diplomas legais avulsos. É a chamada legislação extravagante. Aliás,
uma nomenclatura já conhecida ( ).
Deve salientar-se,.antes de tudo, que se utiliza aqui o conceito
de lei num sentido muito mais amplo do que aquele que lhe corres-
ponde no direito moderno (3). Ainda se ignorava o princípio da
separação de poderes, de que decorria a diferenciação das esferas
legislativa, administrativa e judicial (4). Ao tempo, qualificava-se
como lei, de um modo geral, toda e qualquer manifestação da von-
tade soberana destinada a introduzir alterações na ordem jurídica
obra e do autor, M. J. Almeida Costa, "Nota de Apresentação", págs. 9 e
segs.). Acompanha esta edição um Auxiliar Jurídico (Rio de Janeiro, 1869), do
mesmo Cândido Mendes de Almeida, que consiste num apêndice, com
legislação, jurisprudência e doutrina, portuguesas e brasileiras.
(*) Cfr., supra, págs. 286 e seg.
(2) Cfr., supra, pág. 246, no âmbito do direito canónico, e págs. 281 e segs.,
a propósito da legislação portuguesa.
(3) Sobre as questões referentes ao conceito de lei e à função legislativa,
ao longo da evolução do direito português, incluindo análises estatísticas
reveladoras, consultar António Manuel Hespanha, "Nota do Tradutor", in
John Gilissen , Introdução Histórica ao Direito, Lisboa, 1988, págs. 318 e segs. (trad.
de A. M. Hesi anha/L. M. Macaísta Malheiros do original Introduction historique
au droit, Bruxelles, 1979).
(4) Qu«nto à génese do princípio da separação de poderes, ver, infra, págs.
379 e segs.
290
estabelecida. Nem sequer se consideravam necessários os requisitos
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
da generalidade e da permanência. Posto que se reconhecesse, em
princípio, que a lei propriamente dita devia ser de aplicação geral e
abstracta, não repugnava dar-se a mesma designação a diplomas
sem tais características.
b) Espécies de diplomas
Continuava a centralizar-se no monarca a criação do
direito (*). Todavia, a sua vontade legislativa manifestava-se de
formas diversas. Daí que, paralelamente, se distinguissem vários
tipos de diplomas (2).
Os mais importantes eram as cartas de lei ( ) e os alvarás. Ambos
deviam passar pela chancelaria régia (4), embora existissem diferen-
ças formais e de duração. Quanto ao formulário, as cartas de lei
começavam pelo nome próprio do monarca ( ), ao passo que os
alvarás continham a simples expressão "Eu ElRei"( ); além disso,
criou-se a prática de, na assinatura, aparecer, respectivamente,
( ) Cfr., supra, págs. 254 e segs.
(2) A respeito destas espécies legislativas, consultar Vicente José Ferreira
Cardozo da Costa, Compilação Systematica das Leis Extravagantes de Portugal,
Lisboa, 1806, "Discurso Preliminar", págs. IX e segs., e Paulo Merêa, Resumo
das Lições de História do Diréto Português, cit., págs. 141 e segs.
( ) Também designadas cartas patentes ou apenas cartas ou leis (em sentido
restrito).
(4) Ord. Man., liv. II, tít. 20, pr.; Ord. Hl., liv. II, tít. 39.
(5) Por ex.: "Dom Manoel per graça de Deus Rey de Portugal e dos
Algarves d'aquem e d'alem Mar em Africa Senhor da Guine e da conquista
navegaçam comercio, etc. A quantos esta Nossa carta virem (...) (Carta de Lei
de 18 de Abril de 1506; A.N.T.T. — Col. Esp., p. I., cx. 37, n.° 9).
(6) A substituição da tórmula "Nós ElRei" pela de "Eu ElRei" é
determinada num assento da Casa da Suplicação de 1524, que D. João III
subscreveu. Esta alteração indicia a sobreposição absolutista do poder real à
vontade dos povos, expressa em Cortes, conjugada com a do soberano (ver
Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico, cit., vol. I, págs. 111 e seg.).
291
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
"ElRei" ou apenas "Rei"^). Pelo que tocava à duração, deviam
promulgar-se em carta de lei as disposições destinadas a vigorar
mais do que um ano e através de alvará as que tivessem vigência
inferior (2). Contudo, desde cedo, tanto as diferenças formais como
as relativas à duração sofreram frequentes excepções ou desrespei-
tos (3), passando a confundir-se os dois tipos de diplomas. Aparece-
ram, assim, os chamados alvarás de lei, alvarás com força de lei ou em
forma de lei (4).
Num plano menos relevante situavam-se os decretos. Não prin-
cipiavam pelo nome do monarca e, visto que, normalmente, se
dirigiam a um ministro ou tribunal,\terminavam, via de regra, com
uma expressão endereçada ao destinatário (5). O âmbito próprio
dos decretos cingia-se à introdução de determinações respeitantes a
casos particulares. Entretanto, com o decurso do tempo, também
acabariam por conter, algumas vezes, preceitos gerais inovadores.
Outros diplomas abrangidos na designação genérica de leis
eram as cartas régias, perfeitamente distintas das cartas de lei. Com
(') Vicente José Ferreira Cardozoda Costa, Compilação Systematica, cit.,
"Discurso Preliminar", págs. IX e seg., escreve: "Nota-se bem a diversidade da
Assinatura, ainda que não sei que esta differença seja estabelecida por alguma das
nossas leis: nas Cartas costuma ser o titulo do Soberano precedido do artigo o
Rei, a Rainha, o Principe, ou ElRei, e quasi sempre assina com guarda, quando
nos Alvarás se assina sem o artigo Rei, Rainha, Principe".
(2) Ord. Man., liv. II, tít. 20, § 5; Ord. Fil., liv. II, tít. 40.
(3) Também se desrespeita a imposição de que os novos diplomas não
podiam revogar qualquer preceito das Ordenações sem lhe fazerem referência
expressa, com declaração do seu conteúdo. Esta exigência de revogação expressa
encontrava-se prevista nas Ord. Man., liv. II, tít. 49, §§ 1 e 2, e nas Ord. Fil., liv.
II, tít. 44.
(4) As cartas de lei e os alvarás, atendendo à matéria de que tratavam,
podiam receber designações especiais. Por ex.: regimentos, quando relativos à
organização dos tribunais ou aos direitos e obrigações dos funcionários públicos;
estatutos, caso disciplinassem alguma corporação; forais, se respeitantes à organiza-
ção municipal ou aos tributos locais.
(5) Designadamente: "F... o tenha assim entendido e faça executar".
292
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA
efeito, as cartas régias constituíam verdadeiras cartas, quer dizer,
epístolas dirigidas a pessoas determinadas, que começavam pela
indicação do destinatário, mas cujo formulário variava consoante a
sua categoria social ( ). O soberano, como nos alvarás, assinava-as
tão-só com a palavra "Rei".
Denominavam-se resoluções os diplomas em que o monarca
respondia às consultas que os tribunais lhe apresentavam, normal-
mente acompanhadas dos pareceres dos juízes respectivos. Embora
as resoluções visassem casos concretos, a tendência era para a sua
aplicação analógica, tornando-se leis gerais.
Recebiam o nome de provisões os diplomas que os tribunais
expediam em nome e por determinação do monarca. Cabiam, pois,
no conceito amplo da lei. Não raro, surgiam na sequência de um
decreto ou resolução régia e destinavam-se a difundir o seu con-
teúdo. As provisões, em regra, apenas levavam a assinatura dos
secretários de Estado de que dimanavam. As que eram subscritas
pelo soberano, à maneira dos alvarás, confundiam-se com estes,
quanto ao valor legislativo. Dava-se-lhes, então, o nome de provisões
reais ou provisões em forma de lei.
Mencionam-sefpor último, as portarias e os avisos. Tratava-se
de ordens expedidas pelos secretários de Estado ( ) em nome do
monarca. Distinguiam-se, entre si, pelo facto de as portarias serem
diplomas de aplicação geral (3), ao passo que os avisos se destina-
vam a um tribunal, a um magistrado, a uma corporação ou até a
(l) Eis o mais frequente: "F... Eu ElRei vos envio muito saudar".
(2) Sobre os secretários de Estado, a quem só na segunda metade do século
XVIII seria dada a designação de "ministros e secretários de Estado", ver Paulo
Merêa, Da minha gaveta — Os secretários de Estado do antigo regimen, in "Boi. da Fac.
de Dir.", cit., vol. XL, págs. 173 e segs. Quanto a esses cargos em Espanha, com
possível influência entre nós, durante o período filipino, ver José António Escu-
dero, Los Secretários de Estado y dei Despacho (1474-1724), 4 vols., Madrid, 1969.
(3) As portarias continham a fórmula introdutória seguinte: "Manda ElRei
Nosso Senhor (...)". Acrescia que, ao contrário dos avisos, levavam o selo das
Armas Reais.
293
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
um simples particular (!). Também através destes diplomas,
exorbitando-se da sua finalidade própria, chegaram a promulgar-se
autênticos preceitos legislativos.
c) Publicação e início da vigência da lei
Ainda não se encontra, nas Ordenações Afonsinas, uma norma
expressa sobre o sistema de publicação das leis (2), nem mesmo ao
disciplinar-se o cargo de chanceler-mor ( ). Era essa, todavia, uma
das suas atribuições. Na verdade, não só ocupava a posição de
medianeiro entre o soberano e os súbditos (4), mas também lhe per-
tencia o expediente das cartas do rei, que, num sentido amplo,
englobavam os diplomas legais (5).
As Ordenações Manuelinas abordaram directamente a maté-
ria ( ). Atribuiram ao chanceler-mor, tanto a publicação das leis na
chancelarias da Corte, como o envio dos traslados respectivos aos
corregedores das comarcas. Tal incumbência foi confirmada pelo
novo regimento do chanceler-mor que D. João III outorgou em
1534, espeçiíicando-se que essa publicação na Corte se fizesse no
próprio dia da emissão das leis (7). As Ordenações Filipinas
limitaram-se a repetir o preceito (8).
(') Quanto à força normativa dos avisos, ver José Homem Corrêa
Telles, Commentario Critico á Lá da Boa Razão, em data de í8 de Agosto de 1769,
Lisboa, 1824, com. 3 ao preâmbulo.
(2) A respeito do período antecedente, ver, supra, págs. 256 e seg.
(3) Liv. I, tít. 2.
(4) Ord. Afon., liv. I, tít. 2, pr.
(5) Ver António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civil Portuguez,
Coimbra, 1848, parte I, pág. 59.
(6) Liv. I, tít. 2, § 9.
(7) Regimento de 10 de Outubro de 1534 (ver José AnastAsio de
Figueiredo, Synopsis Chronologica, cit., tomo I, págs. 350 e segs.), incluído na
Colecção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião, parte I, tít. 1 (cfr.,
especialmente, lei 1, § 9).
(8) Liv. I, tít. 2, § 10.
294
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
Manteve-se, durante largo tempo, a prática de as câmaras
promoverem a transcrição, em livros para o efeito destinados, os
diplomas gerais e os de interesse local. Do mesmo modo, os tribu-
nais superiores possuíam livros próprios de registo das leis( ). A in-
trodução da imprensa, que levou à difusão de muitos dispositivos
legais através desse meio, não retirou interesse às referidas colectâ-
neas privadas, pois as tiragens seriam sempre reduzidas e só em
época tardia se tornaram obrigatórios os traslados impressos ( ) e
existiu uma folha oficial em que se publicavam os novos
diplomas i(3)l.
Pelos finais de 1518 (4) provideriçiou-se acerca do início da
vigência das leis: estas teriam eficácia, em todo o País, decorridos
três meses sobre a sua publicação na chancelaria e independente-
mente de serem publicadas nas comarcas. O preceito transitou para
as Ordenações Manuelinas (5), mas reduzindo-se o prazo de* vaca-
tio" a oito dias quanto à Corte. Entendia-se que a vigência dos
restantes diplomas, quer dizer, dos não submetidos à chancelaria,
começava na data da publicação. As Ordenações Filipinas conserva-
ram os prazos indieados(6).
(') Ver Martim de Albuquerque, Para a história da legislação e jurisprudência
em Portugal. Os livros de registo de leis e assentos dos antigos tribunais superiores, cit., in
"Boi. da Fac. de Dir.", vol. LVIII, tomo II, págs. 623 e segs., especialmente págs.
629 e segs.
(2) Ver, infra, pág. 393.
(3) Ver, infra, pág. 393.
(4) Alvará de 10 de Dezembro de 1518 (ver José AnastAsio de
Figueiredo, Synopsis Chronologica, cit., tomo I, pág. 231). Sobre o regime anterior,
cfr., supra, págs. 256 e seg. Quanto ao início da vigência dos diplomas legais, pode
adoptar-se o método sincrónico ou o método sucessivo, consoante a lei começa a
vigorar numa única data para todo o território do Estado, ou, progressivamente,
em vários momentos, nas suas diversas regiões ou localidades.
(5) Liv. I, tít. 2, § 9.
(6) Liv. I, tít. 2, § 10.
295
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
Recorde-se que passavam obrigatoriamente pela chancelaria
as cartas de lei e os alvarás (!). Porém, com o tempo, não raro tais
diplomas foram considerados válidos mesmo sem que se cumprisse
essa exigência.
O conhecimento efectivo das leis variava, como é óbvio, em
função das distâncias que separavam as comarcas da Corte. As
maiores dificuldades verificavam-se a respeito do Ultramar. Daí
que se estabelecesse, em 1749, que as leis apenas se tornassem obri-
gatórias para os territórios ultramarinos depois de publicadas nas
cabeças das comarcas (2).
1
51. Interpretação da lei através dos assentos
O problema da interpretação da lei com sentido universal-
mente vinculativo para futuro foi disciplinado por um diploma da
segunda década do século XVI (3). Os seus dispositivos incluíram-se,
depois, nas Ordenações Manuelinas (4) e passaram às Ordenações
Filipinas (5).
(l) Ver, supra, pág. 291.
(2) Lei de 25 de Janeiro de 1749. Ver António Ribeiro de Liz Teixeira,
Curso de Direito Civil Portuguez, cit., parte I, pág. 59.
(3) Alvará de 10 de Dezembro de 1518 (ver José AnastAsio de
Figueiredo, Synopsis Chronologica, cit., tomo I, pág. 231). A interpretação
autêntica da lei constituía uma faculdade do monarca. Conhecem-se numerosos
diplomas interpretativos de preceitos anteriores. Também era frequente o rei
presidir às reuniões dos tribunais superiores e logo aí decidir as dúvidas
interpretativas que se levantavam. Na origem do referido alvará de D. Manuel I,
que confere tais funções à Casa da Suplicação, encontra-se o facto de se ter
perdido o uso de o soberano presidir a essas sessões dos tribunais superiores, em
virtude da complexidade crescente da administração (cfr. Braga da Cruz, O
direito subsidiário, cit., nota 109 da pág. 283, onde se analisam as várias modalidades
de assentos).
(4) Liv. V, tít. 58, § 1.
(5) Liv. I, tít. 5, § 5. Ver, também, o § 8 do Regimento da Casa da
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PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
Determinou-se que, surgindo dúvidas aos desembargadores da
Casa da Suplicação sobre o entendimento de algum preceito, tais
dúvidas deveriam ser levadas ao regedor do mesmo tribunal. Este
convocaria os desembargadores que entendesse e, com eles, fixava
a interpretação que se considerasse mais adequada. O regedor da
Casa da Suplicação poderia, aliás, submeter a dúvida a resolução do
monarca, se subsistissem dificuldades interpretativas.
As soluções definidas ficavam registadas no Livro dos Assentos e
tinham força imperativa para futuros casos idênticos. Surgem, deste
modo, os assentos da Casa da Suplicação como jurisprudência obri-
gatória (*). Trata-se do antecedente histórico dos assentos dos tri-
bunais que estão na cúpula da organização judiciária, maxime do
Supremo Tribunal de Justiça (2).
A Casa da Suplicação era o tribunal superior do'Reino, que
acompanhava a Corte, mas que acabaria por se fixar em Lisboa (3).
Suplicação de 7 de Junho de 1605 (in José Justino de Andrade e Silva, Collecção
Chronologica da Legislação Portugueza (1603-1612), Lisboa, 1854, págs. 130 e seg.).
(') Sobre um confronto possível com as façanhas, ver, supra, pág. 191, nota 1.
Em Decreto de 4 de Fevereiro de 1684, admitiu-se, todavia, a alteração dos
assentos no caso de "injustiça notória" (ver José Justino de Andrade e Silva,
Collecção Chronologica, cit., (1683-1700), pág. 7).
(2) Ver A. Castanheira Neves, O instituto dos "assentos" e a função jurídica
dos supremos tribunais, Coimbra, 1983 (sep. da "Revista de Legislação e de
Jurisprudência"). Quanto ao quadro 'moderno dos assentos, ver uma síntese, infra,
na segunda parte da nota 7 da pág. 357.
(3) Sobre os antigos tribunais superiores, que resultaram de desintegrações
sucessivas do tribunal da Corte (Tribunal da Corte ou Casa da Justiça da Corte,
depois Casa da Suplicação, e diferenciação da Casa do Cível, também, por vezes,
designada Casa do Cível e Crime), ver Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port.,
cit., vol. I, págs. 482 e segs. Dos autores precedentes, destacam-se Afonso
Costa, Lições de Organisação Judiciaria, Coimbra, 1897, págs. 96 e segs., e Alberto
dos Reis, Organização Judicial. Lições feitas ao curso do 4.° ano jurídico de 1908 a 1909,
Coimbra, 1909, págs. 169 e segs., embora com algumas imprecisões. A respeito
da Casa da Suplicação, ver Martim de Albuquerque, O Regimento Quatrocentista
da Casa da Suplicação (ed. de 1982), cit., onde, a um estudo introdutório, se seguem
297
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS
Na mesma cidade funcionava a Casa do Cível, que constituía uma
segunda instância, competente para conhecer dos recursos das cau-
sas cíveis de todo o País, ressalvadas as sentenças proferidas no local
onde se encontrasse a Corte e cinco léguas em redor, cuja apelação
iria ao tribunal da Corte, assim como para conhecer dos recursos
das causas criminais provenientes de Lisboa e seu termo (!).
Ora, com o objectivo de descentralizar os tribunais de recurso
e indo ao encontro de solicitações anteriores, Filipe I, em 1582,
deslocou a Casa do Cível para o Porto, transformando-a na Rela-
ção do Porto (2). A nova Casa da Relação do Porto funcionava
como tribunal de segunda a última instância, quanto às comarcas
do Norte, em matéria crime; e o mesmo se verificava em matéria
cível, excepto se o valor da causa ultrapassasse determinado mon-
tante (alçada), hipótese em que existiria possibilidade de recurso
para a Casa da Suplicação (3).
a reprodução anastática do texto latino, com leitura paleográfica de Eduardo
Borges Nunes, e a tradução portuguesa de Miguel Pinto de Meneses. Nesse
estudo introdutório, são analisados alguns aspectos problemáticos do texto,
designadamente o da sua natureza jurídica de verdadeira lei, de simples
regulamento interno ou até de escrito particular. Quanto ao Regimento da Casa
da Suplicação de 7 de Junho de 1605, pode ser consultado, como se indicou, in
José Justino de Andrade e Silva, Colecção Chronologica (1603-1612), cit., págs. 129
e segs. Ver Paulo Merêa, Bosquejo histórico do recurso de revista, in "Boi. do Min.
da Just.", cit., n.° 7, págs. 43 e segs., e M. J. Almeida Costa, Suplicação (Recurso
de), in "Verbo — Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura", vol. 17, Lisboa, 1975,
pág. 881.
(') Ord. Afon., liv. I, tít. 7, liv. III, tít. 90, e liv. V, tít. 98 (ver Marcello
Caetano, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 484 e segs.).
(2) Lei de 27 de Julho de 1582. Discute -se sobre se Filipe I transferiu a
Casa do Cível de Lisboa para o Porto ou se pôs termo à Casa do Cível de Lisboa
e criou, em seu lugar, a Relação do Porto (ver, por todos, Martim de
Albuquerque, Para a história da legislação e jurisprudência em Portugal, cit., in "Boi. da
Fac. de Dir.", vol. LVIII, tomo II, págs. 627 e seg.).
(3) A alçada correspondia a cem mil réis ou a oitenta mil réis, consoante
se tratasse, respectivamente, de bens móveis ou de bens de raiz. Esses valores
foram triplicados por Lei de 26 de Julho de 1696 e de novo aumentados por
298
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
Matinha-se, assim, alguma subalternidade da Relação do Porto
perante a Casa da Suplicação. De qualquer modo, esse tribunal
ficou com grande autonomia em face das comarcas do Norte, pelo
que os desembargadores da Relação do Porto se arrogaram o
direito de proferir também assentos normativos, embora nenhum
texto legal lhes outorgasse semelhante faculdade. Daí resultaram
naturais confusões e contradições interpretativas (1).
Entretanto, as Relações criadas no Ultramar — a de Goa
(1544), a da Bahia (1609) e a do Rio de Janeiro (1751) — seguiram o
exemplo (2). Todas elas passaram a tirar assentos interpretativos.
Apenas no século XVHI se pôs cobro a este abuso. A chamada Lei da
Boa Razão, de 18 de Agosto de 1769, determinou que só os assentos
da Casa da Suplicação teriam eficácia interpretativa (3).
Alvará de 13 de Maio de 1813. As comarcas de que havia recurso para a Relação
do Porto eram as das províncias de Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes e da
província da Beira, com excepção da comarca de Castelo Branco, por ficar mais
perto da Casa da Suplicação, e dos "aggravos dos feitos eiveis, que sairem dante
o Conservador da Universidade de Coimbra" (ver Braga da Cruz, O direito
subsidiário, cit., nota 110 da pág. 287).
Y1) Quanto às colectâneas de assentos, ver as indicações de J.-M. Scholz,
Legislação e Jurisprudência em Portugal nos Sécs. XVI a XVIII, cit., in "Scientia
Ivridica", tomo XXV, págs. 512 e segs., e Martim de Albuquerque, Para a
história da legislação e jurisprudência em Portugal, cit., in "Boi. da Fac. de Dir.", vol.
LVIII, tomo II, págs. 623 e segs. Encontra-se uma valiosa colecção de estilos,
assentos e outros arestos, in Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico, cit.,
vol. I, págs. 47 e segs., e vol. II, págs. 799 e segs. Também se inclui nessa obra
uma lista de preceitos das Ordenações e de leis extravagantes declarados por
assentos das Casas da Suplicação e do Cível (vol. II, págs. 789 e segs.).
(2) Os regimentos dos antigos tribunais superiores em Portugal e no Brasil
são publicados por Cândido Mendes de Almeida, Auxiliar Jurídico, cit., vol. I,
págs. 1 e segs. Indicam-se na mesma obra os regedores sucessivos da Casa da
Suplicação (vol. II, págs. 775 e segs.).
(3) Lei da Boa Razão, § 8(ver, infra, págs. 357 e segs.).Observe-se que a Rela-
ção do Rio de Janeiro se transformou em Casa da Suplicação para o Brasil,
através de Alvará de 10 de Maio de 1808, adquirindo competência para proferir
assentos interpretativos, no âmbito da sua jurisdição. A Casa da Suplicação do Brasil
299
HISTORIA DO DIREITO PORTUGUÊS
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