Práticas Discursivas ao Olhar Notas sobre a vidência e a cegueira na formação do pedagogo


Oficina: Proposta de Fotomontagem com Três Formas de se Ver



Yüklə 1,11 Mb.
səhifə7/17
tarix02.08.2018
ölçüsü1,11 Mb.
#66344
1   2   3   4   5   6   7   8   9   10   ...   17

Oficina: Proposta de Fotomontagem com Três Formas de se Ver

Cada aluno deve construir com recortes de revistas e fotocópia de seu rosto, três composições em colagem. Cada composição deve necessariamente conter figuras-signos do que representa sobre si nos seguintes "tempos":

a) Como se vê;

b) Como as demais pessoas a vêem;

c) Como gostaria de ser vista;

Objetivos: A oficina pretende trabalhar os conceitos de "signos" icônicos, índiciários e simbólicos. A dimensão não neutra da imagem e a fotografia como não realista tem um excelente ponto de partida com a oficina.

(► Como me vejo

Como quero ser visto

Como me vêem

107


Filme: Baile Perfumado

Baile Perfumado. Brasil. Direção de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Diretor de Fotografia, Paulo Reis. 93min. Música de Chico Science. Atores principais: Duda Mamberti, Luís Carlos Vasconcelos, Chico Dias. 1997.

Como um homem procurado pela polícia gostaria de ser visto? Seguramente não seria pela forma usual como o Estado divulga sua caça - em cartazes com a foto emclose do rosto, com a palavra "procura-se" em letras garrafais. Mas, como, especialmente homens desgarrados de sua terra e sua gentes, espalhadas pelo sertão nordestino, nas décadas de 1920 e 1930 desejariam ser vistos pelos seus conterrâneos? Esse é o mote do filme "Baile Perfumado", de Paulo Caldas, sobre Lampião, Maria Bonita e seu grupo de cangaceiros

Para a realização, Caldas utiliza-se da superposição de dois tipos de filmes: o primeiro, mais recente, dele próprio, recriando a saga de Lampião e de seu grupo; o segundo, com imagens de época, feitas à pedido de Lampião, por um mascate.

1. A saga de Lampião

Virgulino Lampião morreu na década de 1930, em emboscada preparada por uma "volante" (patrulha) do governo da Paraíba, a partir da denúncia de um "coiteiro" (que facilitava esconderijos). Morto junto com sua companheira Maria Bonita e seu grupo, Lampião e os demais tiveram suas cabeças cortadas e até hoje encontram-se expostas em museu do sertão nordestino, como prova da força do Estado frente aos movimentos de resistência de todo aquele que queira revoltar-se.

O cangaço, como fenômeno social, não produziu uma ideologia própria. Todavia, necessitavam de coiteiros, "coronéis do sertão", sendo manipulados pelos latifundiários contra o governo local ou estadual. É nesse contexto que Lampião e seu grupo receberam mantimentos e armas para combater grupos político-ideológicos como a "Coluna Prestes" que, a partir de 1926, atravessa de sul para nordeste o Brasil, alcançando inclusive o sertão.

Nas décadas de 1920 Lampião era motivo de terror no sertão, ainda raramente cruzado por estradas para automóvel ou avião. Ainda que tendo uma morte "severina", Lampião vive no imaginário da cultura nordestina, numa representação ambígua de respeito, orgulho e temor. Suas andanças pelo sertão foram cercadas de coragem, crueldade e astúcia.

108

2. O filme documentário de 1930



O filme foi produzido por um mascate libanês, Abrahão, que vendia suprimentos para grupos do cangaço. Ele propõe a Lampião fotografá-lo e filmá-lo com seu grupo em seu cotidiano. As fotografias foram posteriormente vendidas para grandes jornais brasileiros. As tomadas em movimento feitas em película fflmica foram por ele reunidas em um filme abordando Lampião e Maria Bonita, bem como outros casais dançando, atirando, fazendo sua higiene e outras ações cotidianas de um grupo cangaceiro em constante movimento.

Após montado para exibição comercial, o governo federal proibiu sua exibição por temer que as imagens favorecessem a construção da lenda, da imagem de herói frente ao Estado. Ainda que fosse um filme em preto e branco, sem som original, o documentário retirava a imagem que o governo buscava impor aos cangaceiros como cruéis e sangüinários: as imagens registravam casais principalmente perfumando-se, dançando, como em um baile no meio da caatinga.

3. O filme de 1997

O diretor Paulo Caldas constrói a narração a partir do libanês mascate, através de suas memórias. Seu filme não se utiliza de música nordestina tradicional - repente, cordel, forró - mas de rock produzido pelo grupo Chico Cience, que atualiza a música originalmente americana com raizes nordestinas.

O filme de Caldas reconstrói imagens dos cangaceiros na caatinga exatamente com as tomadas feitas pelo documentário original e somente ao final, quando em seu enredo, Lampião sofre a emboscada fatal com seu grupo ele superpõe as suas imagens com as originais. O filme não mostra a morte e decapitação de Lampião. Seu compromisso é com um simbolismo e uma estética: no filme, um "macaco" (policial) esmaga com sua bota os óculos de Lampião no chão da caatinga.

4. A historiografia a partir dos filmes

A existência dos dois filmes sobre Lampião indicia que a Historiografia, como de resto, a própria história do cinema, é um campo de luta, onde pontos de vista ideológicos e estéticos tentam predominar sobre os demais. O cineasta para produzir sua obra realizou ações que o historiador necessita para realizar seus livros: consultar documentos de época - relatórios, jornais, literatura de cordel, músicas. A partir desse amplo leque recriar um

109


clima de época. Cineasta e historiador são contadores de histórias: imaginam e recriam a partir de dados que possuem, de investigações com documentos de época. Diferenciam-se na natureza do resultado: o historiador buscará aproximar-se o máximo possível de uma interpretação, de um ponto de vista sobre o que foi; o cineasta pretende oferecer sua visão estética, sem que ela seja necessariamente vista como a verdade.

Mesmo Lampião buscou definir uma herança, um "passado" para que a posteridade o visse. Elaborou um filme com tomadas decididas por ele, com seu ponto de vista. Nesse sentido, a obra de 1930 tem um tom de "monumento", de memória. O filme original, da década de 1930, ao ser censurado, expôs aluta entre visões sobre como o passado deve ser descrito.



Texto: Laços de Família

CORTAZAR, Júlio. Um tal de Lucas. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1982.

"Odeiam de tal maneira a tia Angustias que se aproveitam até das férias para fazer com que saiba. Mal a família sai para diversos rumos turísticos, dilúvio de cartões-postais em agfacolor, em Kodachrome, até mesmo em branco e preto se não há outros à mão, mas todos sem excessão cobertos de insultos. De Rosário, de San Andrés de Giles, de Chivilcoy, da esquina de Chacabuco com Moreno, os carteiros cinco ou seis vezes por dia chegam com as xingações, deixando tia Angustias feliz. Ela não sai nunca de sua casa, gosta de estar no pátio, passa os dias recebendo os cartões-postais e está encantada. Modelos de cartões: "Saúde, sua asquerosa, raios a partam, Gustavo"; "Te cuspo na cara, Josefina"; "Que o gato seque a mijadas as malvas, sua irmãzinha". E assim sucessivamente.

Tia Angustias levanta-se cedo para atender os carteiros e lhes dar gorjetas. Lê os cartões, admira as fotografias e torna a ler os cumprimentos. À noite, pega seu álbum de lembranças e vai colocando cuidadosamente a colheita do dia, de modo que se possam ver as vistas mas também os cumprimentos. "Coitadinhos, quantos postais me mandam", pensa a tia Angustias, "este com a vaquinha, este com a igreja, aqui o lago Traful, aqui o ramo de flores", olhando-os uma um enternecida e cravando alfinetes em cada postal, não porque possam sair do álbum, embora, de fato, cravando-os sempre nas assinaturas, sabe-se lá por quê."

110

Oficina: Fotografia: Registros de Orelhas, Boca, Mão, Nariz

Apartir de obra do artista plástico e fotógrafo Victor Muniz, solicitamos aos alunos da equipe fotografarem em close e em preto e branco seus rostos e pés. Reveladas, pedimo-lhes que recortassem as imagens em fragmentos temáticos: boca, orelha, olhos, nariz, dedos, calcanhar, palma do pé. Finalmente, reunimos esses fragmentos colando-os em cartolinas A4, em mosaicos temáticos onde, a cada folha, imagens de, por exemplo, todos os lábios em diferentes posições (sorrindo, com beicinho, muxôxo, semi sorriso etc), ou de todos os olhos (semi cerrados, piscando, fechados) ou de pés (com dedões, dedinhos, palmas de pé) ou de mãos (com dedos em diferentes posições).

Para nossa surpresa, o que foi inicialmente uma resistência geral em recortar a imagem fotográfica do seus rostos, tornou-se extremamente atraente e desejada quando perceberam o resultado. Sentem-se não apenas presentes nas imagens, (independente de se verem como corpo total) como "dentro" de um grupo, de uma relação, captando um processo uma estética que os faz conceber seus corpos numa realidade outra.

A participação não foi difícil, apesar do desconforto em alguns momentos, por exemplo, quando foi proposto que fizéssemos caretas, entretanto, o resultado foi muito bom e, acredito, numa próxima vez, o grupo ficará mais à vontade. (Érica Cortez)



Fragmentos dos "Sonetos", William Shakespeare

Qual é a tua substância, o que é que te opulenta?

que te servem milhões de imagens desiguais?

Cada ser uma só imagem apresenta,

Mas tu, sendo um somente, ostenta as demais.

Descreve Adônis: seu retrato, com certeza

Há de reproduzir-te, embora mal copiado

Põe nas faces de Helena as cores da beleza,

E novamente, à grega, eu te serei pintada.

Fala da primavera e da estação oprima:

De tua formosura, a sombra um revela,

Da generosidade a outra se aproxima.

Não há quem não te veja em toda forma bela.

Nas graças do universo és parte relevante,

Mas já ninguém te iguala em coração constante.

Nota de rodapé:

Consultamos a obra do artista em sites e assistindo a sua palestra em 19 de outubro de 2002, no Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. A proposta de mosaicos temáticos com o corpo partiu de obra realizado pelo artista, vinculada ao recorte dos olhos.

Fim da nota de rodapé.

111


As Fotos que Tenho na Carteira: Entre o Sentimento e o Documento

Notas Sobre a Produção Social da Fotografia

Armando Martins de Barros

Não há quem não se espante, quando

mostro o retrato desta sala,

que o dia inteiro está mirando,

e à meia noite em ponto fala.

("Retratos", Cecília Meirelles)

Você já se deu conta do que tem na carteira? É. Naquela, onde ficam seus documentos e seu dinheiro? Pronto, já disse: tem documentos, tem dinheiro. Ok, mas, além disso, tem normalmente um tipo singular de objeto que não serve a nenhuma atividade objetiva e que teimamos em manter na carteira. Algo que não apenas nos pertence mas fala de nós, nos simboliza de uma forma diferente: as fotografias dos meus queridos!

Caso solicitemos em uma primeira aula com turma de adolescentes que apresentem as fotografias presentes em suas carteiras teremos uma abrupta transformação: uma nova eletricidade corre a sala e surge imediatamente um outro clima. Surge, primeiro, um estranhamento sobre, afinal, o que é mesmo que esse professor louco está pedindo? Depois, uma certa dúvida se não é melhor dar um pretexto e sair da sala, pois pinta uma quase insegurança. Mas, se o aluno resiste à timidez inevitável, gradualmente surge um enorme prazer de ser conhecido e conhecer os outros colegas a partir não das fotos onde aparece, mas das fotos dos outros que carrega consigo.

A aula até então impessoal é ressignificada, num ambiente de cumplicidade e confidência. Os alunos, acomodados ao papel de ouvintes de conteúdos previsíveis são tensionados a falar de diferentes lugares, sendo as fotografias mediadoras de suas experiências com os outros no mundo, matéria prima de suas identidades e sua subjetividade. Eles intuitivamente percebem

113

que, falar das pessoas presentes em suas fotografias expõem quem é o seu portador, numa estranha e simbólica parceria.



O presente texto é, pois, proposto como introdução sobre diferentes lugares sociais que produzem a fotografia como sentido e identificam o discurso fotográfico que constrói o sujeito. A imagem é apresentada como uma produção social, surgindo numa relação entre homens que se fotografam, que solicitam a fotografia em suas relações e que a preservam como materialidade do tempo e do patrimônio, vestindo ainda afetos e desejos com essa forma bidimensional chamada "retrato".

  1. A fotografia como produção social

Carlos Drummond de Andrade em sua poesia observa que a fotografia é singular: quando a imagem "viaja" por décadas pode se tornar poliforme e polissêmica: "vinte anos é um grande tempo, modela qualquer imagem.

Se uma figura vai murchando, outra sorrindo, se sobrepõe." A concordarmos com essa poética visão devemos perguntarmo-nos: será que percebemos como as fotografias encerram significações? Temos a percepção de que elas expressam sentidos que se alteram no tempo e entre os indivíduos? Talvez não sejamos sensíveis a essas questões todo o tempo mas, como pedagogos, profissionais de ensino, podemos ser educados para apreender as distinções entre o "ver" e o "olhar", tornando a fotografia recurso que favorece a soci-abilidade, a cognição, a construção de sujeitos.

Um primeiro aspecto devemos considerar: nossa memória e atenção não registra o que vemos o tempo todo. Embora videntes, a luz externa refletida sobre os objetos impressione nossas retinas e seja transmitida quimica-mente até o cérebro, ocorre uma seleção prévia do que permanece na memória. Essa seletividade varia em função de nossa idade, de nosso sexo, de nossa experiência e nossas preocupações. Numa palavra: a "experiência do ver" varia em razão da cultura que nossa sociedade gesta.

Um índio que nunca tomou ciência da fotografia como tecnologia, caso fosse fotografado numa polaroid e imediatamente lhe oferecessem a foto, não se reconheceria na imagem, entendendo aquele papel apenas como um objeto colorido, fino, sem serventia. Por outro lado, caso esse mesmo indivíduo apresentasse seus cestos artesanais, apontando seu complexo trançado geométrico, dificilmente identificaríamos as borboletas que ele diz ter reproduzido como imagem

Mesmo em nossa sociedade, no cotidiano, nem tudo o que vemos damos significação e torna-se objeto de nossa cognição. Por exemplo, ao final de um dia, não teremos guardado na memória a imagem de todas as pessoas pelas

114


quais passamos nas ruas e nos locais onde transitamos. Todavia, memorizamos a forma de alguns indivíduos que chamaram nossa atenção, tiveram "sentido", "significaram" para nossa experiência no mundo.

Podemos então considerar que o ato do ver resulta de duas dimensões:

1) enquanto experiência oftal, neurológica, dadas pelas condições do globo ocular envolvendo a retina, o nervo ótico, os bastonetes e a disponibilidade cerebral para a identificação, a memória, a análise das formas visualizadas;

2) enquanto experiência cultural, gnoseológica, envolvendo uma prontidão cultural ao ver, uma predisposição cognitiva e afetiva para com as formas visualizáveis, detentoras potenciais de significação e sentimento enquanto experiência humana no mundo, particularizada nos costumes de uma sociedade, presente em um lugar e um tempo dados. "Ver", portanto, é uma experiência fisiológica e histórica. "Ver" é dar sentido ao visualizado.

Em seu filme mais recente "Dirigindo no escuro" (Hollywood ending, 2002), Woody Allen apresenta um diretor de cinema que resiste a fazer filmes financiados pelos grandes estúdios com receio de perder sua criatividade e crítica. Sua tensão chega a tal ponto que é acometido de uma cegueira emocional, como se o próprio aparelho ótico sofresse uma "interdição" psicológica. Para muitos estudiosos, a hipótese de diferentes dificuldades visuais ter início com impactos psicológicos sobre os indivíduos não pode ser descartada.

O ato de ver e de olhar não se limita a verpara fora Não se limita ao olhar visível mas, também, ao invisível. De certa forma, é o que chamamos de imaginação.

Se dizemos que são os olhos ajanela da alma firmamos com isso que nossos olhos são passivos. E que a luz dos objetos apenas ingressam em nossos olhos. Mas nossa alma e nossa imaginação tem também uma participação.

O que vemos é modificado por nosso conhecimento, nossos anseios, nossos desejos, nossas emoções e, até, pelas teorias científicas mais recentes. Veja, se um de nós ver raspas de ferro sobre um imã e soubermos do comportamento do campo magnético, acredito que isso entre no nosso imaginário e, assim, vamos "ver" o campo invisível do imã. Posso vê-lo sem o ver. Posso vê-lo com os olhos da mente.

Todos nós somos criaturas emocionais e creio que todas as nossas percepções, as nossas sensações e experiências, são carregadas de emoção pessoal. Acredito que a emoção fique, por assim dizer, codificada na imagem.9

Nota de rodapé:

9. SACKS, Oliver. Depoimento no filme "Janela da Alma". Sacks é neurologista e autor das obras de ficção, transformadas em filmes "Patch Adams", "A Primeira Vista".

Fim da nota de rodapé

115

Toda imagem que acolhemos é objeto de nossa cognição e sua existência objetiva é subjetivada, interiorizada como sentido, alcançando a esfera do simbólico. Isso fica claro quando nos detemos em uma cena do programa "Brasil Legal", com Regina Casé, com tema "Fotografia". A artista visitou lojas de revelação de fotografia, conversando aleatoriamente com pessoas que iam revelar imagens. Uma das entrevistadas, Dona Nelma, guardava com muito carinho fotografias tiradas pela filha: nas imagens Dona Nelma aparecia ora sem a cabeça, ora sem as pernas. Para Dona Nelma, não importava (dizia: - Vou juntar as fotos) pois fora sua filha amada que havia feito a foto.

A foto que mais emocionava Dona Nelma, era de sua professora alfabetizadora no Mobral. Na foto que retira da carteira ela apresenta a docente figurando ao lado do quadro negro e, no verso, a confluência de sentidos que fazem da experiência da escola um percurso primeiro de sentimentos: "para minha querida aluna Nelma, de sua amiga e professora, Silvia". Dona Nelma fora alfabetizada apenas com 54 anos e a foto de sua professora traduzia a vitória de sua auto-estima, de sua capacidade de sonhar e realizar.


  1. A objetividade indesejada: a foto em documentos oficiais

Na sociedade ocidental moderna, as fotos com função mais óbvia são aquelas que servem a documentos identificando-nos seja como brasileiros, seja como estudantes, seja como motoristas ou sócios de algum clube ou associação. Embora essa visão realista da imagem esteja presente desde a invenção da fotografia em 1839, somente com a popularização dos processos de revelação, barateando-a ao início do século XX permitiu sua difusão e uso pelo Estado, obrigando ao seu recurso em documentos oficiais como as fichas policiais, identificando cidadãos em processos e inquéritos.

Talvez a mais famosa forma do Estado utilizar-se da fotografia é conhecida via os filmes de faroeste: a identificação de indivíduos procurados pelo Estado onde, acima das fotos frontais de rosto, com a legenda do nome de cada um figurava em letras garrafais: "procura-se". No Brasil, seu uso foi iniciado para o controle de trabalhadores, com sua inserção em carteiras de trabalho, permitindo que se tornasse mais fácil a identificação dos indivíduos e daqueles que eram acusados de agitação.

Em que pese essas imagens serem, por norma legal grandes, claras, em close, dificilmente temos simpatias por aquelas em que figuramos. Nesses casos, a fotografia está associada a uma formalidade, a exigências burocráticas onde a experiência afetiva encontra-se ausente e a imagem serve apenas para ilustrar dados como origem familiar, número de identificação, impressão digital.

116


Essas fotografias, conhecidas como "3 por 4", são comumente feitas por fotógrafos pouco comprometidos com nosso ideal de beleza, indiferentes aos nossos caprichos, ao nosso olhar que sempre deseja nas fotos apresentar o riso em uma face leve, como a de quem abraça o futuro com esperança. Nessas indesejadas fotografias, somos forçados a uma postura, a uma estética da qual discordamos e contra a qual silenciosamente resistimos, deixando o documento (e sua foto) o mais escondido possível em nossas carteiras. É compreensível que ao perdermos ou trocarmos documentos detentores dessas imagens, estas não tenham um destino glorioso: são deixadas, abandonadas "ao léu", órfãos de um álbum que as dignifiquem.

As fotografias 3x4 somente dispõem de um futuro promissor quando tem a sorte de serem ressignificadas, humanizadas em seu sentido por uma parente, amiga ou namorada querida que, para além da figuração "vê" a imagem "com outros olhos", transbordando da figuração um sentimento de pertencimento que une indivíduos numa intersubjetividade na qual a foto cumpre misteriosa mediação.



  1. Imagem e subjetividade: meus queridos 3x4!

Existe uma crônica de Veríssimo sobre dois soldados em umabatalha onde sofrem a saudade dos familiares queridos. Presos a uma trincheira, um deles sofre menos porque vez por outra retira umas fotos da carteira para se consolar. Até que o outro, desamparado de fotos, pede emprestada a foto da namorada do parceiro para ficar olhando e ter um pouco de saudade de alguém que veja:

- Mas você nem sabe como ela é - diz o que tem a namorada.

- Sei, diz o outro. Vi a fotografia dela que você tem na carteira. Você mesmo me mostrou.

- Mas a fotografia é ruim. Ela não se parece com a fotografia!

- Melhor, diz o outro. Assim você tem saudade dela como ela é e eu tenho saudade dela como aparece na fotografia.

Combinam então que um pode Ter saudade da namorada do outro. Pode pensar nela, pode sonhar com ela. Mas...

- Olhe lá heim?Nada de intimidades.

- Pode deixar. Não precisa se preocupar. É só para ter saudade. Com todo respeitoo.

Em nosso cotidiano, não estamos distantes do diálogo sugerido por Veríssimo. Curiosamente, em nossas carteiras é comum termos um maior número de fotografias que não nos retratam mas que valorizamos com enorme carinho.

Nota de rodapé:

10. VERÍSSIMO, Crõnica"Umfeijãozinho.". Jornal O GLOBO, primeiro caderno, 6 de julho de 2002.

Fim da nota de rodapé.

117


Quem se apresenta nessas imagens? filhos, netos, irmãos, amigos(as), amor, ex-amor, futuro amor, pais, alunos, professores. Porquê carregamos essas fotos, verdadeiros álbuns fotográficos íntimos? Essas imagens do Outro nos documentam, construindo um discurso que nos apresentam, nos formatam como sujeitos detentores de afetos. O olhar, então, encontra-se associado a sentimentos perante o mundo.

O olhar é sempre condicionado.

A gente não conhece as coisas como ela ssão. As coisas são mediadas pela nossa experiência.

Oolhar é uma interpretação. Tudo o que a gente olha, está mediado pelos nossos conceitos, pelos nossos valores. As vezes, a gente passa diariamente diante de um muro, sempre vê o mesmo muro. Mas, num determinado momento, aquilo se abre diferente. Parece outra coisa, coisa nunca vista antes."

As fotografias presentes em nossas carteiras falam da ordem de uma outra lógica pois as imagens constróem um sinuoso discurso para o sujeito que as porta, construindo uma identidade, uma subjetividade feita de diálogos silenciosos entre imagens e memórias. As fotografias expressão uma cisão no tempo pois, de um passado recolhe-se um fragmento visual que acompanha o presente como se fosse um universo paralelo com um outro tempo aí, um lugar ali e não aqui. As fotografias dão sentido, significam, de uma forma diferente daquelas estranhas e horrorosas imagens presentes nos documentos


  1. Quando a magia da fotografia vira feitiçaria.

Não é incomum conhecermos alguém que tenha realizado um estranho ritual em uma fotografia que conserve. Falo do delicado processo de minuciosamente recortar com tesoura a figura de alguém de uma fotografia. Ao vermos fotografias que sofreram essa radical intervenção é natural nos perguntarmos se o que permanece como significação é, de fato, a figuração que restou ou a punição do esquecimento que o dono da foto se sentencia, recorrente a cada vez que olha a ausência que as bordas da figura "desretratada" indiciam.

Na maioria das vezes, isso ocorre em situações de desamores, entre jovens, quando a figura em questão torna-se persona non grata nas relações que constrói seu universo. Ou a foto presente em porta retratos, localizado em escrivaninha, em estante, é retirada da fruição do olhar, deixa de ser reverenciada como objeto de culto tornando-se maldita e, caindo em desgraça, deve ser esquecida.



Nota de rodapé:

11. Paulo Lopes, depoimento no filme "Janela da Alma".

Fim da nota de rodapé.

118


O esquecimento significa "não ver" e sofrer o processo de perder a materialidade presente na fotografia. Embora aparentemente curioso e estranho, o procedimento é usual em situações políticas e em relações pessoais, fazendo emergir contradições psicológicas, políticas e ideológicas.

No filme "Faça a coisa certa" (Do the right thing, 1989), o diretor e roteirista Spike Lee desenvolve a história a partir de uma pizzaria de família italiana que ostenta na parede do restaurante fotografias de entes queridos e de artistas que admira. Em dado momento, clientes exigem que estejam retratados figuras notáveis da comunidade negra, majoritária no bairro e na pizzaria. A resistência do proprietário em fazê-lo catalisa sentimentos represados da população quanto a discriminação racial existente na sociedade americana até o clímax em que a pizzaria é incendiada.

No período de quase três décadas em que Stalin governou com seu grupo a União Soviética, figuras públicas que o contestaram perderam não apenas a vida como foram sumariamente apagados das fotografias nas quais estivessem presentes com o ditador ou com personagens cultuados da história da Revolução de 1917. Exemplo desse processo encontra-se eminúmeras fotografias ondeTrasky foi meticulosamente substituído pelapaisagem.


  1. Yüklə 1,11 Mb.

    Dostları ilə paylaş:
1   2   3   4   5   6   7   8   9   10   ...   17




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin