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minente - "Hindu há tantas gerações quantas conhecemos", ele disse quando sentamos numa casa de chá perto do mosteiro em que nos hospedamos em Bodh Gaya. O pai dele, Premnath Seth, é aposentado de uma carreira bem-sucedida na manufatura de calçados. A mãe, Leila Seth, é advogada também aposentada, foi a primeira juíza de um tribunal superior na índia. Sua autobiografia, On Balance, foi publicada enquanto eu estava na índia, e ela recebeu bastante atenção da imprensa por isso. O irmão dele é escritor, Vikram Seth (The Golden Gate, A Suitable Boy etc).
Shantum Seth desliza tranqüilamente pelo rio Ganges, com a antiga cidade sagrada hindu de Benares (hoje Varanasi) aojundo.
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Morava em Londres e também foi alvo da imprensa indiana, porque tinha sido nomeado curador do Museu Britânico.
Shantum havia seguido um caminho que devia levar para uma carreira bem-sucedida nos negócios como a do pai dele, mas nesse caminho a sua consciência apareceu. Ele lembrou que um dia estava hospedado num hotel e que se deu conta de que uma noite naquele hotel custava tanto quanto o salário de uma semana de um sapateiro. O hinduísmo, com seu rígido sistema de castas, perpetuava aquela injustiça social, afirmou. Shantum tinha seguido alguns gurus hindus, mas no fim ele disse: "Viajei demais, meus pés não tocavam no chão. E no hinduísmo há essa postura de que 'está tudo bem, como deve ser'. Baseia-se demais na fé. Fui criado com uma maneira de encarar a vida mais ocidental, mais prática, científica e racional." Depois de completar sua tese sobre Mahatma Gandhi e o desenvolvimento sustentável, ele se envolveu com trabalho social e com o movimento pela paz, mas "em vez de ficar em paz fui ficando mais agitado e pronto para a briga. Você se torna parte do problema".
Nos últimos vinte anos Shantum trabalha no setor de desenvolvimento e mais recentemente como consultor do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para promoção de trabalho voluntário, subsistência e turismo. Também participa ativamente de um grupo chamado Ahimsa Trust, que trata da paz e dos problemas do desenvolvimento.
Parece irônico, mas ele precisou de uma longa viagem à Califórnia para descobrir o budismo e encontrar um mestre espiritual que achava que valia a pena seguir.
- Ouvi dizer que os melhores mestres do mundo estavam na Costa Oeste. Além disso havia toda aquela música de protesto; isso foi no período em que protestavam contra a Guerra do Vietnã. Dylan, Joan Baez, Peter, Paul e Mary, Country Joe e o Fish.
Quando ele mencionou Country Joe cantamos em uníssono um dos mantras mais memoráveis daquele tempo: "Gimme an F... F! Gimme a U... U!..."
Aquele também foi o ápice do movimento do potencial humano. Shantum visitou os lugares que constavam de todas as ver-
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soes da contracultura norte-americana da peregrinação sagrada: Esalen, Taos, Boulder e a Fundação Ojai. Foi em Ojai, que fica a 146 quilômetros a noroeste de Los Angeles, nas montanhas Los Padres, que ele encontrou o monge vietnamita budista e ativista da paz Thich Nhat Hanh.
— Ele me lembrou Gandhi, e além disso o budismo nos dava uma chance de realmente tocar na paz. Não é como fazer alguma coisa agora para chegar a algum lugar depois, como nas outras religiões. Está tudo à nossa volta agora, se nos conservarmos no presente.
Hoje ele é aluno do reverendo Hanh, foi ordenado mestre {Dharmacharya) e, com sua mulher e dois filhos pequenos, passa alguns meses por ano no centro de retiro da Plum Village do reverendo Hanh no sul da França.
Quando ele voltou para a índia depois dessa viagem para a Califórnia, convidou o reverendo Hanh a ir para a índia, fazer uma peregrinação budista. Foi em 1988, a primeira de Shantum e desde então ele tem servido de guia.
- Faz com que eu me entenda melhor - ele me disse. - Já se tornou parte da minha prática. Como o que faço para enfrentar situações difíceis quando elas aparecem.
Siddhartha Gautama nasceu em Lumbini, mas podemos dizer que o Buda nasceu aqui em Bodh Gaya. Foi nessa aldeia poeirenta, no meio das vastas planícies do rio Ganges — uma paisagem salpicada de campos de arroz, com suas famosas figueiras e bosques, e com muitas aldeias de casas com telhado de palha -, que o peregrino de 35 anos sentou sob uma árvore e ficou assim até encontrar o que estava procurando, saindo da sombra da árvore como "aquele que despertou", o Buda.
Ele levou seis anos para chegar lá desde que deixou o palácio da família aos 29 anos de idade, numa noite que os budistas chamam de "a Grande Partida". O que, exatamente, aconteceu naquela noite, e nos seis anos seguintes, deixa até mesmo os principais líderes budistas cocando a cabeça. Como ocorre em toda a vida de
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Siddhartha, os fatos se misturam com a ficção. Em The Buddha: A Short Biography (o título, O Buda: breve biografia, por certo pretendia ser irônico), John Strong, diretor do departamento de filosofia e religião da Bates College em Lewiston, no Maine, explica:
[Os budistas] narram muitas histórias que têm sido lembradas e reverenciadas, repetidas e reformuladas com o passar dos séculos, e esses episódios foram aceitos como relatos inspiradores que valem ser lembrados, seja qual for sua base na história. Juntas, elas formam uma biografia sagrada, ou melhor, diversas biografias sagradas, pois veremos que há muitas versões dos relatos sobre a vida do Buda. Essas narrativas podem conter "ficções" sobre o Buda - lendas e tradições que se aglutinaram em torno dele -, mas essas "ficções" são, de certa forma, "mais verídicas", ou pelo menos religiosamente mais significativas, do que os "fatos". São certamente mais abundantes e generosas, mais interessantes, e mais reveladoras a respeito das constantes preocupações dos budistas. Podemos saber muito pouco sobre o "Buda da história", mas sabemos bastante coisa sobre o "Buda das histórias".
Por que duas versões? Há duas razões para isso. Uma, com que a maioria dos biógrafos do Buda concorda, é que "nós temos poucas informações que possam ser consideradas sólidas historicamente", como explica Karen Armstrong em Buddha. Ela observa que a "evidência externa de que uma religião chamada budismo existia" vem das inscrições feitas pelo rei Ashoka, o governante mauryan e "budáfilo", nas stupas que ele construiu, como o templo Mahabodhi mencionado anteriormente. O problema é que isso apareceu cerca de duzentos anos depois da morte de Buda. Até então a vida e a filosofia dele foram passadas de uma geração para a seguinte através da tradição oral. Os primeiros textos mais úteis são os escritos em pali, um dialeto do norte da índia, cujas origens são imprecisas, mas que parecem vir do magadhan, a língua que o próprio Gautama falava. O chamado Cânone Pali foi preservado oralmente até ser de fato escrito aproximadamente no primeiro século antes da era cristã. Cerca de
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quatrocentos anos mais tarde. Você pode imaginar, por exemplo, os exageros heróicos de boca em boca que seriam acrescentados às conquistas de George W. Bush em 2406, se não tivéssemos livros e jornais para documentar suas conquistas reais, ou a falta delas?
O outro motivo, acredito, é a natureza humana. Para resumir, temos problemas com a realidade. O resultado desse desconforto com as coisas do jeito que são é que queremos a super-realidade. Ou a sobre-realidade. Não nos satisfazemos com heróis. Queremos... precisamos de... super-heróis. O Buda, se é que acreditamos em qualquer parte da história, foi um ser humano que realizou um feito super-humano. Ele entendeu o potencial humano muito antes de o movimento chegar às banheiras de água quente de Esalen. Não podemos aceitar que um ser humano tenha atingido um estado que a maioria de nós pensa que nunca atingirá. E o segredo do budismo. Por isso, é natural atribuir a ele poderes sobrenaturais, super-humanos. É isso ou fazer dele um Deus, o que o Buda não incentivava. E assim nasceram as histórias fantásticas, de uma vez ter ido voando para Sri Lanka, de aparecer em dois lugares ao mesmo tempo, de fazer parar os elefantes selvagens com um olhar, de ter nascido com todos os conhecimentos. O Buda se transformou no projeto da perfeição, ou pelo menos da fantasia humana da perfeição, e sobre a qual os homens fazem as próprias projeções do que um ser "iluminado" deveria poder realizar.
Eu ficava imaginando o que o Buda ia pensar de todas essas incrustações e amplificações na vida dele. Ele, o empirista, que com tanto fervor recomendou que baseássemos nossos pensamentos, sentimentos, ações, e tirássemos conclusões apenas do que vemos, cheiramos, ouvimos, saboreamos ou tocamos. Não preciso imaginar. Dizem que uma vez um chefe de família chamado Kevattha, seguidor fiel de Buda, sugeriu que ele executasse feitos super-humanos e milagres. Assim, disse Kevattha, mais gente ainda passaria a acreditar nele. O Buda respondeu:
- Não é assim que eu ensino o dbamma...
Vamos voltar para aquela noite fatídica, que algumas fontes chegam a descrever como em junho ou julho, lua cheia, que deu início ao que também é chamado de "a Grande Renúncia", os pri-
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meiros passos que Siddhartha deu em sua peregrinação para se tornar o Buda seis anos depois.
Então lá está ele, um homem que tem tudo que se pode imaginar do mundo material, servos às suas ordens, uma bela mulher que além de tudo está grávida, e no entanto ele está desiludido e insatisfeito. Numa rara visita às ruas fora do palácio, pela primeira vez ele vê os estragos produzidos pelo que todos os outros consideravam apenas fatos da vida - doenças, velhice e morte -, e isso o afeta profundamente. Outra coisa que ele vê também o comove: um homem com um manto amarelo de monge, provavelmente um renunciante ambulante. A postura e a serenidade do homem impressionaram o príncipe Siddhartha e lhe deram a idéia de que aquele homem sabia de alguma coisa que ele não sabia e que lhe dava aquela paz. Algumas versões nos dizem que essas observações pessoais aconteceram num mesmo dia; outras dizem que Siddhartha viu essas coisas num breve espaço de tempo. Mas fica claro na leitura sobre a vida do Buda que para a história ficar mais atraente o tempo é condensado ou simplesmente ignorado.
Os textos em sânscrito dizem que quando ele retornou ao palácio, as mulheres do seu harém o entretiveram sedutoras com uma dança, música e provavelmente algo mais. Distraído e cansado, ele as ignorou e adormeceu. Ao acordar ele as vê em vários estágios de nudez, sedutoramente acomodadas no chão em volta dele. Elas não formam um belo quadro, conforme a descrição de Ashvaghosa, um historiador do século I, em Buddhacarita ("As ações do Buda"):
[Elas] estavam deitadas em poses imodestas, roncavam, esticavam as pernas e braços, todas tortas... Outras pareciam feias, largadas inconscientes como se estivessem mortas... os laços de suas roupas desfeitos... Outra se espalhava como bêbada, de boca aberta, de modo que a saliva escorria pelo queixo, e com braços e pernas abertos, mostrando o que devia estar escondido.
Essa foi a gota d'água. Ele ficou tão desgostoso com aquela visão - dizem que teve a impressão "que era um ossuário cheio de
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corpos espalhados, aqui e ali" -, e então compreendeu a impureza e a impermanência inerentes do corpo. Os textos dizem que ele chamou seu valete pessoal, Chandaka, que selou o cavalo do príncipe e se prepararam para deixar o palácio na calada da noite. Mas antes foi ver pela última vez sua mulher que dormia, Yasodhara, e seu filho recém-nascido, Rahula (que a propósito pode ser traduzido como grilhão, corrente, obstáculo ou impedimento). Os biógrafos e os budistas modernos, especialmente as feministas, têm sempre dificuldade para interpretar e explicar esse comportamento do futuro Buda. Seria ele apenas mais um marido e pai irresponsável, que abandona friamente sua mulher, que teria de criar o bebê como mãe solteira? Será que ele estava sendo sincero de atender àquele chamado maior? Não é, portanto, motivo de surpresa haver duas versões para isso. Uma é que ele dá uma espiada, prefere não acordá-los e vai embora. A outra é que ele fica, faz amor com ela pela última vez e depois vai embora. No fim o resultado é o mesmo. Ele responde ao seu chamado cármico, e as feministas budistas ficam a matutar mais uma inconsistência da vida dele.
Aquela noite o príncipe e seu valete deixam a cidade de Kapilavastu. Quando o dia amanhece, eles já estão na margem do rio Anoma, onde ele raspa a cabeça, se desfaz de suas jóias princi-pescas, troca de roupa e veste um manto de monge, e depois envia Chandaka de volta para Kapilavastu. Agora ele se transformou em um bodhisattva, que literalmente quer dizer ser de sabedoria, aquele que busca o esclarecimento e que trabalha para ajudar os outros a superar seu sofrimento.
Dali o asceta vai para o sul até Rajagriha (hoje Rajgir), a capital do antigo reino de Magadha, famosa como centro de aprendizado espiritual, em busca de um mestre. Enquanto está lá ele conhece o rei, Bimbisara, que fica impressionado com aquele novo mendigo tão carismático. Assim que descobre que ele tinha sido um príncipe, o rei sugere que fique lá com ele para dividir ceu reino. Mas Gautama rejeita a oferta do rei e diz qual é sua missão. Bimbisara então pede que, se e quando Gautama se tornar iluminado, ele volte para Rajagriha, e Gautama concorda.
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Então o que sabemos é que há dois mestres, ou gurus, com quem o jovem monge aprende práticas que acrescenta ao seu repertório. Um guru é Alára (ou Arada) Káláma, renomado sábio de quem Gautama aprende a entrar no estado de transe chamado de "esfera da não-coisa". O outro é Uddaka Ramaputta, outro grande mestre, que ensina para ele como atingir a "esfera de não-percepção nem ausência de percepção", um estado mais elevado do que a esfera da não-coisa. Gautama domina as duas técnicas — na verdade, seus mestres ficam tão bem impressionados com ele que o convidam a ensinar com eles -, mas o bodhisattva deseja mais do que transe. Por isso ele segue em frente.
Para onde exatamente e por quanto tempo não está claro nas biografias, mas é nesse período de tempo que ele inicia as rigorosas práticas de austeridades, privando-se de alimento e até de ar às vezes. Essas práticas eram típicas de tradições espirituais muito populares naquela época. A lógica era que se seus corpos eram o maior obstáculo para a transcendência, então com essa privação os iogues transcenderiam as necessidades primitivas dos seus corpos. Se suas formas físicas causavam a dor, e portanto o sofrimento de ser humano, então se pudessem aumentar a dose de dor e sobreviver a ela, talvez encontrassem assim o caminho mais além. Hoje podemos simplificar essa teoria para "sem sacrifício não há benefício" — sem contar o sacrifício dos exercícios no StairMaster. Em um dos discursos autobiográficos do Buda (ou sutras), o "Mahasaccaka Sutta: O mais longo discurso para Saccaka" de Majjhima Nikaya, ou os discursos médios, ele relata para um monge chamado Saccaka os detalhes de duas dessas autoprivações extremas. Uma é o controle da respiração, que consiste em cerrar os dentes com força e pressionar a língua no palato para fechar a passagem do ar. De boca fechada e nariz tampado, ele cobre as orelhas para bloquear o ruído do ar escapando por elas. O que consegue com esse esforço é uma grande dor de cabeça. Então tenta sistematicamente reduzir o consumo de alimento e acaba se permitindo apenas tomar algumas gotas de sopa por dia. No Majjhima Nikaya ele descreve o efeito disso na sua aparência física:
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... Minhas pernas e braços ficaram como trepadeiras murchas com nós nas articulações; minhas nádegas como casco de um búfa-lo; minha espinha saliente como uma fieira de bolas; minhas costelas como ripas num barracão dilapidado; as pupilas dos olhos pareciam afundadas nas órbitas como a água parece brilhar no fundo de um poço; meu couro cabeludo ficou enrugado e encolheu como um pepino que é cortado ainda verde e que se enruga e encolhe sob o sol e o vento... A pele da minha barriga se amoldava na minha espinha; quando eu queria obedecer aos chamados da natureza, eu caía de cara no chão; quando passava a mão nos braços ou nas pernas os pêlos podres na raiz caíam do meu corpo.
A conseqüência dessas graves privações físicas foi que Gauta-ma ficou tão fraco que uma vez desmaiou e alguns pensaram que estivesse morto. Ele continuou assim sozinho, segundo alguns relatos, na região de Uruvela, próxima à atual Gaya. Depois juntam-se a ele nessa dedicação unilateral ao masoquismo cinco outros ascetas que ele havia conhecido antes quando estava com Uddaka Ramaputta. Eles habitam um grupo de cavernas, as cavernas Mahakala, nas montanhas perto da aldeia e dos campos de arroz ao longo do rio Neranjara (que hoje é chamado de rio Phalgu ouFalgun).
E então, um dia, quando estava sentado meditando, Siddhar-tha se surpreende ao compreender que a automortificação não está servindo para aproximá-lo — talvez nem a avançar em qualquer direção - do objetivo pretendido. E subitamente também tem uma lembrança, da primeira vez que teve uma sensação de paz e de identificação na meditação. Tinha ocorrido na infância dele, espontaneamente, quando estava sentado sob um pé de jambo-rosa numa festa sazonal de preparação da terra para o plantio. Suas amas, que o deixaram lá para irem se divertir na festa, lembraram de repente que tinham de cuidar do príncipe. Correram para o lado dele e ficaram espantadas ao vê-lo de pernas cruzadas e absorto em profunda concentração. Sem esforço algum, instintivamente, com a inocência de uma criança, ele tinha chegado à simplicidade única da mente que é conhecida no
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hinduísmo como samadhi e assim atingiu o primeiro nível do transe chamado àejhana (êxtase). O pai dele, rei Suddhodana, ao saber disso, foi correndo até lá, viu o menino naquela posição meditando e curvou-se aos pés do filho.
Siddhartha raciocina que talvez essa sabedoria que procura esteja dentro de nós desde que nascemos, seja parte da natureza humana que sufocamos com excesso de estímulos, sejam eles o prazer ou a dor provocados por nós mesmos. Mas ele vai além ao perceber que evitar as "cinco proibições" que obstruem o aperfeiçoamento da mente (violência, mentira, roubo, bebida e sexo) não basta. Ou mais exatamente, que são muitas proibições. E quanto às atitudes positivas que podem ajudar a cultivar uma atmosfera que leve àquele estado chamado de nibbana (ou nirvana, iluminação)? Ser prestativo, íntegro, habilidoso, perseverante, desenvolver a bondade amorosa. Praticando essas qualidades, ele conclui, podemos "sentir dentro de nós uma alegria pura", semelhante àquela que sentira na infância.
Feitas essas descobertas, ele se banha e começa a se alimentar para recuperar a força. Quando sabem disso, seus seguidores pensam que ele desistiu da busca e se afastam dele, partindo para cavernas desconhecidas.
Siddhartha então resolve voltar à boa forma física para o que supõe que será o retiro-maratona de meditação que terá de fazer a fim de atingir seu objetivo. Mais uma vez o tempo se contrai nos diversos relatos. Poderia ter levado algumas semanas ou meses. Alguns afirmam que aconteceu da noite para o dia. A versão de Armstrong tem mais sentido. Eis o que ele disse que aconteceu:
Ele "provavelmente começou a criar um tipo próprio de ioga", escreve Armstrong. E depois ele começa a se concentrar na mente, desconstrói e escrutiniza cada pensamento. Ele chamou essa atenção ao funcionamento da mente de "consciência". Em pali é sati, derivada do verbo sar que significa lembrar, recuperar - e mais. Também quer dizer contemplação, reflexão, memória, atenção, zelo, controle sobre a atenção, percepção e vigilância. A prática do sati consiste nessa consciência momento a momento com contemplação, atenção e lembrança de todas as atividades do
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corpo, todos os sentimentos e sensações, todos os pensamentos e todos os objetos, sons, cheiros e assim por diante.
E ele se empenha no que considero precursor da psicanálise de Freud. Presta uma atenção cuidadosa e desmedida aos seus pensamentos, mas em vez de reagir a qualquer um deles, simplesmente observa, sem julgar, o foco dessa minuciosa atenção crescer e depois desaparecer, inevitavelmente. E é isso. Não há nenhum mistério na coisa, nada de levitação, nenhuma experiência extra-corpórea, nenhuma viagem astral. Não há mares se abrindo, nenhum trovão ou relâmpago, nada da voz retumbante de James Earl Jones em off. Essa análise sem juízo de valor permitiu que Siddhartha observasse os fenômenos mentais sem culpa, sem culpar ninguém, sem o desejo de mudar, de se lamentar ou se arrepender. Do seu jeito ele disseca a reação em cadeia dos pensamentos, um efeito dominó psicológico que acaba alimentando sua teoria de "surgimento dependente". Simplificada, essa teoria quer dizer que as coisas, inclusive os pensamentos, não acontecem num vácuo. Cada ação está ligada a outra ação. Do mesmo modo cada pessoa - na verdade tudo que é vivo, criaturas, plantas, sogras — está interligada com todas as outras. Quando se ouve as pessoas dizerem a palavra "carma" numa conversa casual, quer saibam quer não (e o mais provável é que não saibam), estão de fato se referindo ao surgimento dependente, também chamado de origem dependente. Muitos anos depois os físicos definiram essa mesma lei da natureza como a lei de causa e efeito.
E ele entendeu que o efeito daquela causa não durava. Tudo era anicca - impermanente. Essa qualidade transitória da vida era uma das causas do sofrimento. Esse sofrimento - dukkha — não era necessariamente uma desgraça considerável. Eram as indignidades diárias, desapontamentos e desilusões, pequenos aborrecimentos, chaves perdidas, desentendimentos sociais, os altos e baixos de cada minuto das nossas emoções entre o sinal vermelho e o verde. E mais tarde ele escreveu: "Dor, perda e desespero são dukkha. Ser forçado a estar perto do que detestamos é sofrimento, ser afastado do que amamos é sofrimento, não conseguir o que queremos é sofrimento." O apego a qualquer coisa, seja ela esperan-
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ças e sonhos, assim como o desejo de tomar um cappuccino, provoca sofrimento.
Como o próprio texto diz, depois de algum tempo uma mulher local chamada Sujata, vendo o jovem se lavar no rio, oferece um prato de arroz-doce. De acordo com a lenda é a última refeição que ele faz nos próximos 49 dias. Ele sai caminhando da margem do rio Neranjara para Uruvela (hoje chamada de Urail). Lá ele vê "um local aprazível, um bosque e um rio cristalino com margens baixas e uma aldeia próxima cujos habitantes estão dispostos a alimentá-lo", segundo o Majjhima Nikaya do Cânone Pali. Logo se instala embaixo de uma figueira religiosa e escolhe o lugar para sentar de frente para o leste, preparando-se para um longo retiro. E faz seu famoso juramento: "Meu corpo pode secar, minha pele, meus ossos, minha carne pode se desmanchar, mas [eu] não vou sair daqui até ser iluminado."
Em uma longa noite, que dizem ter sido na primavera, ele enfrentou o último obstáculo para ser iluminado, o próprio ego. Se Freud o estivesse analisando naquela noite, poderia ter conje-turado que ele estava travando uma batalha contra os monstros de três cabeças dele mesmo: o id (satisfação das necessidades básicas de prazer), o superego (a consciência moral) e o que equilibra os dois, o ego (raciocínio e solução de problemas). Nessa história os três assumem a forma de Mara. Na mitologia védica, Mara é o deus do amor - apesar de que em sânscrito o nome signifique literalmente a morte. E o ato de amor (sexo) que traz uma pessoa ao mundo; a morte elimina essa pessoa. Sendo assim, esse deus da morte e do amor poderia ser interpretado como um símbolo de samsara, o ciclo nascimento-morte-renascimento que nos impede de ser iluminados (que entre outros problemas, nos tiraria desse ciclo infinito). Conquistando Mara, o Buda está, na verdade, conquistando samsara.
O Mara budista vilipendia o homem, ele o cega, guia para os desejos sensuais; quando o homem fica à mercê dele, Mara tem liberdade para destruí-lo. Mara já tinha visitado o futuro Buda algumas vezes antes, em momentos de mudança na vida dele. Mas ali Mara faz uma última tentativa de atraí-lo de volta ao mundo
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