As galerias como passagens para uma nova percepção.
Benjamin identificava nas galerias comerciais parisienses as "utopias concretas da época", a condensação de um sentido de progresso em que o presente pensava o futuro, estimulando novas praticas arquitetônicas - como o uso pioneiro do ferro e do vidro nas construções de galerias e de palácios de exposições, além de gares de trens, expondo novas percepções espaciais à multidão urbana.
Para o filósofo Leandro Konder, desde a infância Benjamin havia se apaixonado pelas superfícies espelhadas, presentes nas inovadoras estruturas de ferro que sustentam as passagens parisienses.27 Para Benjamin, a Paris de meados do século XIX anunciava os novos tempos, "envolvidos por um clima de sonho realçado pela iluminação a gás". As galerias estimulavam os habitantes de cidades como Paris a novas percepções, com o "surgimento de novas maneiras de viver, sentir e perceber, havendo como que uma evolução histórica dos sentidos".28
O pensador alemão, parceiro de Teodor Adorno e Horkheimer, percebeu que as galerias construídas entre 1790e 1860, tornaram-se "miniaturas da cidade burguesa tal como ela desejaria ser", educando os sentidos dos que nela transitavam
Notas de rodapé:
26. O texto foi escrito em 1935 e nele o autor compreende as" passagens" como síntese da rua e interior das residências: "as galerias tornaram-se tecnicamente possíveis graças à aplicação do ferro e do vidro às construções, mas haviam se tornado economicamente necessárias como locais permanentes de exposição de mercadorias, uma das quais acabava sendo o próprio intelectual.". BENJAMIN, in: KOTHE Flávio (org.) Walter Benjamin: obras escolhidas. São Paulo: Ed.Ática, 1985, p.11.
27. KONDER, Leandro. Walter Benjamin; o marxismo da melancolia.
28. BENJAMIN, W. In KOTHE, op. cit. p.11.
Fim das notas de rodapé.
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Nesse contexto, as galerias criariam condições para que se realizassem passeios deslumbrantes, estimulando o consumo das mercadorias:
Nas passagens, o mundo da produção desaparecia e ficava só o espaço da circulação, do consumo, da compra e venda. O sonho da burguesia se corporificava: o luxo do paraíso encobria o inferno da exploração.
Em sua decadência, as passagens exibiam sinais que a burguesia gostaria de ver esquecidos. Davam testemunho dacatástrofe de uma emancipação fracassada.29
Como observaTurazzi, "os novos bulevares da capital francesa, modelo urbanístico para o restante do mundo nas décadas seguintes, dinamitaram a velha cidade medieval, estabelecendo no próprio traçado da cidade e no uso de suas ruas e calçadas uma radical transformação na experiência do tempo e do espaço".30
Nesse contexto, a emergência da fotografia, a construção das galerias, a valorização dos novos quadros técnicos e as exposições universais servem como signos dos novos tempos de hegemonia burguesa. Elementos de um reordenamento da visibilidade é detectada por Benjamin com o surgimento dos panoramas nas galerias: neles, imagens de grande dimensão e realismo provocavam nos espectadores uma experiência sensorial antecipatória da fotografia e da propaganda. O grand-mond parisiense passa a freqüentar esses novos espaços urbanos, transformando-os emlocais "onde são decididos os negócios e os amores, onde se manifestam as polêmicas e os modismos, para onde convergem escritores, pintores e também fotógrafos". Essa intencionalidade alterou as percepções do olhar e os comportamentos expressas, por exemplo, no percurso fotográfico de figuras lendárias para a história da fotografia que se instalam em grandes boulevard e galerias: Niepce, Daguerre, Nadar e Disdéri.
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A Reforma de Paris na gestão de Haussmann
Em "A Paris do Segundo Império na obra de Baudelaire", o escritor alemão recupera a literatura de Baudelaire e Edgar Allan Poe para interpretar as transformações que o capital promovia nas relações entre seus habitantes.
Notas de rodapé:
29. KONDER, op. cít, p. 80. As galerias surgiram por um lado, da capacidade da indústria de construção que em meados do século propunha o ferro e vidro, que se tornam a partir de então utilizado intensivamente em "templos do Estado" - como salas de exposições, estações de metrô, galerias comerciais - habituando enfim a população urbana a nova arquitetura nos templos do estado; de outro, a poderosa indústria têxtil francesa e a burguesia mercantil aliaram-se para a instalação dos magasins de nouveautés nas galerias, transformados em corredores de mercadorias de luxo.
30. TURAZZI, Maria Inês. Poses e trejeitos. A fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Rio de Janeiro, Brasília, Rocco, 1995. p.58-59.
Fim das notas de rodapé.
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Em "Paris, capital do século XIX", o ensaísta analisa a Paris da década de 1850, na gestão de Haussmann.
A verdadeira finalidade das obras de Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil. Ele queria tornar impossível que no futuro se levantassem barricadas em Paris. Com essa intenção Luís Filipe já introduzira o calçamento com madeira. Mesmo assim, as barricadas desempenharam um papel na Revolução de Fevereiro. Engels se ocupa com a tática das lutas de barricada. Haussmann quer impedi-las de duas maneiras: a largura das avenidas deveria tornar impossível erguer barricadas e novas avenidas deveriam estabelecer um caminho mais curto entre as casernas e os bairros operários. Os contemporâneos batizam esse empreendimento de "embelissement stratégique".31
Com a reforma urbana de Paris na gestão de Haussmann, definia-se os marcos da modernidade burguesa e os limites impostos na humanização dos seus habitantes. Paris, em meados do século XIX, havia se transformado em um grande centro, mercado consumidor para os produtos de uma indústria que rivalizava-se com a Inglaterra.32 Essa configuração implicou em novas demandas políticas e urbanas para a cidade, obrigando seus administradores a ajustarem o modelo urbano às exigências de segurança e circulação de mercadorias e de habitantes.33
A cidade burguesa e seu impacto sobre a visualidade
Walter Benjamin não se furtou em refletir sobre a nova lógica urbana, tomando como elemento de análise do urbano as galerias e os boulevard, atravessados por duas figuras aparentemente opostas: de um lado a multidão urbana e, de outro, a figura solitária do flaneur, que caminha na contra-corrente da multidão e a observa. Para ele, os boulevards parisienses tornam-se locais onde a multidão assume sua condição de espectadora.34 A multidão, "se acotovela e colide", educa seu habitante para a impessoalidade, habitante que se vê como uma imagem indigente e possuidor de um olhar não indagativo, confirmado no olhar do Outro, anônimo, diluido na multidão que o rodeia e que também o dissolve.
Notas de rodapé:
31. BENJAMIN, W. Op. cit, p. 42.
32. Marshal Berman assinala o crescimento populacional da capital francesa que, em vinte anos, cresceu mais de 25, atingindo em 1870 mais de um milhão, seiscentos e cinqüenta mil habitantes BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1986.
33. Vide BENJAMIN, "Paris, capital do século XIX", Rio de Janeiro, Ed. Ática, p. 41-42.
34. FERRARA, Lucrécio, D'Alessio. Olhar Periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo, Edusp, 1993.
Fim das notas de rodapé.
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Benjamin salva o flâneur da diluição na multidão ao lhe atribuir, na tradição de Poe e Baudelaire, um olhar crítico frente a cidade e seu cotidiano. Como assinala Godi, é Allan Poe quem anuncia em O mistério das multidões (1840), a transformação do cenário público, constituindo olhar e imagem personagens na cidade moderna:
A ação é de olhares: num final de tarde, um homem em processo de convalescença senta-se diante de uma grande janela de um café londrino e se distrai com "um cigarro na boca e um jornal no colo, ora esquadrinhando os anúncios, ora observando a promíscua companhia que havia no salão e ora espreitando a rua pelas esfumaçadas vidraças".
O personagem anônimo de Poe perscruta a também anônima multidão, que se movimenta pelo espaço público londrino e observa que "o maior número daqueles que passavam tinha um porte convencido de gente atarefada e parecia estar pensando apenas em abrir caminho pela multidão. Outros mostravam-se inquietos em seus movimentos, tinham rostos avermelhados e falavam e gesticulavam consigo mesmos como se sentissem solidão por causa da enormidade da densa turba em seu redor". O olhar cuidadoso do personagem não percebe exatamente as pessoas (nessa massa de gente que se movimenta para qualquer lugar), mas indivíduos classificados pelo jeito de ser e de se vestir, seres devidamente inseridos na realidade objetivada da sociedade da época; indivíduos que, como o observador, carecem de identidade e de substância.
A noite chega progressivamente e o homem percebe que a constituição da multidão modifica-se com a "gradativa retirada da parte mais ordeira do povo" e com a predominância dos indivíduos fora da ordem, que saem de seus antros e misturam-se à multidão. Mas uma coisa é verdadeira: a cidade moderna não se dobra aos rigores da natureza, e os lampiões de gás inventam um dia artificial para iluminar as faces desconhecidas".35
A cidade desenhada pela literatura não estimulava a comunicação entre homens, indigentes de uma cena opressiva. Aimpessoalidade e a incomunicabilidade transpiravam nos aglomerados urbanos. Para Godi, Benjamin identifica na literatura de Allan Poe e Baudelaire, "instâncias sociais tão poderosas quanto ocultas" pois, para o ensaísta, "a multidão metropolitana despertavamedo, repugnância e horror naqueles que a viam pela primeira vez.
Ao mesmo tempo em que reconhecia nos escritores como Allan Poe e Baudelaire a denúncia, Benjamin identifica na obra fotográfica de Eugène Atget a alienação imposta pelas grandes cidades, desumanizada em suas relações.
Nota de rodapé:
35. GODI, Antônio Jorge Victor dos Santos. "O Mistério das Multidões". In: OLIVEIRA, Marfny P. BRAGA, Ana LMa. Janela eImagens. Textos de Comunicação e Cultura Contemporânea. Salvador, Ed. Arte Contemporânea, 1995, p. 41.
Fim da nota de rodapé.
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Em suas fotos, feitas ao longo das madrugadas parisienses, a cidade é apresentada com seus grandes prédios e avenidas, sem todavia a presença de figuras humanas. Essa ausência cria uma atmosfera de abandono e fantasmagoria, desauratizada, como "a água bombeada por um navio que afunda".
Segundo Benjamin, o "olho politicamente educado" pode observar a crítica nas fotografias de Ateget. Em seus cenários urbanos, surpreendentemente vazios, figuram pontes, escadarias, pátios, terraços, cafés, despojados da presença humana, indiciando uma cidade abandonada que "ainda não encontrou novos inquilinos". O fascínio de Atget pelas ruas deserdadas de multidão implicava para Benjamin no esforço do fotógrafo em recuperar um elemento da fotografia raro em sua época, difuso apenas na pré-história da fotografia, quando o capital não disseminara sua lógica, causando uma "decadência no gosto".36
A visualidade fílmica: questões de percepção e reprodutibilidade
Consideremos dois momentos históricos de assistência a filmes em cinema Em 1894, os irmãos Lumière realizam uma projeção em sala para convidados, projetando frontalmente uma linha férrea e uma locomotiva vindo em direção à câmara. Como resultado, muitos espectadores levantam-se assustados e fogem da sala pensando no risco da imagem "transbordar" da tela e atropelá-los.
Em 2003, no filme "Matrix", os personagens envolvem-se em uma disputa onde encontram-se simultaneamente no espaço e tempo das relações entre homens e, simultaneamente, convivem em um universo paralelo, cibernético. As cenas ocorrem com congelamento de imagens ou em câmera lenta", com intenso recurso de computação gráfica, objeto de grande prazer pela assistência. Separando a platéia dos dois filmes encontram-se apenas 110 anos e uma enorme diferença entre o desenvolvimento da percepção sensorial, marcada pelo mundo das imagens e pela noção de instâncias da realidade.
Muitos estudiosos da obra de Walter Benjamin reconhecem sua preocupação com uma "doutrina da percepção". Segundo Couto, a modernidade estruturou as experiências sensoriais nos marcos de tecnologias até então inexistentes, marcadas principalmente pela visualidade, materializadas principalmente pelo advento do cinema e envolvendo os indivíduos na necessidade de seu"aparelhamento técnico", com impactos em seu modo de existência.37
Notas de rodapé:
36. BENJAMIN, op. cit., p. 228.
37. COUTO, Edvaldo Souza. A escola de Frankfurt e a dupla face da cultura In: OLIVEIRA, Braga. Janela e Imagens. Texto de Comunicação eCultura Contemporânea. Salvador, Arte Contemporânea UFBA.
Fim das notas de rodapé.
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Ainda na década de 1930, Benjamin reconhecia que a assistência a histórias filmográficas, permitiria às platéias desenvolverem novas percepções, cujas conseqüências transcendiam o mero consumo de produtos culturais.38 Para ele, haveriam transformações profundas do aparelho perceptivo. O aspecto fundamental desse processo envolveria a quebra de paradigmas sobre as obras de arte, envolvendo aspectos como unicidade da obra, valor de culto e de exposição, perda da aura, novas possibilidades de reprodutibilidade.
O estatuto privilegiado do original é questionado pela profusão e perfeição das reproduções. Numa arte como a fotografia ou o cinema, a reprodutibilidade é, desde o início, parte inerente da produção artística. O negativo do filme possibilita um número praticamente ilimitado de cópias do mesmo assunto, e seria um tanto discutível decretar que uma é mais o "original" ou "autêntica" que a outra, unicamente por ser a primeira de toda uma série.39
Distinta da tradição da pintura, convidando à contemplação de uma obra única, caracterizada pela imagem fixa, silenciosa, o cinema em sua prática reeduca a percepção visual para constantes mudanças de lugares e tomadas, golpeando permanentemente o espectador:
As técnicas de montagem, o jogo de câmeras, o dose, o corte e todos os extraordinários artifícios introduzidos pelo cinema, aliados ao divertimento e ao choque, nos tornaram mais aptos a uma atitude ativa, participante e mais exigente diante das antigas formas de aparição da obra de arte que convidavam à contemplação.
O espectador não tem tempo para abandonar-se a uma associação de idéias, uma vez que logo é interrompida bruscamente por uma sucessão de imagens.40
O cinema assim responderia às exigências contemporâneas de percepção, fundadas na descontinuidade, no ritmo irregular, nas superposições, nas trucagens, nas montagens, nos golpes de vista e jatos de imagens. Benjamin fascinava-se pela capacidade do cinema construir uma pedagogia de forma leve e distraída, impregnando os indivíduos com novas experiências sensoriais fundadas na descontinuidade e no fragmento.41
Notas de rodapé:
38. CARNEIRO, Nádia Virgínia. A obra de arte segundo Walter Benjamin e Martim Heidegger. In: OLIVEIRA, Braga (org.). Janelas e Imagens. Textos de Comunicação e Cultura Contemporânea. Salvador: Arte Contemporânea, UFBA, p.140.
39. GAGNEBIM, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Perspectiva, FAPESP, Campinas, 1994 (Coleção Estudos, n. 142), p.54.
40. BENJAMIN apud CARNEIRO, op. cit., p. 141.
41. COUTO, op. cit, p.65
Fim das notas de rodapé.
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Benjamin percebia com o surgimento do cinema um processo sociológico de grande impacto: a alteração das relações dos indivíduos com a "experiência" e a "memória", substituídas pelas "televivências" e pela desapropriação de sua condição de narrador. Contra essa situação, defendia que os grupos sociais excluídos, transformados pelo mercado apenas em consumidores, recuperassem seu direito de realizar experiências estéticas com os novos meios de comunicação.42
A reprodutibilidade e seus impactos sobre a aura
Uma situação curiosa ocorre na atualidade quando grupos em situações sociais diferentes (de alunos em passeios, de turista diante de uma paisagem, de amigos em festas) encontram-se no momento de se fotografarem: caso algum dos fotógrafos demore mais do que 15 segundos para registrar o riso ensaiado e a posição em pose logo começam os muxoxos, os assovios, as vaias. Alguém que você conheça que tenha interesse por fotografia e, nesses casos sugeridos, queira fazer uma foto mais, digamos "artística", com certeza logo seria constrangido e substituído na função de "fotógrafo oficial do grupo": aquele que recebe todas as máquinas para fazer a mesmíssima imagem rapidamente.
Ao serem reveladas, as fotos são contempladas e rapidamente inseridas em envelopes ou álbuns guardados ou trocados os negativos para amigos que não as registraram. Imaginemos se um desses grupos sugeridos vivesse as práticas dolorosas de registro presentes na pintura do século XIX: diversas sessões de pose, de horas, até que o quadro fosse concluído. Mesmo em fotografias ao longo do século XIX, a tecnologia até 1890 impunha períodos de silêncio e imobilidade que alcançavam minutos! Em ambos os casos, os modelos aceitavam com naturalidade esse "tempo social" e o resultado - o quadro ou a fotografia - possuía características especiais: eram únicos, sem cópias e o olhar presente nos modelos, refletia uma introspecção, um olhar "para dentro" que inexistem comumente nas fotos feitas modernamente. Essas imagens guardam a expressão de um tempo e de um lugar. Diríamos, usando o pensamento de Benjamin: de que teriam "aura"!
A reflexão de WalterBenjamin sobre o papel da fotografia na modernidade está associada a modificações na percepção do olhar. Em sua obra "Pequena história da Fotografia", o ensaísta reconhecia o impacto histórico dessa tecnologia sobre os processos da gnose. Filha da modernidade burguesa, a fotografia exemplifica novas práticas educativas ao olhar..
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O processo todavia, possuía sua perversão: os consumidores dispunham não do acesso propriamente ao original mas à sua imagem, não dispondo da oportunidade de se apropriar na plenitude daquilo que a obra guarda como singular: a aura do tempo de sua produção, expresso pela sua própria materialidade. Com o surgimento da fotografia, as obras de arte até então imagens únicas, compreendidas como objetos de culto e contempladas por elites sofreu um golpe: suas imagens passaram a ser reproduzidas e editadas em série.
A invenção do cinema pelos irmãos Lumière (1894) repropôs a percepção de tempo e de espaço, além dos próprios marcos da narrativa e da experiência por ela sugerida. Em ambos os casos, a utilização das invenções enquanto mercadoria, transformando seus espectadores em consumidores, levou menos de dez anos.
O que realmente é aura? uma peculiar fantasia de espaço e tempo: a aparição única de algo distante, por mais próximo que possa estar em uma tarde de verão, ficar contemplando uma cordilheira no horizonte ou um ramo que lancem sua sombra sobre quem olha - isto significa respirara aura desses montes, desse ramo. Agora se trata de "trazer as coisas para mais perto de si", ou melhor, das massas, uma tendência hodierna tão virulenta quanto a supressão do que é único em cada situação mediante a sua reprodução multiplicadora.
Diariamente se impõe de maneira iniludível a necessidade de se conseguir apoderar do objeto, do modo mais aproximado possível, em efígie, na imagem, ou melhor, na cópia dessa efígie, dessa imagem. E, incontestavel-mente, a cópia diferencia-se da imagem, como o demonstram jornais e revistas ilustradas. Na imagem, caráter único e durabilidade estão imbricados tão intimamente quanto fugacidade e reprodutibilidade o estão na cópia. Despojar o objeto do seu invólucro, a destruição da aura, é a marca registrada de uma percepção cujo senso para tudo o que é idêntico e equiparável no mundo cresceu tanto que, por meio da reprodução, também consegue arrancar isto daquilo que é único.43
Segundo Philippe Dubois esta é o núcleo das teorias benjaminianas sobre a fotografia, onde encontra-se o princípio de duplos: "distância" e proximidade"; "conexão" e "corte" (do signo com seu referente). Nesse contexto, é possível compreendermos a duplicidade da imagem fotográfica, verdadeira aparição (nos dois sentidos do termo): ao mesmo tempo visão alucinatória porque separada do objeto real a que se refere e, ao mesmo tempo uma imagem singular, indiciando o momento único de seu registro como fotografia.
Nota de rodapé:
43. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Flávio Kothe (org.). São Paulo: Ed.Ática,1985,p.228.
Fim da nota de rodapé.
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Com os novos meios de fixação da imagem, como a fotografia e o cinema, a unicidade de uma obra visual como a pintura tornam-se irrelevantes para o homem comum, tornando a cópia moeda natural entre as trocas e, o original, irrelevante.
Para o pensador alemão a história da fotografia no século passado poderia ser dividida em dois momentos: o primeiro, caracterizado pela maior pureza do processo, envolvendo técnicas ainda infensas à lógica do mercado;44 no segundo, o capital subordina ao mercado o desenvolvimento das técnicas e a produção de instrumentos, alterando a estética até então vigente, pelo seu rebaixamento ao gosto da maioria de consumidores, formada por pequenos burgueses.
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Para o flaneur aprendiz perder-se na cidade é a lição
No processo de educarmos nossa visualidade importa desconstruí-la visitando a cidade, observando a lógica que aprisiona o olhar em benefício de alguns espaços em detrimento de outros. A cidade é também construída por imagens, imagens fotográficas, imagens fümicas, imagens literárias que atualizam o sentido da cidade e seus espaços. Conhecer a cidade das imagens e seus cidadãos impõe conhecermos a imagem das cidades pela voz de seus falantes, no letramento de suas linguagens. Para isso, importa o aprendizado de percorrer as cidades visíveis e invisíveis como sugere o flaneur.
Dizia Walter Benjamin que se perder em uma cidade exige sabedoria e muito conhecimento. Para ele a cidade seria como uma floresta, existindo gargantas, grotões, vales, nascentes, precipícios. Toda cidade deteria uma lógica própria: para identificá-la seria preciso perceber suas inconfidências como aprendiz de flaneur: Como seu princípio educativo, caminhar na contra corrente do que desenham suas avenidas, observando seus habitantes, detendo-se nas multidões, caminhando com o olhar de quem tudo vê.
Um olhar que vê repara, indaga a direção da luz, o gradiente das cores, o movimento da forma, deliciando-se com as composições. O flaneur caminha sem destino, sem a ânsia de ter um ponto de chegada, de encontrar a hora marcada. Ele não foge dos olhares da multidão anônima mas a indaga, a rastreia, reelaborando seus sonhos, suas angústias, visitando as esquinas do acaso, na contra corrente da razão que obriga seus habitantes a uma circulação predestinada. O olhar flaneur não se predestina, caminha por todas as encruzilhadas, andarilho urbano de causas sem efeito.
Nota de rodapé:
44. No primeiro momento, a fotografia não fora contaminada pelos ditames da propaganda e dos jornais. O processo de fixação da imagem fotográfica ainda obrigava a um considerável tempo, levando "os modelos a viverem o momento não para fora dele, mas para dentro dele". Benjamin, Pequena história da fotografia. In: KOTHE (org.). São Paulo: Ed.Ática, 1985, p.223-224.
Fim da nota de rodapé.
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Bibliografia
BARROS, Armando Martins de. Da pedagogia das imagens às práticas do olhar: uma busca de caminhos analíticos. Rio de Janeiro, Universidade Federal do rio de Janeiro. Programa de Pós Graduação em Educação. Tese de Doutoramento, 1997.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987, 3ª edição.
—. "Pequena história da fotografia". In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre a literatura e história da cultura. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987, 3ª edição.
—. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas, vol. 2. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, 1ª edição.
—. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas, vol. 3. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, 3ª edição.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CARNEIRO, Nádia Virgínia. "A obra de arte segundo Walter Benjamin e Martim Heidgeer". In: OLIVEIRA, Braga (org.) Janelas e Imagens. Texto de Comunicação e Cultura Contemporâneas. Salvador, UFBA: Ed. Arte Contemporânea (140:144) 1995.
COUTO, Edvaldo Souza. "A Escola de Frankfurt e a Dupla Face da Cultura". In: OLIVEIRA, Braga (organ.). Janelas e Imagens. Texto de Comunicação e Cultura Contemporânea. Salvador: Ed. Arte Contemporânea, UFBA, 1995. (61:66).
FERRARA, Lucrécia. O olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: Edusp, 1995.
GAGNEBIM, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Perspectiva, FAPESR Campinas, 1994 (Coleção Estudos, n. 142).
GODI, Antônio Santos. "Os mistérios da multidão". In: OLIVEIRA, Braga (org.). Janelas eImagens. Textos de Comunicação e Cultura Contemporâneas. Salvador, Ed. Arte Contemporânea, UFBA, (41-45) 1995.
KOTHE, Flávio (org.) Walter Benjamin: obras escolhidas. São Paulo, Ed. Ática, 1985.
KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia.
TURAZZI, Maria Inês. Poses e trejeitos. A fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Rio de Janeiro, Brasília, Rocco, 1995. p.58-59.
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Iconografia Referente ao Capítulo
1840-Centro Comercial-Milão
Palácio de Cristal - Curitiba
1855 - Exp. Universal - Londres
Shopping Iguatemi - Vila Isabel
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Atividades Complementares
Oficina: Exposição Fotográfica em Cubos, Cilindros, Móbiies
Objetivos:
- oportunizar a observação dos espaços públicos e privados, em sua arquitetura e urbanismo, nem suas relações com impactos sensoriais e possíveis conseqüências na construção de hábitos, costumes e consumo;
- sensibilizar o aluno para apresentações didáticas sobre as relações sígnicas presentes nas fotografias no âmbito do ícone, do índice, do símbolo;
- explorar possibilidades plásticas da fotografia em papel plano e curvo, bem como seus impactos sensoriais nas formas de percepção do observador;
- estimular a discussão sobre as possibilidades de intervenção e interação expositor-exposição-observador mediante o uso de suportes que convoquem o observador à participação;
Estratégia:
- seleção de temas fotografáveis, referentes ao espaço de ruas comerciais, shoopings, supermercados;
- registro, revelação e ampliação das fotografias, com a possibilidade de ampliação em fotocópia;
- estudo das possibilidades do concurso de suportes em mobiles, ou cubos, ou cilindros e sua construção de forma a tornar possível que o lado oposto, isto é, a face oposta do suporte, detenham uma contra-informação, isto é, elementos que determinem a não neutralidade da construção da imagem ou do objeto fotografado.
Oficina: Análise de Séries de Cartões-Postais
Objetivos:
- estimular a identificação de mensagens estéticas, ideológicas e comerciais presentes na face fotográfica de cartões-postais;
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- favorecer o estudo da composição fotográfica dos cartões-postais, em sua confluência com a pintura;
- refletir sobre as confluências entre os discursos fotográficos e verbais presentes na produção.
Estratégia:
- Solicitação aos alunos para levarem cartões-postais de dois tipos: a) aqueles recebidos pelo correio pela família ou o próprio aluno, com mensagens no verso; b) aqueles vendidos em espaços públicos, reportando-se a pontos turísticos da própria cidade;
- Quando da aula, solicitar aos alunos que distribuam os cartões pelos temas a) Paisagem urbana; b) paisagens naturais; c) gente; d) Meio ambiente; e) População; f) religiosos.
- Quanto aos cartões efetivamente utilizados em postagem, com verso escrito, solicitar que os alunos os dividam por natureza do destinatário: a) criança; b) adolescente; c) adulto; d) idoso. Há uma variação por gênero e grau de relação (parente, amigo, namorada, pai mãe; irmão, primo).
Leitura: Comentários Sobre Proust: Memória, Educação e Fotografia
"No livro que inicia a obra de Proust, o narrador, ao relembrar a infância, conta o processo educacional instaurado por sua avó para iniciá-lo ao belo. Temendo a vulgaridade e a utilidade que atribuía ao processo mecânico e, assim mesmo, não conseguindo furtar-se ao novo veículo, a avó do narrador opta por uma estratégia oblíqua. Ao invés de presentear o neto com imagens diretas de monumentos arquitetônicos e acidentes geográficos, concentra sua escolha em fotografias de tais aspectos já tratados pela nobre arte da pintura. A catedral de Chartres, via Corot, as fontes de Saint-Cloud viaHubertRobert, oVesúvio viaTurner, são considerados instrumentos pedagógicos mais convenientes, embora o narrador não concorde de todo com o método que proporciona visão não exata e não descarta a presença do fotógrafo. O fotógrafo,eliminado da apresentação do monumento ou da paisagem, reassumia, contudo, os seus direitos ao reproduzir aquela interpretação do artista
A questão do código, freqüentemente escamoteada pelos defensores e pelos detratores da fotografia, coloca-se integralmente nesta simples frase de Proust. A fotografia cria uma visão do mundo a partir do mundo, molda um imaginário novo, uma memória não seletiva porque cumulativa. Em sua superfície,
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o tempo e o espaço inscrevem-se como protagonistas absolutos, não importa se imobilizados, ou até melhor se imobilizados porque passíveis de uma recuperação, feita de concretude e devaneio, na qual a aparente analogia se revela seleção, construção, filtro."45
FABRIS, Annateresa. "A invenção da fotografia: repercussões sociais". In: FABRIS, Annateresa (organ.) Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981, p. 35
Filme: "O livro de Cabeceira"
Título original "The pillow book". Direção de Peter Greenway. Baseado no romance de Sei Shamogon. Com Vivian Wu e Ewan McGregor. 150 min.
Sinopse: Drama. Baseado no romance da escritora japonesa Sei Shamogon, o filme conta a história da modelo Nagiko (com Vivian Wu), que procura o homem perfeito: aquele que tenha uma boa caligrafia e seja um ótimo amante. Quando criança, sempre que fazia aniversário, Nagiko era pintada com ideograma pelo pai, famoso copista em editora japonesa. Depois de algumas tentativas, Nagiko acaba conhecendo a pessoa ideal, um bissexual (com Ewan McGregor) que, no entanto, mantém relações com o editor que destruiu a vida de seu pai. Numa citação de "Romeu e Julieta", o casal faz um pacto de morte só cumprido pelo rapaz. A modelo, então, resolve recriar a prática da escrita de seu pai, escrevendo mensagens no corpo de homens que anunciam sua vingança dirigida ao editor.
Argumento: O filme aborda a confluência de linguagens, escritas, orais, visuais em suas relações com a memória e história. No enredo, os personagens principais utilizam-se de diferentes formas de escrita para o desenvolvimento da ação - fotográfica e escrita, em papiro, pedra, placas de argila, papéis, livros e pele humana. A obra assim, reflete sobre a construção do sujeito a partir dos instrumentos da cultura para a linguagem numa dialética tensionada por uma urbanização que implode com os valores mais estáveis, como a família.
Temporalidade: A narrativa não é linear e volta, retorna, avança e às vezes trabalha dois ou mais tempos simultaneamente, através de "janelas" abertas na tela principal, mostrando flash-backs do passado bem como pelo uso do preto e branco.
Nota de rodapé:
45. A passagem analisada por Fabris refere-se a obra de Proust, "Em Busca do Tempo Perdido", volume primeiroA procura de Swan", Porto Alegre, editora Globo, 2 edição, 1962 e edição de 1970, ambas nas páginas 41-42.
Fim da nota de rodapé.
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Uma cena recorrente ao longo do filme, que impregna a vida da personagem principal, a modelo Nagiko: o momento em que o pai, copista, pinta ideogramas no corpo da filha ao mesmo tempo que recita seu sentido (referente ao tempo de construção do mundo e o momento em que Deus, terminando a criação, resolve nominar o ser humano que cria), concluindo a pintura e a recita com um ideograma na boca da filha, local que é o símbolo da oralidade e ponto de partida na construção da linguagem e da escrita.
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As Imagens do Poder e o Poder das Imagens
Notas Sobre a Reforma Pereira Passos
Armando Martins de Barros
Malba Tahan, autor que povoou com suas histórias o universo infantil por gerações exemplifica no conto "O nariz do rei "Mahendra" o espaço mediador ocupado pelo fotógrafo diante de seus contratantes. No conto, o escritor convida às brumas de um reino no qual o monarca Mahendra era profundamente infeliz. A razão para tal era seu enorme nariz, proporcional à sua feiúra. Impossiblitado de alterar seu rosto, convida inúmeros artistas para pintá-lo com uma imagem favorável, sendo executados ao não atenderem ao gosto. E assim foram perdendo a vida fossem aqueles que o pintassem o mais belo possível, fossem os que o representassem realisticamente. Finalmente surgiu um artista que teve a graça de satisfazer o rei e acumular grandes riquezas. Astucioso, o pintor, como forma de evitar o risco do realismo ou da pura representação subjetiva, representou o rei em uma caçada, no exato instante em que mirava com sua espingarda uma presa, sendo seu rosto parcialmente encoberto pela arma, em momento de grande coragem.
Na produção social da fotografia envolvendo fotógrafos, contratantes, editores, distribuidores comerciais e espectadores o fascínio que a imagem carregava como verdade e sonho sempre foi um forte componente. Desde a divulgação da invenção na Academia de Ciências da França em 1839, a fotografia recebeu como "dote" a herança de uma objetividade que não lhe pertencia mas a qual todos erroneamente reconheceram. Seus maiores defensores foram, sem dúvida, os artistas e pintores, temerosos da capacidade da fotografia implodir com a longa tradição dos pintores retratistas que marcavam sua presença nas salas dos burgueses e aristocratas.
Todavia, o desejo da permanência como imagem que fica, não se restringiu apenas à nobreza e burguesia francesa, apta em adquirir fotografias que, em meados do século XIX, ainda era uma tecnologia de difícil e custoso
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acesso. O poder, materializado na figura de diferentes personagens da história francesa àquele período, foram atraídos pela oportunidade de construírem através da aparente objetividade da fotografia um testemunho isento de sua autoridade.46
É possível que, no restrito grupo sensibilizado pelo valor histórico-documental do daguerreótipo, encontrássemos o barão Haussmann, nomeado prefeito de Paris na década de 1850. A hipótese torna-se possível pelo intensivo registro das ações de seu governo. Demolição dos quarteirões, abertura de boulevards, obras de saneamento, construção de prédios públicos como escolas, teatros, hospitais foram fotografados e divulgados, servindo posteriormente como estratégia copiada por inúmeros governantes em diferentes países.
Entre os países cujas elites tinham como tradição a formação intelectual e profissional na cultura francesa encontrava-se o Brasil. Pertencentes às oligarquias agrárias, em um país onde a tradição da agricultura exportadora sempre fora radical, pintores, arquitetos, engenheiros, médicos no mais das vezes viajavam para Paris ao longo de todo o século XIX tendo contato não apenas com uma tradicional cultura cosmopolita como tinham acesso às novas tecnologias então emergentes como os processos fotográficos inventados em 1839 e suportes como cartões de visita, cartões estereoscópicos, cartões-postais que gradualmente permitiram à fascinante invenção tornar-se mercadoria de massa.
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A fotografia e suas relações com o Estado no Brasil
Desde meados do século XIX, ainda no Império, o governo brasileiro incorpora o uso da fotografia nos catálogos e stands de exposições realizadas no país e no exterior. Para muitos estudiosos, a incorporação da fotografia originava-se na crença de que ela ofereceria uma mediação favorável na disseminação de notícias sobre as realizações do Estado pois o recurso estaria associado à própria mensagem de desenvolvimento e progresso do país.47
Notas de rodapé:
46. Como observa Oliveira Jr., "Pela fotografia, dois fenômenos aconteciam: uma fé cega no que mostrava e a certeza de que a verdade poderia ser vista. O aspecto aparentemente não simbólico, por isso pleno de objetividade, das fotografias levavam-nas a serem compreendidas enquanto janelas e não imagens". OLIVEIRA JR., Antônio. Do reflexo à mediação: um estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta. Campinas, Universidade de Campinas. Programa de Pós Graduação em Multimeios. Dissertação de Mestrado, 1994. pp. 1411
47. Ver KOSSOY, Boris. KOSSOY, Boris. "Origens da expansão da fotografia no Brasil. Século XIX". Brasília, Funarte, 1980. p. 95. WOLFE Silvia F.S. CARVALHO, Maria C.Wolff. Arquitetura e Fotografia no século XIX In: Fotografia: usos e funções no séculoXIX São Paulo, Edusp, 1991. p.166. Oliveira Jr.,op. cit.,139).
Fim das notas de rodapé.
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Com o advento da República, ocorreu um esforço das elites no poder em divulgar uma nova imagem para o país rompendo com as representações associadas ao Império, enfatizando valores como a nacionalidade e a igualdade política, até então tensionados pela representação censitária e pela ordem escravista. A mudança do regime político implicou portanto uma mudança também dos símbolos imagéticos, sinalizando a instauração da República uma adesão aos signos de civilização, de modernização e de progresso. Nesse contexto, na Exposição Universal de Chicago (1893), o governo amazonense em conjunto com exportadores de borracha editou e distribuiu aos visitantes do stand do Brasil um álbum fotográfico sobre a região norte. O procedimento disseminou-se e foi utilizado na Exposição Universal de Paris pelo barão do Rio Branco ao editar o álbum Vues du Brasil"48
Uma verdadeira revolução cultural patrocinada pela elite da sociedade brasileira tem lugar no apagar das luzes do Império e do século XX Porém, principalmente a fotografia, enquanto registro expressivo de um cenário urbano, arquitetônico e social em processo de mutação, se vê utilizada pelos meios de comunicação impressa da época, tornando-se signo adequado de nova ordem desejada.49
Como observa Walter Benjamin, ao atentar para as modificações das formas de percepção com o advento das imagens técnicas, a sociedade brasileira crescentemente vai adquirindo um aparelhamento técnico consoante com a emergência das novas tecnologias. O crescente uso de fotografias pelos governos municipais, estaduais e federal, associado aos subsídios para o desenvolvimento de uma indústria editora de jornais, livros, revistas e cartões-postais levou à difusão crescente de uma cultura fotográfica cujos signos em sua conotação rapidamente passaram a ser objeto de disputa, adesão e convencimento.50
Instaurada a República, a década de 1890 assiste a um processo de ruptura com os valores do Império em um processo onde a dimensão imagética esteve na ordem do dia. Fosse com os intelectuais militares, na imposição de imagens positivistas, fosse no tratamento jornalístico das campanhas contra Antônio Conselheiro, no Arraial de Canudos, a produção literária e jornalística conviveram então com um novo parceiro: a fotografia de caráter documental contratada e difundida pelos governos.
Notas de rodapé:
48.TURAZZÍ, Maria Inês. Poses e Trejeitos. A fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Brasília, Funarte, Rio de Janeiro, Ed.Rocco, 1995. p.92.
49. KOSSOY, op. cit, p. 16.
50. A questão do "aparelhamento técnico" da sociedade, numa associação entre a literatura e a fotografia, nos termos propostos por Walter Benjamin em sua obra sobre "Paris, capital do século XIX" pode ser observado no excelente trabalho de Flora Sussekind,. Cinematógrafo de Letras. Literatura, Técnica e Modernização no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
Fim das notas de rodapé.
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Mas nenhuma outra produção teve um impacto tão grande na confluência de diferentes linguagens e na formação dos novos sentidos do que a associação da fotografia ao processo de reforma da capital da República, promovida sob a presidência de Rodrigues Alves (1902-1906), sob responsabilidade do prefeito e engenheiro Francisco Pereira Passos.
2. A fotografia surge como instrumento de divulgação
A trajetória de Francisco Pereira Passos expressa os diferentes percursos que o corpo de engenheiros formados em meados do século XIX realizam, sob a égide de transformações decisivas na infraestrutura viária e urbana do país. É sob sua responsabilidade que ocorre a mais radical reforma urbana até então realizada na cidade do Rio de Janeiro e que simultaneamente alterou radicalmente o conjunto arquitetônico do centro da cidade e demolindo mais de 600 prédios, introduzindo uma rede de grandes avenidas que refiguraram a circulação pelas zonas da cidade, construindo mais de vinte grandes prédios escolares para o ensino primário e criando o primeiro laboratório fotográfico estatal no país e o primeiro fotógrafo funcionário, com a função de documentar e divulgar as ações do governo.
Apesar de originário da aristocracia cafeeira fluminense, a trajetória profissional de Passos como engenheiro ferroviário vinculou-o às elites defensoras da modernização, da industrialização e do progresso. Bacharel, Passos realizou seus estudos de especialização em Paris, na década de 1850, testemunhando a remodelação urbana promovida pelo barão Haussmann e sofrendo, como de resto toda a categoria a que pertencia, a influência definitiva dos valores estéticos neoclássicos e ideológicos presentes na gestão de Haussmann.
Residente na cidade que doara a invenção da fotografia à humanidade, Passos testemunha a difusão da fotografia entre a elite parisiense ao mesmo tempo que, como engenheiro, assiste ao uso intensivo da fotografia como recurso documental e propagandística pelas empresas ferroviárias.
Regressando ao Brasil, Pereira Passos teve a oportunidade de acompanhar a documentação fotográfica de estradas de ferro por cuja construção ou consultoria respondia. Residindo em Curitiba por um ano, como consultor na construção da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá, Passos certamente conheceu Marc Ferrez, então fotógrafo contratado para documentar a construção da ferrovia. Na época, Ferrez era um profissional conhecido pelos serviços prestados à Marinha de Guerra, documentando inúmeras explorações na região norte e participando de exposições, fosse
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expondo suas conhecidas panorâmicas da cidade do Rio de Janeiro, fosse divulgando trabalhos de engenharia ferroviária da qual era especialista.
O convívio de Passos em espaços políticos e profissionais onde a prática fotográfica documental firmava-se sem dúvida influenciou-o quando prefeito do Distrito Federal (1902-1906). Nomeado pelo presidente Rodrigues Alves, Passos contratou os serviços de Marc Ferrez para a produção de um conjunto fotográfico enfocando a avenida Central, documentando sua construção de março de 1903 à novembro de 1906. No álbum, impresso pelo governo, as fotos registram as diferentes etapas da obra desde a demolição do antigo casario existente no traçado da nova avenida ao gradual surgimento da nova avenida, com detalhes de calçamento, pavimentação e da nova edificação que a margeava.
Como observa o historiador Oliveira Jr., a ação da prefeitura do Distrito Federal na constituição da primeira agência fotográfica oficial expressa um coerente processo de reconhecimento pelas elites da importância da fotografia como instrumento de comunicação de massa, veículo privilegiado de disseminação dos signos da nova ordem e "de uma nova mentalidade que se formava em relação ao progresso material".51
A fotografia como monumento à História
Le Goff, importante historiador contemporâneo, em clássico trabalho sobre as relações entre memória e história, observa que a preservação documental leva à constituição de verdadeiros "monumentos", erigidos com a intenção de marcar eventos ou processos sob a ótica daqueles que deles participaram. Para Le Goff importa ao trabalho do historiador a atenção para com essas marcações uma vez que o "documento" não se encontra naturalmente: ele é produzido teoricamente a partir da empiria.
Nesse contexto, o surgimento de inovador laboratório fotográfico como órgão de governo e a constituição da categoria de fotógrafo como parte do serviço público sugere não apenas a preocupação inovadora em documentar e utilizar-se de imagens fotográficas para divulgar e ilustrar documentos públicos (relatórios, mensagens, catálogos) como, principalmente, definir um horizonte histórico no qual a ação dos governantes pudesse ser julgada.
Poucos meses após sua posse, Passos cria na Diretoria de Viação e Obras um laboratório fotográfico com o fim de "realizar registros de caráter histórico-documental". Segundo o prefeito, sua gestão seria melhor julgada caso os historiadores, no futuro, dispusessem de documentos fotográficos "de incontestável valor para a história do Distrito Federal", permitindo a verificação "da transformação que operaram na cidade os melhoramentos em execução".
Nota de rodapé:
51. OLIVEIRA Jr., Antônio, op. cit, p. 115.
Fim da nota de rodapé.
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Para tanto, em sua mensagem à Câmara, em 1905, apresentava como objetivos do laboratório:
Documentar logradouros públicos que teriam seus traçados alterados, fotografar estabelecimentos ligados ao Município (escolas, hospitais, prédios históricos que seriam demolidos), festas organizadas pela Prefeitura (escolares, religiosas, inaugurações e comemorações públicas e cívicas) e, ao mesmo tempo, flagrantes do momento, como ressacas, enchentes, desabamentos.52
Em sua mensagem de setembro de 1905 à Câmara Municipal, Passos explicitou como uma das funções do fotógrafo a de acompanhar a reforma urbana da cidade, enfocando os edifícios e ruas que cediam lugar às novas edificações, servindo as imagens como "subsídios à história do Distrito Federal".53 De fato, se observarmos a intensa produção do laboratório fotográfico da prefeitura, é possível comprovar que o fotógrafo estava atento aos objetivos pretendidos. Apenas no ano de 1904, o laboratório confeccionou 245 clichês, correspondendo a imagens de 174 prédios desapropriados para a abertura da avenida Salvador de Sá, atual rua Uruguaiana.54 As imagens produzidas ilustravam relatórios documentos como o do Censo de 1906, as mensagens do Prefeito à Câmara dos Vereadores, os álbuns editados pela Prefeitura e os catálogos de exposições do governo. É significativo que, de um total de 1.236 chapas produzidas pelo laboratório em 1908, cerca de 240 foram utilizadas na Exposição Nacional de 1908, além de outras presentes na Exposição de Higiene e para o álbum "La Ville do Rio de Janeiro e ses environs".55
A receptividade nos meios políticos ao uso pelo poder executivo da fotografia como instrumento de poder foi de tal ordem que nas administrações sucessivas o projeto de documentação e de manutenção do laboratório teve continuidade. Nessa perspectiva, é significativo o discurso do prefeito Souza Aguiar no relatório sobre o Censo de 1906:
Notas de rodapé:
52. MENSAGEM DO PREFEITO À CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Abril, 1905, p.75
53. Em entrevista à jornal carioca, Malta posteriormente comentou sobre a importância da produção fotográfica que realizava:" destas imagens valia-se o pessoal da Prefeitura encarregado da avaliação dos imóveis a serem desapropriados. Quando os valores não satisfaziam os interesses dos proprietários, geralmente marcavam uma audiência com o prefeito e aí viam-se em "maus lençóis", porque jamais poderiam supor que estivesse cuidadosamente preparado, com farto material fotográfico, a cerca das ruas e prédios da cidade". In: OLIVEIRA Jr., op. cit., p. 108.
54. Mensagem do Prefeito à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Setembro, 1905, p.84.
55. Mensagem do Prefeito à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Setembro, 1908. Essa produção foi mantida na administração do prefeito Serzedello Correia (1909-1910) onde, nos primeiros nove meses de 1909, foram incorporados cerca de 190 clichês e 546 chapas.
Fim das notas de rodapé.
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Desejando dar ao trabalho feição de livro de propaganda, o que o tornará mais útil e apreciado, a Comissão Central o faz ilustrar com grande número de gravuras dos nossos principais edifícios públicos e de grande número das mais belas construções modernas, bem como dos monumentos da cidade e das magnificências de nossa natureza tropical.
A primeira década do século XX assiste assim a uma inovadora afirmação do Estado como produtor de mensagens fotográficas, não mais apenas contratando serviços mas, principalmente, tornando-se responsável por sua produção.
Bibliografia
BARROS, Armando Martins de. Da pedagogia da imagem às práticas do olhar: uma busca de caminhos analíticos. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorado em Educação, 1997.
FREUND, Gisele. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Veja Gabinete de Publicações, 1989.
KOSSOY, Boris. Origens da expansão da fotografia no Brasil. Século XIX. Brasília: Funarte, 1980.
Mensagem do Prefeito à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Setembro, 1905, p.84.
Mensagem do Prefeito à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Setembro, 1908.
OLIVEIRA Jr., Antônio. Do reflexo à mediação: um estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta. Campinas: Universidade de Campinas. Programa de Pós Graduação em Multimeios. Dissertação de Mestrado, 1994.
REVISTA BRASILEIRA. Brasilianisch Rundschau, n.5-6, de junho, 1912.
RELATÓRIO SOBRE O CENSO DO DISTRITO FEDERAL DE 1906. Prefeitura do Distrito Federal, Diretoria de Estatística, 1906.
TAHAN, MALBA. "O nariz do rei Mahendra". In: Maktub. Rio de Janeiro, Ed.Record, 1994.
TURAZZI, Maria Inês. "Poses e Trejeitos. A fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839 - 1889)". Brasília, Funarte, Rio de Janeiro, Ed.Rocco, 1995.
WOLFF, Silvia ES. CARVALHO, Maria C. Wolff. Arquitetura e Fotografia no século XIX. In: Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo, Edusp. 1991.(131:172)
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Atividades Complementares
Texto: O Nariz do Rei Maendra
MalbaTahan. Maktub. Rio de Janeiro: Ed.Record.1994. p.17-18.
Era uma vez um rei muito estúpido, que tinha um nariz torto, monstruoso, horrível. Não percebia, porém, o pobre monarca, a enormidade do seu defeito; julgava-se, ao contrário, um verdadeiro tipo de beleza masculina. Infeliz daquele que zombasse, ou de leve se referisse ao narigão disforme do rei! Punha a língua à mostra na forca mais próxima! Um dia o rei Maendra - já me esquecia de dizer que era este o nome do rei narigudo - disse ao seu ministro:
- Quero ter aqui, no palácio, um retrato meu, cuja perfeição e fidelidade todos hajam de gabar.
O ministro mandou chamar os melhores pintores do país. O prêmio prometido ao mais hábil era magnífico: um elefante, um palácio e uma caixa cheia de jóias. Apresentaram-se três artistas que passavam por habilíssimos: Kedar, pintor da corte; Miryem, de origem árabe; e o jovemFauziNalik, sírio de grande talento.
Kedar, tomando da tela, fez surgir de sob seus ágeis pincéis um retrato perfeito do rei; reproduziu o nariz do monarca exatamente como o modelo lhe mostrava - enorme e monstruoso. Quando o rei Mahendra viu a sua figura grotesca, nitidamente reproduzida no quadro, ficou furioso:
-Atrevido! Miserável! Fazer de mim semelhante monstrengo! E mandou enforcar o pintor.
Nerien, o segundo artista, ao ver o triste fim de seu companheiro, achou prudente não imitar a escola realista de seu malogrado colega. Isto de pintar os soberanos tal como eles são deu sempre mau resultado. E o árabe retratou o rei fazendo-o perfeito em todos os seus traços fisionômicos. Era aquilo uma verdadeira obra de arte.
Enfureceu-se ainda mais o monarca ao ver o novo trabalho. A figura feita por Meryen era bela, e em nada se parecia com o o original, de nariz singularmente feio. "- O Belzebu desse pintor quer zombar de mim! - gritou colérico o rei. - Esse retrato em nada se parece comigo! É, antes, um verdadeiro escárnio." E mandou enforcar o infeliz Meryem.
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Chegou, finalmente, a vez do jovem Fauzi Nalik, o pintor sério. "Estou perdido" - disse ele aos seus botões. "Se pinto o rei de nariz torto vou para a forca; se lhe endireito a cara, sou enforcado !". E todos na cidade já lhe lamentavam, por antecipação, o triste fim.
- No dia em que ele der o último retoque no retrato do rei, vai direitinho levar o pescoço ao baraço! Mas - com espanto geral - tal não aconteceu. O monarca ficou encantado com o trabalho do talentoso Fauzi Nalik.
- Este sim - proclamou, vaidoso e satisfeito - este é o meu verdadeiro retrato.
E mandou que sem mais demora se entregasse ao moço pintor a prometida e valiosa recompensa: um elefante, um palácio e uma caixa de jóias. Quando Fauzi Nalik, radiante e feliz, deixou o palácio real, viu-se cercado dos amigos que o cumulavam de perguntas: - Então? Como conseguiste o milagre? Pintaste o rei de nariz torto ou sem nariz? Conta-nos lá a proeza.
- Pois vou contá-la- respondeu o inteligente moço. - Pintei o rei exatamente como ele é. tive, porém, a idéia de imaginá-lo a caçar tigres, e a arma que ele levava ao rosto tapava-lhe perfeitamente o nariz grotesco e monstruoso ! - E ao afastar-se, risonho, acrescentou: - Se o aleijão do rei Mahendra, ao invés de ser no nariz, fosse nas pernas, eu o teria pintado a banhar-se num lago com água até a cintura.
Texto: A Cidade do Sol
Em 1639, o ex-dominicano Gian Domenico Campanella, após 29 anos recolhido à prisão, foi executado pela Santa Inquisição. Entre os crimes que o levaram a fogueira, encontrava-se a defesa das idéias de Galileu e sua ativa militância na defesa dos direitos dos camponeses da Calábria. Religioso, político e pensador, seis annos antes da execução, Campanella escrevera "A Cidade do Sol", apresentando em grandes linhas a organização de uma sociedade igualitária.
A obra vinculava-se à tradição dos utopistas. Ao longo dos séculos XVI e XVII, intelectuais como Thomas Morus e Campanella desenharam propostas para suas sociedades buscando superar os conflitos entre o saber medieval, teológico e o moderno, indiciado pela ciência nascente.56 Sua obra, guarda proximidade com a de Jan Amos Comenius (1592-1670) tanto no tempo quanto no interesse em divulgar sistematicamente conhecimentos através do tratamento didático das imagens.
Nota de rodapé:
56. MANACORDA. História da Educação. São Paulo, Ed. Cortez, Autores Associados, 1989, p.221.
Fim da nota de rodapé.
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Preocupado em elaborar alternativas que favorecessem o surgimento de uma nova cultura, berço de u mnovo homem, Campanella propunha uma educação continuada envolvendo o recurso intensivo às imagens em afrescos, tecnologia amplamente utilizada pelos artistas da época, em igrejasepalácios. Seguindo um ordenamento previamente estabelecido, os habitantes eram brindados com inúmeras informações em sucessivas pinturas murais.
Nos terraços e nas galerias superiores da cidade, o olhar dos passantes era capturado por enormes afrescos com informações advindas das ciências que na Renascença se constituíam. Campanella visualizava na cúpula do principal templo da cidade a exposição de uma pintura da esfera celeste informando sobre a grandeza das estrelas, da terra e dos planetas conhecidos. Entusiasmado, Campanella nas páginas do livro concebia os espaços de circulação e defesa da cidade como um momento privilegiado de apreensão da imagem pelo olhar.
O muro interior da pequena muralha é consagrado às matemáticas. Aí estão expostas todas as figuras geométricas. As definições matemáticas, o enunciado dos teoremas, dos problemas etc, figuram também sobre esta muralha curiosa. O muro exterior, na sua parte convexa, é consagrado à geografia. Cada país tem a sua carta acompanhada de um curto sumário em prosa, dando a conhecer as suas origens, as leis, os costumes, as cerimônias religiosas, a "raça" de seus habitantes.
Sobre o muro exterior representam-se os mares, os rios, os lagos e as fontes que existem no mundo, bem como as diferentes espécies de líquidos, tais como os vinhos, os óleos etc, com indicação de sua origem, das suas qualidades e das suas virtudes.
A explicação do granizo, da neve, do trovão e de outros fenômenos atmosféricos é dada por meio de figuras acompanhadas de breves inscrições.
O muro interior da terceira muralha trata do gênero vegetal. Como complemento das pinturas, são cultivadas plantas em vasos de terra ao longo do terraço de peristilo. Cada planta é objeto de uma nota em que são dadas todas as explicações sobre a sua analogia com outras plantas e com as coisas do céu, sobre a sua utilização médica etc. O muro exterior é reservado aos animais.
A Quarta muralha diz respeito aos pássaros, aos répteis, aos insetos. A Quinta muralha é reservada aos animais terrestres "mais perfeitos". No caso concreto dos cavalos, todas as suas espécies estão representadas nos painéis. O muro exterior da Sexta muralha é consagrado aos grandes homens de todos os tempos e de todos os países, compreendendo Jesus Cristo e Maomé.57
Nota de rodapé:
57. CAMPANELLA, apudDOMMANGET, Maurice. Os grandes socialistas e a educação. Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, pp. 61 - 62.
Fim da nota de rodapé.
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Poesia: Diante das Fotos de Evandro Teixeira
Carlos Drummond de Andrade São Paulo. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro, Record, 1985, p.63-64.
A pessoa, o lugar, o objeto estão expostos e escondidos ao mesmo tempo sob a luz, e dois filhos não são bastantes para captar o que se oculta no rápido florir de um gesto.
É preciso que a lente mágica enriqueça a visão humana e do real de cada coisa, um mais seco real se extraia para que penetremos fundo no puro enigma das figuras.
Fotografia -éo codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência
cristal do tempo no papel.
Das lutas de rua no Rio
em 68, o que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?
Marcas da enchente e do despejo,
o cadáver inseputável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York
a moça em flor no Jóquei Clube.
Garrincha e Nureyev, dança de dois destinos,
mães-de-santo na praia templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.
Fotografia: arma do amor, de justiça e conhecimento, pelas sete partes do mundo a viajar, a surpreender a tormentosa vida do homem e a esperança a brotar da cinza.
Filme: Cidade de Deus
Brasil, 2002. Dirigido por Fernando Meirelles. Co-direção: Kátia Lund. Baseado no romance de Paulo Lins. Roteiro de Bráulio Mantovani. Fotografia de César Charlone. Montagem, Daniel Rezende. Diretor de arte, Tule Peake. Apoio BR Distribuidora, Walter Salles, Daniel Filho.
Sinopse: O filme acompanha o crescimento do conjunto habitacional "Cidade de Deus", entre o fim dos anos sessenta e o começo dos oitenta, pelo olhar
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de dois jovens que moram na comunidade: "Buscapé" e "Dadinho". Buscapé sonha ser fotógrafo. Dadinho, troca de apelido e torna-se "Zé Pequeno", líder de quadrilha que trafica drogas na região. Com a violência com que afirma seu domínio, surge um rival: "Mané Galinha", que deseja vingança pelo estupro de sua namorada e a morte de seu irmão.
Temporalidade: A narrativa é feita em flash-back, iniciando-se o filme pela seqüência final e retornando para contar a história dos personagens envolvidos vinte anos antes. O personagem Buscapé narra em off, apoiado por diálogos dos diferentes personagens. Dentro de cada situação recortada pela narrativa há reconstituições feitas em ritmo acelerado. Um exemplo é quando da lembrança de como um apartamento em um prédio transforma-se, de residência familiar em boca de fumo de diferentes bandos sucessivamente, com narração em off e imagens das diferentes quadrilhas surgindo e logo depois dissolvendo-se tendo o apartamento como cenário. O filme pode ser discutido na perspectiva das relações entre memória e história, na perspectiva de como uma narrativa individual sobre seu percurso e de seu grupo no tempo articula-se à forma como a sociedade constrói suas representações a partir de diferentes valores.
Práticas Fotográficas: O personagem principal aborda seu exercício amador com uma máquina automática e como realizava fotografias com os colegas de colégio em situações fora da escola. Desejando tornar-se fotógrafo profissional, Buscapé emprega-se em jornal fazendo trabalhos de boy. Todavia envolve-se em um paradoxo: é obrigado porZé Pequeno a fotografar o bando que deseja sua foto publicada na primeira página do jornal. O bando o premia com uma máquina profissional mas sua foto tem a autoria tomada por uma jornalista. Na seqüência final, Buscapé consegue fotografar a extorsão feita por policiais que controlam os traficantes mas percebe não poder publicá-la.
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