jurisconsultos portugueses do século XVI aos meados do sé-
culo XVIII. Costumam sistematizar-se em três categorias básicas: a
dos civilistas, ou seja, dos que se dedicavam aq, estudo do direito
romano, a dos canonistas e a dos cultores do direito pátrio, estes últimos
predominando com o avanço do tempo. Observe-se, todavia, que a
distinção se mostra, por vezes, imperfeita ou, de certo modo, artifi-
cial, pois não faltam juristas que se notabilizaram em mais do que
um desses sectores (2).
(')A respeito do tema, pode consultar-se a larga exposição de NunoJ.
Espinosa Gomes da Silva, Humanismo e Dirdto em Portugal no Século XVI, cit.,
especialmente págs. 81 e segs., e 353 e segs.
(2) Sobre os juristas desta época, ver Diogo Barbosa Machado, Biblioteca
Lusitana, cit., António Barnabé de Elescano, Demétrio Moderno ou o Bibliografo
Jurídico Portuguez, Lisboa, 1781, embora os seus dados nem sempre sejam dignos de
inteiro crédito, Mello Freire, Historiae iuris civilis lusitani. liber singularis, cit., §§
CXIII e segs., CAndido Mendes de Almeida, na sua ed. das Ordenações Filipi-
321
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
b) Civilistas
Acabámos de mencionar alguns destacados jurisconsultos que
se aplicaram ao estudo do direito romano e cuja obra se caracteri-
zou por uma equilibrada posição entre as duas correntes dominan-
tes além-fronteiras(1). Apontaram-se os nomes de Manuel da
Costa, cognominado "doctor subtilis", Aires Pinhel e Heitor
Rodrigues, que foram professores em Coimbra e Salamanca.
Nessa linha de semi-heterodoxia se situam, de facto, os juris-
tas portugueses da época, embora se possam observar certas prefe-
rências para uma ou outra orientação. Assim, nos fins do século xvi
e princípios do século xvn, Pedro Barbosa, que ficou conhecido
como "doctor insignis", Francisco de Caldas Pereira e Castro,
Eduardo Caldeira e João Altamirano. Os dois primeiros afiguram-
-se mais aderentes à metodologia prática dos Comentadores,
enquanto os dois últimos propendiam para os métodos humanistas.
No campo específico do direito comercial e marítimo, sobres-
sai Pedro de Santarém, autor pioneiro de um tratado sistemático
sobre seguros. Adquiriu fama europeia. A primeira edição dessa
obra é de Veneza, com a data de 1552, mas o trabalho encontrava-
-se concluído em 1488. Constitui um enigma o motivo por que
demorou a sua publicação, tanto mais que não deve ter circulado
manuscrito ( ).
nas, cit., liv. I, págs. XLVII e segs., e no Auxiliar Jurídico, cit., vol. II, págs. 603 e
segs., e, mais recentemente, J.-H. Scholz, Legislação e Jurisprudência em Portugal nos
Sécs. XVI a XVIII, cit., in "Scientia Ivridica", tomo XXV, págs. 512 e segs.
(') Essa orientação foi também a de eminentes juristas espanhóis, como
Diego de Covarrubias. Do mesmo modo, em torno da Universidade de Basileia,
Amerbach realizou uma síntese feliz entre o "mos italicus" e o "mos gallicus",
que teve importância duradoura no direito suíço (ver Guido Kisch, Humanismus
undJurisprudenz. Der Kampf zwischen "mos italicus" und "mos gallicus" an der Universi-
tit Basel, Basel, 1955).
(2) O título da edição "princeps" é De assecurationibus et sponsionibus mercato-
rum, embora o texto manuscrito se designe De securitatibus et sponsionibus mercato-
322
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕNICA
c) Canonistas
Também existiram, entre nós, nesta época, canonistas de
grande mérito. Recorde-se que o ensino do direito canónico tinha
uma expressão universitária paralela à do direito romano.
Como figura destacada surge, no século XVI, Martin de Azpil-
cueta(1), conhecido por Doutor Navarro, em consequência de ser
natural dessa região espanhola. Azpilcueta encontra-se ligado à cul-
tura jurídica portuguesa, visto que muito consolidou o seu prestígio
durante a permanência em Coimbra, após se ter aí instalado a
Universidade. Era,.ao tempo, o professor com remuneração mais
elevada.
De entre os canonistas de nacionalidade portuguesa, salien-
tam-se Bartolomeu Filipe, talvez o de maior renome, Fernando
Paes, Pedro Afonso de Vasconcelos e Gonçalo Mendes de Vascon-
celos Cabedo. Todos estes deixaram obra impressa valiosa. No
século XVII, surgem, além de outros, Agostinho Barbosa e Manuel
Temudo da Fonseca.
d) Cultores do direito pátrio
Os jurisconsultos portugueses do ciclo em apreço também se
dedicaram largamente, como era natural, ao direito pátrio. O seu
rum. Ver, por todos, DomenicoMaffei, IIgiuresconsulto portoghese Pedro de Santarém
autore dei primo trattato sulle assicurazioni (1488), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol.
LVIII, tomo I, págs. 703 e segs. Facilita a consulta da obra a sua reedição, em
Lisboa, no ano de 1961, com versões portuguesa, inglesa e francesa, precedidas de
um prefácio de Ruy E. Ulrich e de um breve estudo de Moses B. Amzalak.
Ver, ainda, Santos M. Coronas González, El concepto de seguro en la doctrina
mercantilista de los siglos XVI y XVII, in "Boletín semestral de Derecho privado
especial, histórico y comparado dei Archivo de la Biblioteca Ferran Valls i
Taberner" n.° 1/2 — "Orlandis 70: Estúdios de Derecho Privado y Penal
Romano, Feudal y Burguês", Barcelona, 1988, págs. 243 e segs.
(') É interessante a consulta de MartIn de Azpilcueta, Comentário Resolu-
torio de Câmbios (introducción y texto crítico por Alberto Ullastres/José M.
Pêrez-Prendes/Luciano PereNa), Madrid, 1965 (vol. IV do "Corpus Hispano-
rum de Pace").
323
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
estudo começou a predominar desde o século XVII, numa clara
antecipação ao ensino universitário, que só o acolheria com as
reformas pombalinas.
Podem classificar-se essas obras em três categorias diversas,
aliás, inspiradas na ciência do direito comum: a dos comentários às
Ordenações e a leis extravagantes; a das que se ocupavam da expo-
sição e resolução de casos concretos, reais ou figurados; e a das que
versavam a prática forense e mesmo notarial. Em consonância, os
autores designam-se, respectivamente, comentadores, casuistas e praxis-
tas. O último qualificativo, entretanto, "aparece utilizado, algumas
vezes, num sentido amplo, como sinónimo de reinícolas, ou seja,
abrangendo todos os nossos antigos jurisconsultos, sem atender à
natureza da sua produção científica.
O tríptico referido concentra os principais géneros da litera-
tura jurídica dedicada ao direito nacional. Todavia, não é exaus-
tivo. Também se produziram, entre nós, estudos monográficos res-
peitantes a temas de direito português, sob a forma de tratados
sistemáticos ( ). Caberá aludir, correspondentemente, a tratadistas.
Não devem, por último, esquecer-se os repertórios. Consistiam em
obras que, a respeito dos vários temas, dispostos por ordem alfabé-
tica, indicavam as normas, os arestos e as referências doutrinais
pertinentes.
Quanto aos comentadores, que se dedicaram à interpretação das
Ordenações e de outras leis pátrias, importa assinalar posto desta-
cado a Manuel Barbosa, advogado da Relação do Porto. Foi o
primeiro anotador das Ordenações que levou essa tarefa a cabo ( ).
O canonista Agostinho Barbosa, seu filho, prosseguiu a obra. Pelos
(') Sobre a origem do tratado ("tractatus"), no âmbito do direito comum,
ver, supra, págs. 217 e seg.
(2) As suas Remissiones Doctorum ad contractus, ultimas voluntates et delida spec-
tantes in libris IV et V Constitutionum Regiarum Lusitaniae (Lisboa, 1618) e Remissiones
Doctorum Officiis publicis, jurisdictione et ordine judiciário in earumdem lib. I, II et III, etc.
(Lisboa, 1620).
324
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
fins do século xvil, surge o extenso e muito utilizado comentário às
Ordenações da autoria de Manuel Álvares Pegas, em catorze
volumes (*). Este trabalho, que ficou incompleto, teve como conti-
nuadores Manuel Gonçalves da Silva (2) e Amaro Luís de Lima ( ).
A casuística constituiu um dos ramos mais cultivados da litera-
tura jurídica. As obras do género recebiam, em regra, os títulos de
"decisões", "consultas" e "alegações", nelas se coligindo casos con-
cretos, extraídos de arestos dos tribunais superiores, de consultas a
advogados famosos ou apenas imaginados pelos seus autores, com
indicação conclusiva das soluções consideradas preferíveis. Lembram-
-se, dos casuístas de maior renome, António da Gama( ), Álvaro
Vaz, geralmente conhecido por Valasco (5), Jorge de Cabedo, um
dos compiladores das Ordenações Filipinas (6), Gabriel Pereira de
Castro(7), Belchior Febo(8) e Miguel de Reinoso( ).
Também importante foi o grupo dos praxistas, que se ocupa-
vam da prática — a chamada "praxe" — forense e notarial(10).
(') Comentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae (Lisboa, 1669/1703 e 1759).
(2) Commentaria ad Ordinationes (Lisboa, 1731/1740).
(3) Commentaria ad Ordinationem regni Portugaliae (Lisboa, 1761).
(4) Decisiones Supremi Senatus Regni Lusitaniae, etc, (Lisboa, 1578).
(5) Consultationum et Decisionum, ac rerum judicatarum (Lisboa, 1588).
(6) Praticarum observationum sive decisionum Supremi Senatus Regni Lusitaniae
(Lisboa, 1602). Cfr., supra, pág. 285.
( ) Decisiones supremi eminentissimique Senatus Portugaliae (Lisboa 1603).
(8) Decisiones Senatus Regni Lusitaniae (Lisboa 1616 e 1625).
» (9) Observationes praticae in quibus multa, quae in controversiam in forensibus Judiais
adducantur, felici stylo pertractantur (Lisboa, 1625).
(l )Embora tenha índole específica, recorda-se o interessante livro de
Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus Advocatus (Lisboa, 1743), relativo a essa pro-
fissão forense. Existe uma tradução portuguesa com o título O Perfeito Advogado
(Lisboa, 1969), da autoria de Miguel Pinto de Meneses (sep. do "Boi. do Min.
da Just.", cit., n.os 180, 181 e 183/186). A obra consta de duas partes: na primeira,
a única que está traduzida, desenvolvem-se considerações de vária natureza sobre
a profissão forense, terminando com um sumário dos preceitos legais que ao
tempo a disciplinavam (capítulo LIV); na segunda parte, encontram-se diversas
decisões e consultas consideradas úteis para a formação do advogado.
325
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
Salientam-se Gregório Martins Caminha ('), Manuel Mendes de
Castro, cuja obra foi talvez a melhor e a mais difundida do
género (2), e Manuel Lopes Ferreira ( ).
Por sua vez, registam-se os juristas que aplicaram o método
monográfico-sistemático ao estudo de institutos do direito nacional.
Eram os tratadistas. Ocorre, de novo, o nome de Valasco, que escre-
veu tratados relativos à enfiteuse e às partilhas (4). Exemplifica-se,
ainda, com Francisco Pinheiro (5), Gabriel Pereira de Castro, que se
ocupou das relações entre a Igreja e o Estado (6), e Domingos
Antunes Portugal, cujo livro valioso sobre as doações régias
reflecte as doutrinas do direito público da época (7).
Resta mencionar, finalmente, os autores de repertórios. Tais obras
seriam, de certo modo, consideradas menores. Tiveram, contudo,
uma enorme importância prática, não só em virtude do sistema
deficiente das próprias Ordenações e da numerosa legislação avulsa
que as envolvia, mas também por facilitarem o conhecimento da
( ) Tractado da forma dos libellos. E da forma das allegações judiciaes. E da forma de
proceder no juizo secular e ecclesiastico. E da forma dos contractos: com sua glosa e cotas de
direito (Coimbra, 1549). Obra continuada por JoAo Martins da Costa.
(2) Pratica Lusitana omnibus utroque Foro versantibus, utilíssima et necessária (Lis-
boa, 1619).
(3) Pratica criminal expendida na forma da praxe observada neste nosso Reino, etc.
(Lisboa, 1730).
(4) Quaestionum Iuris Emphyteutici (Lisboa, 1591) e Praxis Partitionum et Colla-
tionum inter haeredes (Coimbra, 1605).
(5) De Censu et Emphyteusi (Coimbra, 1655).
(6) Tractatus de manu regia (Lisboa, 1622/1625).
(7) Tractatus de Donationibus Regiis Iurium et Bonorum Regiae Coronae (Lisboa,
1673). A respeito de Domingos Antunes Portugal e da sua intervenção no capí-
tulo do direito internacional público, designadamete propósito do problema da
liberdade do mar, veja-se Vicente L. Simó Santonja, Escuela Portuguesa dei Dere-
cho Internacional. Siglo XVII: Domingos Antunes Portugal, Valência, 1973, págs. 87 e
segs.
326
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA
jurisprudência e da doutrina, que assumiam um relevo especial no
quadro da época (J). Indicam-se, entre muitos outros, os repertórios
de Duarte Nunes do Lião (2) e de Manuel Mendes de Castro (3).
57. O ensino do direito
Apreciou-se, em traços largos, a produção científica dos juris-
consultos nacionais, desde q século XVI até aos meados do século
XVIII. O panorama da cultura jurídica portuguesa da época com-
porta, ainda, uma análise do ensino do direito na Universidade.
Também se fará apenas uma breve resenha ( ).
a) Antes de D. João III
Verdadeiramente, o ensino jurídico, no nosso país, recua à
fundação do Estudo Geral dionisiano. Já se observou que a bula de
confirmação pontifícia, de 9 de Agosto de 1290, logo alude à obten-
ção de graus académicos em direito canónico e direito romano (5).
Estes incluem-se, portanto, entre os domínios do ensino universitá-
rio português com mais longa tradição.
(*) Como sublinha, por ex., AntónioManuelHespanha, História das Insti-
tuições, cit., págs. 522 e seg.
( ) Repertório dos cinquo livros das Ordenações com addições das leis extravagantes
(Lisboa, 1560), reproduzido em fac-símile juntamente com a Colecção das Leis
Extravagantes (Lisboa, 1987) (cfr., supra, págs. 281, nota 3, e 284, nota 1).
( ) Repertório das Ordenações do Reino de Portugal novamente recopiladas, com as
remissões dos Doutores todos do Reino, que as declararão, e concórdia das Leis de Partida de
Castella (Coimbra, 1699).
(4) Ver M. J. Almeida Costa, Leis, Cânones, Direito (Faculdades de), cit., in
"Dic. de Hist. de Port.", vol. II, págs. 677 e segs., onde se encontram indicações
bibliográficas. Sobre o ensino universitário em geral, remete-se, de novo, para o
livro de MArio BrandAo/M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra. Esboço
da sua História, Coimbra, 1937.
(5) Cfr., supra, págs. 228 e segs.
327
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
Todavia, a respeito do período que decorre até D. João III,
não existem conhecimentos pormenorizados. D. Dinis determinou
que houvesse dois lentes de Cânones (um doutor "in Decretis" e
um mestre "in Decretalibus") e um professor de Leis. Mas parece
que só funcionou uma cátedra em cada um dos referidos ramos
jurídicos. Isto porque, depois, apenas voltou a mencionar-se um
único mestre de Cânones. Aliás, a Universidade encontrava-se, a
princípio, composta de simples "cadeiras" e não de autênticas
"Faculdades" no sentido moderno.
A importância relativa que, ao tempo, o ensino das Leis e dos
Cânones possuía no âmbito universitário poderá entrever-se através
das remunerações atribuídas aos respectivos professores, muito mais
elevadas do que as dos restantes. Um tal predomínio do ensino
jurídico, decerto por ser também o mais frequentado, revela-se,
ainda, quando se encara o problema do lado dos estudantes, a pro-
pósito da eleição dos reitores. Entre nós, até aos fins do século xv,
manteve-se o sistema do duplo reitorado, como se verificava em
todas as escolas de tipo bolonhês: os reitores eram dois estudantes
eleitos anualmente pelos seus condiscípulos. Ora, um deles teria de
sair dos escolares de Leis e o outro dos de Cânones.
Tanto D. João II como D. Manuel I procuraram melhorar o
nível dos nossos estudos superiores, chamando às cátedras da Uni-
versidade alguns professores estrangeiros de nomeada e proporcio-
nando subsídios pecuniários aos estudantes que pretendessem
deslocar-se aos centros culturais de além-fronteiras. D. Manuel, nos
começos de quinhentos, concedeu estatutos à Universidade, que
representam fundamentalmente uma simples codificação dos pre-
ceitos em vigor nos fins do século XV. Esses estatutos testemunham
a existência de três cátedras remuneradas de Cânones e outras tan-
tas de Leis. Mas o mesmo monarca viria a criar uma nova cátedra
de Cânones (a de "Sexto").
O exíguo corpo docente da Universidade, ao longo deste pri-
meiro ciclo da sua existência, apenas causará estranheza a quem,
impressionado pelas realidades modernas, perca de vista os reduzi-
dos limites do ensino medieval, não só quanto ao âmbito das maté-
328
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
rias professadas, mas também a respeito do número de escolares.
Contudo, devem ter existido, ao lado daqueles professores ordiná-
rios, outros professores que ensinariam gratuitamente, à procura de
fama e na expectativa de mais tarde concorrerem com êxito às
cátedras vagas. Acresce, ainda, a colaboração de numerosos escola-
res que, para alcançarem graus académicos, tinham de "ler" publi-
camente durante determinados anos. Desempenharam, sem dúvida,
um papel importante os "repetidores", auxiliares dos mestres, com
funções análogas às dos actuais assistentes.
Em texto de 1431 aparecem já expressos os graus universitá-
rios de bacharel, de licenciado e de doutor (*). O primeiro era con-
ferido aos que, depois de concluída a instrução preparatória da
Gramática e da Lógica, cursavam as aulas de uma das Faculdades
durante três anos, cada um de oito meses lectivos, e seguidamente
defendiam umas "conclusões" em acto público. Os bacharéis que
desejassem a licenciatura — o grau académico mais difícil de
obter — estavam obrigados a uma frequência complementar de
quatro anos, antes de se submeterem aos respectivos exames. A
colação do grau de doutor, um acto essencialmente solene onde as
provas assumiam importância reduzida, revestia-se de grande
aparato.
Os textos e os métodos adoptados no ensino foram, sem
dúvida, os mesmos que, sob inspiração italiana, por toda a parte,
serviram de base aos estudos romanísticos e canonísticos medievais.
Não admirará, porém, que a escola nacional estivesse ainda longe
de poder rivalizar com o prestígio do ensino jurídico de certas Uni-
versidades estrangeiras, maxitne transalpinas, que continuaram,
durante os séculos XIV e XV, a atrair numerosos estudantes
portugueses.
(') No referido regulamento de 1431 apenas se tratou do regime de
exames e dos graus. Ver, sobre o seu conteúdo, Mário BrandAo/M. Lopes de
Almeida, A Universidade de Coimbra, cit., parte I, págs. 132 e segs.
329
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
b) Instalação da Universidade em Coimbra
A sede da Universidade, como não se ignora, oscilou entre
Lisboa e Coimbra, desde a sua criação até D. João III ( ). Foi este
rei que a fixou definitivamente em Coimbra, no ano de 1537. A
razão decisiva terá sido a de promover uma reforma profunda do
ensino universitário, na sequência dos esforços empreendidos pelos
dois monarcas que o precederam e a que já se aludiu.
Impunha-se, de facto, organizar um ensino digno dos tempos
renascentistas. Entrara-se abertamente no caminho da europeiza-
ção. E a atitude ge^ral de D. João III não diferiu a respeito das Facul-
dades de Leis e de Cânones. Muitos professores viram-se exonera-
dos (2), passando para Coimbra apenas os que mereciam crédito
científico. Gonçalo Vaz Pinto, a quem os seus contemporâneos dis-
pensavam grande consideração, foi o único lente de Leis distinguido
com esse privilégio.
Em contrapartida, depositaram-se fortes esperanças na acção
dos mestres trazidos do estrangeiro. Recordemos o famoso cano-
nista Martin de Azpilcueta(3), arrancado à Universidade de Sala-
manca a peso de ouro e graças à intervenção de Carlos V, e os
civilistas Fábio Arcas de Narni e Ascânio Escoto(4). Este último
fora recomendado pelo célebre humanista milanês Andrea
Alciato(5), que, embora sem êxito, também se tentou atrair ao
nosso país.
(') Cfr., supra, pág. 230, nota 5.
( ) Determinou-se, no entanto, que esses professores recebessem tenças
proporcionais aos ordenados (cfr. Mário Brandão/M. Lopes de Almeida, A
Universidade de Coimbra, cit., parte I, nota 4 da pág. 176).
(3) Cfr., supra, pág. 323.
( ) Quanto ao valor relativo destes juristas italianos e ao juízo sobre eles
emitido por Martinho de Azpilcueta, cuja modéstia não era um dos seus atribu-
tos, ver Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, Humanismo e Direito, cit., págs. 236 e
segs.
(5) Cfr., supra, págs. 317 e seg.
330
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓN1CA
Por outro lado, corifiaram-se algumas cátedras a portugueses
que tinham estudado no estrangeiro e que aí se notabilizaram.
Assim sucedeu com Manuel da Costa, Aires Pinhel e Heitor Rodri-
gues ( ), diplomados em Salamanca, onde, aliás, viriam mais tarde a
regressar, desfalcando muitíssimo o ensino conimbricense. Ainda
neste grupo, não deve esquecer-se o canonista Bartolomeu
Filipe (2), espírito bem inclinado para os novos rumos que, ao
tempo, orientavam a ciência jurídica.
c) Organização dos estudos jurídicos segundo os "Estatutos Velhos"
J
Até bastante tarde, a legislação universitária não esteve siste-
matizada numa única carta orgânica. Parece que os Estatutos
Manuelinos representaram o primeiro diploma completo de regu-
lamentos sobre os vários aspectos da vida interna da Universidade.
D. João III (1544) introduziu-lhes algumas alterações, às quais suce-
deram outras reformas dos reinados de D. Sebastião (1559, 1565 e
1567) (3) e de Filipe I (1592 e 1598), posto que todas estas modifica-
ções quase nunca tenham atingido a estrutura do ensino e a corres-
pondente actividade científica. Finalmente, os Estatutos Filipinos de
1598, conhecidos como Sétimos Estudos, depois de revistos e con-
firmados por Filipe II (1612) e de novo confirmados por D. João IV
(1653) (4), mantiveram-se em vigor até à reforma pombalina. Rece-
bem o nome de "Estatutos Velhos", em contraposição aos chamados
"Estatutos Novos" de 1772.
(') Cfr., supra, págs. 321 e seg.
(2) Cfr., supra, págs. 321 e 323.
(3) A respeito dos Estatutos de 1559, ver Serafim Leite, Estatutos da Univer-
sidade de Coimbra (1559). Com introdução e notas históricas e críticas, Coimbra, 1963.
(4) Ver Estatutos da Universidade de Coimbra (1653), Coimbra, 1987 (ed. fac-
-similada, com uma nota introdutória de Aníbal Pinto de Castro, págs. VII e
segs.). Existe na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra um manuscrito
da anterior versão filipina dos Estatutos da Universidade (Man. 1002).
4—
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
É nesses Estatutos Velhos que nos basearemos para tomar
conhecimento mais pormenorizado da maneira como se fazia o
ensino do direito na Universidade. Existiam, em suma, duas Facul-
dades jurídicas: a de Cânones e a de Leis, onde se explicavam, res-
pectivamente, o Corpus Iuris Canonici e o Corpus Iuris Civilis(l).
A Faculdade de Cânones compreendia sete cadeiras: cinco
cátedras ou cadeiras maiores e duas catedrilhas ou cadeiras meno-
res ( ). Entre as primeiras, contavam-se duas cadeiras de Decretais
(a de prima e a de véspera), uma de Decreto (a de terça) e uma de
Sexto (a de noa)(3). Sem designação canónica, surgiam, ainda, uma
cátedra de Clementinas, que se lia depois do Decreto, e duas cate-
drilhas de Decretais, uma delas professada de manhã, à hora a que
(x) Sobre o calendário, as lições, os programas e os métodos da Universi-
dade de Bolonha, ver Manlio Bellomo, Saggio sull'università, cit., págs. 200 e segs.
(2) Estatutos, liv. III, tít. 5, §§ 7/13 (na ed. fac-similada, cit., págs. 142 e
seg.).
( ) Essas designações das cadeiras derivaram das horas canónicas do ofício
divino em que se ministravam. As aulas, ressalvada qualquer alteração devida às
cerimónias quaresmais ou a outro acto litúrgico, decorriam com regularidade.
No entanto, via de regra, as lições tomavam as horas canónicas apenas como
pontos de referência, sem uma sobreposição exacta. Assim: a de prima era ao
romper da manhã, seguindo-se-lhe a de terça ("tertia"); da parte da tarde,
retomavam-se as lições com a de noa ("nona") e encerravam-se com a de véspera
ou, ainda, com uma aula pós-vespertina, pelo cair do dia. Os próprios Estatutos
(liv. III, tít. 11, § 1—na ed. fac-similada, cit., págs. 164 e seg.) determinavam
que as lições de prima, desde a abertura do ano lectivo até à véspera do Domingo
de Ramos, começassem às "sete horas e mea", e, da Páscoa em diante, às "seis
horas e mea", bem como que a docência da tarde, iniciada com a cadeira de noa,
começasse, até ao dia 11 de Março, às "duas horas depois do meo dia", e, a
partir dessa data, às "trez horas". Tais indicações, ligadas à referida sequência
das cadeiras e à duração das aulas (ver, infra, pág. 334), permitem deduzir o horá-
rio de todas elas. Observe-se, a título de curiosidade, que a lição de prima de
Medicina se iniciava, tanto no Inverno como no Verão, uma hora após a da
correspondente cadeira das restantes Faculdades, "per rezão da practica do Hos-
pital, que ha de auer neste tempo" (Estatutos, liv. III, tít. 11, § 1—na ed. fac-
-similada, cit., pág. 165).
332
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÓNICA
se liam as Clementinas, e a outra depois da lição de véspera. Res-
salta, deste elenco, a relevância atribuída às Decretais quanto ao
ensino dos Cânones (!).
Na Faculdade de Leis, por sua vez, as oito cadeiras nela inte-
gradas (2) correspondiam às diferentes partes em que os Glosadores
dividiram as compilações justinianeias(3). A cátedra de prima era
destinada ao Digesto Esforçado, a de véspera ao Digesto Novo, a de
terça ao Digesto Velho e a de noa aos Três Livros do Código. Havia,
além disso, duas catedrilhas de Código, uma que se lia depois do
Digesto Velho e outra após a lição de Véspera, e mais duas de
Instituições ("Instituía"), uma à hora de terça e outra antes da aula
de véspera.
O esquema do ensino, de raiz escolástica, era fundamental-
mente o mesmo nas duas Faculdades: o professor lia ( ) os passos do
Corpus Iuris Canonici ou do Corpus Iuris Civilis e, em seguida,
comentava-os, expondo as opiniões e os argumentos considerados fal-
sos e os considerados verdadeiros, refutando, depois, aquelas razões
contrárias, sempre estabelecendo confronto com outros textos e
concluindo, finalmente, pela interpretação tida como mais razoá-
vel. Vivia-se sob o império absoluto dos autores consagrados, que
definiam a opinião comum.
A este respeito, verificou-se, no período imediato à instalação
da Universidade em Coimbra, uma certa abertura às ideias do
humanismo jurídico, que eram adversas ao predomínio da autori-
dade. As instruções régias relativas ao modo como deveria
ministrar-se o ensino apontavam claramente para uma maior liber-
(') Sobre as colecções canónicas que compunham o Corpus Iuris Canonici,
ver, supra, págs. 244 e segs.
(2) Estatutos, liv. III, tít. 5, §§ 14/19 (na ed. fac-similada, cit., pág. 143).
(3) Cfr., supra, págs. 212 e seg.
(4) Daí o nome tradicional de "lente" (isto é, o que lê) dado ao professor
universitário. Entendendo-se, todavia, a "leitura" dos textos romanísticos ou
canonísticos no sentido amplo que abrange a sua explicação.
333
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
dade interpretativa do jurista, pois combatiam as tradicionais longas
citações de argumentos e de autores. Simultaneamente, procurava-
-se impedir uma análise excessiva e dispersiva dos textos, que pre-
judicaria a extensão das matérias versadas durante o tempo lectivo.
Porém, o surto foi muito fugaz. Não sobreviveu ao desapare-
cimento de uns tantos mestres mais progressivos e à nova decadên-
cia dos nossos estudos universitários, pouco depois de dobrada a
primeira metade do século xvi: então, os métodos bartolistas reto-
mam a sua mal interrompida carreira.
Utilizava-se nas aulas, obrigatoriamente, a língua latina (*). O
ano lectivo decorria entre o princípio de Outubro e o termo de
Julho (2). As aulas eram diárias, com o tempo de uma hora, excepto
as lições de prima, que tinham a duração de hora e meia(3).
Ao fim de seis anos, os estudantes recebiam o grau de bacha-
rel (bacharéis correntes) (4), mas a formatura apenas se obtinha
depois de oito anos de curso (bacharéis formados) (5). Sem o acto
de formatura, como determinavam os Estatutos, "nenhum Letrado
pode uzar de suas letras"( ).
(l) Estatutos, liv. III, tít. 11, § 10 (na ed. fac-similada, cit., pág. 166), onde
se determina: "Todos os Lentes lerão em Latim suas lições, sob pena de cem reis
por cada vez".
(2) Estatutos, liv. III, tít. 11, pr. (na ed. fac-similada, cit., pág. 164). Aí se
preceitua: "Os Lentes de todas as faculdades, começarão a ler o segundo dia de
Outubro, porque no primeiro se ha de fazer o Principio: & sendo Domingo, se
fará no seguinte: & continuarão suas lições até o fim do mez de Julho: & somente
guardarão as festas da Igreja, ou constituições do Bispado, & as mais que no
titulo dos Bedéis são declaradas".
(3) Estatutos, liv. III, tít. 11, § 1 (na ed. fac-similada, cit., pág. 164).
(4) Estatutos, liv. III, tít. 44, pr. (na ed. fac-similada, cit., pág. 213).
(5) Estatutos, liv. III, tít. 44, § 9 (na ed. fac-similada, cit., págs. 215 e seg.).
(6) Estatutos, liv. III, tít. 44, § 8 (na ed. fac-similada, cit., pág. 215).
334
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANÕN1CA
58. A segunda Escolástica. Seus contributos jurídicos e políticos
Considera-se, por último, a influência da neo-Escolástica ou,
como parece preferível qualificar essa corrente, da segunda Escolás-
tica, no âmbito do direito e do Estado. É, ainda, um tema que se
relaciona com o pensamento jurídico da época.
A especulação filosófica sobre o direito e o Estado apenas se
tornou disciplina autónoma, entre nós, pelos fins do século xvm ( ).
Tradicionalmente, tinha lugar em conjunto com a filosofia geral, a
teologia e, inclusive, o direito canónico. Tanto no nosso país como
em Espanha, eram os teólogos e os canonistas que, via de regra, se
dedicavam a tais problemas. Só raro ultrapassaram esses limites.
O ciclo que decorre do Renascimento ao Iluminismo
apresenta-se como uma típica fase de transição em matéria de filo-
sofia do direito e do Estado. Nele se verifica o progresso das ideias
hu
manistas, das quais as últimas ilações viriam a ser tiradas pelo
pensamento setecentista. Assim sucedeu com o jusracionalismo da
chamada Escola do Direito Natural, que predominou, essencial-
mente, na Holanda, Inglaterra e Alemanha(2).
Mas, por outro lado, aquém-Pirenéus, a segunda Escolástica
teve uma influência marcante na cultura dos séculos xvi e xvil.
Correspondeu à necessidade de repensar a compreensão cristã do
homem e da convivência humana — portanto, envolvendo o direito
e o Estado — em face da conjuntura do tempo, que patenteava
candentes aspectos políticos, sociais e económicos, ao lado das
ideias humanistas e da reforma religiosa. Ora, a especulação
teológico-jurídica da segunda Escolástica conseguiu uma abertura
(') Ver L. Cabral de Moncada, Subsídios para uma História da Filosofia do
Direito em Portugal (Í772-Í9ÍÍ), Coimbra, 1938, págs. 1 e seg. (sep. do "Boi. da
Fac. de Dir.", cit., vols. XIV e XV).
(2) Podem consultar-se as considerações gerais de L. Cabral de Mon-
cada, Filosofia do Direito e do Estado, cit., vol. I, págs. 25 e segs. Sobre a referida
escola jusracionalista, ver, infra, págs. 345 e segs.
335
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
ampla aos novos problemas e soluções, dentro de uma coerência
firme aos postulados tomistas essenciais.
Durante o período considerado, os estudos de filosofia jurídica
e política atingiram, de facto, um incremento notável na Península.
Os teólogos espanhóis construíram uma obra de grande significado.
Daí a corrente que se denomina Escola Espanhola do Direito Natu-
ral. Também participaram nesse movimento vários pensadores por-
tugueses de vulto e, de qualquer modo, autores e ideias circularam
pelos dois países. Não parece excessivo, portanto, falar-se numa
Escola Peninsular de Direito Natural (]), que teria repercussões na
Europa transpirenaica.
Esta corrente caracterizou-se, antes de tudo, pela sua posição
jusnaruralista ( ). Reafirmaram-se o direito e o Estado metafísica e
ontologicamente alicerçados numa concepção teocêntrica. E, a par-
tir da existência de tal ordem jurídica superior, os teólogos-juristas
aferem o direito positivo.
Trouxeram contributos muito relevantes para a edificação ou
o desenvolvimento de diversos sectores, desde a teoria do Estado e
a ciência jus-internacionalista até à atenção dispensada ao direito
penal (3) e à elaboração de categorias dogmáticas modernas do
(*) Não se afigura que algumas especificidades justifiquem uma autonomia
do pensamento português do século XVII em relação ao dos autores do país
vizinho. Sugere essa hipótese Vicente Simó Santonja, Escuela Portuguesa dei Dere-
cho Internacional, cit., pág. 115.
(2) Ver Hans Thieme, El significado de los grandes juristas y teólogos espaíhles dei
siglo XVI para el desenvolvimiento dei Derecho natural, in "Revista de Derecho Pri-
vado", cit., tomo XXXVIII, págs. 597 e segs.
(3) Por exemplo, a respeito da doutrina sobre o homicídio, a lesão corporal, a
pena de morte, o direito de punir. É sabido que as questões penais atraíram, de
modo particular, os teólogos moralistas, partindo do homem e da sua conduta,
antes que, como a ciência mais tardia, do delito e do delinquente, privilegiando
aquilo que na terminologia moderna se designa de "desvalor da acção" em
detrimento do "desvalor do resultado" (cfr. Rafael Gibert, Ciência Jurídica Espa-
nola, Granada, 1983, pág. 12).
336
PERÍODO DO DIREITO PORTUGUÊS DE INSPIRAÇÃO ROMANO-CANONICA
direito privado ('). No plano da ética económica, discutiram pro-
blemas com os da usura, da troca, do preço justo ( ).
Merece destaque o impulso dado para a criação do direito
internacional público moderno. Os descobrimentos suscitaram uma
multiplicidade de questões actuais, mormente a da liberdade dos
mares, a da legitimidade da ocupação dos territórios descobertos ou
conquistados e a da condição, jurídica dos respectivos habitantes.
Problemas esses que não encontravam resposta satisfatória nas con-
cepções anteriores ( ) e que levaram à criação das bases teóricas do
direito das gentes.
Os nomes mais representativos do pensamento jusnaturalista e
jus-internacionalista na Península foram espanhóis ( ). Recordem-se,
entre outros: Francisco de Vitoria (f- 1486/1546), doutorado em
Paris e professor de Salamanca, que, pela sua obra vasta e precur-
sora sobre aspectos relevantes a respeito da guerra e da paz, se
(') Ver as contribuições fundamentais que resultaram do encontro de
estudo realizado em Firenze, de 16 a 19 de Outubro de 1972, recolhidas em actas
por Paolo Grossi sob o título "La Seconda Scolastica nella formazione dei
diritto privato moderno", Milano, 1973. A contrastar com a generalidade das
análises aí incluídas é o juízo de Jesus Lalinde Abadia, Anotaciones historicistas ai
Jusprivatismo de la Segunda Escolástica, págs. 303 e segs.
(2) Consultar Wilhelm Weber, Wirtschaftsethik am Vorabend des Liberalismus,
Munster, 1959, e Geld und Zins in der spanischen Spàtscholastik, Miinster, 1962. Ver,
também, Alicia Fiestas Loza , La doctrina de Domingo de Soto sobre el censo consigna-
tivo, in "An. de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIV, págs. 639 e segs.
(3) Sobre o modo como tais questões eram até então encaradas, ver a
síntese de Marcello Caetano, Hist. do Dir. Port., cit., vol. I, págs. 520 e segs.
Podem cônsultar-se estudos importantes de Giulio Vismara, Scritti di Storia Giuri-
dica, cit., vol. 7 — Comunità e diritto intemazionale, Milano, 1989.
(4) Em torno da ideia de que a segunda Escolástica desenvolveu uma dou-
trina própria a respeito da paz, assente num postulado cristão da convivência
humana, promoveu-se a publicação de obras relevantes de autores desta escola,
formando o já cit. "Corpus Hispanorum de Pace". São edições em latim e caste-
lhano, sempre que o texto original se encontre redigido na primeira dessas lín-
guas. Constitui o vol. I da colecção a obra de Fray Luís de Lêon, De legibus o
Tratado de las Leyes (1571), Madrid, 1963.
337
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
considera o fundador do direito internacional moderno f1);
Domingo de Soto (1496/1560), particularmente vocacionado para as
questões penais encaradas do ângulo da teologia moral (2); Luis de
Molina (1535/1600), que foi professor em Évora e escreveu um
tratado que representa uma síntese do direito e da moral ( ); e
Francisco Suárez (1548/1617), também ligado ao nosso meio pelo
doutoramento em teologia na Universidade de Évora e o posterior
ensino conimbricense, que se considera "o mais alto expoente do
pensamento filosófico, filosófico-político e jurídico, do lado cató-
lico, no final do século xvi" (4).
(!) Francisco de Vitoria, inclusive, apreciou com grande independência os
títulos da dominação espanhola nas índias. Consultar C. Barcia Trelles, Fran-
cisco de Vitoria, fundador dei Derecho internacional moderno, Valladolid, 1928. Entre os
discípulos de Vitoria, contou-se Martin de Azpilcueta (1493/1586), que transitou,
como sabemos, da Universidade de Salamanca para a de Coimbra (cfr., supra,
págs. 323 e 330). Podem ver-se no "Corp. Hisp. de Pace", cit., as obras de
Francisco de Vitoria, Relectio de Indis, Madrid, 1967 (vol. V), e Relectio de lure Belli
o Paz Dinâmica, Madrid, 1981 (vol. VI).
(2) Ver, supra, págs. 336, nota 3, e 337, nota 2.
(J) De iustitia et iure, tomi sex (1593/1600), reed., Madrid, 1941/1942 (trad.,
estudo preliminar e notas de M. Fraga Iribarne), e La teoria dei justo precio,
Madrid, 1981 (ed. preparada por F. Gómez Camacho).
(4) L. Cabral de Moncada, Fil. do Dir. e do Est., cit., vol. I, pág. 128. Foi
durante a sua estada em Coimbra que Suárez publicou, em 1612, o famoso Tracta-
tus de legibus ac Deo Legislatore, incluído no "Corp. Hisp. de Pace", cit., Madrid,
1971/1981 (vols. XI/XVII, XXI e XXII). Na mesma colecção, ver de Francisco
SuArez, Defensio Fidei III—Principatus politicus o la soberania popular, Madrid, 1965
(vol. II), e De iuramento fidelitatis, Madrid, 1978 (vol. XIX) e 1979 (vol. XVIII). A
respeito de Suárez, além dos estudos e notas preliminares constantes das reedi-
ções indicadas, consultar, entre nós, Paulo Merêa, Suárez, jurista. O problema da
origem do poder civil, in "Rev. da Univ. de Coimb.", cit., vol. VI, págs. 70 e segs.,
Suárez, Grócio, Hobbes, Coimbra, 1941, e Escolástica e Jusnaturalismo: O problema da
origem do poder civil em Suárez e Pufendorf, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XIX,
págs. 289 e segs., e L. Cabral de Moncada, O vivo e o morto em Suárez jurista, in
"Est. Fil. e Hist.", cit., vol. II, págs. 52 e segs. Ver, por último, Mário Reis
Marques, A crise do direito. A crise da lei. Um regresso a Suárez?, in "O Instituto",
vols. CXL/CXLI, Coimbra, 1980/1981, págs. 165 e segs.
338
período do direito português de inspiração romano-canónica
Como observámos, esta escola encontrou os seus maiores
expoentes em Espanha. Mas teve, sem dúvida, pensadores valiosos
no nosso país. Quanto às doutrinas políticas, importa salientar D.
Jerónimo Osório. A obra deste bispo de Silves, embora não consti-
tua um verdadeiro tratado de direito público ou uma construção
política ao nível das que redigiram os grandes teólogos espanhóis do
tempo, revela a formação humanista sólida do autor e desenvolve-
-se em torno da ideia de justiça, decorrente da ordem racional ( ).
Acrescenta-se João Salgado de Araújo, cujos escritos demonstram
larga erudição, posto que reduzida força criativa no estudo da ques-
tão da legitimidade da soberania (2). Ainda será de referir António
de Parada (3).
Pelo que respeita ao direito internacional público, lembramos
que a grande polémica da época se centrava na querela sobre o
exclusivo da navegação e do comércio dos mares e dos territórios
descobertos. À doutrina da liberdade de navegação ("maré libe-
ram"), que encontrou o seu grande defensor em Hugo Grócio(4),
opunha-se^a do monopólio dos países que abriram essas novas rotas
(') Ver F. Elías de Tejada, Las doctrinas políticas de Jerónimo Osório, in "An.
de Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo XVI, págs. 341 e segs., e a aguda recensão de
Paulo Merêa, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. XXIII, págs. 151 e segs.
( ) Cfr. Paulo Merêa, A ideia da origem popular do poder nos escritores portugue-
ses anteriores à Restauração, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., págs. 229 e segs., espe-
cialmente págs. 243 e segs.
(3) Ver o seu livro Arte de Reynar, Bucellas, 1643.
( ) O livro de Hugo Grócio, Maré liberum, sive de iure quod Batavis competit
ad Indicana commercia, saiu pela primeira vez anónimo, em 1609. (Existe uma tra-
dução castelhana desta obra, acompanhada de um estudo preliminar de Garcia
Arías, Madrid, 1956). Observe-se que o princípio da liberdade dos mares tinha já
sido defendido, em Espanha, por Francisco de Vitoria e Fernando Vazques de
Menchaca (ver C: Barcia Trelles, Francisco de Vitoria, fundador dei Derecho interna-
cional moderno, cit., pág. 93). Sobre Menchaca, consultar A. Miaja de la Muela,
Internacionalistas espaholes dei siglo XVI: Fernando Vazquez de Menchaca, Valladolid,
1932.
339
HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS
("maré clausum"). Não era, obviamente, uma pura controvérsia
científica, desligada de interesses políticos e económicos.
Vários juristas portugueses sustentaram a posição monopo-
lista (*). Assim sucedeu, por exemplo, com António da Gama, Jorge
Cabedo de Vasconcelos, Bento Gil, Frei Serafim de Freitas e
Domingos Antunes Portugal (").
Serafim de Freitas, quando exercia a docência de direito
canónico na Universidade de Valladolid, escreveu uma resposta a
Grócio(3). É patente a diferença de esquemas mentais com que estes
autores desenvolvem o seu discurso. A argumentação de Grócio
apresenta-se inovadora e move-se, sobretudo, numa perspectiva
filosófica. Serafim de Freitas, pelo contrário, patenteia grande agi-
lidade intelectual na utilização dos seus conhecimentos sólidos de
direito romano e dos comentadores mais notáveis, em defesa da
situação estabelecida (4). Só que esta tinha o destino traçado.
Não pode esquecer-se, ainda, entre os jus-internacionalistas,
Afonso Álvares Guerreiro. Deve-se-lhe um livro sobre a guerra
justa e injusta (5), em que aborda problemas que depois seriam tam-
bém estudados por Grócio no tratado que verdadeiramente o
notabilizou >(6).
( ) Ver Paulo Merèa, Os jurisconsultos portugueses e a doutrina do "maré clau-
sum", in "Novos Estudos de História do Direito", Barcelos, 1937, págs. 19 e segs.
(2) Consultar o estudo indicado, supra, pág. 326, nota 7.
(3) De iusto império Lusitanorum Asiático, Valladolid, 1625. Existe tradução
desta obra com o título Do Justo Império Asiático dos Portugueses, Lisboa 1960/1961
(da autoria de M. Pinto de Meneses, com uma introdução de Marcello Cae-
tano). Ver, também, Marcello Caetano, Um grande jurista português: Serafim de
Freitas, Lisboa, 1925.
( ) Ver Paulo Merêa, Um aspecto da questão Hugo Grócio — Serafim de Freitas
(Condição jurídica do mar no direito romano), in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. II,
págs. 465 e segs. Na linha de Serafim de Freitas, encontra-se a obra não menos
famosa do jurisconsulto inglês Selden, Maré clausum, concluída em 1618, mas só
impressa no ano de 1635 (cfr. Paulo Merêa, ibid., pág. 466, nota 2, e "Nov. Est.
de Hist. do Dir.", cit., nota 60 da pág. 38).
( ) De Bello iusto et iniusto Tractatus, Neapoli, 1543.
(6) De iure belli ac pacis libri três (Leipzig, 1623), em que Grócio retoma o
problema da liberdade dos mares e do comércio.
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CAPITULO III
PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO
PORTUGUÊS MODERNO
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