Corpo e comunicaçÃO



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Segundo Villaça e Góes (1998: 172), a obra de Foucault é, de alguma maneira, uma das mais radicais visões de construcionismo social. Nessa perspectiva, tanto a noção tradicional de sujeito, quanto a noção convencional de corpo são ambas desconstruídas. Para ele, o corpo não só recebe sentido pelo discurso, mas é inteiramente constituído pelo discurso. Citando Chris Shilling, os autores afirmam que, na obra de Foucault, o corpo termina por
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desaparecer como entidade biológica, tornando-se um produto socialmente construído que é infinitamente maleável e altamente instável. Na verdade, para Foucault (1977: 138), “o corpo é a superfície inscrita dos eventos, traçada pela linguagem e dissolvida pelas idéias, o locus de um eu dissociado, adotando a ilusão de uma unidade substancial — um volume em desintegração”.

Há que se considerar, entretanto, que os volumes II e III da História da Sexualidade (Foucault 1984, 1985) assinalam um ponto de inflexão, de transição, na obra foucaultiana, porque, sem renunciar à sua concepção do sujeito como forma constituída historicamente e não como norma constituinte, ele concebe os processos de subjetivação como ensaio, como processo ético e estético que busca produzir modos de existência inéditos. “E é aqui que Deleuze, leitor de Foucault, recria a conceito de dobra para explicar os processos de subjetivação como modificação dos limites que nos sujeitam, para nos reconstruir com outras experiências, com outra delimitação” (Domènech et al. 2001: 130).

*A COREOGRAFIA CONCEITUAL DE DELEUZE*
É em Deleuze, de fato, que, para Domènech et al., pode-se encontrar a crítica mais radical e a proposta mais alternativa à imagem convencional da subjetividade. É o pensamento de Deleuze que se apresenta como um caminho, como uma saída, que nos permite pensar a subjetividade à margem dos pressupostos aos quais a psicologia, sob as mais diversas formas, continua presa. Segundo Deleuze, a crítica não consiste em justificar, mas em procurar outra sensibilidade. “Para isso, cria, ‘fabrica’ conceitos que rompem com as modalidades dominantes de pensar e representar a subjetividade e que são inseparáveis de novos perceptos (novas maneiras de ver e escutar) e de novos afectos (novas maneiras de sentir).”

Coreografando seu pensamento com conceitos como hecceidade, corpo sem órgãos, nômade, agenciamento, devir, máquina


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abstrata, espaço liso, rostidade, território, rizoma, dobra, linhas molares, linhas moleculares, linhas de fuga, conceitos estes que servem para combater a primazia do verbo ser, Deleuze remete nossa atenção para circunstâncias: em que caso?, onde e quando?, como?, e nunca para essências. Com isso, ele desenha subjetividades em movimento e continuamente produzidas. Assim, conforme Domènech et al. frente a uma idéia de sujeito essencializado, dotado de uma identidade unitária, autônoma, privada, estável, de contornos fixos, Deleuze ajuda-nos a perfilar formas de subjetividade múltiplas, heterogêneas, de confins fluidos. “Ele examina a gênese da subjetividade em um momento e em um nível anterior à individuação, compreendida como entidades do tipo ‘substâncias’ ou ‘sujeitos’. Como nos lembra Foucault (1993:

238), Deleuze busca “pensar intensidades em vez (e antes) de qualidades e quantidades; profundidades em vez de comprimentos e larguras; movimentos de individuação em vez de espécies e gêneros; e mil pequenos sujeitos larvares, mil pequenas palavras dissolvidas, mil passividades e formigueiros lá onde reinava, ontem, o sujeito soberano”.

O conceito ou figuração-chave para se pensar as novas formas de subjetividade é o conceito de dobra, pois este constitui uma imagem necessária para combater o tipo de individualidade que a tradição nos impôs e para pensar (-nos) de outra maneira. Com efeito,
(Início da citação)

pensar os processos de subjetivação como dobra implica despojar o Sujeito de toda identidade (essencialista) e de toda interioridade (absoluta) e, ao mesmo tempo, reconhecer a possibilidade de transformação e de criação que elas deixam aberta. Em outras palavras, a dobra nos permite pensar os processos pelos quais o ser humano transborda e vai além de sua pele, sem recorrer à imagem de um Sujeito autônomo, independente, cerrado, agente... Agora, o problema já não seria tanto perguntar-se sobre que tipo de sujeito é produzido, mas que pode fazer o ser humano, que capacidade de afectar e ser afectado tem em um dispositivo concreto. Essa capacidade não é tampouco uma propriedade da carne, do


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corpo, da psique, da mente ou da alma. É, simplesmente, algo variável, produto ou propriedade de uma cadeia de conexões entre humanos, artefatos técnicos, dispositivos de ação e pensamento (Domènech 2001: 129).

(Fim da citação)


Nesse sentido, se a dobra só pode avançar variando, bifurcando-se e metamorfoseando-se, o problema não é como acabar a dobra, mas como continuá-la. É necessário dobrar, desdobrar, redobrar: o maneirismo substitui o essencialismo (Deleuze 1991). Dobrar, desdobrar, redobrar, não apenas porque os processos de subjetivação são continuamente penetrados pelo saber e recuperados pelo poder, mas “porque as próprias subjetivações — se estão assentadas dentro de estruturas fixas e da segurança agradável da identidade — podem converter-se em um obstáculo que impede cruzar a multiplicidade, a prolongação de suas linhas, a produção da novidade” (Domènech et a1. 2001: 133).

Entre as conseqüências mais apreensíveis, evidenciadas por Domènech et al. (2001: 134), a dobra também nos permite entender a crise que afeta diversos movimentos, desde o feminismo até certos nacionalismos, “que enfrentam os limites, as contradições, os perigos, de fazer política com a identidade, isto é, de reivindicar identidades modernas de caráter essencialista, identidades que devem ser recuperadas, reencontradas, desveladas”. Por ironia, quando o são, acabam convertendo-se em lei, princípio ou código, funcionando como mecanismos de constrição e exclusão. Enfim, entender a subjetivação como dobra inaugura outra política cuja estratégia está na renúncia ao esquema opressão/libertação/identidade.

Ainda dentro da perspectiva deleuziana de pensamento, para Rose (2001: 146), a melhor forma de ver os sujeitos é como “agenciamentos” que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à medida que expandem suas conexões: eles não são nada mais e nada menos que as cambiantes conexões com as quais são associados. O autor sugere também que a multiplicidade de linhas que tem reunido, em uma montagem, os seres humanos a diferentes relações no século XX — os “rizomas” que têm conectado,
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apreendido, diversificado, expandido, divergido, formado pontos de entrada, pontos de separação e saída para os humanos — deve algo importante aos conceitos, ações, autoridades, estratificações e ligações para os quais Rose utiliza o termo psi.

*O RETORNO DO RECALCADO*


Como reação ao recalcamento do corpo provocado pelo fantasma do sujeito, muitos textos recentes têm abusivamente voltado para o corpo sua analítica das relações de poder e formas de saber. É na corporeidade humana que buscam a base para uma teoria da subjetivação, da constituição dos desejos, das sexualidades e das diferenças sexuais, dos fenômenos de resistência e agência. Os seres humanos são, afinal, como afirmam esses argumentos, corporificados, a despeito de todas as tentativas dos filósofos, desde o Iluminismo, para descrevê-los como criaturas de razão e para afirmar que essa capacidade para raciocinar afasta os humanos de suas características como criaturas.

Os comentários que Rose (2001: 169) formula sobre isso são bastante lúcidos. Mesmo aceitando que a corporeidade não dá qualquer forma essencial ou estável à subjetividade, não é possível negar a asserção dessas análises de que é sobre esse material bruto do “corpo” que a cultura trabalha sua constituição da subjetividade. Mesmo abjurando todas as formas de essencialismo, também não é possível discordar da asserção de que “as formas de subjetividade são irrecuperavelmente marcadas pela facticidade biológica de corpos sexuados, de corpos infantis que são incapazes de automanutenção, de todos os corpos que comem, bebem, copulam, defacam, deterioram e morrem”. Enfim, mesmo quando se questionam os essencialismos e os binarismos, é difícil abdicar do corpo como material sobre o qual a cultura, a história e a técnica escrevem.

Entretanto, continua Rose, o corpo é, ele mesmo, um fenômeno histórico. “Nossa presente imagem dos lineamentos e da
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topologia do ‘corpo’ — seus órgãos, processos, fluidos vitais e fluxos — é o resultado de uma história cultural, científica e técnica particular.” Assim sendo, “as propriedades do corpo — andar, sorrir, cavar, nadar — não são propriedades naturais, mas conquistas técnicas. Mesmo o caráter aparentemente natural dos limites e das fronteiras do corpo, que parece definir como que inevitavelmente a coerência de uma unidade orgânica, é um fato recente e pertence a uma cultura específica”. Por isso, um risco a ser evitado neste momento é o de transfomar o corpo no novo fetiche da cultura. Muitos perigos rondam aqueles que incautamente buscam encontrar no corpo faculdades que pertenciam anteriormente ao sujeito. Tanto quanto o sujeito, o organismo não é absolutamente constante. Ele tampouco é estabilizado em si mesmo, nem fixo no lugar. Tanto quanto o sujeito, ele não passa de uma variável em modificação contínua e aberta. Longe de ser um universal, está mais perto de ser uma multiplicidade virtual a ser observada sob vários ângulos, justamente o que pretendo realizar nos capítulos que se seguem neste livro.

Em suma, não há facilitações possíveis. O corpo — secular- mente recalcado pelo fantasma do sujeito — não retornou para ocupar o lugar deixado por esse sujeito, como ingenuamente pensam alguns. O corpo retornou como um problema, uma interrogação em busca de respostas. Daí o corpo ter se tornado presença constante nos discursos atuais. Para alguns, trata-se simplesmente de encontrar um substituto para ocupar o lugar vazio deixado pelo sujeito. Para outros, trata-se de explorar um território cuja geografia ainda não está reconhecida.

De todo modo, a meu ver, justamente os processos que, desde a revolução industrial com suas próteses mecânicas, começaram a transformar de forma radical o corpo humano, trouxeram à tona o corpo secularmente recalcado, colocando muito ironicamente em crise o sujeito universal, abstrato. As próteses eletrônicas e, hoje, as digitais, na proeminência corporal que instauram, só acentuaram essa crise. Como nos diz Tadeu da Silva (2000: 12), é no confronto com clones, ciborgues e outros híbridos tecnonaturais
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que a “humanidade” de nossa subjetividade se viu colocada em questão. Aquilo que caracteriza a máquina nos fez questionar aquilo que caracteriza o humano: a matéria de que somos feitos. A imagem do ciborgue nos estimulou a repensar a subjetividade humana; sua realidade nos obrigou a deslocá-la.
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PARTE 2: O CORPO SOB INTERROGAÇÃO
“O corpo está em cena, sem que haja qualquer possibilidade de predizer o futuro e seus limites.” Esta afirmação de Villaça e Góes (1998: 32) sintetiza com propriedade a

proeminência do corpo e a perplexidade que ele tem provocado no pensamento atual. Mesmo dentro da medicina e da biologia, que eram tradicionalmente seus redutos mais legítimos, a questão do corpo deixou de ser pacífica para se transformar em um problema com implicações legais, éticas e até mesmo antropológicas.

Desde Marx, Nietzsche e Freud, com a entrada em pauta da ação, vontade e desejo humanos, até então ignorados devido à supremacia da razão, os conceitos sobre a experiência do corpo e sua relação com o mundo começaram a extrapolar sua suposta dimensão exclusivamente natural até então mantida sob a tutela da fisiologia e da anatomia. Abriu-se, assim, “uma nova zona de visibilidade do corpo”, permitindo a leitura das “inscrições dos fatores econômicos e políticos, da moral, da cultura, dos fantasmas e dos investimentos de desejo que circunscrevem o modo como o corpo emprega sua força de trabalho, instintual ou pulsional”. Dos anos 60 em diante, a partir da obra de Foucault, acentuaram-se as análises que procuram pensar “o modo como o corpo — sua doença, sua sexualidade, seus prazeres, seus gestos e posturas, sua sensorialidade, sua relação com os objetos, com o espaço e com o outro — é atravessado por instituições, instrumentos, saberes, poderes etc.” (Bruno 1999: 101).
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Constituído pela linguagem, sobredeterminado pelo inconsciente, pela sexualidade e o fantasmático e construído pelo social, como produto de valores e crenças sociais, o corpo foi crescente- mente se tornando o nó górdio no qual as reflexões contemporâneas são amarradas. Como comprovação disso, basta observar o número crescente de publicações que vem tomando o corpo como objeto de suas reflexões.

A mesma relevância que os debates sobre pós-modernidade tiveram nos anos 1980-90 e a globalização econômica e a mundialização da cultura encontraram nos anos 90, está sendo dispensada ao corpo nesta entrada de século e milênio, o que dá razão a Villaça e Góes (1998: 149), quando constatam que “a discussão em torno da arte, cultura e tecnologia parece encontrar hoje no corpo e suas imagens um núcleo para debater o tempo e o espaço contemporâneos” (ver também Lyra e Garcia 2001, Nojosa e Garcia 2003).


*O CORPO PROBLEMATIZADO*
Entre os temas mais constantes, além das interrogações sobre a natureza e estatuto do corpo, encontra-se o questionamento sobre seus limites, sobre as antigas, apaziguadoras e hoje duvidosas fronteiras entre o individual e social, masculino e feminino, vida e morte, natureza e cultura, natural e artificial, presença e ausência, atualidade e virtualidade. Espraiado e multiplicado em experiências divergentes e até mesmo incompatíveis e incongruentes, o corpo revela que nunca foi, na realidade, puramente natural ou estável, colocando a nu a pretensa ilusão de sua unificação, ao intercambiar e confundir de modo surpreendente as dicotomias entre interioridade e exterioridade, eu e outro, passado e futuro.

Há uma certa convergência de opiniões sobre as razões que precipitaram esse estado de coisas. Costumam ser apontadas a desreferenciação e fragmentação do sujeito, a espetacularização do mundo na desmesura da proliferação de imagens, sobretudo as


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imagens do corpo, a virtualização da realidade nas redes teleinformáticas, as novas tecnologias médicas e a engenharia genética. De uma forma ou de outra, essas razões podem ser sintetizadas nas transformações do imaginário e do real do corpo ocasionadas pelas tecnologias com que o mundo e o ser humano estão sendo invadidos.

De fato, segundo Bruno (1999: 192), o que as novas tecnologias colocam em movimento, o que elas transformam são as “fronteiras do humano”. Essa transformação se revela sob vários pontos de vista: os limites que definem o que é propriamente humano e o que os diferencia dos não-humanos (natureza/artifício, orgânico/inorgânico); “os limites que o habitam e o constituem (matéria/espírito) e os limites que diferenciam a experiência imediata e suportada por sua corporeidade biológica, natural e territorial e a experiência mediada por artefatos tecnológicos (presença/ausência, real/simulacro, próximo/longínquo)”.

Vale enfatizar, neste ponto, que, muito longe de agir apenas sobre a superfície dos corpos, as tecnologias estão penetrando na própria essência molecular do vivo. Por isso mesmo, o corpo está se tornando cada vez mais problemático. Até há pouco tempo, era só sua aparência, seus gestos e comportamentos que podiam ser, até certo ponto, mudados. Os remédios ingeridos e as operações cirúrgicas realizadas visavam apenas recompor o estado supostamente natural do corpo. Hoje, entretanto, continua Bruno (1999: 104), quando as técnicas penetram no interior do corpo para não apenas reparar funções normais, mas também ampliá-las, estimulá-las, transformá-las ou mesmo criar novas funções,
(Início da citação)

o corpo torna-se fonte de problematização na medida em que entra nos cálculos do que o indivíduo pode ser, experimentar sentir e tornar-se. Assim como a medicina e a engenharia genéticas fazem com que os traços genéticos do nosso corpo deixem de ser a nossa herança irremediável e tornem-se problemáticos, ingressando no domínio de nossas ações, cálculos e reflexões éticas, as práticas de intrusão tecnológica tornam o espaço interno do corpo um campo a ser modulado por nossos desejos, temores, expectativas etc.

(Fim da citação)
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Rodney Brooks, diretor do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, e, um entusiasta defensor das mutações que se anunciam, preconiza que estas deverão ultrapassar fronteiras ainda mais ousadas. Diz ele:
(Início da citação)

A biotecnologia irá avançar muito depressa nos próximos anos. Nas experiências de clonagem, por exemplo, hoje o DNA é inserido em uma célula através de um choque elétrico. Parece um filme do Frankenstein! Tal é o nível de sutileza da tecnologia atual. No entanto, depurando o processo, poderemos alterar o DNA com precisão e modificar as propriedades das células. Primeiro haverá uma aliança entre o material biológico e o silício, mas a geração seguinte será capaz de manipular completamente o material biológico humano. Assim a distinção entre o que é um robô e o que é uma pessoa irá desaparecer, e começará a verdadeira fusão entre o homem e a máquina (apud Sibilia 2002: 143).

(Fim da citação)
Quando se atinge esse limiar, não há como evitar as perburbadoras interrogações que nos inquietam. Como foi bem formulado por Tadeu da Silva (2000: 15-16), é a própria singularidade e exclusividade do humano que se dissolve, quando vem à existência uma criatura tecnohumana, feita de fluxos de circuitos, de fios de silício, “que simula o humano, que em tudo parece humana, que age como um humano, que se comporta como um humano, mas cujas ações e comportamentos não podem ser retroagidos a nenhuma interioridade, a nenhuma racionalidade, a nenhuma essencialidade”, em suma, a nenhuma das qualidades que costumávamos utilizar para caracterizar o humano. Tanto a idéia desse ser artificial quanto a possibilidade da clonagem são aterrorizantes, “não porque colocam em dúvida a origem divina do humano, mas porque colocam em xeque a originalidade do humano”.

Frente a isso, não é surpreendente que as interrogações sobre o ser humano e o corpo cheguem ao extremo de vaticinar que estamos assistindo atualmente ao fim do corpo e de sua história, conforme será apontado mais à frente.


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*A EXPLOSÃO DA ONTOLOGIA DO VIVO*
Quando nos referimos à tecnologia, via de regra, tomamos esse termo em um sentido monolítico, estável. A tecnologia, entretanto, apresenta uma história evolutiva até o ponto de podermos afirmar que, hoje, como quer Stiegler (1996: 169), a tecnologia está orientada para uma profunda transformação de sua própria natureza, O mais impressionante nessa transformação encontra-se no fato de que ela chegou ao limite, como já vimos, de produzir uma mutação no próprio estatuto dos corpos vivos. A mistura crescente entre o vivo e o não-vivo, o natural e o artificial, permitida pelas tecnologias, atinge hoje um tal limiar de ruptura que faz explodir a própria ontologia do vivo.

Na verdade, continua Stiegler, “se nunca chegamos realmente a dizer o que é o ser vivo, pensávamos que havia uma essência do vivo e que essa essência estava, como todas as essências, no céu das idéias eternas”. Essa espécie de suposição ou pressuposição mais ou menos partilhada, inconsciente ou implicitamente, explodiu em função das técnicas que permitem praticar a cirurgia genética, as terapias gênicas etc., e intervir assim no ser vivo em nível molecular com uma precisão extraordinária.

Podemos cada vez mais protetizar o corpo, a ponto de haver a pretensão de duplicar os corpos, isto é, de ter vários corpos simultaneamente. O devastador desmoronamento que isso provoca nas confortantes noções de identidade nunca poderá ser suficientemente enfatizado. Um fenomenólogo como Husserl nos fez crer que a um ego corresponde apenas um corpo próprio e que esta é a própria condição da unidade do ego. É inquietante a violência com que uma tal noção cai hoje por terra. Nem mesmo a rica noção fenomenológica de “corpo próprio”, forjada por Merleau Ponty (1945), consegue resistir à violação de sua integridade pressuposta. Eis, portanto, a considerável ruptura filosófica e cultural que enfrentamos. Quando o corpo e todos os seres vivos tornam-se informação codificada, o que permite a manipulação e replicação da própria vida, é a transformação ontológica do humano que está em jogo.
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Diante disso, Bruno (2001: 212) aconselha que se interrogue e se explore os modos de subjetivação que derivam desse novo corpo e das membranas artificiais que a ele se adicionam. “Que mente, que cognição, que processos identitários, que paixões estão aí implicados, propostos, possíveis? E ainda, que formas de controle estão aí sendo criadas?” Trata-se de questões ainda por pensar que “concernem não tanto ao que a técnica furta ou elimina no humano, mas, sim, ao que ela propõe ou inventa de humano”. Para Bruno, o caminho que se abre leva a apreender a tecnologia como mediação ou interface, o que constitui uma primeira tentativa de explorar o modo como ela participa da história das fronteiras que nos constituem.

Alguns visualizam na ontologia de Deleuze e Guattari uma luz no fim do túnel. Para Tadeu da Silva (2000: 16), por exemplo, as interrogações sobre o corpo e o humano, forçam-nos a pensar não mais em termos de “sujeitos”, de mônadas, de átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como sugerido, por uma “ontologia” deleuziana. Dentro dessa perspectiva, “o mundo não seria constituído de unidades (‘sujeitos’), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e as intensidades, relativamente aos quais os indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários”.

Também para Villaça e Góes (1998: 52), Deleuze e Guattari trazem a possibilidade da reconfiguração do estatuto do corpo enquanto singularidade como fluxo e multiplicidade e, portanto, desvinculado da unidade do “eu”. Nessa medida, “a singularidade se dá, justamente, no limiar da heteronímia e do devir-outro e é, em seu vetor centrífugo, na dissolução do ‘eu’ e de suas figuras (psicológicas, sociais, morais, filosóficas) que ela se constitui”.

Outros, entretanto, mais extremados, aderem ao ponto de vista de Baudrillard (1991: 129), quando afirma que é o próprio corpo humano que chegou ao seu fim. Segundo esse autor, as próteses da velha idade de ouro industrial eram mecânicas, o que significa que faziam o retorno sobre o corpo para lhe modificar a


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imagem. Elas próprias, reversivelmente, eram metabolizadas no imaginário, e este metabolismo tecnológico fazia também parte da imagem do corpo. Mas, quando se atinge um ponto sem retorno na simulação, isto é, “quando a prótese se aprofunda, se interioriza, se infiltra no coração anônimo e micromolecular do corpo, quando se impõe ao próprio corpo como modelo ‘original’, queimando todos os circuitos simbólicos ulteriores, não sendo todo o corpo possível mais que a sua repetição imutável, então é o fim do corpo, da sua história e de suas peripécias”.

Entretanto, por mais que essa posição de Baudrillard possa nos parecer fascinante pela engenhosidade de seu raciocínio, preconizar o fim do corpo é uma maneira de deixar de interrogá-lo, ou talvez, ao fim e ao cabo, essa seja uma maneira estratégica de levar tal interrogação até o limite último do impossível.


PARTE 3: O QUE MATRIX NÃO MOSTRA: O CORPO SENSÓRIO-PERCEPTIVO DO CIBERNAUTA
Este capítulo é parte de um projeto maior que teve como propósito delinear o perfil cognitivo do leitor imersivo, aquele que navega através das arquiteturas informacionais fluidas do ciberespaço, transitando entre os nós e nexos das estruturas hipermidiáticas (Santaella no prelo).

O receptor de uma hipermídia coloca em ação habilidades de leitura muito distintas daquelas que são empregadas pelo leitor de um texto impresso como o livro. Por outro lado, são habilidades também distintas daquelas empregadas pelo receptor de imagens ou espectador de cinema, televisão (Santaella 2003c). Conectando na tela, através de movimentos e comandos de um mouse, os nexos eletrônicos das infovias, o cibernauta vai unindo, de modo a-seqüencial, fragmentos de informação de naturezas diversas, criando e experimentando, na sua interação com o potencial dialógico da hipermídia, um tipo de comunicação multilinear e labiríntica. Através de saltos receptivos, esse novo tipo de leitor é livre para estabelecer sozinho a ordem textual ou para se perder na desordem dos fragmentos, pois no lugar de um volume encadernado com páginas onde as frases e/ou imagens se apresentam em uma ordenação sintático-textual previamente prescrita, surge uma ordenação associativa que só pode ser estabelecida no e através do ato de navegação (Wirth 1998: 98).


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Que habilidades perceptivas e cognitivas estão por trás, conduzindo os comandos desse leitor imersivo quando movimenta e clica o mouse? São impressionantes a agilidade e prontidão de respostas na interação com a máquina que esse leitor ou receptor apresenta quando está familiarizado com esse tipo de comunicação que se estabelece através dessas vias labirínticas. Foram essa pergunta e essas impressões iniciais, a curiosidade que elas puseram em mim, que motivaram a realização de uma pesquisa.

Como descobrir, através do comportamento visível que o usuário exibe diante da tela, aquilo que não está visível, isto é, os mecanismos cognitivos e perceptivos que guiam, à maneira de um sonar, as escolhas instantâneas que esse usuário é capaz de fazer diante das enxurradas de signos das telas do computador, escolhas que o levam a encontrar caminhos que são só dele, no emaranhado de ligações oblíquas internas e de nexos remissivos em um jogo de associações que, ‘com cinco passos apenas, podem levá-lo de Platão à salsicha” (Eco, apud Wirth: 1998: 105).

O trabalho envolveu uma pesquisa de campo com três tipos de usuários do ciberespaço: novatos, leigos e espertos. Para diagnosticar os processos cognitivos que guiam o trânsito desse usuário nos ambientes informacionais, foram inicialmente feitos questionários, entrevistas e gravações em vídeo. A partir dos dados obtidos nessa pesquisa de campo, era necessário compreender as orquestrações invisíveis que, por trás da sincronização do olho e do mouse, se processam no ato de navegar.

Tomando como base a maravilhosa dinâmica que é executada pelos sistemas perceptivos, conforme será apresentada, passei a defender a idéia de que as habilidades que são adquiridas com a prática da navegação, além de serem conduzidas por inferências mentais ricamente tramadas, estão também alicerçadas no desenvolvimento simultâneo dessas complexas operações mentais com reações sensório-perceptivas não menos complexas.

Há uma crença generalizada de que a imersão leva simplesmente à inatividade do corpo carnal. Dessa inatividade, o filme Matrix nos fornece uma metáfora amedrontadora na imagem dos
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seres humanos imobilizados, semimortos, encubados pela medula em tubos sugadores de energia. Minha hipótese é que tal crença está alicerçada no conhecimento precário que se tem do sistema háptico humano, precariedade que é muito provavelmente explicável pelo recalque do toque e da palpabilidade que é próprio das culturas ocidentais, especialmente as anglo-saxônicas.

Contra uma tal crença, proponho que, por trás da aparente imobilidade corporal do usuário plugado no ciberespaço, há uma exuberância de instantâneas reações perceptivas em sincronia com operações mentais. Estão em atividade mecanismos cognitivos dinâmicos, absorventes, extremamente velozes, frutos da conexão indissolúvel, inconsútil, do corpo sensório-perceptivo à mente, sem os quais o processo perceptivo-cognitivo inteiramente novo da navegação não seria possível.

A discussão desse argumento leva em consideração as reflexões que se seguem sobre os sistemas sensórios e especialmente sobre o sistema háptico. É o funcionamento e o potencial aberto por esses sistemas que nos guiou no delineamento do perfil sensório- perceptivo do leitor imersivo ou cibernauta.
*OS SENTIDOS COMO SISTEMAS PERCEPTIVOS COMPLEXOS*
Embora as pesquisas sobre percepção, nos campos da neurofisiologia e da psicologia experimental, tenham evoluído muito nas últimas décadas, especialmente devido aos avanços técnicos nos equipamentos de aferição, a teoria ecológica da percepção de James J. Gibson, publicada em 1966, ainda continua incomparavelmente única pelo caráter holístico da visão integrativa e interatuante dos sistemas perceptivos que apresenta. É justamente esse caráter que me levou a selecionar essa teoria como a mais adequada para compreender a polissensorialidade e o corpo perceptivo do leitor imersivo.

Costuma-se conceber a percepção como resultante da ação dos diferentes órgãos dos sentidos, estes produtores de sensações visuais, auditivas, táteis, olfativas e gustativas. Contrariamente a


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essa concepção atomística, para Gibson, a percepção não é algo computado pelo cérebro a partir de uma somatória de sensações. Os órgãos sensórios não são apenas canais de sensações, receptores passivos que respondem, cada qual (mecanorreceptores, quimiorreceptores e fotorreceptores), à sua forma de energia apropriada (mecânica, química e radiativa) mas constituem-se também em sistemas perceptivos complexos que, além de ativos, são inter-relacionados, fornecendo ao organismo informação contínua estável que torna a vida adaptativa possível. A dinâmica perceptiva, portanto, vai além de uma mera experiência sensorial resultante da ativação de receptores passivos. Não obstante a importância das pesquisas laboratoriais voltadas para a ativação dos órgãos receptores, tal ativação não é, por si mesma, capaz de explicar a percepção.

Os olhos, ouvidos, nariz, boca e pele são modos de exploração, investigação e orientação, modos de atenção a tudo que é constante na estimulação mutável, capazes de isolar a informação pertinente. Longe de serem mutuamente exclusivos, sobrepõem-se e, na maior parte das vezes, estão focados no mesmo tipo de informação, isto é, a mesma informação pode ser captada por uma combinação de sistemas perceptivos trabalhando juntos (Gibson 1996: 4). Além disso, a lista de cinco sentidos, que foi estabelecida por Aristóteles, é hoje considerada incompleta, visto que outras espécies de experiências perceptivas foram encontradas. Junto com os órgãos sensores exteroceptores (olho, ouvido, pele, nariz, boca), há os proprioceptores (nos músculos, juntas e ouvido interno) e interoceptores (terminações nervosas nos órgãos viscerais) com três tipos de sensações por eles provocadas, respectiva- mente: sensações de origem externa ou percepções, sensações de movimento ou cinestesia e vagas sensações de origem interna, localizando-se aqui talvez os sentimentos e emoções.

Muito diferente da separação entre corpo e mente, postulada por Descartes, diferente ainda de uma concepção dos órgãos sensores como meros iniciadores de sinais nas terminações nervosas ou mensageiros para o cérebro que decodifica, interpreta, organiza e processa os dados recebidos, os sistemas perceptivos, incluindo
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os centros nervosos, em vários níveis até o cérebro, são responsáveis pela busca e extração de informação que vem do meio a par- rir de uma estrutura flutuante de energia ambiente. Para isso, eles dependem do sistema de orientação geral que vem do corpo inteiro (Gibson 1996: 5, 58).

Os animais superiores desenvolveram extremidades móveis e orgãos sensórios ajustáveis. Assim, os estímulos recebidos de fora podem ser modificados de duas maneiras: através do movimento dos órgãos motores do corpo, que funcionam como performativos ou executivos e pelo movimento dos órgãos sensórios que funcionam como exploratórios ou investigativos. Os primeiros são comportamentais, realizando atividades performativas, os últimos são captadores de estímulos informativos, realizando atividades exploratórias. O estímulo do sistema nervoso tem dois componentes: um que é independente do observador e outro que depende de movimentos dos olhos, cabeça, mãos e corpo. Apesar de receberem o nome de receptores, olhos, ouvidos, nariz, boca e pele são, na realidade, móveis, exploratórios e orientadores. Por isso mesmo, o estímulo no sistema nervoso contém um componente que é produzido por suas atividades. Assim sendo, a chave para se compreender como o sistema perceptivo opera está na inter-relação de estímulos produzidos externamente e da estimulação que resulta de atividades executadas pelo organismo (Gibson 1996: 32).

Não são apenas os órgãos motores que se movimentam, mas também os órgãos sensórios, não havendo uma separação nítida entre ambos. Tanto uns quanto outros dependem dos sistemas musculares. Gibson (1996: 57) propôs tentativamente uma classificação de todos os sistemas que envolvem músculos. A classificação não se baseia na anatomia do corpo, mas na ação propositada.
a- O sistema postural que não exige o movimento do corpo, mas apenas movimentos compensatórios para preservar o equilíbrio na sua orientação com a terra. Esse sistema é fundamental pata todos os outros.
b- O sistema investigativo de orientação, quando ocorrem movimentos ou apenas posturas para apontar ou fixar. Eles se
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referem a ajustamentos da cabeça, olhos, boca, mãos e outros órgãos para se obter informação do estímulo externo.


c- O sistema de locomoção quando os movimentos visam colocar o indivíduo em uma posição mais favorável no ambiente, tais como aproximação, perseguição, desvio, escape.
d- O sistema de apetite, movimentos de troca com o ambiente: respiração, alimentação, eliminação e interação sexual.
e- O sistema performativo, movimentos para alterar o ambiente de modos que sejam benéficos ao organismo, tais como deslocar coisas, armazenar comida, construir abrigos, lutar, usar ferramentas etc.
f- O sistema expressivo que envolve movimentos posturais, faciais e vocais para especificar estados emocionais e identificadores

do indivíduo.


g- O sistema semântico (ou semiótico) que assinala movimentos de todos os tipos, especialmente da fala codificada.
A passagem acima sobre os sistemas musculares foi apresentada porque ela nos auxiliará na desmistificação da crença sedimentada, quando se trata do processo de navegação no ciberespaço, sobre a imobilidade do corpo, como será discutido mais à frente. Tal crença ignora não só as complexas atividades do sistema perceptivo, como também o fato de que a percepção — especialmente quando ela implica a interação sincronizada da mão no mouse — está indissoluvelmente atada ao sistema muscular que é acionado mesmo quando não há movimento externo aparente.

Não obstante a teoria gibsoniana proponha a inter-relação dos sentidos, na apresentação que se segue dos sentidos, estarei colocando grande ênfase no sistema perceptivo tátil, pois é esse sistema que entra prioritariamente em ação, na sua conjunção com o sistema visual e secundariamente o auditivo, para compor aquilo que chamo de prontidão perceptiva e polissensorialidade na constituição do perfil cognitivo do leitor imersivo.


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*OS SISTEMAS EXTEROCEPTIVOS*
Quando falamos dos sentidos exteroceptivos, para Gibson (1996: 51), estamos nos referindo a cinco modalidades de atenção sensorial em busca de informação: ver, ouvir, tocar, cheirar e degustar. Eles compõem os seguintes sistemas:
a- Sistema básico de orientação. Tem seu modo de atenção voltado para a orientação geral. Seus receptores são mecânicos e seus órgãos anatômicos são os órgãos vestibulares. A atividade desses órgãos produz o equilíbrio do corpo. Os estímulos que se apresentam são as forças de gravidade e aceleração e a informação externa obtida é a direção da gravidade. Ou seja: o aparato do ouvido interno capta forças de aceleração, que especificam a direção da gravidade, uma força incessante, em oposição às forças transitórias do início e fim dos movimentos do corpo. O input gravitacional se acopla ao tato, que é parte do sistema háptico, de modo a fornecer um registro duplo do solo. Este sistema é o mais geral, fornecendo os fundamentos para todos os outros.
b- Sistema auditivo. Seu modo de atenção é a audição, suas unidades receptoras são mecânicas, seu órgão anatômico envolve também o ouvido médio e o aurículo. A atividade desse órgão é orientar para o som. O estímulo disponível é a vibração no ar e a informação obtida é a natureza e localização dos eventos vibratórios. Em outras palavras: o sistema auditivo responde a qualquer perturbação no ar, mesmo que essa perturbação sejam ínfimas vibrações no ar. O input especifica a natureza do evento vibratório no ambiente e ambos os ouvidos exploram e especificam a direção do evento. Para o ser humano, há uma variedade incontável de classes, subclasses e exemplos de sons identificáveis.
c- Sistema olfativo-degustativo. Seu modo de atenção volta-se para o cheiro e gosto, suas unidades receptoras são químicas e mecânicas, a anatomia de seus órgãos é a cavidade nasal e a
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cavidade oral. Esses órgãos têm como atividade cheirar e degustar. Os estímulos à disposição são composições existentes no meio e a composição de substâncias ingeridas. A informação externa obtida é a natureza de fontes voláteis e valores nutritivos e bioquímicos. Nariz e boca entram em combinação para formar esse sistema sobreordenado. Quando se experimenta a comida, receptores da boca e do nariz trabalham juntos. Comer também envolve sentir o alimento, de modo que uma parte do sistema háptico colabora com a degustação. Um alimento passa por um conjunto de testes químicos e físicos antes de ser engolido. Esses testes envolvem sua volatilidade, solubilidade, composição química e consistência física.
d- Sistema visual. Seu modo de atenção é olhar e, para isso, usa fotorreceptores. Seus órgãos são os mecanismos oculares, a saber, os olhos com seus músculos intrínsecos e extrínsecos relacionados aos órgãos vestibulares, a cabeça e o corpo inteiro. As atividades desses órgãos são: acomodação, ajustamento da pupila, fixação, convergência e exploração. Os estímulos disponíveis são as variáveis da estrutura na luz ambiente. A informação obtida diz respeito a tudo o que pode ser especificado pelas variáveis da estrutura ótica, isto é, informações sobre objetos, animais, movimentos, eventos e lugares. O aparato visual, o mais complexo, combina-se com todos os outros e se superpõe a eles para registrar fatos objetivos. A informação obtida por esse sistema, relativa ao ambiente iluminado, é enorme. Os movimentos no ambiente se dão na luz. Até as locomoções e manipulações do indivíduo são especificadas por transformações óticas na luz. O olho registra informações que nenhum outro sistema pode registrar, especialmente a cor das superfícies (Gibson 1996: 53-54).
e- Sistema háptico. Seu modo de atenção é tatear, apalpar; seus receptores são mecânicos e provavelmente também térmicos, seus órgãos anatômicos são a pele, incluindo extensões e aberturas, as juntas, incluindo ligamentos, músculos, inclusive
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os tendões. A atividade desses órgãos volta-se para vários tipos de exploração. O estímulo disponível é a deformação dos tecidos da pele, a configuração das juntas e o esticamento de fibras musculares. A informação externa obtida é o contato com os encontros mecânicos da terra, a forma dos objetos, seu estado material e sua solidez ou viscosidade. Esse sistema háptico consiste de um complexo de subsiste- mas. Ele não possui um órgão específico de sentido, mas receptores nos tecidos que estão por toda parte do corpo. Os receptores nas juntas colaboram com eles. Assim, as mãos e outros membros do corpo são, efetivamente, órgãos ativos de percepção. Os inputs em combinação e co-variação podem especificar uma impressionante variedade de fatos sobre o mundo adjacente. O tato e a visão em combinação fornecem um input redundante de informação com dupla garantia (Gibson 1996: 5 1-54). Dada a importância do sistema háptico para os objetivos deste capítulo, sua apresentação merece uma atenção mais pormenorizada.
*O SISTEMA HÁPTICO*
Como já foi referido, as unidades e células receptivas do sistema háptico são mecanorreceptoras, sendo, portanto, afetadas por energia mecânica. Todo tecido vivo é sensível à deformação, isto é, mudança de forma e movimento não-rígido. Os receptores enraizados na pele, músculos, juntas e outros tecidos são excitados através de estiramento, compressão, inclinação, tração, fricção e similares. O suprimento nervoso do corpo consiste de um número enorme de fibras nervosas, tanto aferentes quanto eferentes, as primeiras terminando em receptores e as últimas em músculos. Os receptores estão presentes em cada milímetro do corpo, com exceção do cérebro que é insensível à estimulação mecânica ou a corte. Os terminais são de diversos tipos: há os terminais nervosos livres, os terminais nervosos encapsulados que se encontram
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na e sob a pele e, ainda, as microscópicas células peludas que têm a mais delicada sensibilidade ao movimento e se confinam em órgãos especiais como o ouvido interno.

Tais receptores são encontrados por todo o corpo, em especial associados com as seguintes partes e órgãos: em primeiro lugar, distribuem-se densamente na e sob a pele. Juntam-se na base de cada fio de cabelo ou outra extensão da pele, estando também presentes nas palmas das mãos e pés. Eles penetram no tecido conector sob a superfície. Podem ser encontrados até mesmo no envoltório dos ossos. Em segundo lugar, eles suprem as juntas e os ligamentos entre todos os ossos moventes do corpo, mais de uma centena no corpo humano. Em terceiro, interpenetram todos os músculos e tendões, ligando músculos a ossos. Quarto, embrulham os vasos sangüíneos, até mesmo o mais ínfimo que se dilata e contrai. Quinto, na forma de células cabeludas, são responsáveis pelas estruturas flexíveis dos canais semicirculares do ouvido interno, O mais notável é que todas essas partes e órgãos têm em comum o fato de serem móveis, mas em diferentes modos mecânicos, assim como exibem modos de sensibilidade distintos.

Esse aprofundamento no sistema háptico nos revela que, através desse sistema, o indivíduo obtém informações tanto sobre seu corpo quanto sobre o ambiente. Sente-se um objeto relativamente ao corpo e este relativamente ao objeto. É através desse sistema que o ser humano literalmente entra em contato com o ambiente. Outro aspecto de distinção desse sistema em relação aos outros está no fato de que não há um órgão específico para ele. De fato, o sistema háptico é formado por um conjunto de subsistemas.

Desse modo, é um sistema que inclui o corpo inteiro, a maioria de suas partes, juntas, músculos, em toda a sua superfície. Ainda um outro aspecto bastante importante apresenta-se no fato de que as extremidades do corpo, mãos, pés, boca, e até mesmo língua, nas quais a sensibilidade tátil se concentra, especialmente a ponta dos dedos da mão e do pé, são órgãos sensórios, exploratórios e, ao mesmo tempo, órgãos motores, performativos. Isto quer dizer que o equipamento para sentir, tocar, apalpar é


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anatomicamente o mesmo equipamento para se fazer coisas, agir no ambiente. Tal combinação não se encontra no sistema visual, nem no auditivo. Podemos explorar coisas com os olhos, mas não podemos alterar o ambiente com os olhos. Entretanto, podemos tanto explorar quanto alterar o ambiente com as mãos. Do mesmo modo, a boca, também faz parte do sistema háptico, é perceptiva e executiva. É usada para sentir, perceber e comer.

Para o ser humano, as duas partes principais do aparato háptico são a pele e o corpo movente. Mas eles não são simples. A pele tem extensões e o corpo uma hierarquia de membros baseados no esqueleto. As extensões cutâneas são unidades receptoras. Estas são os pêlos com que a pele é suprida e as unhas como extensões dos dedos. Assim, o tato é uma perturbação mecânica indireta da pele mediada por uma extensão, e não uma impressão direta na pele por um objeto, como tendemos a pensar. Os folículos dos pêlos e as raízes das unhas estão embrulhados em fibras nervosas, de modo que a menor pressão na extensão é estimulante, mas o contato real entre o indivíduo e o ambiente se dá na extremidade da extensão, não na sua base. Assim, o sistema tátil não é estritamente um sentido de proximidade, como tradicionalmente assumido, pois as extensões são protuberâncias voltadas para o ambiente. A capacidade dos pêlos do corpo para sentir à distância não é muito diferente da habilidade do ser humano para usar uma vara, bastão ou bengala para detectar os encontros mecânicos na extremidade dessa extensão artificial de sua mão. Isso explica a habilidade humana no uso de ferramentas e dispositivos.

O fato remarcável, diz Gibson (1996: 100), é que, quando tocamos algo com uma vara, sentimos esse algo na ponta da vara e não nas mãos. A hipótese plausível explica que isso ocorre porque a informação da perturbação mecânica na extremidade da vara é obtida pela mão como um órgão perceptivo, que inclui, no seu processo, a informação sobre o comprimento e a direção da vara. Em suma, a superfície do organismo é uma fronteira entre o organismo e o seu ambiente, cujos limites não são rígidos, nem muito bem demarcados.
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Mais um aspecto importante do sistema háptico diz respeito ao modo como o esqueleto humano está estruturado para que o organismo tenha a vantagem tanto da rigidez quanto do movimento. Os membros do corpo formam um sistema ordenado. Os 05505 estão ligados por articulações à coluna e à cabeça. O tronco divide-se em quatro membros e cada membro em cinco dígitos. Não é possível entender o tato, assim como a locomoção e a manipulação, sem entender a relação do corpo com suas extremidades. O movimento de qualquer osso é sempre relativo ao movimento de um osso precedente: os dedos se movem porque suas juntas se movem, a mão se movimenta no pulso em relação ao antebraço, este em relação ao cotovelo, o braço superior em relação ao ombro e este em relação ao tronco. O mais simples giro da ponta de um dedo está ligado à coluna através de uma série de cinco juntas, as menores dependendo das maiores. Além disso, a postura de cada um e de todos os membros é fruto de uma elaboração do sistema básico e sobredeterminante de orientação do corpo em relação à gravidade, e a sensibilidade das juntas em relação aos seus ângulos é evidentemente crucial para essa elaboração.

Nessa medida, uma extremidade orienta-se, ao mesmo tempo, para a moldura do corpo e a do espaço, mesmo na ausência da visão. Em qualquer momento, diz Gibson (1996: 102), a disposição dos ossos é uma espécie de espaço vetorial ramificado no espaço mais amplo do ambiente, especificado pelo conjunto de ângulos de todas as juntas em relação aos principais eixos do corpo. É por isso que as superfícies ambientais em contato com os membros do corpo e a disposição desses membros são coisas que vão juntas. Assim, quando nos sentamos em uma poltrona, sentimos, ao mesmo tempo, a forma da poltrona e a forma do nosso corpo na poltrona. Ao abraçar uma bola, a criança sente tanto a forma da bola quanto a forma de seus braços em torno dela.

É por essa razão que o sistema háptico fornece informações sobre objetos sólidos em três dimensões, enquanto o tato, no sentido estreito em que costuma ser concebido, de impressões cutâneas, é capaz de fornecer apenas informações sobre padrões na pele em duas
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dimensões. A idéia de que o tato é meramente um sentido de proximidade baseia-se, portanto, em um conceito estreito do tato.

O ser humano está não só em contato com o meio ambiente, mas, através da função exploratória e manipuladora das extremidades do sistema háptico, também faz contato com partes do meio externo. A habilidade das mãos para tatear, alisar, apalpar, coçar, cutucar, dedilhar, pegar, erguer etc., justifica tudo que o ser humano é capaz de fazer com elas. O tato exploratório ativo permite tanto agarrar os objetos quanto captar seu significado. Não estamos acostumados a pensar nas mãos como órgãos sensórios, porque, na maior parte do tempo, manipulamos objetos e as usamos na sua função performativa, muito mais do que na sua função exploratória. Essa capacidade perceptiva das mãos tende a passar despercebida também porque o nosso estado de alerta para com o input visual domina sobre o háptico. Entretanto, mesmo sendo certo que as ações manipulatórias são acompanhadas pelo sistema visual, uma grande quantidade de informações sobre os objetos é obtida apenas pelo sistema háptico.

Enfim, agindo conjuntamente, os sistemas perceptivos são órgãos de atenção ativa, suscetíveis de aprendizagem. Através da prática, podemos nos orientar com mais exatidão, ouvir mais cuidadosamente, apalpar mais sensorialmente, cheirar e degustar com mais precisão e olhar mais atentamente. Por isso dançamos, nadamos, jogamos, tanto quanto podemos nos converter em experimentadores de vinho ou café. Do mesmo modo, podemos nos tornar navegadores exímios.
*A PRONTIDÃO PERCEPTIVA E A POLISSENSORIALIDADE DO NAVEGADOR*
Quando o usuário pilota o computador, esteja ele transitando por um CD-Rom ou nas redes, ele está sempre dentro de um espaço informacional, um ambiente de signos híbridos no qual imagens, gráficos, desenhos, figuras, palavras, textos, sons e mesmo
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vídeos misturam-se na constituição de uma metamídia complexa. Essa complexidade não é devida apenas à complexidade dos signos que aciona, mas também às exigências que demanda do usuário. É preciso se movimentar no ambiente, encontrar caminhos nessa floresta de signos e de rotas. Em suma: navegar é preciso. O usuário-operador tem de interagir com o que vê, através das escolhas daquilo que vê. Ele não pode simplesmente olhar para o que se apresenta na tela, sem agir. É essa interação que está implícita no verbo “navegar”.

Portanto, o usuário deve, antes de tudo, ter aprendido a reconhecer os diferentes signos que se exibem na tela. Alguns são óbvios, bastante figurativos, outros são mais convencionais, dependentes de uma convivência com sistemas de representação próprios. Entretanto, muito mais do que meramente reconhecer, o usuário deve explorar o ambiente. Para isso, ele precisa transitar dentro dele, agir nele. O meio para isso, por enquanto, é o mouse. E a mira do mouse está nos pontos (signos) da tela que, uma vez clicados, permitem o tráfego de uma informação para outra.

Ora, a profusão híbrida de signos que povoam as telas não é aleatória. Ela está estruturada em nexos (links) ou atalhos que, uma vez acionados, levam o usuário a saltar de uma página para outra, de um campo para outro, de uma informação para outra. Isso é chamado de hipermídia, a linguagem própria dos ambientes informacionais que foram batizados de ciberespaço. Os nexos em cada tela são múltiplos, podendo remeter a uma diversidade de contextos. Cada nexo leva a outros nexos e, assim, miríades de caminhos podem ser percorridos. Mas isto só acontece, se o usuário seleciona o que lhe interessa e determina quão longe quer caminhar dentro de cada assunto. A navegação responde às suas escolhas, pois não há navegação predeterminada. Quando ela o é, não pode receber o nome de navegação.

Qual é o equipamento cognitivo que o usuário precisa ter para navegar? Certamente, antes de tudo, uma boa competência semiótica. Isso implica alfabetização na linguagem da hipermídia que permite ler a versatilidade das interfaces povoadas de


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diferentes signos para compreender suas negociações interativas. Da competência semiótica resultam tanto a prontidão perceptiva quanto a agilidade das inferências mentais, grande parte delas abdutivas, quer dizer, baseadas na arte da adivinhação, mas também indutivas, baseadas na habilidade de seguir pistas, e mesmo dedutivas, baseadas na capacidade de prever. Entretanto, percepções e inferências mentais não bastam. Elas precisam se fazer acompanhar de movimentações físicas do usuário no ambiente hipermidiático para que o trânsito informacional se efetue. Para essas movimentações físicas, bastam os diques no mouse.

Nada pode parecer mais simples do que clicar um mouse. Essa é a imagem que se costuma ter do cibernauta: alguém que, imobilizado, absorvido visualmente pela tela até as raias da hipnose, aperta reiteradamente o mouse para produzir efeitos na tela. Contudo, não há nada mais enganoso do que essa imagem. Por trás da ação de clicar, há muitas implicações.

Em primeiro lugar, o dique do mouse depende de uma coordenação visomotora aprimorada do usuário. De fato, tão aprimorada a ponto de habilitar as reações motoras a lidar instantaneamente com mudanças visuais dinâmicas. Depende também de se aprender a controlar objetos representados na tela, movimentando o mouse sobre um suporte que está em outro plano. Depende ainda da construção de automatismos sensório-motores, que guardam alguma similaridade com andar de bicicleta ou dirigir um carro. Entretanto, diferentemente destes, os automatismos sensório-motores do cibernauta devem estar duplamente sintonizados: tanto nas movimentações perceptivas dentro de um ambiente quanto nos passes ligeiros do jogo lógico das inferências mentais. Além disso, o dique do mouse significa não apenas movimentar-se física e mentalmente no ambiente, mas, sobretudo, agir sobre ele. Tudo isso concentrado no sutilíssimo toque da ponta de um dedo. Como podem tantos poderes se concentrar na ponta de um dedo? As potencialidades do funcionamento do sistema háptico humano podem nos ajudar a responder essa pergunta.
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Como foi discutido, a sensibilidade tátil concentra-se nas extremidades do corpo: mãos, pés, boca, e até mesmo língua. Não apenas dentre esses, mas dentre todos os sentidos do corpo, a mão desempenha uma função especialíssima. É o único órgão que é sensório, exploratório e, ao mesmo tempo, motor, performativo. Sente o ambiente e é capaz de agir sobre ele. O equipamento para sentir, tocar, apalpar é anatomicamente o mesmo equipamento para se fazer coisas, manipular, fazer contato, agir no ambiente. Esse poder, que se concentra nas mãos, tende a passar despercebido devido à dominância do sistema visual no mundo humano.

É em função disso que existe a tendência a se ignorar tudo o que se passa no toque da ponta do dedo no mouse. Entretanto, é nesse toque que se concentra não só todo o poder háptico, mas também todo o poder manipulatório dos objetos no plano da tela e que, através dessa palpabilidade manipuladora da mão, produz a sensação de um espaço, ciberespaço, muito mais do que do mero plano de uma tela. Por outro lado, é tal a concentração da sensibilidade tátil na ponta do dedo que, na realidade, é a sensibilidade do corpo inteiro que se desloca para essa extremidade.

Como foi bem explicitado por Gibson (1996: 100), o tato é uma perturbação mecânica indireta da pele mediada por uma extensão — no caso humano, os pêlos do corpo e as unhas — e não uma impressão direta na pele por um objeto, como tendemos a pensar. É por isso que se tem a habilidade para usar uma vara para detectar os encontros mecânicos na extremidade dessa extensão artificial da mão, assim como para o uso de ferramentas e dispositivos. Vem justamente daí a habilidade que se desenvolve para o uso do mouse em conexão com o plano da tela. Através do toque do mouse, toca-se literalmente a tela, apalpa-se a tela. Por isso, o movimento dentro dela torna-se muito rapidamente tão natural, envolvente, absorvente. Nessa medida, a absorção aparentemente hipnótica que a navegação produz não vem apenas da percepção visual, mas também da sensorialidade háptica, pois ambas estão indissoluvelmente ligadas aos movimentos lógicos do pensamento. Enfim, tudo se sintoniza nas mudanças cognitivas
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produzidas pela dinâmica dos objetos semióticos carregados de informação que surgem e desaparecem do ambiente com a mesma rapidez com que os sons desvanecem no ar.

Outro segredo, por trás da sutileza do toque do dedo no mouse, está na agitação muscular, invisível, mas nem por isso menos ativa, que é disparada para que o toque se efetue. O corpo, como já vimos, tem uma hierarquia de membros baseados no esqueleto. O movimento de qualquer osso é sempre relativo ao movimento de um osso precedente, de modo que o mais simples movimento da ponta de um dedo está ligado à coluna através de uma série de cinco juntas, as menores dependendo das maiores.

Assim, quando a ponta do dedo toca o mouse, sistemas musculares muito sutis estão em ação. Se recordarmos a classificação gibsoniana dos sistemas que envolvem os músculos, classificação essa baseada na ação propositada, que é justamente o tipo de ação que rege o toque do mouse, veremos, operando nesse toque, em primeiro lugar, a ação do sistema postural, visando ao equilíbrio do corpo não apenas em relação à sua orientação com o chão no ambiente físico em que o usuário se encontra, mas também em relação aos objetos que se movimentam na tela. Está operando ainda o sistema investigativo de orientação, com seus ajustamentos de cabeça, olhos e mãos. Mesmo estando com o corpo parado, o sistema de locomoção também está em operação, buscando as posições mais favoráveis à percepção dos ambientes do ciberespaço. Por isso, busca-se a aproximação da informação visual através do zoom, desvia-se de uma informação para outra etc. Para isso, o sistema performativo deve estar acionado, como, de fato, está, pois é um sistema que depende inteiramente das mãos.

Por fim, conforme já se viu, há dois componentes estimuladores do sistema nervoso, os que vêm de fora e independem do observador e os que dependem de seus movimentos. Como resultado da ação contínua da ponta do dedo no mouse, os estímulos que, em situação normal, independeriam do observador, passam também a depender inteiramente de sua ação. É isso justamente que recebe o nome de interação. Uma interação cuja base está


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localizada não apenas na exploração sensório-motora do ambiente, mas na compreensão e avaliação semiótica do conteúdo informacional e conceitual desse ambiente.

É por tudo isso que, quando se navega no ciberespaço, por fora, o corpo parece imóvel, mas, por dentro, uma orquestra inteira esta tocando instrumentos não apenas mentais, mas, ao mesmo tempo, numa coordenação inconsútil, perceptivos, sensórios e mentais.

PARTE 4: O CORPO BIOCIBERNÉTICO REVISITADO
No livro Culturas e artes do pós-humano, há um capítulo dedicado especificamente ao corpo biocibernético (Santaella 2003a: 18 1-208). Nele buscava evidenciar o papel que a transformação tecnológica do corpo vem desempenhando para a emergência do pós-humano, este entendido não só como resultado dessas transformações, mas, sobretudo, como desconstrução das certezas ontológicas e metafísicas implicadas nas tradicionais categorias, geralmente dicotômicas, de sujeito, subjetividade e identidade subjacentes às concepções humanistas que alimentaram a filosofia e as ciências do homem nos últimos séculos.

As intenções que ora presidem este retorno ao tema do corpo biocibernético são distintas das anteriores, O que apresentarei no que se segue é, em primeiro lugar, um exercício de ética terminológica, através do qual buscarei deslindar algumas distinções entre uma série de termos com significados muito próximos do adjetivo “biocibernético”. Com isto, tenho em vista precisar tanto quanto possível o sentido em que emprego esse adjetivo, nas analogias e contrastes que ele apresenta com os demais. Em segundo lugar, pretendo realizar uma sistematização do campo de abrangência do adjetivo “biocibernético”, quer dizer, dos fenômenos a que essa expressão se aplica.


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*POR UMA ÉTICA DA TERMINOLOGIA*
C. S. Peirce é o autor de um breve tratado sobre a ética terminológica que faz parte de sua doutrina pragmaticista. Para ele, muitas disputas estéreis poderiam ser evitadas pelos pesquisadores, se alguma atenção fosse dada à questão terminológica. Muitas vezes, as confusões e controvérsias intelectuais são geradas por um ou vários dentre os seguintes equívocos: dar nomes novos para fenômenos já conhecidos e com nomes consagrados; manter os nomes antigos para fenômenos novos; utilizar diversos nomes para um mesmo fenômeno ou o mesmo nome para fenômenos diversos (CP 2: 2 19-226; ver Dantas 2003). É para evitar quaisquer desses equívocos que inicio este capítulo com uma tentativa de elucidação terminológica.

O sentido que dou ao termo “biocibernético” é similar ao de “ciborgue” que, como se sabe, nasceu da junção de cyb(ernetic)+ org(anism), cib(ernético)+org(anismo). Entretanto, prefiro o termo “biocibernético”, de um lado, porque “bio” apresenta significados mais abrangentes do que “org”, de outro lado, porque “biocibernético” expõe a hibridização do biológico e do cibernético de maneira mais explícita, além de que não está culturalmente tão sobrecarregado quanto “ciborgue” com as conotações triunfalistas ou sombrias do imaginário fílmico e televisivo.

Vêm sendo utilizados alguns outros adjetivos para o corpo que ocupam zonas semânticas próximas às de biocibernético e de ciborgue, tais como, corpo protético, pós-orgânico, pós-biológico e pós-humano. Embora a palavra “prótese” seja bem funcional para caracterizar as extensões tecnológicas do corpo, a meu ver, o significado dessa palavra ficou muito colado ao aspecto visível das extensões, idéia que pretendo evitar, visto que, cada vez mais, as extensões estão aderindo à fisicalidade de nossos corpos e habitando seus interiores, indicando uma tendência para se tornarem invisíveis e mesmo imperceptíveis.

As expressões “pós-orgânico” e “pós-biológico” vêm sendo empregadas com freqüência. Apesar disso, continuo optando por


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“biocibernético” porque, mais do que seus possíveis substitutos, este adjetivo deixa explícita, como já foi mencionado acima, a hibridização indiscernível entre o orgânico-biológico e o maquínico-cibernético, entre a umidade do carbono e a secura do silício. Por mais que as tecnologias se desenvolvam e se sofistiquem, não as vejo como algo radicalmente estranho ao orgânico e biológico. São distintas, mas não estranhas. Tanto não o são que estão se misturando com o orgânico de maneira cada vez mais inextricável.

Quanto ao termo “pós-humano”, suas conotações extrapolam de longe a mera caracterização dos corpos. Não obstante incluam as mutações que as tecnologias estão provocando no real do corpo, há dimensões antropológicas e filosóficas implicadas nessa expressão que a dotam de uma complexidade que envolve, mas vai além da tecnologia e até mesmo da biologia.

Estão em voga correntes de pensamento, ou melhor, ideologias impregnadas de misticismo, que compreendem o humano como um estágio transitório na evolução da inteligência. Na seqüência dessa evolução, o pós-humano significaria a superação das fragilidades e vulnerabilidades de nossa condição humana, sobretudo, do nosso destino para o envelhecimento e a morte. Tal superação seria atingida pela substituição de nossa natureza biológica por uma outra natureza artificialmente produzida que não sofreria as limitações e constrangimentos de nosso ser orgânico, hoje obsoleto. A meu ver, além de simplista, reducionista, essa compreensão é ilusionista. Falta-lhe, ironicamente, uma visão mais clara do próprio evolucionismo e do desenvolvimento antropológico da constituição simbólica do ser humano.

Sem negar a originalidade das mutações que a tecnociência está atualmente introduzindo, não se pode deixar de ver que elas estão na linha de continuidade e de aumento de complexidade daquilo que tenho chamado de crescimento dos signos na biosfera como fruto da externalização da capacidade simbólica humana (Santaella 2003a: 209-2 30; 2003b: 183-194), algo que teve início no momento em que o ser humano se constituiu como tal através da posição bípede e da fala. Trata-se de uma idéia similar


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àquela que é defendida por Serres (1986 apud Bruno 1999: 102), quando chama o homem de animal cujo corpo abandona suas funções, lançando-as no exterior, onde adquirem novas funções. Assim, a boca evoluiu da captura do alimento para a fala, a mão deixou de ser pata e se soltou para pegar as coisas, e mesmo fabricá-las, e, então, para desenhar, escrever etc.; a memória deixou o cérebro para passar ao papel e agora aos chips. Portanto, como lucidamente complementa Bruno:
(Início da citação)

o homem que “abandona” o seu corpo é o homem que faz técnica, que se desprende do aqui e agora das circunstâncias, das imposições do meio ou das urgências vitais e produz, projeta o que não estava aí. Ë aquele, portanto, que estabelece com a natureza — com o seu corpo e com o seu meio — não uma simples relação de acomodação ou adaptação, mas de transformação. Deste modo, não é o corpo nu ou natural que estabelece a mediação ou a fronteira entre o homem e o mundo, mas um corpo atravessado, modulado pela técnica — não é por acaso que esta também se define como mediação. Mas isto não deve conduzir à suposição de que a técnica seja um mero prolongamento das funções do corpo — aí compreendidas as cognitivas —, pois, ao disseminar suas funções no espaço externo, nem o corpo, nem o mundo permanecem os mesmos — o interior e o exterior, bem como a mediação entre eles, ganham novos contornos.

(Fim da citação)
Por tudo isso e por acreditar que, dentro de um processo evolutivo que já vem de muito longe, o ser humano está hoje, de fato, ganhando novos contornos, para me referir à atual necessidade de repensamento do humano na pluralidade de suas dimensões — molecular, corporal, psíquica, social, antropológica, filosófica etc. — utilizo a expressão “pós-humano”. Para me referir à heterogeneidade do corpo hibridizado com as tecnologias, venho utilizando, desde 1997, a expressão “biocibernético” com um sentido mais amplo do que o de “protético” e de “ciborgue”, embora inclua ambos, conforme ficará explícito mais adiante.
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*OS TRÊS MOVIMENTOS DO CORPO BIOCIBERNÉTICO*
Em meio à profusão de aspectos que as complementaridades, interfaces e hibridizações do corpo com as tecnologias apresentam, vejo a possibilidade de sistematizar essa profusão em três grandes movimentos: o primeiro vai de dentro do corpo para fora. Tem-se aqui as conexões permitidas por serviços informáticos telecomunicacionais, acessíveis por meio de um enxame de dispositivos que vão desde os computadores portáteis, telefones celulares, pagers etc., até a telepresença, realidade virtual etc. Tais dispositivos possibilitam ultrapassar os limites espaciais, transportando a mente sem a necessidade de se deslocar o corpo. O segundo é intersticial, quer dizer, exibe-se em sua aparência, localizando-se entre fora e dentro. São as técnicas de body building e body modification. O terceiro vem de fora do corpo para dentro dele. Trata-se dos implantes e próteses que pretendem corrigir funções orgânicas avariadas, ou ampliá-las, transformá-las e até mesmo criar novas funções. Em seu estudo sobre a arte tecnológica na sua relação com o corpo, Bruno (1999: 99-107) classifica essas relações em duas tendências: intracorporais e intercorporais.
(Início da citação)

A primeira caracteriza-se pela intrusão da tecnologia no corpo reconfigurando tanto o espaço interno do corpo quanto sua relação com a exterioridade e com a técnica, a segunda engendra processos de ramificação do corpo no espaço externo — os dispositivos tecnológicos situados fora ou na superfície dos corpos, multiplicam as suas capacidades de expressão, afecção e conexão, para além da pele e dos limites territoriais naturais ou etológicos.

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Essa classificação apresenta alguma semelhança com a divisão triádica que estabeleci atrás. A diferença entre ambas está na idéia de movimento ou vetor com a qual pretendo enfatizar o caráter processual dinâmico das fusões entre corpo-tecnologia, além dos encontros possíveis entre seus movimentos. É fácil imaginar que, no movimento de dentro para fora, há vários pontos de
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contato ou de indistinção com o movimento de fora para dentro. Nesse mesmo sentido, Bruno (1999: 102) afirma que “a interioridade e a exterioridade não são, pois, dimensões espaciais estáticas, mas domínios relativos à história das mediações onde as fronteiras entre o dentro e o fora não cessam de se alterar”.
*De dentro para fora do corpo*
Como lembra Moreno (1999: 50), o processo de virtualização do corpo está ligado às diversas funções somáticas. O telefone virtualiza a audição, a televisão, a vista, os sistemas de comunicação, a percepção e, com a realidade virtual, “pode-se experimentar uma crescente integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas”. Nessa perspectiva, no seu movimento do interior para o exterior, o corpo biocibernético já teve início com as tecnologias mecânicas da era industrial, cujo paradigma está patente na câmera fotográfica. Como extensão da visão, a câmera aumenta o potencial desse órgão sensório na sua função perceptivaexploratória, O que é importante notar é que, em sua capacidade extensora, ao acoplar-se à visão, esse tipo de máquina dilata, amplia o corpo em direção ao exterior. De lá para cá, essa ramificação e amplificação corporal foi crescendo cada vez mais até atingir uma dimensão planetária, como foi discutido por Kerckhove, em A pele da cultura (1997).

Embora o conceito macluhniano dos meios de comunicação como extensões (McLuhan 1969) tenha recebido muitas críticas, sustentadas em argumentos diversos, não há dúvida de que foi esse autor o primeiro a se dar conta da extensão funcional dos órgãos sensórios por meio de aparatos técnicos ou próteses. Nessa mesma direção, em um estudo sobre o homem e as máquinas (Santaella 2003b: 195-208), chamei de máquinas sensórias os meios de comunicação mecânicos e eletro-eletrônicos, visto que essas máquinas funcionam como ampliações, para fora do corpo, de capacidades perceptivas dos sentidos humanos. Segundo McLuhan, a televisão vai mais fundo, na medida em que amplifica o sistema


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nervoso central. De fato, as máquinas vêm passando por um visível processo evolucionário que acaba se revertendo em um aumento de complexidade dos próprios sentidos humanos. Assim, das máquinas sensórias passamos para as atuais máquinas cerebrais que conectam nossas mentes em redes na constituição de uma inteligência coletiva, como afirma Lévy (1998).

No ponto em que estão hoje, as próteses tendem para a imaterialidade, primando pela inteligência e memória. Segundo Couto (2001: 167), sua mais recente característica é a invisibilidade, O suporte físico das máquinas é “cada vez mais reduzido e a tendência é facilitar a correspondência entre o animado e o inanimado, o fora e o dentro, o material e o imaterial. As próteses da era informática estão viradas mais para a virtualidade e a transparência do que para o visível e o aparente”. Cada vez mais sofisticadas e sutis, as máquinas estão aptas a estender os músculos, as ondas cerebrais e descargas elétricas do corpo por meio de sensores, eletrodos, dispositivos robóticos, tal como os artistas da era digital vêm explorando. Modulando nossas capacidades físicas, sensórias e cognitivas, os recentes dispositivos técnicos apontam para


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a ‘necessidade’ de miniaturização, desmaterialização e produção de materiais biocompatíveis que possam tornar-se mais íntimos e próximos do corpo. Mas, ao invés de ingressarem no espaço interior, esses dispositivos devem alojar-se na superfície dos corpos, revestindo-os com uma espécie de segunda pele supersensível capaz de transduzir informações entre o homem e a máquina de um modo cada vez mais direto e livre dos constrangimentos de peso, movimento e deslocamento no espaço. O simples movimento dos olhos tende a substituir o mouse como interface entre o homem e o computador; as pesadas e desconfortáveis ferramentas de interface da Realidade Virtual — videocapacetes e datagloves — vêm sendo substituídas por pequenos e leves óculos, biocaptadores etc.; o passo seguinte é criar ‘interfaces bióticas com o cérebro e suas zonas visuais, olfativas, emocionais e motoras para aí fazer nascer diretamente imagens, sons e sensações’ (Rosnay 1997 apud Bruno 1999: 105, 107-108).

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Nesse ponto, o movimento de dentro para fora, encontra-se com a superfície do corpo, na qual opera-se o movimento que chamei intersticial cujas formas biocibernéticas se expressam no body building e body modification.
*A superfície entre fora e dentro do corpo*
A idéia de reconstruir e modificar o corpo é recente no ocidente e está ligada a vários fatores. Góes (1999) nos apresenta um histórico acompanhado de uma boa discussão desses fatores. Em uma fase mais recente, o misto de disciplina ascética e hedonismo narcísico que caracteriza o body building veio se intensificando dos anos 60 para cá. Na sociedade do espetáculo, a hipervalorização da aparência física do corpo é fruto de sua excessiva exposição no espaço público. Os modelos para essa aparência são dados pela exacerbação de imagens da mídia: imagens de top models, pop stars, atores e atrizes hollywoodianas e da TV. Essas imagens funcionam como miragens de um ideal corporal a ser atingido. É a força desse ideal que estimula o investimento disciplinar necessário à reconstrução do corpo a qual implica musculação, cosmetologia, dietas. Uma vez que as imagens das mídias hipertrofiam a perfeição, através do uso de artifícios das mais diversas ordens, o ideal almejado se prova sempre inalcançável. Isso retroalimenta a busca que dá sustento às indústrias da beleza que se multiplicam nas academias de ginástica, nas fisioterapias, nos aconselhamentos presentes nas revistas, nas infinitamente variáveis receitas para o emagrecimento e o embelezamento rápidos e milagrosos.

A modificação do corpo está ligada às cirurgias plásticas, enxertos, à química dos esteróides, ao branding (marcar o corpo por meio de queima com ferro em brasa) e às técnicas de piercing e tatuagem. Cada uma dessas formas tem especificidades e, no seu conjunto, elas apresentam variações que vão da modificação mais leve até à transfiguração. Enquanto a construção do corpo está mais relacionada com sua aparência e imagem, a modificação afeta o real do corpo e, por isso mesmo, exibe uma tal complexidade psíquica que reservei um momento adequado para refletir sobre ela no capítulo 10.


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De todo modo, o caminho do body building para o body modification evidencia a dificuldade de se falar de um dentro e de um fora do corpo. “Este parece ter se tornado apenas uma superfície que reúne e confunde as duas dimensões, dentro-fora, um mapa exterior (a pele) em que circulam intensidades ‘interiores” (Góes 1999: 38). Quando a body modification atinge o nível dos esteróides, a vertente intersticial começa a se encontrar com a terceira vertente do corpo biocibernético.
*De fora para dentro do corpo*
O movimento de fora para dentro coincide com aquilo que mais comumente recebe o nome de “ciborgue”. O corpo ciborgue constitui-se assim em uma das vertentes do corpo biocibernético entre outras duas. Daí a abrangência maior do sentido que pretendo imprimir a este último.

Segundo Kunzru (2000: 133-139), ciborgues reais têm estado entre nós por 50 anos. Em 1953, uma máquina constituída de uma combinação de pulmão e coração foi utilizada para controlar a circulação sangüínea de uma moça de 18 anos durante uma operação. O primeiro implante de marca passo foi realizado em 1958. No final dos anos 50, no Hospital Estadual de Rockland, Nova York, uma pequena bomba osmótica foi implantada no corpo de um rato.

Clynes e Nathan Kline, em 1960, criaram o termo cyborg inspirados no experimento com o rato de Rockland, cuja bomba injetava em seu corpo doses controladas de substâncias químicas. Com o conceito de ciborgue, essa dupla buscava descrever o “homem ampliado”, melhor adaptado para as viagens espaciais por meio de um coração controlado por injeções de anfetamina e pulmões substituídos por uma “célula energética inversa”, alimentada por energia nuclear. Desde então, a idéia de um ser humano ampliado pelas tecnologias começou a se generalizar e nossa imaginação foi sendo crescentemente fertilizada no cinema e TV por essa idéia (ver Santaella 2003a: 187-189). Mas a grande
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difusão do termo explodiu internacionalmente com o célebre “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista ao final do século XX”, de Donna Haraway (1985, 2000). Ao abrir as portas para as feministas questionarem as dicotomias ocidentais entre mente/corpo, organismo/máquina, natureza/cultura, antinomias estas que também davam suporte ao patriarcado, a idéia do ciborgue penetrou intensamente na cultura, colocando em questão não apenas a relação do humano com a tecnologia, mas a própria ontologia do sujeito humano (ver Härtel e Schade 2000).

Como foi bem lembrado por Kunzru (2000: 136-37), há algo que torna o ciborgue de hoje fundamentalmente distinto de seus ancestrais mecânicos: a informação. Para Haraway, os ciborgues são “máquinas de informação”, trazendo dentro de si sistemas causais circulares, mecanismos autônomos de controle, processamento de informação.

A idéia de máquinas informacionais teve início com a cibernética de Norbert Wiener (1948), a partir do conceito matemático de informação de Shannon. Wiener notou que um imenso número de diferentes fenômenos dependia de informação, mais especificamente, daquilo que, na época, os engenheiros estavam chamando de feedback ou retroalimentação. Esta traz à baila informação sobre a eficácia de um sistema, e a informação é, então, realimentada no sistema, permitindo ajustamentos sensíveis com base nos resultados obtidos.

Os seguidores de Wiener viram a cibernética como “uma ciência que explicaria o mundo como um conjunto de sistemas de feedback, permitindo o controle racional de corpos, máquinas, fábricas, comunidades e praticamente qualquer outra coisa”. Vem daí a idéia da construção de ciborgues. Para esses construtores, “o corpo era apenas um computador de carne, executando uma coleção de sistemas de informação que se auto-ajustavam em resposta aos outros sistemas e a seu ambiente” (Kunzru 2000: 137). Para se atingir uma melhoria no corpo, bastaria aperfeiçoar os mecanismos de feedback ou conectar o corpo a um outro sistema — um coração artificial, um olho biônico etc.


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Gradativa e crescentemente, essa concepção de cibernética foi sendo criticada por uma série de razões, entre elas, de um lado, a generalização da teoria e sua incapacidade para lidar com detalhes, de outro, a limitação da noção matemática da informação diante de fenômenos não quantificáveis. Apesar das críticas, ultimamente, a cibernética de Wiener vem sendo sistematicamente relembrada devido não apenas à sua concepção abstrata, hoje atual, do corpo como uma malha de redes, como às sofisticadas simbioses do humano com o maquínico que têm surgido recentemente.

O movimento da tecnologia vindo de fora para dentro do corpo, que estou aqui caracterizando como o corpo ciborgue, já começa nas tecnologias biomédicas com seus aparelhos de diagnóstico que penetram, de modo não invasivo, em regiões cada vez mais profundas e cada vez menores dos órgãos, tecidos, membranas, células, genes. Os recessos do corpo são virados pelo avesso para serem devolvidos como imagens precisas.

Em um nível de sofisticação ainda maior, corpos podem ser digitalizados e recriados em computador. Exemplo disso encontra- se no projeto Voxel Man, produzido por um grupo de cientistas da Universidade de Hamburgo-Eppendorf, em 2001. Um modelo de cérebro projetado por Leonardo da Vinci foi reconstruído no computador e preenchido com dados colhidos de três fontes. A primeira fonte provinha de um projeto anterior, The visible human, um modelo computadorizado perfeito de um corpo humano a partir de processos complexos de tratamento de um cadáver doado para esse fim. A segunda foi obtida de dados de material do sistema vascular, a partir de imagens de ressonância magnética de um paciente. A terceira, relativa à morfologia dos ossos, tomou como base dados obtidos por tomografia computadorizada (Santoro 2003: 309). Mas o movimento para dentro do corpo não pára aí.

Novos materias, cada vez mais nanicos e moleculares, são manufaturados para penetrar e habitar o corpo, numa “progressiva colonização dos órgãos e das vísceras do corpo animal do homem”, dando origem à época dos “componentes íntimos”, no dizer de Vinho (1996: 91). Enquanto as neurociências levam à


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fabricação de ingredientes químicos capazes de modular comportamentos e sensibilidades, “as nanotecnologias prometem a ingestão de estimulantes técnicos pastilhas inteligentes — que não visam apenas suprir um déficit ou corrigir um desvio, mas superestimular e superexcitar as faculdades mentais que não estarão mais limitadas ao corpo orgânico e químico” (Bruno 1999: 101).

Em um nível ainda mais profundo, ao decifrar a estrutura molecular do vivo, a biologia permite intervir, manipular e modificar a própria informação biológica que constitui sua memória. Com isso, é a vida, é o design e desígnio humanos, na sua essência biológica, que está hoje nas mãos da humanidade, rompendo todas as fronteiras entre dentro e fora, natural e técnico, seleção natural e seleção artificial. Não é de se estranhar que o corpo, na multiplicidade de facetas e dimensões que apresenta, esteja convertido hoje no grande tema da cultura do qual nenhuma área das ciências do homem pode escapar ilesa.


PARTE 5: O CORPO NA ARTE: DOS ANOS 70 À BIOCIBERNÉTICA ATUAL
A história da arte demonstra que o corpo humano sempre esteve, de uma maneira ou de outra, com maior ou menor intensidade, no foco de atenção dos artistas. A par do teatro e da dança que são artes do corpo por excelência, também nas artes visuais, desde o mundo grego, as medidas perfeitas compunham o modelo abstrato de um corpo ideal. Na arte religiosa, a imagem do corpo era emanação do sagrado. Ao se desprender da religiosidade, o corpo foi encontrando na arte da escultura e da pintura, especialmente no retrato, formas privilegiadas de registro.

Não obstante sua aparição constante particularmente nas artes do Ocidente, nada pode ser comparável à crescente centralidade do corpo nas artes a partir das vanguardas estéticas no início do século passado. Além de onipresente, no decorrer do século XX até hoje, o corpo foi deixando de ser uma representação, um mero conteúdo das artes, para ir se tornando cada vez mais uma questão, um problema que a arte vem explorando sob uma multiplicidade de aspectos e dimensões que colocam em evidência a impressionante plasticidade e polimorfismo do corpo humano. É o corpo como algo vivo, na sua vulnerabilidade, seu estar no mundo, suas transfigurações, que passou a ser interrogado. Não foram poucos os fatores responsáveis por esse questionamento.

Segundo Palumbo (2000: 75), no curso do século XX, sobretudo dos anos 60 para a frente, o esquema conceitual da ciência
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moderna elaborado por Galileu e Descartes e completado por Newton, atingiu finalmente uma crise. O conceito de natureza como ordem objetiva e causal governada por leis que regulam os fenômenos de uma maneira determinada, tornando-os previsíveis, e o conceito de ciência como conhecimento matemático baseado no cálculo e na medida quantitativa evidenciaram-se contraditórios, quando relacionados com a natureza caótica, criativa e imprevisível dos sistemas vivos.

Juntamente com as artes e as ciências, também na literatura, filosofia e psicanálise, as dimensões da corporalidade foram radicalmente questionadas. Com Foucault, descortinou-se um campo de investigação relativo à ação das práticas culturais, instituições, saberes e poderes sobre a experiência do corpo. A partir de Der- rida e Deleuze, a crise do sujeito e da razão abriram caminho para um modo de pensar destinado a desconstruir a natureza unívoca do sentido e da forma, do ser e do logos. No cerne dessa crise, tratou-se também de redescobrir a natureza intensiva do corpo.

As margens instáveis entre o ego e o mundo, entre o real e o imaginário, entre o existente e o projetado fizeram do corpo um sistema de interações e conexões. Como matéria do vivido, o corpo tornou-se foco privilegiado para a atividade constante da modificação e adaptação por meio da troca de informação com o ambiente circundante. Esse caráter mutável do corpo em transição perene, sistema auto-organizativo com capacidade de responder à mudança, produzindo mudança, entra em sintonia com um mundo em que os fluxos, movimentos e conexões se acentuam cada vez mais.

Para muitos autores, esse estado de coisas resultou, sobretudo, da aceleração das descobertas científicas e tecnológicas que vem afetando profundamente nossas habilidades para observar, transformar e manipular as funções corporais e nossos conceitos do corpo. Pesquisas em campos como a farmacologia, fisiologia cerebral, tecnologia reprodutiva, doenças, próteses e a biônica levantam questões psíquicas e culturais que vão muito além dos limites meramente técnicos. As distinções entre masculino/feminino, vivo/morto, natural/artificial, corpo/descorporificação, eu/outro,


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autônomo/controlado, orgânico/inorgânico estão sendo crescente- mente erodidas. Quais são os limites naturais do corpo quando o humor, a força, a energia, a potência sexual e a inteligência são manipulados por drogas? Quais são as fronteiras do corpo, quando se faz cirurgia plástica, quando se usa um aparelho de audição, um marcapasso ou um quadril artificial? (Wilson 2002: 150). Enfim, o corpo foi se tornando um foco de indagações e contestações para o qual converge grande parte dos discursos culturais. Longe de estar à margem desses discursos, a arte, ao contrário, é a esfera da cultura que toma a dianteira fazendo emergir complexidades até então insuspeitadas que as teorias e críticas das artes buscam deslindar.

Em trabalhos anteriores (Santaella 2003a: 271-298), desenvolvi o argumento de que a crescente problematização do corpo foi acompanhando pari passu as gradativas e também crescentes metamorfoses do corpo sob efeito de suas simbioses com as tecnologias. Quer os artistas trabalhem ou não com dispositivos tecnológicos, o corpo veio se tornando objeto nuclear das artes porque as mutações pelas quais ele vem passando produzem inquietações que se incorporam ao imaginário cultural. Mesmo que essas mutações não sejam imediatamente visíveis ou que as inquietações não sejam conscientemente apreendidas, elas têm estado no cerne da cultura há algum tempo. Um indício disso encontra-se justamente nas artes, pois são os artistas que conseguem dar forma a interrogações humanas que as outras linguagens da cultura ainda não puderam claramente explicitar.

Em função disso, tenho perseguido a hipótese de que, em tempos de mutações que se intensificam, como é esse o caso desde o final do século XIX, há que se prestar atenção ao que os artistas fazem, pois, com suas antenas ligadas a uma sensibilidade pensante, sinalizam os rumos do projeto humano. Por isso, considero que, iniciada há mais de um século, a intensificação crescente do tratamento do corpo em todos os campos da arte veio sedimentando o terreno para aquilo que chamo de artes do corpo biocibernético, como manifestação mais recente das artes que fazem uso das tecnologias responsáveis pelas transmutações do corpo.
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A problematização do corpo não é, portanto, privilégio da arte tecnológica. A meu ver, sua intensificação em todos os campos da arte foi uma antecipação do papel que o corpo desempenharia nas artes biocibernéticas. Uma das grandes lições da psicanálise vem da constatação de que tudo que faz algum sentido na experiência vivida e na história, assim o faz après coup. Os fatos só significam quando re-significam. De fato, é a centralidade do corpo nas artes biocibernéticas atuais que nos levou a perceber que os rumos para essa centralidade já vêm se anunciando desde o início do século XX. O recorte estabelecido neste capítulo para refletir sobre essa questão parte dos anos 70 até os nossos dias.
*ANOS 70 E O CORPO COMO SÍNTESE DE MÚLTIPLAS TENDÊNCIAS*
Grande parte das variadas manifestações das artes nos anos 70 esteve voltada para a questão do corpo. O corpo vivo do artista tomado como suporte da arte, que teve início em Duchamp e continuou no happening, Fluxus e Acionismo dos anos 50 e 60, atingiu seu paroxismo na body art dos anos 70. Esta contou com a notável introdução de irreverentes mulheres artistas alimentadas pela força libertária dos discursos feministas da época. Esse foi também o período em que a resistência dos artistas à dissimulada servidão da arte ao mercado encontrou sua expressão nas instalações que, mesmo quando não tematizavam diretamente o corpo, estavam tratando dele, ao transformar o receptor contemplativo em um observador participativo.

Por encontrarem nas fotos um meio para a documentação da efemeridade que é própria das instalações, acabaram por fortalecer uma tendência que já se iniciara no happening e Fluxus: dar à fotografia uma função documental subsidiária, mas, ao mesmo tempo complementar, e muitas vezes também artística, da própria instalação. Isso acontece quando a própria instalação não faz uso da fotografia, pois, quando o faz, a fotografia documental, neste caso, passa a funcionar como meta-foto da instalação fotográfica. Foi ainda nos


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heróicos anos 70 que o vídeo emergiu como forma de arte, seguido pelas videoinstalações que atingiriam seu ápice nos anos 80.

Toda performance viva é, sob alguns aspectos, body art. Tanto é que muitos artistas performativos dos anos 60, continuaram seus trabalhos na década áurea da body art e mesmo até os anos 80. Na verdade, as fronteiras entre arte performática e body art são quase indistinguíveis. Mas alguns autores fazem questão de explicitar suas sutis distinções. Na body art, o corpo em si não é tão importante quanto aquilo que era feito com ele. Para Amelia Jones (1994: 546-84), a body art é um termo mais amplo do que arte performativa porque a body art envolve também imagens e outros projetos em que o artista se desempenha de vários modos.

Licht (1975) também aponta para a distinção da body art tanto em relação à teatralidade do happening quanto à formalidade da dança que lhe foi contemporânea, embora tenha sido influenciada por ambas. Ela também difere da arte performática, a despeito de algumas similaridades entre ambas. A body art é primariamente pessoal e privada. Seu conteúdo é autobiográfico e o corpo é usado como o próprio corpo de uma pessoa particular e não como uma entidade abstrata ou desempenhando um papel. O conteúdo dessas obras coincide com o ser físico do artista que é, ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão estética. Os artistas eles mesmos são objetos de arte. Mesmo nos trabalhos criados para existir apenas na forma de documentação fotográfica ou videográfica, o poder da fisicalidade e a diretividade psicológica do gesto transcendem sua representação imagética.

Com algumas exceções, antes dos anos 70, o happening e as artes performáticas eram dominados por artistas homens. Na body art, esse domínio foi questionado com a entrada de um grande número de artistas mulheres que realizaram suas próprias cruzadas transgressoras, expondo seus corpos, suas vaginas e o imaginário obscuro de suas sexualidades, reforçadas pelo auge dos movimentos feministas. Tendo suas precursoras em Shigeko Kubota, Yoko Ohno e Alison Knowles do grupo Fluxus e na radicalidade de Carolee Schneemann, os protótipos dessa cruzada


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