
fano Prokopomtch. Esta expressão passou logo no texto de pres-
tação de juramento dos membros de Sínodo, quefoi suprimida
apenas em 1901.
(8) [Patriarca anatemizado pelos velhos-crentes, veja-se «Para uma
semântica...» N. T.]
(9) Pode dizer-se, portanto, que os apologistas e os adversários de
Pedro não estão realmente tão distantes uns dos outros na carac-
terizaçãoformal que delefazem, o que não o impedia de enfrentar
o problema de maneira radicalmente diferente.
A influência exercida por esta concepção sobre a consciência que
posteriormente os soberanos russos tiveram do seu poder é, a
este respeito muito digna de atenção. É tanto assim que Paulo I
escreve a 5 de Abril de 1937, numa acta legislativa relativa à su-
cessão do trono: «Os soberanos russos estão à cabeça da Igreja»,
e isto entrou no corpus da lei. Catarina II chamou-se também
«chefe da Igreja».
Paulo I e mais tarde Alexandre I puderam celebrar ritos que em
geral só um sacerdote celebra; asim, pois, segundo a tradição,
teriam podido celebrar actos litúrgicos. Deste mesmo modo, Paulo
pôde dirigir a ordem monástica dos cavaleiros de Malta. Por para-
doxal que pareça, traduz com exactidão o espírito das reformas de
Pedro mencionadas mais acima.
(10) É indispensável considerar que existia, ainda, muito pouco
tempo antes deste acontecimento (e precisamente em Moscovo!)
um rito especial do Domingo de Ramos: uma procissão em que,
desfilando montado num burro, o patriarca personificava misti-
camente Cristo entrando em Jerusalém. Há que supor que certos
elementos deste ritoforam utilizados durante a cerimónia da
recepção triunfalfeita a Pedro (o tsarfoi acolhido por crianças
98 Ensaios de Semiótica Soviética
vestidas com túnicas brancas, «agitando palmas e ramosN), subli-
nhando assim o carácter profano da cerimónia. Se se considerar,
aliás, que é precisamente sob o reinado de Pedro quefoi abolido
o rito em questão, as acusaçõesfeitas contra ele por se ter apro-
priado autocraticamente dasfunções de patriarca (cf. mais acima)
terão ainda mais ressonância.
(11) [Alusão à parábola das Virgens sábias e das Virgens nés-
cias. N. T.J
(12) [Alusão à cerimónia ortodoxa do baptismo. hI. T.]
(13) Cf., em Gogol, a imagem do diabo vestido de alemão que
denota uma tradição iconográfica muito precisa.
(14) Há que lembrar que, em geral à luz destes contactos com
línguas estrangeiras, os textos redigidos por Pedro e os membros
da sua corte estão cheios de construções traduzidas (imitações,
traduções defraseologismo de toda a espécie), o que condiciona
por sua vez um empregofigurado e metafórico de palavras russas
(os próprios tropos podem, em sentido lato, ser considerados
como traduções). Também é verdade que o socius plurilíngue toma
legitimamente essas metáforas 11ao pé da letra1, o que permitiu
às vezes que se actualizassem.
II
PRÁTICA DE ANÁLISE:
LEITURAS SEMIÓTICAS
O PROBLEMA DO SIGNO E DO SISTEMA SIGNICO
NA TIPOLOGIA DA CULTURA ANTERIOR
AO SÉCULO XX
(1979)
IÚRI M. LÓTMAN
INTRODUÇãO
Se definirmos cultura como todo o conjunto da infor-
mação não genética, como a memória 1l1 comum da huma-
nidade ou de colectivos mais restritos nacionais ou so-
ciais, teremos o direito de examinar a totalidade dos tex-
tos 1Z1 que constituem a cultura sob dois pontos de vista:
uma comunicação determinada, e o código através do qual
se descodifica essa comunicação no texto.
A análise da cultura a partir deste ponto de vista asse-
gura-nos que é possível descrever os diversos tipos de cul-
tura como tipos de linguagens particulares e que, desta
maneira, lhes podem ser aplicados os métodos usados no
estudo dos sistemas semióticos.
Assim, vemo-nos na necessidade de sublinhar que os
textos reais das diversas culturas necessitam, em regra ge-
ral, não já dum código determinado para os decifrar, mas
sim de um sistema complexo que umas vezes tem uma
organização hierárquica e outras nasce após uma conjun-
ção mecânica de vários sistemas mais simples.
De qualquer maneira, nesta complexa conexão, um dos
sistemas de codificação assume inevitavelmente um papel
dominante. Isto depende dofacto de que os sistemas comu-
nicativos são simultaneamente sistemas de modelização, e
a cultura, ao construir um modelo do mundo, constrói, ao
mesmo tempo, o modelo de si própria, ao condensar e
acentuar algum dos seus elementos e ao eliminar uma
parte insignificante. Portanto, um estudioso que examine
um texto pode descobrir nele uma hierarquia complexa de
sistemas de codificação, enquanto um contemporâneo
102 Ensaios de Semiótica Soviética
imerso nesse sistema sente-se inclinado a reduzi-lo todo
a um tal sistema. Desta maneira é possível que vários colec-
tivos histórico-sociais criem ou reinterpretem os textos,
ao escolher entre um complexo conjunto de possibilidades
estruturais aquilo que responda aos seus modelos do
mundo.
Mas as culturas são sistemas comunicativos, e as cul-
turas humanas criam-se quando se baseiam nesse sistema
semiótico universal que é a linguagem cultural. Portanto,
na base da classificação dos códigos das culturas pode-se
colocar, a priori, a sua relação com o signo. O conjunto
das possibilidades utilizadas para construir um modelo
cultural do mundo limitar-se-á, pois, aos elementos inva-
riáveis dum sistema semiótico 131. (Um sistema cuja quan-
tidade de elementos não esteja limitada não pode servir
de meio de informação, e isso entra em contradição com
a definição de «cultura»).
Dado que asforças sociais dominantes nas distintas
fases da história criaram os seus próprios modelos do
mundo numa situação de amargos conflitos, cada nova
fase da história da cultura tomou do aleque» das possi-
bilidades impostas pelas leis da comunicação na sociedade
humana 141 princípios contrastantes. Mas uma vez que o con-
junto destes princípios, com toda a probabilidade, tenha
terminado, a história da sucessão dos códigos dominantes
de cultura será, simultaneamente, a história duma pene-
tração cada vez mais profunda nos princípios estruturais
dos sistemas sígnicos.
Quando dizemos «1 um acontecimento significativo»,
ou afirmamos, a propósito duma acção, a
caso, não significa nada», estamos a confirmar que «tel
significado» para a nossa consciência é sinónimo de «te1
um valor» ou mesmo de aexistir». Portanto, um aconte
cimento pode ser valorado de maneira diferente segtand
seja simplesmente umfacto da vida material ou tenh
também um significado social suplementar.
Por trás deste facto quotidiano esconde-se uma coi
sa muito séria: qualquer construção dum modelo social pre
supõe a divisão da realidade que nos rodeia num mun
do defactos e num mundo de signos, com a sucessiva pon
tualização das suas relações mútuas (semânticas, totípo
existenciais, segundo o aspecto que nos interesse).
Prática de Análise: Leituras Semióticas 103
De qualquer modo, umfenómeno pode converter-se
em portador dum significado (signo) só na condição de
entrar afazer parte dum sistema e, portanto, estabelecer
uma relação com um não-signo ou com um outro signo.
A primeira relação - a de substituição - gera o signifi-
cado semântico, e a outra - a de conjunção - o sintag-
mático. Uma vez que no mundo dos modelos sociais ser
um signo 151 significa existir, pode-se definir o primeiro
deles assim: «Existe porque substitui alguma coisa de mais
' importante que ele próprio».
Se admitirmos que um sistema de cultura se pode
construir com base na presença ou na ausência de cada
um destes princípios de classificação existencial-valora-
tiva, teremos então a matriz dafigura I.
Não se deve pensar que estas quatro possibilidades
, esgotam todos os tipos de semiose, mas não há dúvida que
' estas preenchem o seu nível inicial. E é digno de atenção
ofacto de que a cultura russa desde a sua primeira do-
cumentação (século IX) até à metade do século XIX ofe-
reça uma espécie de sucessão clássica de todos os tipos
fundamentais na sua orgânica e regular sucessão defactos.
I. TIPO SEMANTICO («SIMBÓLICO,>)
Este tipo de código de cultura, baseado na semantiza-
ção (ou até simbolização), quer na realidade total que rodeia
o homem quer nos seus componentes, também se pode
chamar «medieval» visto que está representado na sua
forma mais pura na cultura russa dos princípios da Idade
Média.
Não é casual, para este tipo de modelização da reali-
' dade, a ideia de que mo princípiofoi a palavra». O mundo
é imaginado como palavra, e o acto da criação como for-
mação dum signo. Isto é suficiente para que nos surja o
problema da sintagmática dos signos. Os diversos signos
não são mais que diversos aspectos dum mesmo signi-
ficado, seus sinónimos e contrários. As mutações do sig-
nificado não são senão graus de aprofundamento dum
significado, não novos significados mas graus de sentido
na aproximação para o absoluto.
104 Ensaios de Semiótica Soviética
1 - O código cultural constitui apenas a organização semântica.
2 - O código cultural constitui apenas a organização sintagmática.
3 - O código cultural está orientado para a negação de ambos
os tipos de organização, quer dizer, para a negação do carác-
ter sígnico.
4 - O código cultural constitui a síntese de ambos os tipos de
organização.
A divisão taxativa do mundo em dois grupos contra-
postos é própria da consciência medieval.
Num grupo encontravam-se osfenómenos corvc signi-
ficado, e no outro osfenómenos da vida prática. Estes últi-
mos era como se não existissem. Naquela altura, essa sub-
divisão ainda não significava uma avaliação: um signo
podia ser um mal ou um bem, um acto heróico ou um
delito, mas tinha uma característica necessária: a existên-
cia social. Neste sentido, o não-signo não existia.
Deste ponto de vista o modelo medieval do mundo re-
tirava todo o direito de existir a enormes níveis de vida
e colocava o homem, até neste sistema, numa situação
contraditória: as suas realidades sociais e biológicas não
tinham pontos de contacto. Mais ainda, como ser vivo,
este não podia aspirar a determinar dois resultados prá-
ticos das suas próprias acções - a conquista duma cidade
próxima ou possuirfisicamente uma mulher -, enquanto,
como ser social, tinha de desprezar as coisas e aspi-
**
FIGURA I
Prática de Análise: Leituras Semióticas 105
rar aos signos. Deste ponto de vista os acontecimentos
práticos, tão desejados ou tão temidos, simplesmente não
existiam. Assim, o conviver com outra mulher e mesmo
praticar a violência contra uma aldeã não degradavam um
cavaleiro que praticava o culto à dama. Eram simplesfac-
tos e, por isso, era cómo se não existissem, nem se podiam
considerar como uma «traição» às sublimes relações síg-
nicas. A traição ao culto da dama só se podia dar com a
passagem a um outro «serviço», acção equivalente em grau
de signicidade.
Se examinarmos a evolução do direito russo no início
da Idade Média, descobriremos que, com a passagem do
tempo, infligir aos outros uma grande mutilaçãofísica se
torna menos punível que um ultraje.
Nos pactos estipulados entre russos e gregos, a de-
sonra, dum lado, e a mutilação, a dor ou a lesão, do outro,
ainda não se encontram separados: «Se alguémfere com
espada, golpeia com uma taça ou uma jarra, segundo a lei
russa, pelaferida ou golpe terá de pagar cinco litros de
prata»161. Aqui vemos que aferida de espada que mutila
e o golpe com a taça (desonra) ainda não estão separados.
Mas já na Russkaia Pravda [Pravda Russa] distingue-se
um grupo de delitos que comportam um dano não de
facto mas sígnico. Por exemplo, na primeira (denominada
«breve») redacção da Russkaia Pravda ameaça-se com uma
pena especial quem ofender alguém golpeando-o com um
objecto ou com uma arma embainhada: a espada na bai-
nha, o punho da espada. «Se alguém golpear com um pau,
ou com uma pértiga, ou com a palma da mão, ou com
a taça, ou com o corno, ou com as costas da mão, terá
de pagar doze grivnas... Se golpear com a espada, mas
sem a desembainhar, ou até com a bainha, terá de pagar
doze grivnas pela ofensa» 1'>. É significativo que as mesmas
doze grivnas sejam impostas no caso de «um servo golpear
um homem livre»181, caso evidente de reparação não por
mutilação, mas por ofensa à honra.
Na redacção «alargada» da Russkaia Pravda há um
ulterior aprofundar da questão: o homicídio em circuns-
tâncias que não impliquem desonra - uma solução aberta
e manifesta da discussão com uso daforça («Se se matar
alguém abertamente num casamento ou num banquete») -
é punido de maneira leve, pois quase não é considerado
delito. Ao mesmo tempo, considera-se a desonra um dano
106 Ensaios de Semiótica Soviética
tão grave que não se proíbe à parte lesada responder com
um golpe de espada «Se, não aguentando [a desonra],
golpear o seu inimigo com a espada, não será culpado») 191,
embora seja claro que não já o dano sígnico, mas o
defacto, após 1o golpe com a espada, ou com as costas da
mão, ou com a arma embainhada («Se alguém golpear com
a espada, sem a desembainhar, com o punho»), era noto-
riamente menor do que por uma «defesa» deste tipo.
As observaçõesfeitas confirmam a tese geral de que
a sociedade medieval era uma sociedade com um alto grau
de signicidade, o que quer dizer que era na separação entre
a essência real dosfenómenos e a sua essência sígnica que
se baseava a sua concepção do mundo.
Há umfenómeno característico que particularmente
se alia a isto: qualquerforma de actividade dum colectivo
medieval, para ser umfacto com valor social, tinha de se
transformar num ritual. O combate, a caça, a diplomacia
- a administração em geral -, a arte, exigiam um ritual .
O signo tinha importância pela suafunção de substi-
tuição. Isto ressaltava de imediato a sua dupla natureza:
o substituto era considerado conteúdo, e o que substitui,
expressão. É por isto que o que substitui não podia ter
valor autónomo: porque recebia um valor segundo o lugar
hierárquico do seu conteúdo no modelo geral do mundo.
Por conseguinte, o conceito de parte assume um con-
teúdo originalíssimo. A parte é homeomorfa ao todo: não
éfracção do conjunto mas um símbolo dele [veja-se, por
exemplo, a conhecida tese do escritor medieval checo To-
más ze Stíného (1331-1401), segundo a qual uma parte da
hóstia da comunhão simboliza todo o corpo de Cristo].
Visto que o plano do conteúdo de todo o mundo no seu
conjunto e de cada um dos seus valores culturais em par-
ticular pertence às essências incomensuráveis e indivisíveis,
qualquer divisão interessa só ao plano da expressão. Por
isso, do ponto de vista do conteúdo, a parte é equivalente
ao todo. Pelo contrário, na unidade do conteúdo e da ex-
pressão a parte não entra no todo, tão-só o representa
E dado que neste sistema o todo é signo, a parte não 1
fracção do todo mas é um signo dele, signo do signo.
Daqui surgia uma atitude particularface ao process
de aquisição da sabedoria. A consciência dos tempos mo
dernos entende o avanço para a verdade como um aumemto
quantitativo dos conhecimentos, como uma soma de livros
Prática de Análise: Leituras Semióticas 107
lidos, visto que o caminho para a totalidade, saber abso-
luto, passa pela união das partes. Deste ponto de vista,
aquele que tenha lido mais livros é quem está mais perto
da sabedoria. Fonvizin, racionalista russo do século XVII,
na sua comédia `NedorosZ' [O menos] ridiculariza a ins-
trução que consiste numa repetição contínua dos argumen-
tos já estudados: «Nãofaz outra coisa que não seja ler
coisas sabidas e mais que sabidas» (11). A «leitura», no sen-
tido medieval, contudo, não é a acumulação quantitativa
dos textos lidos, mas o aprofundar, dum texto, penetração
contínua e reiterada na sua estrutura. É justamente assim
que se cumpre a passagem da parte (do texto) ao todo (à
verdade) (12).
Por exemplo, um dos monumentos mais interessantes
da Idade Média russa - Izbornik 1076 goda [A colecção
de 1076] -começa com o capítulo Slovo nïekojego (kaZou)
gera o c' (tenü) (k)nig' [A palavra dum kalouger sobre a
leitura dos livros] ('3). Lá lemos: «Quando leres pensa no
que dizem os livros e as palavras, e lê três vezes um mesmo
capítulo. Pois que está dito: 'No meu coração ocultei as
tuas palavras para não cair em pecado ante ti.' Não diz:
'Falei com os lábios', mas `No coração ocultei.',> (14)
Esta relação entre a parte e o todo imprimia uma
marca particular no conceito de pessoa. aPessoa», quer
dizer, sujeito jurídico, unidade relevante de outros siste-
mas sociais: religioso, moral, estatal, eram os organismos
corporativos de diversos tipos: os direitos jurídicos, ou a
ausência destes, dependiam dofacto de o homemfazer
parte ou não dum grupo (na Russkaia Pravda a indemni-
zaçãofoifixada pelo dano infligido não já ao homemfora
do contexto social, mas ao soldado do príncipe [muz], ao
mercador, ao smerd [camponês livre]; a esperança no
bem-estar do além estava ligada à pertença aos grupos de
«cristãos», dos «justos», etc.). 1Quanto mais importante era
o grupo de quefazia parte o homem, tanto mais alto era o
seu valor pessoal. O homem, como tal, não tinha nenhum
valor pessoal, nem gozava de direitos pessoais. De qual-
quer maneira, não há razões para adiantamentos e con-
clusões dizendo que estava oprimido e que era insignifi-
cante. Esta sensação nasce no homem moderno, dado que
unifica o conceito medieval de participação com a ideia
muito mais recente de que a parte é algo secundário, em
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