Língua Portuguesa volume 1



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. Acesso em: 4 abr. 2016.

Converse com seus colegas:

a) O que levou Galileu à condenação em 1633? Em quais concepções de mundo a Igreja católica se baseava naquele momento?

b) Quais fatores permitiram a absolvição do cientista mais de trezentos anos depois de sua condenação? Que concepções foram alteradas e influenciaram as reconsiderações da Igreja?

c) Na atividade 1, você reconheceu os méritos ou não de uma personalidade. Certamente não houve consenso em todos os casos: a mesma figura deve ter sido mais valorizada por alguns do que por outros, dependendo das experiências da equipe, do conhecimento de mundo e do conjunto de valores das pessoas que participaram da análise.

Galileu, por outra razão, foi julgado em uma época e absolvido em outra pela mesma instituição.


Em sua opinião, que razões podem levar os mesmos comportamentos a serem julgados de maneiras distintas?

Dentre os comportamentos avaliados, há aqueles mais universalmente aceitos, admirados em todas as épocas e pela maioria das pessoas? Quais seriam eles? Por quê?

Há, hoje em dia, comportamentos mais universalmente rejeitados, que provocam a condenação e a indignação da maior parte das pessoas, quando praticados? Se há, quais seriam eles? Por quê?
Folhapress/Lenise Pinheiro

A atriz Denise Fraga interpretando o personagem Galileu Galilei em peça homônima de Bertolt Brecht, sob direção de Cibele Forjaz no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), 2015. A peça se fundamenta na vida e no trabalho do cientista italiano
do século XVII.

A seguir você vai ler fragmentos de dois textos teatrais, um escrito no Brasil na segunda metade do século XX, e o outro escrito em Portugal no início do século XVI. Apesar da grande diferença temporal, ambos são baseados em um mesmo conjunto de valores, advindo da concepção cristã de mundo. Os dois também têm em comum a forma: são autos, ou seja, peças teatrais. Leia os textos, observando suas semelhanças e suas diferenças.



Comparando textos

Texto 1

Escrita pelo dramaturgo, romancista e ensaísta brasileiro Ariano Suassuna, o Auto da Compadecida foi encenado pela primeira vez em 1956, em Recife. Resgatando dos cordéis o personagem João Grilo, um sertanejo pobre que usava de esperteza para sobreviver, e misturando-o a elementos advindos de diversas histórias populares, Suassuna compôs uma peça integrando humor, crítica social e valores morais.

A história se passa no sertão nordestino e se inicia com João Grilo e seu amigo Chicó trabalhando para um casal de padeiros. A cadelinha de estimação, para desgosto de sua dona (a mulher do padeiro), morre, e esta deseja que o animal tenha um enterro cristão, guiado por um padre. João Grilo, a fim de receber algum tipo de vantagem, promete conseguir esse enterro. Mas, para obtê-lo, ele cria diversas artimanhas, como enganar o padre, dizendo que a cadelinha que deve ser benzida pertence ao Major, o homem mais rico e poderoso da região. Essa é a primeira armação de tantas das quais João Grilo participa.

A cena que você vai ler agora é o momento em que João Grilo está morto juntamente com o padre, o bispo, o cangaceiro Severino, o padeiro e sua esposa, todos prestes a serem julgados. Completam a cena o encourado (um diabo mais poderoso na hierarquia) e Jesus, que é o juiz. Atente para o momento em que João Grilo se encontra com Jesus e o relato dos pecados do bispo e do padre.


Auto é uma composição teatral surgida na Idade Média, cujos personagens simbolizam virtudes e pecados ou representam anjos, demônios e santos. De estrutura simples, os autos costumam ter elementos cômicos e intenção moralizadora.
Auto da Compadecida

Ariano Suassuna

Encourado — […] Vamos, todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, para padecer comigo.

O Demônio começa a perseguir os mortos e o alarido deles é terrível. Ele vai agarrando um por um e os mortos vão se desvencilhando, aos gritos.

Bispo — Ai! Leve o padre!

Padre — Ai! Leve o sacristão!

Sacristão — Ai! Leve o Severino!

Severino — Ai! Leve o cabra!

João Grilo — Parem, parem! Acabem com essa molecagem!

Seu grito é tão grande que todos param e o silêncio se faz.

João Grilo — Acabem com essa molecagem. Diabo de um barulho danado! É assim, é? É assim, é?

Encourado — Assim como?

João Grilo — É assim de vez? É só dizer “pra dentro” e vai tudo? Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação?

Encourado — É assim mesmo e não tem para onde fugir!

João Grilo — Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!

Bispo — Eu também. Boa, João Grilo!

Padre — Boa, João Grilo!

[…]


Severino — É isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo, que é quem pode saber.

Encourado — Besteira, maluquice!

Padre — Besteira ou maluquice, eu também apelo. Senhor Jesus, certo ou errado, eu sou um padre e tenho meus direitos. Quero ser julgado, antes de ser entregue ao diabo.

Aqui começam a soar pancadas de sino, no mesmo ritmo das de tambor anteriores. O Encourado começa a ficar agitado.

[…]


Encourado, de costas, grande grito, com o braço ocultando os olhos — Quem é? É Manuel?

Manuel — Sim, é Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois vão ser julgados.

João Grilo — Apesar de ser um sertanejo pobre e amarelo, sinto perfeitamente que estou diante de uma grande figura. Não quero faltar com o respeito a uma figura tão importante, mas se não me engano aquele sujeito acaba de chamar o senhor de Manuel.

Manuel — Foi isso mesmo, João. Esse é um de meus nomes, mas você pode me chamar também de Jesus, de Senhor, de Deus… Ele gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa que assim pode se persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus.

João Grilo — Jesus?

Manuel — Sim.

João Grilo — Mas, espere, o senhor é que é Jesus?

Manuel — Sou.

João Grilo — Aquele Jesus a quem chamavam Cristo?

Jesus — A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por quê?

João Grilo — Porque… não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.

Bispo — Cale-se, atrevido.

Manuel — Cale-se, você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu sua admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.

João Grilo — Muito bem. Falou pouco, mas falou bonito. […]

Manuel — Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco, como um preto. […]

Padre — Eu, por mim, nunca soube o que era preconceito de raça.

Encourado, sempre de costas para Manuel — É mentira. Só batizava os meninos pretos depois dos brancos.

Padre — Mentira! Eu muitas vezes batizei os pretos na frente.

Encourado — Muitas vezes, não, poucas vezes, e mesmo essas poucas quando os pretos eram ricos.

Padre — Prova de que eu não me importava com a cor, de que o que me interessava…

Manuel — Era a posição social e o dinheiro, não é, Padre João? Mas deixemos isso, sua vez há de chegar. Pela ordem, cabe a vez ao bispo.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1990. p. 144-150.



O autor

O paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) foi dramaturgo, poeta, romancista e ensaísta. Escreveu o Auto da Compadecida em 1955. Essa obra foi encenada pela primeira vez em 1957 e projetou seu autor em todo o Brasil. Mais tarde, o Auto da Compadecida foi traduzido e representado em diversos idiomas, além de adaptado para o cinema em 2000.



D.A Press/DP/Annaclarice Almeida

1. Como se comportam os personagens do auto diante da situação de julgamento?

2. Quais são os tipos de pecado cometidos pelo bispo, pelo padre e por João Grilo e que foram destacados por Manuel?

3. Se esses são os pecados é porque Manuel espera um comportamento moralmente aceitável. Nos três casos, quais seriam os comportamentos desejados?

4. Em sua opinião, esses comportamentos esperados são encorajados por quaisquer grupos culturais em qualquer época, ou isso sofre variação de cultura para cultura?

O teatro de Suassuna

O teatro de Ariano Suassuna mescla elementos da cultura erudita e da popular. Nele, percebem-se traços da cultura ibérica e do cristianismo, que têm raízes na cultura brasileira, em especial na nordestina, marcada pela religiosidade profunda.

Além disso, nas peças de Suassuna, os costumes e os desvios de conduta dos indivíduos são apontados com humor. Embora tratem de questões locais, próximas ao ambiente que cerca o escritor, a temática tem caráter universal já que estão em toda parte a corrupção, a avareza, a vaidade, a oposição vida/morte, a opressão, etc.

A oposição entre bem e mal se mostra no conflito entre o personagem do sertanejo nordestino — desprovido de bens materiais, mas capaz de muita esperteza — e o personagem provido de bens materiais e/ou de poder, que o explora ou o oprime. Nesse embate, sobressai em geral o sertanejo, muitas vezes com uma ajuda do divino.



Globo Filmes/Reprodução

Cena do filme O Auto da Compadecida, de 2000, sob direção de Guel Arraes. No destaque, o ator Luís Melo no papel do Diabo.

Texto 2

Séculos antes da primeira encenação do Auto da Compadecida, Gil Vicente (1465-1536) compôs, em Portugal, o Auto da barca do inferno. A ação da peça acontece em um braço de mar, onde duas barcas estão prontas para partir, uma rumo ao paraíso, tripulada pelo Anjo, outra para o inferno, comandada pelo Diabo. Diversos personagens se apresentam: são almas que precisam saber em qual das barcas ingressarão. No trecho que você vai ler, chega o personagem Fidalgo.



Auto da barca do inferno

Gil Vicente

[...]


Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

Fidalgo: Esta barca onde vai ora,

que assim está apercebida?



Diabo: Vai para a ilha-perdida,

e há de partir logo agora.

[...]

Fidalgo: [...] a que terras passais?

Diabo: Para o inferno, senhor.

Fidalgo: Terra é bem sem-sabor.

Diabo: Quê? e também cá zombais?

Fidalgo: E passageiros achais

para tal habitação?



Diabo: Vejo-vos eu com feição

para ir ao nosso cais...



Fidalgo: Parece-te a ti assim.

Diabo: Em que esperas ter guarida?

Fidalgo: Que deixo na outra vida

quem reze sempre por mim.



Diabo: Quem reze sempre por ti!...

Hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

Tiveste a teu prazer

cuidando cá guarecer,

porque rezam lá por ti?

Embarca, ou embarcai,

que haveis de ir à derradeira...

Mandai meter a cadeira.



Fidalgo: Quê! Quê! Quê! Assim lhe vai?

Diabo: Vai ou vem, embarcai prestes!

Segundo lá escolhestes,

assim cá vos contentais.

Porque já a morte passastes,

haveis de passar o rio.

Fidalgo: Não há aqui outro navio?

Diabo: Não senhor, que este fretastes,

e primeiro que expirastes

me tínheis dado sinal.

Fidalgo: Que sinal foi esse tal?

Diabo: De que vós vos contentastes.

Fidalgo: A estoutra barca me vou.

Hou da barca, para onde is?

Ah barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me! Hou lá! Hou!...

Por Deus, bem fadado estou!

Quanto a isto é já pior.

Que jericos, oh senhor!

Cuidancá que sou um grou!



Anjo: Que mandais?

Fidalgo: Que me digais,

pois parti tão sem aviso,

se a barca do paraíso

é esta em que navegais.



Anjo: Esta é; que demandais?

Fidalgo: Que me deixeis embarcar;

sou fidalgo de solar,

é bem que me recolhais.

Anjo: Não se embarca tirania

neste batel divinal.



Fidalgo: Não sei por que haveis por mal

que entre minha senhoria.



Anjo: Para vossa fantasia

é mui pequena esta barca.



Fidalgo: Para senhor de tal marca

não há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e o atavio,

levai-me desta ribeira!



Anjo: Não vindes vós de maneira

para entrar neste navio.

Essoutro vai mais vazio:

a cadeira entrará

e o rabo caberá

e todo o vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso,

com fumosa senhoria,

cuidando na tirania

do pobre povo queixoso!

E porque de generoso

desprezastes os pequenos,

achar-vos-eis tanto menos

quanto mais fostes fumoso.

[...]

VICENTE, Gil. O velho da horta. Auto da barca do inferno. A farsa de Inês Pereira. São Paulo: Brasiliense, 1982.



batel: pequeno barco.

ora: agora.

apercebido: abastecido de provisões.

feição: estado de espírito favorável.

guarida: abrigo, refúgio.

cuidar: acreditar, julgar; pensar em.

guarecer: curar-se, sarar.

à derradeira: por fim.

assim lhe vai?: é esse o seu desejo?

prestes: sem demora, rapidamente.

expirar: morrer.

sinal: primeira parte de um pagamento.

bem fadado: bem arranjado.

jerico: jumento; pessoa imbecil.

grou: tipo de ave de pernas longas.

demandar: procurar.

solar: rica morada, palácio de família nobre.

divinal: divino.

prancha: ponte colocada entre uma embarcação e o cais.

atavio: apetrecho para o embarque.

ribeira: pequeno rio.

fumoso: vaidoso.

Carlos Araujo/Arquivo da editora

O autor

Não se sabe em que ano nem em que cidade nasceu Gil Vicente. Sabe-se, porém, que quem o introduziu no mundo artístico e o protegeu foi a rainha dona Leonor (1458-1525).

Suas peças são importantes documentos para se conhecer como viviam as pessoas desse período. Gil Vicente viveu em um período de grandes transformações da história portuguesa: a transição da Idade Média (séculos V ao XV) para o Renascimento (séculos XIV a XVI) e o período da expansão ultramarina, que levaria os portugueses ao achamento do Brasil, entre outras terras.

©Francisco Clamote

Escultura de Gil Vicente produzida no século XIX por Francisco de Assis Rodrigues, em exposição sobre o frontão do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

1. A situação representada na cena lida é simples: o Fidalgo acaba de morrer e está de passagem para a outra vida; na barca que leva para o inferno ele não quer subir, prefere seguir na barca do paraíso. Nesta, entretanto, o Anjo o rejeita por causa de seu comportamento em vida.

a) Quais atitudes do Fidalgo o impedem de subir no “batel divinal”?

b) Quais são os argumentos do Fidalgo para não embarcar para o inferno?

c) E que argumento ele dá ao Anjo para entrar na barca do paraíso?



2. A resistência para entrar no inferno é demonstrada também no Auto da Compadecida. Em que se diferenciam, nos dois trechos, os recursos usados para não acompanhar o diabo?

3. O Anjo rejeita o Fidalgo porque este, em vida, desprezou certos valores humanos. Sabendo que moral é o conjunto de valores e princípios adotados que orientam o modo de agir e de pensar de uma pessoa, percebemos que o Fidalgo e o Anjo não seguem a mesma moral.

a) Indique alguns valores que, segundo o texto, fazem parte da moral seguida pelo Anjo.

b) Indique alguns comportamentos que caracterizam a moral do Fidalgo.

c) Esses comportamentos coincidem com a acusação feita por Manuel contra um dos personagens do Auto da Compadecida. Qual? Explique.



4. Nossa concepção de mundo é a maneira de entendermos o Universo, em especial as relações humanas, o papel de cada um na sociedade. Ela se mostra quando expressamos nossa opinião sobre questões filosóficas fundamentais, como a finalidade da vida, a existência ou não de eternidade após a morte, etc. De acordo com esse trecho, qual é o conjunto de valores morais, a concepção de mundo percebida? O que tal concepção defende?

5. Releia a última fala do Anjo e compare-a com as falas do Diabo. Em que elas se diferenciam quanto à maneira como esses dois personagens se dirigem ao Fidalgo?

6. Pensando nas respostas do Diabo e do Anjo diante da argumentação do Fidalgo, responda: que barca ele tomará, a do inferno ou a do paraíso? Justifique sua resposta.

7. A presença de Jesus Cristo no julgamento, logo após as exortações de Severino e do Padre, revelam um aspecto da cultura religiosa brasileira contemporânea que não é sequer sugerida no Auto da barca do inferno. Que aspecto é esse? Comente-o.


©Creative Commons

Ilustração da edição original de Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, 1517.

Texto 3

A ideia de céu ou de inferno como destino das almas é um antigo tema da literatura. É o caso do poema épico A divina comédia, de Dante Alighieri, que descreve na obra a viagem de um poeta denominado Dante através do inferno, do purgatório e do paraíso em busca de uma mulher, sua amada Beatriz. O personagem que acompanha o poeta por esse percurso é o também poeta Virgílio, que viveu na Roma antiga entre 70 a.C. e 19 a.C.

Dante, na primeira parte do poema, percorre os nove círculos do inferno, onde estão distribuídas as pessoas de acordo com os pecados cometidos em vida. A cada tipo de pecado cabe uma punição eterna. Entre os condenados estão luxuriosos, gulosos, avarentos, preguiçosos, hereges, violentos, aduladores, ladrões, falsários, traidores.Entre aqueles que serão salvos estão os espíritos que lutaram pela fé em Cristo e os espíritos contemplativos.

Leia, a seguir, um trecho do Canto III da parte do poema de Dante denominada “Inferno”. Nesse excerto, apresenta-se o momento em que Caronte surge próximo à margem de um rio para levar consigo as almas condenadas.



A divina comédia

Canto III

Dante Alighieri

[…]


Chegava agora um barco e, em seu governo,

um velho, branco por antigo pelo,

gritando: “Almas ruins! castigo eterno

pra vós. Abandonai do Céu o anelo;

vim levar-vos, pra lá desta corrente,

à treva sempiterna, ao fogo e ao gelo.

[…]”

E as almas nuas, em sua lassitude



vi descorarem num tremor violento

ao ouvir de Caronte a fala rude.

Blasfemavam seus pais, e Deus, e o evento

da humana espécie, e o germe, o sítio e a hora

da geração sua e de seu nascimento.

E depois, num magote só que chora,

foram se unindo, na beira maldita

que aguarda quem a lei de Deus ignora.

De olhos em brasa, Caronte os incita;

lhes acenando todos os recolhe;

bate co’o remo quando algum hesita.

E todos vão, sobre a onda de pez,

e, antes mesmo de haverem lá saltado,

aqui mais gente junta-se outra vez.

“Filho”, disse o meu Mestre dedicado,

“esses, que ousaram em vida o desafio

a Deus, chegam aqui de todo estado;

e se dispõem a atravessar o rio

porque a divina lei os acorçoa

a cambiar seu receio em alvedrio.

[…]”

Depois a terra da sombria campanha



tremeu tão forte que, ao meu espavento,

inda a lembrança de suor me banha.

E da lacrimejada terra um vento

surgiu, de um clarão rubro acompanhado,

que me tolheu de todo sentimento.

E caí, como em sono derribado.


ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno. Tradução de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 40-41.

branco por antigo pelo: de cabelos brancos.

anelo: desejo, anseio.

sempiterno: infinito, eterno.

lassitude: cansaço, tédio, fadiga.

magote: ajuntamento de pessoas, multidão.

incitar: provocar, desafiar.

pez: betume, substância escura que, no trecho, dá ideia da escuridão das águas.

acorçoar: encorajar.

cambiar: trocar.

alvedrio: arbítrio, livre vontade.

espavento: espanto, susto.

derribado: derrubado.

O autor

Dante Alighieri (c. 1265-1321), poeta, médico-farmacêutico, natural de Florença, Itália. Foi educado no convento de Santa Cruz, depois aprofundou-se em literatura, retórica e filosofia na escola do mestre Brunetto Latini e, então, nas universidades de Bolonha e de Paris.

Exerceu cargo de conselheiro em Florença. Por motivos políticos, foi exilado, com o decreto automático de pena de morte caso voltasse à cidade natal. Dante então vagou por várias regiões do norte e do centro da Itália, sempre tentando arquitetar um retorno a Florença. Acabou se estabelecendo em Ravena, onde morreu. Foi durante o exílio que escreveu sua obra-prima, A divina comédia.

Catedral de Orvieto, Itália

Luca Signorelli. Dante (detalhe), c. 1499-1502. Afresco pintado na Catedral de Orvieto, Itália.

1. A partir da cena descrita, que imagens criamos de Caronte? Como as almas reagem à sua chegada?

2. O que motiva, em sua opinião, as blasfêmias ditas pelas almas que serão levadas na barca de Caronte?

3. Segundo Virgílio, mestre de Dante nessa viagem, o que obriga essas almas a seguir na barca para o inferno?

4. Retome seus estudos sobre o Texto 1. Reveja o que observou sobre os personagens do Auto da Compadecida, sobretudo a respeito da maneira de o personagem de Jesus Cristo se dirigir aos demais. Em sua opinião, nesse auto de Ariano Suassuna, o desafio a Deus seria considerado motivo para uma condenação eterna?

5. Considere o contexto religioso em que A divina comédia foi publicada e explique por que o desafio a Deus foi motivo de condenação com punição tão severa.



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