Português: contexto, interlocução e sentido


A estrutura da parte de Gramática



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A estrutura da parte de Gramática

A parte de Gramática está organizada em três unidades (unidades 4, 5 e 6), nas quais se distribuem os dez capítulos que apresentam o conteúdo a ser desenvolvido ao longo do primeiro ano do Ensino Médio (capítulos do 12 ao 21).

Ao fazer a distribuição dos conteúdos pelas três unidades, procuramos agrupá-los a partir de alguns eixos básicos, para permitir que os alunos identifiquem mais prontamente qual aspecto da língua portuguesa estará sendo trabalhado nos capítulos de uma dada unidade. Nesse sentido, o título das unidades anuncia o eixo que organiza os conteúdos que delas fazem parte:

Unidade 4 — Linguagem

Unidade 5 — Linguagem e sentido

Unidade 6 — Introdução aos estudos gramaticais



Os capítulos de Gramática

A estrutura apresentada pelos capítulos foi pensada para permitir um trabalho mais dinâmico e motivar os alunos a refletirem sobre diferentes aspectos da língua portuguesa.

Apresentamos, a seguir, as seções que definem essa estrutura.

Introdução: texto de abertura

A primeira página do capítulo traz, como forma de introduzir o estudo de um determinado tópico grama-


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tical, a reprodução de textos de diferentes gêneros discursivos (quadrinhos, cartum, anúncio, etc.). Cada texto reproduzido mantém uma relação direta com o tópico a ser estudado e foi cuidadosamente escolhido de forma a permitir que o professor inicie a apresentação de um determinado tópico por meio de algumas questões mais gerais que têm por objetivo “direcionar” o olhar do aluno para os aspectos gramaticais a serem estudados.

As questões procuram levar a uma leitura analítica do texto para fazer com que o aluno reconheça não só determinadas estruturas linguísticas, mas também reflita sobre como elas participam da construção do sentido do texto.

Sugestão de trabalho

As questões apresentadas podem ser utilizadas como ponto de partida para a realização de uma atividade oral em que os alunos discutam o(s) sentido(s) do texto de abertura. Além de motivar uma participação mais ativa dos alunos na aula, essa estratégia permitirá ao professor fazer uma sondagem em relação ao conhecimento que eles têm do conteúdo a ser trabalhado. Como muitos dos tópicos gramaticais já foram vistos durante o Ensino Fundamental, essas perguntas iniciais podem informar o professor sobre o que os alunos já sabem (ou lembram) a respeito do que será tematizado no capítulo.



Apresentação da teoria

Os parágrafos iniciais que introduzem a teoria retomam informações importantes relacionadas à leitura e análise do texto de abertura, algumas das quais respondem a perguntas feitas sobre o texto. Nossa intenção, ao fazer isso, é explicitar para os alunos de que forma as questões iniciais encaminham seu olhar para a percepção do modo como determinadas estruturas linguísticas, que serão apresentadas no capítulo, participam da construção do sentido do texto.

Julgamos importante realizar essa retomada para que os alunos se deem conta da pertinência das atividades iniciais para a compreensão dos objetivos que norteiam esta obra: reconhecer estruturas específicas, identificar as funções que podem desempenhar na língua e o modo como atuam na construção do sentido dos textos.

Durante o desenvolvimento da teoria, procuramos utilizar uma linguagem clara e direta, que favoreça a compreensão dos alunos. Escolhemos textos de diferentes gêneros para exemplificar o conteúdo gramatical, procurando sempre dados em que o aspecto a ser tratado tenha um papel essencial para a construção do sentido do texto.

A apresentação do conteúdo é organizada a partir de uma hierarquia de títulos que traduz a subordinação dos assuntos tratados, para facilitar o aprendizado. Como essa hierarquia de títulos se mantém em todos os capítulos, espera-se que os alunos, uma vez familiarizados com a estrutura dos capítulos, dela se beneficiem no momento de revisar conteúdos estudados ou de procurar informações.

Atividades

O desenvolvimento da teoria é interrompido em alguns momentos por um conjunto de atividades. Com essas atividades, espera-se que os alunos, por meio da leitura e da análise de textos de diferentes gêneros, sejam levados a refletir sobre os conceitos apresentados e deles se apropriem, aprendendo na prática a reconhecer de que modo os aspectos discutidos contribuem para a construção dos sentidos dos textos.

É importante destacar que, na formulação das questões, tomamos o cuidado de criar oportunidades para que os alunos desenvolvam diferentes habilidades. Assim, eles serão solicitados a reconhecer informações, a elaborar hipóteses, a inferir, a relacionar os diferentes aspectos observados, de tal maneira que aprendam a desenvolver uma reflexão mais abrangente e se tornem capazes de dar conta do texto estudado de modo mais completo, investigando diferentes possibilidades de interpretação.

Enem e vestibulares

Aparece logo após a última seção Atividades, do último capítulo de cada unidade. Apresentamos pelo menos uma questão discursiva ou de múltipla escolha proposta no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) ou em algum dos diferentes exames vestibulares do país.

O objetivo é garantir que o aluno, ao mesmo tempo em que confere os conhecimentos adquiridos sobre os aspectos e conceitos abordados em determinado capítulo, informe-se sobre o modo como os conteúdos estudados costumam ser tratados nas avaliações a que se submeterá, durante o Ensino Médio e também nos vestibulares das principais universidades públicas e privadas do país.

Usos de...

Em alguns capítulos, apresentamos a análise de como os aspectos linguísticos estudados participam da estrutura de textos de diferentes gêneros. O objetivo desta seção é fazer com que o aluno compreenda de que modo os conteúdos apresentados na teoria contribuem para a construção de sentido dos textos.



Pratique

Inserida na seção Usos de..., trata-se de uma proposta de produção de texto para que o aluno ponha em prática o que acabou de observar na análise do texto apresentado.

O foco das propostas apresentadas está na reflexão sobre como determinada estrutura participa da construção de um texto, o que permite que o estudo da
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gramática ganhe sentido. Outro objetivo é levar o aluno a compreender como aquilo que está aprendendo pode ser útil no momento de produzir seus próprios textos.



Seção especial: Português no mundo

Preparamos uma seção especial para tratar de questões que merecem destaque particular. Essa seção é apresentada ao final do Capítulo 18 e trata do Português no mundo. Nela, o aluno tomará contato com a diversidade que caracteriza a língua portuguesa, conhecerá os vários países em que ela é falada e descobrirá, por meio de uma linha do tempo, os principais marcos históricos relativos à sua evolução.



Boxes

>Boxe de informação

Apresentado ao longo do capítulo, amplia alguma informação apresentada na teoria.



>Tome nota

É empregado para o destaque a conceitos e definições importantes para o conteúdo estudado no capítulo.



>Lembre-se

Retoma algum conceito ou definição previamente estudado pelos alunos, para que eles possam compreender melhor alguma referência feita na apresentação teórica.



>De olho na fala

Muitas vezes, as estruturas descritas pela gramática normativa não correspondem ao uso feito pelos falantes, principalmente em contextos mais informais. Neste boxe, apresentamos e comentamos estruturas típicas da oralidade. Discutimos também algumas construções recorrentes que, apesar de não corresponderem às prescrições da gramática normativa, são consagradas pelo uso.



>Cuidado com o preconceito

Este boxe aparecerá sempre que for importante chamar a atenção do aluno para situações em que determinadas estruturas linguísticas costumam provocar uma postura preconceituosa em relação a quem as utiliza. É essencial que os alunos reconheçam o contexto em que o preconceito linguístico se manifesta para não incorrerem no mesmo comportamento.



Sugestões de leitura

Para começar a refletir

Como exemplo das leituras que sugeriremos, transcrevemos a seguir dois textos do linguista Mário A. Perini. No primeiro texto, Perini discute a diferença entre fatos linguísticos observáveis e nossas crenças e expectativas acerca da língua. No segundo texto, o linguista discute as diferenças entre o português escrito, usado como língua de civilização em Portugal, no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa, e a língua falada no Brasil, por ele denominada vernáculo brasileiro.



Ver ou não ver (verdades e ficções sobre a língua)

Os homens sempre tiveram um grande desejo de compreender o mundo que habitam. Tentando satisfazer esse desejo, criaram a ciência, assim como a religião e todo tipo de explicações mais ou menos racionais para dar conta da multidão de fatos que os cercam. No entanto, esse desejo de compreender está sempre em luta com uma estranha necessidade de influir diretamente nesses mesmos fatos e em sua interpretação. O homem sempre sonhou encontrar fatos que fizessem sentido, harmonizando-se com suas ideias preconcebidas; e com frequência esse sonho se interpõe entre ele e os fatos, levando-o a interpretar o mundo de uma maneira peculiar.

Claro, a gente não tem acesso direto aos fatos do mundo — sempre os vemos à luz de teorias ou expectativas prévias. Isso aparece, por exemplo, na maneira como se entende às vezes a pergunta:

— Quantos animais de cada espécie Moisés levou para a arca?

A tendência é responder “dois” (ou “um casal”). Mas é claro que a resposta correta não é essa. Temos de responder que Moisés não tem nada a ver com a arca, pois esta foi construída por Noé. Esse é um exemplo de como é fácil deixar de perceber coisas muito claras, só porque nos baseamos o tempo todo em conhecimentos anteriores e, de certa forma, “não gostamos” de ser surpreendidos.

Um dos aspectos mais traiçoeiros dessa limitação da mente humana é a grande vontade que todos nós, lá no fundo, temos de encontrar as coisas “certas” — a vontade de que os fatos venham a confirmar brilhantemente nossas convicções confessas ou implícitas. Quando Galileu, utilizando pela primeira vez uma luneta para examinar o céu, descobriu quatro dos satélites de Júpiter, a opinião geral ficou contra ele. Argumentou-se que só podia haver sete planetas, nem mais nem menos: afinal só há sete aberturas na cabeça; só há sete dias na semana; e só há sete metais. Logo, os planetas são apenas o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno (a definição de “planeta” era diferente da de hoje, claro). Conclusão inevitável: Galileu não tinha visto, não podia ter visto satélite algum; era ilusão, ou talvez mentira dele.

A história da ciência está cheia de casos como esse. Um exemplo desenvolvido em detalhes está no fascinante livro de Stephen Jay Gould publicado no Brasil com o título Vida maravilhosa. Nesse livro, Gould relata um caso em que a interpretação de certos dados (no campo da paleontologia) foi falseada por influência de expectativas prévias.

Todas as áreas de investigação correm esse perigo; e a gramática não é exceção. Vou mostrar alguns exemplos em que o desejo de encontrar confirmação para as crenças do observador leva a uma descrição da língua seriamente falseada. São exemplos muito comuns, e creio que a maioria dos leitores já teve contato com eles.


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Vamos começar com um caso bem simples, que tem a ver com a relação entre a ortografia e a pronúncia: a primeira vogal da palavra tomate, na pronúncia, é u. Isso não é característica da “pronúncia inculta”, mas da fala de todas as pessoas, de qualquer classe social ou nível de escolarização. Se você não acredita, vá ao mercado ou ao sacolão e fique de tocaia junto a uma banca de legumes: quantas pessoas perguntam o preço do “tumate”, e quantas perguntam o do “tomate”? Você rapidamente se convencerá de que a pronúncia normal é com u. No entanto, muita gente nega isso. Alguns professores de português (que deveriam estar bem informados a respeito) insistem comigo que “a pronúncia é com o”.

Eles não podem ter chegado a essa conclusão observando os fatos, pois estes não a sustentam. Foram levados a acreditar que o “certo” é pronunciar como se escreve (sempre que possível); é como se a escrita tivesse primazia sobre a pronúncia. Daí, passam a acreditar que aquilo que ouvem a todo momento não existe. Não querem ouvir e, por conseguinte, não ouvem o u de tomate.

Querem mais um exemplo? Aqui vai: sabemos que é frequente, entre nós, fazer o plural marcando-o apenas no primeiro elemento do sintagma, dizendo por exemplo os relógio. Essas construções, quando não são simplesmente ignoradas, são dadas como da linguagem das “pessoas incultas”, ou de “baixa classe”. Segundo essa opinião, não se trataria de um fato normal do português brasileiro, mas de um “erro” cometido por aquelas pessoas (coitadas) que não tiveram a sorte de uma educação formal suficiente.

No entanto, qualquer levantamento mostra o contrário: construções do tipo de os relógio são amplamente utilizadas pela totalidade da população, incluindo os “cultos” (está bem, vamos excetuar alguns ranzinzas amigos do lhe e do lho). Duvidam? Pois gravem uma conversa entre interlocutores de nível universitário, e depois vejam se pelo menos 50% dos sintagmas de plural não são marcados apenas no primeiro elemento.

Por que não conseguimos enxergar esse fenômeno tão frequente na nossa língua? Pela mesma razão, creio, que impediu os astrônomos do início do século XVII de enxergarem os satélites de Júpiter.

[...]

O que está acontecendo? É um fenômeno velho como o mundo. Galileu o reconheceria imediatamente: estamos colocando nossas crenças, expectativas e desejos à frente dos próprios dados da observação. E, de posse dessas crenças, expectativas e desejos, preferimos, em vez de olhar a realidade, fabricar na nossa cabeça nossa própria realidade.



PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática: ensaios sobre a linguagem. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 17-22. (Fragmento).

As duas línguas do Brasil (qual é mesmo a língua que falamos?)

As línguas diferem muito pouco no que diz respeito a suas capacidades expressivas [...]. Mas, como é evidente, diferem muitíssimo quanto a sua importância cultural, política e comercial. Temos, por um lado, línguas como o inglês, o espanhol, o russo, o chinês, o francês (e, mais modestamente, o português) que servem a vastas comunidades, sendo intensivamente utilizadas na política, na TV e na imprensa, na ciência, na literatura etc.

Elas são chamadas, um tanto preconceituosamente, “línguas de civilização”. Por outro lado, existem línguas de interesse puramente local, como o xavante e o caxinauá entre os índios brasileiros, a maioria das línguas africanas, muitos dialetos locais da Europa e da Ásia, e assim por diante. Essas línguas nem sempre são faladas por comunidades diminutas: embora algumas só tenham algumas centenas de falantes, outras (como o haussa, na Nigéria, e o quíchua, no Peru e na Bolívia) têm vários milhões. O que as opõe às línguas de civilização é que não são usadas intensivamente em toda a gama das atividades da vida moderna. O quíchua, no que pesem seus muitos falantes, não é veículo utilizado na grande imprensa, nem em obras científicas, e tem uma literatura bastante restrita.

O caso mais extremo dessa limitação é o das línguas realmente desprovidas de tradição escrita. Estas podem possuir uma ortografia, em geral de invenção recente, mas o corpo de material escrito nelas é muito pequeno e restrito a certas áreas de interesse: alguma literatura regional, traduções da Bíblia feitas com vistas à catequese, e pouco mais. Tais línguas se chamam “ágrafas” (literalmente, “sem escrita”; mas já vimos que essa privação não precisa ser absoluta). É o caso do xavante, do changana (falado em Moçambique), do bergamasco (falado em Bérgamo, no norte da Itália), de muitas pequenas línguas da Índia.

Existe uma verdadeira multidão de línguas ágrafas pelo mundo afora. Em geral, elas convivem com uma das línguas de civilização, que seus falantes utilizam quando tratam de assuntos fora das necessidades do dia a dia. Dessa forma, um cidadão de Bérgamo, quando conversa com a família, poderá exprimir-se em bergamasco — mas, ao tratar de negócios, falará italiano; ao assistir à televisão, estará ouvindo italiano; e seu jornal de domingo estará escrito em italiano.

[...]


Vamos mudar de assunto agora; mais tarde, tentaremos juntá-lo ao que foi dito acima. Nosso segundo tema é o seguinte: Que língua se fala no Brasil?

Mas será que vale a pena fazer essa pergunta? Todo mundo (e todo o mundo) sabe que a língua do Brasil é o português. Além do mais, é uma língua de civilização, segundo a definição que vimos. Basta pegar um jornal, ligar a TV, passar os olhos nas prateleiras de uma livraria, salta à vista que o português é a língua do Brasil.

Não há dúvida de que a língua de civilização que nos serve é o português. Além do mais, ela não está nem um pouco em perigo de perder essa posição privilegiada: apesar do que se fala dos progressos do inglês em certas áreas, o português continua firme como o veículo de todos os aspectos da cultura brasileira. A imensa maioria da população (incluindo os universitários) é incapaz de se exprimir, e mesmo de ler, em qualquer outra língua. Logo, como se pode ter dúvida sobre a posição do português na comunidade brasileira?

Mas notem que eu não perguntei qual era a língua de civilização do Brasil. Perguntei que língua se fala no Brasil. Explicando melhor: será que falamos a mesma língua que escrevemos e lemos?

Muita gente tem opinião sobre isso; mas para formar nossa própria opinião vamos colher alguns dados. Digamos que estamos usando um binóculo durante o jogo de futebol e um amigo também queira dar uma olhada. Ele chega e diz:
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— Me empresta ele aí um minuto.

É importante observar que essa é uma forma correta de falar naquele local e naquele momento. E que qualquer pessoa poderia utilizar uma frase como essa (não apenas as chamadas “pessoas incultas”). A frase acima faz parte do repertório linguístico de todos os brasileiros; em uma palavra, é assim que nós falamos. Podemos escrever diferente (por exemplo, empreste-me um minuto), mas falamos daquele jeito.

Imaginemos outra situação: uma senhora está na confeitaria encomendando salgadinhos; diz ela:

— Você pode fazer eles pra sábado? A festa vai ser domingo, mas domingo eu não posso vim aqui, porque o bairro que eu moro é muito longe, e meu marido vai no jogo e vai levar o carro. Aí eu busco eles no sábado, se você tiver de acordo.

Imagine a pessoa falando e verá que essa fala é perfeitamente natural. Mas escrita ela choca um pouco, porque está cheia de traços que não costumamos encontrar em textos escritos:

a preposição pra (em vez de para);

o infinitivo vim (em vez de vir);

a construção o bairro que eu moro (em vez de o bairro onde/em que eu moro);

a regência vai no jogo (em vez de vai ao jogo);

as expressões fazer eles (em vez de fazê-los) e busco eles (em vez de busco-os ou mesmo, Deus nos livre!, buscá-los-ei);

o verbo tiver (em vez de estiver).

Agora uns exemplos tirados da morfologia. A estrutura do verbo na língua que falamos é bem diferente da que se encontra na língua que escrevemos. Assim, há formas que nunca aparecem na fala, como:

o mais-que-perfeito simples (fizera, gostáramos, fora);

o futuro do presente (farei, gostaremos, irá).

Na língua falada em Minas, também raramente ocorre o presente do subjuntivo (façamos, gostem, ); essas formas são, entretanto, usuais no Norte e no Nordeste do Brasil.

O verbo falado difere do verbo escrito em outros detalhes. Assim, escreve-se (ou, mais exatamente, as gramáticas mandam que se escreva) quando eu te vir. Mas na fala essa expressão é difícil até de entender; falamos quando eu te ver. As gramáticas afirmam que no presente o verbo vir tem a forma vimos: nós vimos aqui toda semana. Na fala, claro, só se usa viemos, seja presente, seja passado.

Na fala, o pronome nós é cada vez mais substituído por a gente; e, paralelamente, as formas de primeira pessoa do plural (fizemos, gostamos, íamos) vão caindo em desuso. Há pessoas que não as usam praticamente nunca.

Querem mais? Na fala, a marca de plural não precisa aparecer em todos os elementos do sintagma. Assim, formas como esses menino levado (ou mesmo, pelo menos em Minas, ques menino levado!) existem na fala de todas as pessoas. Na escrita, naturalmente, a marca de plural é sempre obrigatória em todos os elementos flexionáveis: esses meninos levados.

Mais um exemplo: o imperativo se forma de maneira distinta na fala e na escrita. Falando, dizemos: vem cá; mas escrevemos: venha cá (no Nordeste, esta forma é também a falada). Outro: na fala, colocamos com toda liberdade o pronome oblíquo no início da frase: me machuquei na quina da mesa; escrevendo, tem de ser machuquei-me na quina da mesa. Mais outro: falando, nem sempre usamos o artigo depois de todos(as): todas meninas têm relógio; na escrita, deve ser: todas as meninas.

Acho que não é necessário continuar. As diferenças são muitas, como todos sabemos. Elas constituem umas das dificuldades principais que enfrentamos na escola, ao tentar produzir textos escritos. Aliás, por que temos tanta dificuldade em escrever textos em português? Não é a nossa língua materna?

A resposta é simples, mas pode surpreender alguns: não, o português (que aparece nos textos escritos) não é a nossa língua materna. A língua que aprendemos com nossos pais, irmãos e avós é a mesma que falamos, mas não é a que escrevemos. As diferenças são bastante profundas, a ponto de, em certos casos, impedir a comunicação (que criança de cinco anos entende empreste-lho?).

Em outras palavras, há duas línguas no Brasil: uma que se escreve (e que recebe o nome de “português”); e outra que se fala (e que é tão desprezada que nem tem nome). E é esta última que é a língua materna dos brasileiros; a outra (o “português”) tem de ser aprendida na escola, e a maior parte da população nunca chega a dominá-la adequadamente.

Vamos chamar a língua falada no Brasil de vernáculo brasileiro (ou, para abreviar, simplesmente vernáculo). Assim, diremos que no Brasil se escreve em português, uma língua que também funciona como língua de civilização em Portugal e em alguns países da África. Mas a língua que se fala no Brasil é o vernáculo brasileiro, que não se usa nem em Portugal nem na África.

O português e o vernáculo são, é claro, línguas muito parecidas. Mas não são em absoluto idênticas. Ninguém nunca tentou fazer uma avaliação abrangente de suas diferenças; mas eu suspeito que são tão diferentes quanto o português e o espanhol, ou quanto o dinamarquês e o norueguês. Isto é, poderiam ser consideradas línguas distintas, se ambas fossem línguas de civilização e oficialmente reconhecidas.

Mas sendo as coisas como são, tendemos a pensar que o vernáculo é simplesmente uma forma errada de falar português. Só que, para que o vernáculo fosse “errado”, teria de existir também uma forma “certa” de falar; mas no Brasil não se fala, nem se pode falar português. Imaginem o seu companheiro de estádio de futebol dizendo:

— Empreste-mo um minuto.

Ou então uma mocinha dizendo para a melhor amiga:

— Se eu a vir amanhã, devolver-lhe-ei estas velhas fitas de vídeo.

É evidente que essas pessoas ficariam, no mínimo, com fama de pedantes.

As duas línguas do Brasil têm cada uma seu domínio próprio e, na prática, não interferem uma na outra. O vernáculo se usa em geral na fala informal e em certos textos escritos, como em peças de teatro, onde o realismo é importante; já o português é usado na escrita formal, e só se fala mesmo em situações engravatadas como discursos de formatura ou de posse em cargos públicos.
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Assim, o “certo” (isto é, o aceito pelas convenções sociais) é escrever português e falar vernáculo. Não pode haver troca: é “errado” escrever vernáculo e é também “errado” falar português.

Não sei se gosto dessa situação; mas é um fato arraigado em nossa cultura e temos de conviver com ele.

[...]


PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática: ensaios sobre a linguagem. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 31-38. (Fragmento).

Montando a sua estante

Dos muitos livros consultados durante a elaboração desta obra, selecionamos alguns cuja leitura pode se mostrar valiosa para a reflexão sobre a linguagem, seus sentidos e usos. Alguns outros nos ajudaram a desenvolver a perspectiva metodológica adotada.

A leitura desses títulos contribuirá não só para a sua formação, mas também para auxiliá-lo a definir novas estratégias de abordagem e a refletir sobre os vários aspectos envolvidos no trabalho com língua materna na escola. Algumas das obras sugeridas constam dos acervos distribuídos pelo PNBE.


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