Do ancião ao labrego
Cláudia Maria Amorim
Quando Luís de Camões escreveu sua epopéia, o mundo se apre-
sentava em crise. Era a crise dos valores defendidos pelo Humanismo
e pelo Renascimento, contestados pela evidente instabilidade a que
estava sujeito o homem do século XVI. Na sua epopéia, esta crise
ocidental transparece pelo tom maneirista que o autor imprime à obra.
Podemos lê-lo, por exemplo, no episódio do velho do Restelo, canto
IV, de Os Lusíadas.
O velho é, indubitavelmente, um dos personagens mais dignos
da epopéia. É dele a voz que, destoante, tem a coragem de condenar
os desmandos da empresa expansionista, desvelando o seu real ca-
ráter de “vã cobiça”, “vaidade” e “glória de mandar”. Mesmo con-
denando a expansão ultramarina, o velho, “nas praias, entre a gen-
te”, é ouvido com nitidez pelos navegantes. É apresentado pelo en-
tão narrador deste canto (Vasco da Gama) como alguém de “aspeito
venerando” cujo saber é “só de experiências feito”. Fala durante
dez estrofes do poema e, no momento mesmo em que as naus come-
çam a se afastar, continua sua fala, ouvida ainda pelos navegantes
já no “líquido elemento”.
Na esteira destes mares tantas vezes navegados, vamos encon-
trar na obra Memorial do Convento, de José Saramago, um diálogo
com o texto camoniano do qual não poderia faltar a reatualização
do episódio do velho do Restelo. O século XVIII, época de constru-
ção de conventos (e de passarolas), é certamente um período bastante
conturbado em Portugal. Ideais iluministas dividem o cenário com os
autos-de-fé da Inquisição num momento marcado pelas contradições,
presentes, inclusive, nas hesitações do próprio rei D. João V.
Na construção do convento de Mafra, durante o seu reinado,
trabalham os homens não-assinalados, esquecidos pela história, e
sem nenhuma possibilidade redentora na Ilha dos Amores. Na epo-
péia em que se transforma a construção deste convento, o velho
também aparece para denunciar os desmandos do rei e da pátria
portuguesa, metida já numa “austera, apagada e vil tristeza”. Po-
rém, diferentemente do que acontece no episódio camoniano, o ve-
lho que aqui comparece não consegue ser ouvido e, por tamanha
ousadia, é silenciado. Também este velho, entre as gentes, levanta
sua voz e conhecemos que “é um labrego de tanta idade já que o não
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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quiseram”. Do alto de um valado, “púlpito de rústicos”, revela o
que vê, naturalmente que também com um saber só de experiências
feito: “Ó glória da mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem
justiça.” Após isto, dá-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabeça,
até que o velho caia por fim morto.
De modo diverso ao que acontece no texto camoniano, o velho
não tem ou não é apresentado como alguém de aspecto venerando.
Ao contrário, é um labrego, um aldeão, rejeitado para o trabalho
pela idade. Dele sabemos ainda que, apesar da avançada idade, con-
segue levantar a voz, não se intimida diante do que vê.
No entanto, não o deixam falar. É silenciado covardemente e o
pouco que consegue dizer nem chega aos ouvidos do rei, sentado em
seu trono, alheio àquilo que se passa nesta nova epopéia.
Dois momentos, dois velhos que sobre sua época se manifestam.
No fim do conturbado século XVI, um velho, digno pelo seu saber de
experiências feito, consegue pelo menos ser ouvido; no século XVIII,
outro velho, igualmente sábio pela sua avançada idade, pela sua co-
ragem e dignidade de não se calar diante do que vê, outro velho,
dizíamos, tenta falar. Mal pronuncia as primeiras palavras, já o im-
pedem os quadrilheiros do rei. Parece que, com o passar dos séculos,
considera-se menos o saber que se adquire com a experiência, com a
idade. O fim do nosso que o diga se de aposentados, de inativos não
só impedem a fala como desejam roubar-lhes o pão e a dignidade.
Psicanálise e Nosso Tempo
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